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O Modelo Produtivo Cinematográfico Brasileiro: Dimensionando a Importância das

Alianças entre os Atores do Campo


Autoria: Everton Rodrigues da Silva, Daniel Paulino Teixeira Lopes, Reynaldo Maia Muniz

Resumo
Apesar do crescente interesse acadêmico pelas indústrias criativas, esse campo encontra-se
em desenvolvimento. Isso posto, o objetivo do artigo é investigar a estrutura produtiva da
indústria cinematográfica brasileira, mapeando a importância das alianças para a
competitividade no setor. Utilizou-se a técnica de estudo de casos múltiplos, que se alinha à
natureza exploratória do trabalho. Constatou-se que a atuação na indústria está condicionada à
visão do empreendedor e à capacidade do mesmo em realizar alianças, em especial, com o
distribuidor e com a Globo Filmes. Observou-se também que as características estruturais da
indústria conferem um poder central ao distribuidor.
1. Apresentação

A expansão global dos mercados, a velocidade dos avanços tecnológicos, o


desenvolvimento de inovações e o crescente compartilhamento de informações por meio das
tecnologias de informação e comunicação são aspectos que caracterizam o momento atual de
transição econômica e social. Em função dos altos níveis de investimento e risco enfrentados
pelas empresas, as alianças estratégicas surgem como uma importante ferramenta no contexto
empresarial, caracterizado por novas formas de competição (Pellegrin et al., 2007).
Balestrin e Verschoore (2008) mencionam que a nova competição é marcada pela
especialização flexível, por um aprimoramento contínuo dos produtos e serviços, pela parceria
com fornecedores, clientes e concorrentes – em condições de competição e cooperação - e
pela compreensão de que as relações de compartilhamento são uma importante habilidade
empresarial.
No campo da indústria cinematográfica estes fatos e cenários não são diferentes.
Assim, o foco deste trabalho é: (i) conhecer a concepção dos empreendedores à frente das
produtoras de cinema sobre a sua própria atividade profissional, verificando a relação desta
visão com o posicionamento de mercado das empresas que dirigem; (ii) e verificar a
relevância das alianças estratégicas para a produção, distribuição e consumo de uma obra
cinematográfica, buscando revelar as conexões e desconexões entre tais elos, que
caracterizam a competitividade no setor em análise.
Tendo como referências a investigação do campo cinematográfico e as teorias da
estratégia empresarial, com ênfase na literatura sobre alianças, o cinema foi compreendido
sob seu aspecto mercadológico (aproximando-se dos trabalhos de Kirschbaum, 2006; e Matta
e Souza, 2009), como o fazem a indústria audiovisual em países como EUA, França, Itália,
que tem de manter uma estrutura produzindo custos fixos e metas, retendo competências e
talentos no setor. Significa que, no contexto brasileiro, foram deixadas de lado (ou tratou-se
com menor profundidade) outras abordagens, fatores e tecnologias, tais como os efeitos
estéticos das tecnologias digitais na narrativa cinematográfica (Gerbase, 2003; Hayashi, 2003;
Cannito, 2004), a discussão sobre políticas públicas e tributárias para a indústria
cinematográfica e audiovisual e a visão em relação à avaliação dos investimentos em Cultura
(Fundação João Pinheiro, 1998a; Fundação João Pinheiro, 1998b; Audiovisual, 2000; MINC,
2000; Brant, 2002; Reis, 2007; Souza, 2008; Calabre, 2011) e os condicionantes da demanda
pelo consumo de cinema e o investimento em salas de projeção no Brasil (MINC, 1998;
BNDES, 2000; Luca, 2004; Reis, 2007; Earp e Sroulevich, 2008).
Entende-se que, a despeito da importância da indústria cinematográfica, sob o ponto
de vista econômico e simbólico, tal setor é ainda pouco estudado, do ponto de vista de sua
organização produtiva (modus operandi) e gerencial, como apontaram Bendassolli et al.,
(2009), em suas recomendações para futuras pesquisas sobre o fenômeno das indústrias
criativas, da qual o cinema faz parte.
O artigo está dividido em seis partes. Nesta primeira, o objetivo é esclarecer o recorte
teórico e o objeto de estudo do trabalho. Na segunda, serão apresentadas as bases conceituais
utilizadas e, na sequência, a investigação feita sobre o campo cinematográfico.
Posteriormente, descreve-se a orientação metodológica adotada, na quinta parte, a análise da
pesquisa e, por fim, as considerações finais.

2. A reflexão estratégica e o amadurecimento das alianças empresariais

Bethlem (2002) entende o processo estratégico como uma atividade de aprendizado


contínuo. O autor apresenta quatro objetivos corporativos genéricos - lucro, crescimento,
sobrevivência e prestígio - que influenciam as escolhas empresariais. Na mesma linha,
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Mintzberg (1994) menciona que toda a organização deve funcionar como um ciclo virtuoso de
aprendizado, favorecendo a geração de ideias. A formalização de estratégias é importante,
mas não deve impedir a flexibilidade para se considerar a intuição e criatividade latentes.
Abell e Hammond (1979) acreditam que a definição do negócio é o ponto de partida
do planejamento estratégico, por duas razões principais: (i) é uma atitude criativa, que pode
afetar a saúde do negócio; (ii) em função de sua interdependência com outras decisões
estratégicas, a concepção do negócio e sua segmentação precedem logicamente as outras
decisões estratégicas. Esta concepção primeira da atividade gerencial manifesta-se no
conceito de intenção ou intento estratégico, proposto por Hamel e Prahalad (1989). Os autores
conferem um status especial ao estabelecimento de uma posição de liderança desejada em
conjunto com critérios para o alcance desta posição. Diferentes trajetórias tornam-se possíveis
em função da heterogeneidade das firmas quanto aos recursos, rotinas, capacidades e
competências (Penrose, 2006; Chandler, 1997; Barney, 1991; Nelson e Winter, 2005; Foss,
1997; Coriat e Dosi, 2002; Valladares et al., 2012). Portanto, para alcançar seu intento
estratégico as empresas precisam interpretar seu ambiente (interno e externo) tecnológico,
institucional, cultural e social, atentando para o que pode ser e deve ser mudado de forma a
ajustar objetivos e metas para obtenção de vantagens competitivas.
O trabalho sobre teoria econômica evolucionária de Nelson e Winter (2005, p. 32)
enfatiza a importância das rotinas – termo que designa “todos os padrões comportamentais
regulares e previsíveis das firmas” – para determinar, em conjunto com outros fatores
endógenos e exógenos à firma, sua lucratividade e expansão ao longo do tempo.
Nesse contexto, faz-se presente o debate sobre as alianças estratégicas como fonte
redutora de anacronismos, assimetria de informação e, difusora da inovação, em duplo
sentido, ela própria entendida como uma inovação gerencial e, ao mesmo tempo, vista como
um meio para o desenvolvimento de conceitos, processos administrativos e produtos.
Pettigrew (2003, p. 334) salienta que “culturas de aprendizagem mais flexíveis são
necessárias à medida que organizações procuram se tornar mais inovadoras nas suas formas e
processos”. Na perspectiva do autor, a inovação abrange mudanças nos processos (inserção de
tecnologia da informação, de práticas de recursos humanos, dentre outros), nas estruturas
(achatamento hierárquico, descentralização decisória, por exemplo) e nos limites da firma
(alianças estratégicas). Sobre este último aspecto, Chesbrough (2006) ao abordar o conceito
de inovação aberta (open innovation) introduz a ideia de que conhecimentos externos aos
limites empresariais são essenciais para o ganho no volume de novos produtos, diversidade
dos processos inovativos contemporâneos, redução de custos e velocidade da difusão. O autor
aponta as alianças como um dos mecanismos que devem ser utilizados pelas firmas, a fim de
obterem acesso a recursos deficitários. Tal paradigma desloca o foco da firma, enquanto
elemento central da inovação, para as redes colaborativas, constituídas por agentes da cadeia
produtiva, tais como fornecedores, clientes, distribuidores, governo e competidores.
De igual maneira, Powel, Koput e Doerrsmith (1996, apud Pellegrin et al., 2007, p.
315) ressaltam que “a dispersão das fontes de conhecimento tende a tornar as redes, em vez de
firmas individuais, o locus da inovação”. Na mesma linha de pensamento, Shapiro e Varian
(1999) afirmam que as organizações não são capazes de fornecer todos os componentes que
fazem parte de um sistema e, por isso, também devem focar nos parceiros.
Barney e Hesterly (2011) afirmam que uma aliança existe sempre que duas ou mais
empresas cooperam em determinado negócio (desenvolvimento, produção ou venda de
produtos/serviços, etc.), sem que haja perda da autonomia das partes. Na visão dos mesmos,
as alianças podem ser agrupadas em três categorias: sem participação acionária (a gestão entre
as partes é feita por acordos de licenciamento, de fornecimento e de distribuição); com
participação acionária (existe a parceria entre as partes A e B, mas a empresa A tem
participação acionária na B); e joint venture (ou união de risco - as empresas parceiras criam
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uma empresa independente). Os autores apresentam três motivadores organizacionais para a
formação de alianças: a criação de um ambiente competitivo favorável, a melhoria do
desempenho; e o auxílio na entrada/saída do mercado.
Doz e Hamel (1998) denominaram tais motivadores de imperativos estratégicos (ou
lógicas de criação de valor), resumindo-os também a três aspectos: cooptação de rivais e de
firmas complementares; coespecialização - necessidade de combinação de recursos
complementares, a fim de obter acesso a novos mercados e criar ou adquirir oportunidades
que as empresas sozinhas poderiam não conseguir; e necessidade de aprendizado através das
alianças, visando suprir déficits de habilidades e adquirir novas competências.
Powel (1990) afirma que existe um enfoque exagerado na ideia de que as motivações
econômicas são as principais impulsionadoras da formação das redes empresariais. Lopes e
Baldi (2009) compartilham esta opinião e asseveram que os estudos dominantes sobre a
formação de redes possuem um viés economicista. Perspectivas mais contextualizadas e
divergentes à esta corrente vão salientar aspectos como confiança, reciprocidade e reputação
como mecanismos importantes da formação de redes (Lopes e Baldi, 2009).
Burt (1999) menciona que existem dois aspectos em uma estrutura de rede que
impulsionam a disseminação da informação: o contágio e o capital social. O primeiro depende
de uma forte coesão entre o emissor e o receptor da informação e da existência de uma
estrutura de pensamento similar (equivalência estrutural). O contágio por coesão influencia o
intercâmbio entre os grupos e o contágio por equivalência dentro do grupo. O segundo
consiste na ideia de que uma ampla rede de contatos tende a melhorar a qualidade das
decisões tomadas, a detecção de oportunidades e ameaças.

3. Conhecendo o campo de pesquisa: a indústria cinematográfica brasileira

No Brasil, a indústria do audiovisual é constituída, grosso modo, por três setores


interdependentes (MINC, 1998; MINC, 2000), conforme Tabela 1.

Tabela 1:
Sistema de valor do cinema
Grupo Principais atividades Principais representantes
 concepção do projeto do filme, visto sob duas
formas: a criação artística e o planejamento
 Produtoras nacionais - atuação
do negócio;
em parceria (com empresas de
PRODUTOR  filmagens e finalização do filme;
comunicação/distribuição) ou
 organização da infraestrutura (equipamentos,
produção independente.
materiais, escritório, estúdios etc.) e
engenharia financeira.
 Majors (grandes estúdios
 Comercialização do filme;
americanos);
 Geração de cópias físicas e distribuição das
 Distribuidores independentes,
DISTRIBUIDOR mesmas;
normalmente de capital nacional
 Marketing e divulgação do filme (formação
(Copacabana Filmes, Rio Filmes,
de público).
etc.).
 Investimento em infraestrutura e
equipamentos;  Detentores de salas de projeção
 Projeção de filmes nas diversas janelas ou de cinema;
EXIBIDOR
suportes audiovisuais: salas de cinema, TV  TV aberta e fechada.
por assinatura, locadoras, TV aberta, internet,
novas mídias.
Fonte: MINC (1998) e MINC (2000).

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A produção é constituída por empresas envolvidas na elaboração do produto
audiovisual. A distribuição é dominada por estúdios norte-americanos, conhecidos como
majors distributers. Elas exercem um poder quase oligopolístico, dominam o segmento de
comercialização de filmes, home video e de televisão em quase todos os mercados nacionais
do globo. O grupo exibidor é composto pelas janelas de exibição: salas de cinema, home
video, TVs aberta e por assinatura, internet e novas mídias. Existe um déficit de cinemas no
país, o que prejudica o setor produtivo, já que esta janela consiste no principal canal de
escoamento da produção e na principal mídia para o filme. Segundo o IBGE (2006), apenas
8,7% dos municípios brasileiros tem salas de cinema (apud Bahia, 2012). Os mercados de
DVD, TV paga e TV aberta representam receitas crescentes (Matta e Souza, 2009), mas
marginais.
As restrições advindas da natureza da competição do setor de distribuição e da
pequena sinergia entre cinema e outras janelas, principalmente a TV aberta, constituem traços
marcantes do mercado nacional e fazem dos incentivos governamentais (tratados a seguir) a
“mola mestra” do polo produtor, opinião compartilhada por Bahia (2012).
A principal fonte de financiamento da produção cinematográfica nacional são as leis
de incentivo fiscais (MINC, 2000; Reis, 2007; Matta e Souza, 2009; Bahia, 2012). A Tabela 2
resume o funcionamento dos principais mecanismos e agentes financiadores.

Tabela 2:
Leis de incentivo audiovisuais (resumo).
LEIS DE INCENTIVO AUDIOVISUAIS
Agente Agência Nacional de Cinema (ANCINE) - através da autorização e acompanhamento dos
responsável projetos audiovisuais, promove o fomento indireto da indústria nacional.
- Artigo 1º.
Principais - Artigo 3º.
mecanismos - Lei Rouanet.
fiscais - Artigo 39 – MP 2228-1 (isenção CONDECINES).
- Artigo 41 – MP 2228-1 (FUNCINES).
Grosso modo, os instrumentos do governo federal estão apoiados nos seguintes pilares:
- isenção de taxas referentes à comercialização de obras audiovisuais;
Como - alocação de parte do imposto de renda devido para investimento na produção.
funciona? - possibilidade de incluir os investimentos em cultura no abatimento das despesas para o
cálculo do imposto de renda.
- fundos privados.
- Artigo 3º da Lei do Audiovisual: as empresas que tipicamente se enquadram neste
instrumento são as majors e as programadoras estrangeiras de TV por assinatura (como
Mecanismos
Discovery, Fox, HBO e MGM, por exemplo). Este mecanismo viabilizou a parceria entre
mais relevantes
o produtor e tais empresas, dando impulso à produção.
no contexto
- Artigo 39: vem possibilitando que produções nacionais sejam incorporadas na grade de
deste trabalho
programação das programadoras de TV por assinatura, podendo também ser exibidas na
grade internacional ou em qualquer outro segmento de mercado.
Fonte: Adaptado pelos autores de ANCINE (2005).

Almeida e Butcher (2003, p. 31, apud Bahia, 2012) mencionam que “apesar de todos
os enormes avanços, a política baseada no incentivo fiscal não foi suficiente para firmar uma
efetiva base industrial para o cinema brasileiro”. A principal crítica é que “O que houve foi
uma política voltada para o estímulo da produção de filmes; mas não se buscou a implantação
de uma indústria cinematográfica dentro de um modelo de reinvestimento permanente para a
própria atividade” (Bahia, 2012, p. 70), mesmo apesar de ajustes feitos nos mecanismos
inicialmente propostos, na década de 90, pelo governo federal.

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Cabe ressaltar que no atual arranjo da indústria nacional, as distribuidoras
(especialmente as majors) têm se revelado importantes agentes de financiamento da produção.
O “adiantamento sobre futuras receitas”, que consiste no montante referente aos direitos de
distribuição do filme, liberado antecipadamente pelos distribuidores para viabilizar a
produção (filmagens e pós-produção) de um filme (Sousa, 2003; Luca, 2004), tem sido
comumente utilizado pelos produtores como uma importante fonte de financiamento.
A articulação entre a produção, distribuição e exibição, em especial entre os dois
primeiros, é um fator-chave no planejamento do projeto audiovisual (Hori 2007; Matta e
Souza, 2009). No entanto, o Ministério da Cultura (MINC, 2000) alerta que uma parcela dos
produtores desconsidera a complementaridade dos diferentes elos da cadeia produtiva. Este
fato pode ser exemplificado por meio da relação distante entre a televisão e o cinema.

Apesar do tamanho e da influência da televisão, o seu crescimento ocorreu


desvinculado da indústria cinematográfica. Alimentada, basicamente, pela
produção de telenovelas e minisséries, a demanda da televisão por filmes
não é satisfeita por produtos nacionais. (MINC, 2000).

O crescimento da televisão no Brasil não gerou uma fonte de renda relevante para a
sustentabilidade da indústria de cinema, fato ratificado por Bahia (2012).
Os dados sobre a rentabilidade e as funções dos agentes na indústria são escassos, às
vezes divergentes e de baixa confiabilidade. Partindo-se das informações fornecidas por Luca
(2004), a Tabela 3 mostra um panorama da distribuição de tarefas no ciclo comercial do
cinema e o percentual da receita líquida para cada agente, considerando a janela cinema.

Tabela 3:
Participações na receita e responsabilidades dos agentes na cadeia cinematográfica
PRODUTOR
É o agente que efetivamente produziu a obra e geriu esse processo.
25% da receita líquida

- Assume as despesas com o lançamento do filme (P&A – Prints & Advertising),


com o fornecimento e logística (tráfego, conservação e armazenamento) de cópias
DISTRIBUIDOR
para as salas de exibição e demais gastos.
25% da
- Frequentemente, o distribuidor faz um adiantamento de capital (ou adiantamento
receita líquida
sobre futuras receitas), que consiste num montante referente aos direitos de
distribuição do filme, que é liberado antecipadamente para viabilizar a produção.
EXIBIDOR
Responsável pela manutenção e operação das salas de cinema.
50% da receita líquida

Fonte: Luca (2004).

Os acordos comerciais estabelecem que as receitas iniciais com o lançamento do filme


nos cinemas são destinadas, primeiramente, ao reembolso das despesas incorridas pelo
distribuidor. Assim, o produtor terá acesso a alguma arrecadação após o pagamento integral
destas despesas. Além desses ressarcimentos, o distribuidor cobra um percentual do
faturamento pelos serviços de distribuição do filme, que varia de acordo com os riscos, os
investimentos realizados e os territórios onde a obra será veiculada (Luca, 2004).
Complementando o entendimento sobre a organização do campo, cabe destacar que:
 o produto cinematográfico é um bem intangível, caracterizado por um alto custo de
produção da primeira cópia e por custos marginais de replicação.
 a produção audiovisual envolve um alto risco. A dificuldade de prever o comportamento
da demanda confere volatilidade ao negócio, característica típica de atividades que
transformam ideias criativas em mercadorias. As produtoras se veem obrigadas a
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trabalhar com uma carteira de projetos, onde cada filme é um projeto de investimento. A
rentabilidade da “carteira” está apoiada no subsídio cruzado entre os filmes;
 a susceptibilidade ao fracasso exige uma blindagem econômica, conseguida, pela
indústria americana, através de uma participação vertical na indústria, de uma produção
em escala e da criação de mercados para escoar o alto volume de produção (MINC,
2000). No Brasil, a verticalização da cadeia não aconteceu;
 o fluxo de receita do filme é concentrado no período inicial do seu ciclo de vida. Devido
à elevada oferta de filmes, a dependência de um trabalho de formação do público é alta.
Daí a extrema relevância das atividades de marketing, divulgação e distribuição (MINC,
2000), conferindo elevado poder às majors.
Lampel e Shamsie (2003) elegeram, no contexto da indústria americana de cinema,
duas capacitações indispensáveis. A primeira consiste na habilidade de mobilizar recursos
(mobilizing capabilities) e diz respeito às rotinas necessárias para identificar e reunir os
recursos necessários para a realização de um filme, notadamente os criativos (produtor,
diretor, roteirista e elenco). A segunda, chamada de capacidades transformadoras
(transforming capabilities), abrange as rotinas que orientam e monitoram os processos que
utilizam tais recursos, dentre eles desenvolvimento de script, iluminação/fotografia, liderança
do diretor, performance dos artistas, etc.
Os autores relatam que a maturidade da indústria e a consequente mudança de olhar
sobre o cinema revelaram que o problema central para os estúdios passou a ser garantir que os
recursos-chave estarão disponíveis no local e momento corretos. Projetos interrompidos em
sua fase de preparação (e que, muitas vezes, já contam com o envolvimento de roteirista,
diretor e/ou produtor e/ou elenco principal) representam uma significativa perda em termos de
custo de oportunidade. Assim, a habilidade de levantar os recursos para viabilizar um filme
(destaque para os recursos criativos) é fator-chave para assegurar vantagem competitiva. Nem
sempre foi assim, lembram os autores. No primeiro estágio de evolução da indústria (até a
década de 40), o alcance do sucesso estava predominantemente ligado ao domínio dos
processos-chave de produção (desempenho operacional).

4. Procedimentos metodológicos

Um estudo de caráter exploratório tem como objetivo sugerir perguntas, não encontrar
conclusões; familiarizar-se com o fato; descobrir perspectivas; permitir a identificação de
problemas para estudos posteriores (Yin, 2005; Cervo, Bervian e Da Silva, 2010; Malhotra,
2011). A pesquisa apresentada neste artigo enquadra-se nesta dimensão metodológica. Foi
utilizada a técnica de entrevista em profundidade através de um roteiro semiestruturado,
contendo perguntas abertas, que buscaram incentivar uma exposição livre e profunda. Ouviu-
se quatro profissionais (sócios ou executivos principais das empresas) que trabalham em
produtoras cinematográficas na cidade do Rio de Janeiro: Domingos Oliveira (produtor
independente), Diler & Associados, Conspiração Filmes e Globo Filmes.
Os respondentes foram selecionados com base na reputação individual e na
repercussão de suas empresas, formando uma amostra por conveniência. Trata-se de uma
técnica não probabilística que possui limitações, como o viés de seleção. Outra
particularidade é que os resultados obtidos são restritos às organizações estudadas, não
permitindo generalizações e extrapolações. Quanto à adequação desta à natureza da pesquisa,
Malhotra (2011, p. 276) assevera que:

As amostras por conveniência não são apropriadas para a pesquisa descritiva


ou causal cujo objetivo é inferir conclusões. Contudo, elas são úteis na

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pesquisa exploratória cujo objetivo é gerar ideias, adquirir novas
compreensões e desenvolver hipóteses.

O problema central da pesquisa foi desdobrado em dois núcleos temáticos de


investigação, explicitados na Tabela 4.

Tabela 4:
Núcleos temáticos de investigação
NÚCLEO TEMÁTICO PERGUNTAS DA PESQUISA INSPIRAÇÃO TEÓRICA
- Qual a concepção do líder da empresa
Pensamento e sobre a atividade de fazer cinema e sobre
Abell e Hammond (1979); Mintzberg
posicionamento o contexto empresarial que está inserido?
(1994); Bethlem (2002).
estratégicos - Qual a relação destas percepções com o
seu posicionamento de mercado?
- Qual o desenho, a complexidade e os Powell (1990); Doz e Hamel (1998);
Formação de alianças e marcos decisórios de um projeto Burt (1999); Minc (1998); Minc
geração de resultados cinematográfico? (2000); Lampel e Shamsie (2003);
na indústria - Quais os modelos de alianças, de Luca (2004); Kirschbaum (2006);
cinematográfica financiamento e retorno do projeto de Matta e Souza (2009); Barney e
cinema? Hesterly (2011); Bahia (2012).
Fonte: Elaborado pelos autores.

A investigação do campo cinematográfico e o subsídio teórico forneceram as bases


conceituais para a determinação de tais núcleos e para a elaboração do roteiro de entrevista.

5. Análise da pesquisa

A análise da pesquisa foi conduzida a partir dos núcleos temáticos de investigação.

5.1. Pensamento e posicionamento estratégicos

Existem diferenças na percepção dos entrevistados sobre o que é fazer cinema. Qual a
importância desta constatação para a abordagem gerencial dessa pesquisa? A discussão
infindável sobre “cinema é arte” ou “cinema é indústria” será, mais uma vez, inevitável ao se
falar de cinema. Infelizmente ou felizmente, não será possível fugir deste assunto
completamente, mas, nesta análise, o tratamento dado à concepção do cinema (arte vs
indústria) será diferente do convencional, à medida que, observou-se, na prática, que a
concepção sobre a realização cinematográfica cria ou desfaz, dependendo do ponto de vista
analisado, restrições no ambiente de atuação dos entrevistados. Estas restrições, interpretadas
sobre os preceitos da estratégia, influenciam diretamente na definição do negócio destas
produtoras e nas alianças necessárias para executar o seu projeto. Esta é uma constatação
importante, dentro do recorte de pesquisa proposto neste artigo.
De fato, o levantamento de campo mostrou que o modo de compreender o cinema tem
implicações diretas sobre os modelos de produção e posicionamentos de mercado,
evidenciando um paralelismo teórico com Abell e Hammond (1979). Grosso modo, em um
extremo, tem-se Domingos Oliveira, que defende a ideia de que “cinema é arte”. No outro,
encontra-se a Diler & Associados, defensora do cinema indústria. As citações a seguir,
expressas na Figura 1, exemplificam esta dicotomia.

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É miopia achar que arte é apenas entretenimento e diversão. Essa é uma de suas
Domingos Oliveira facetas. Arte funciona como um regulador social, ela dignifica o homem, educa,
transmite valores.

Nós desenvolvemos um processo próprio, porque nos posicionamos como


indústria. Existem vários posicionamentos de uma produção cinematográfica.
[...]. O que é visão artística cinematográfica? É você... como um quadro ou uma
poesia ou como um livro você é inspirado por algum motivo, por alguma ideia e
você desenvolve e realiza sem nenhum compromisso externo, sem observação
Diler & Associados da realidade ou sem dimensionamento da perspectiva de retorno. Você vai para
o mercado vender e pode ou não vender [produtivismo]. [...] A era do
produtivismo foi substituída pela era do marketing. O que é o marketing em
essência? Ao invés de você produzir e ir ao mercado vender, você vai primeiro
ao mercado e ouve o mercado, observa a realidade e vê quais são os problemas e
encontra as oportunidades.
Figura 1. Visão dicotômica do conceito de cinema.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir das entrevistas realizadas.

Globo Filmes e Conspiração possuem posicionamento que mistura os elementos


mencionados acima. No que diz respeito à primeira, dois balizadores definem o seu modelo
de atuação:

Balizador 1: valorizar e fortalecer o conteúdo audiovisual nacional. [...].


Então tem um posicionamento político e estratégico importante nisto;
Balizador 2: formar público - assim, o segundo grande objetivo estratégico é
como a gente entraria nesse mercado, como a gente contribuiria para formar
público, para aumentar o número de espectadores de filmes nacionais?

A empresa pertence ao maior grupo de comunicação do País, portanto, é inegável que


este aspecto exerça influência no seu posicionamento:

[...] a televisão para sobreviver [...] depende diretamente da audiência. Mas o


que é a audiência? É você saber interpretar, por pesquisas, por metodologia,
o que a população gosta. [...]. Então está no sangue das pessoas da televisão
essa sensibilidade com o telespectador. O que acontece na minha avaliação
no cinema, principalmente do Cinema Novo para cá (não sou um especialista
nisto)... o Cinema Novo [...] não era um cinema popular e aí como modelo
de negócio, é um modelo terrível [...].

A Conspiração Filmes tem ainda outro posicionamento, baseado num viés artístico
forte. Seus sócios são em grande parte diretores de filmes publicitários, documentários, etc. e,
em todo projeto, um deles é o líder. Segundo o entrevistado, este aspecto a diferencia
radicalmente da Diler & Associados. Porém, o que a difere do Domingos Oliveira, é que suas
produções são voltadas para o grande público. Pode-se dizer que a Conspiração tenta unir dois
conceitos em suas obras: liberdade de criação (capital simbólico) e orientação ao mercado
(capital financeiro). Assim, conforme apontou Bethlem (2002) – e não seria equivocado
compreender o conceito de intento estratégico de Hamel e Prahalad (1989) como semelhante -
as organizações almejam, além do sucesso financeiro, prestígio (Conspiração Filmes),
crescimento (Diler & Associados), sobrevivência (Domingos Oliveira) e
prestígio/crescimento (Globo Filmes).

5.2. Formação de alianças e geração de resultados na indústria cinematográfica

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Lampel e Shamsie (2003) afirmam que a atividade cinematográfica é um
empreendimento baseado em projeto, dotado de etapas. Empiricamente, constatou-se que o
ciclo de vida de um longa-metragem possui três fases: seleção, planejamento e execução. A
primeira delas é a escolha do roteiro. A segunda pode ser compreendida como a determinação
do design do projeto e a principal tarefa realizada é a captação de recursos para execução do
filme. A última é a realização das filmagens. Estas três fases estão ligadas ao elo produtor da
indústria. Neste estágio são estabelecidas alianças com fornecedores de equipamentos, por
exemplo. Mas é também nesta etapa que se articula a participação dos agentes distribuidores
e, em menor grau, dos exibidores. Portanto, a formação de alianças com ou sem participação
acionária, utilizando a terminologia de Barney e Hesterly (2011), surge no nascimento do
filme, desde a etapa de seleção, resultado convergente com Matta e Souza (2009).
Tradicionalmente, sabe-se que as majors são um importante parceiro no projeto
cinematográfico. A Conspiração Filmes revelou que além de sua contribuição financeira, os
mesmos usam seu expertise para avaliar a viabilidade comercial de um determinado projeto.

O que acontece é que o distribuidor usa dinheiro público para ficar seu sócio
e ter garantia de distribuição. Mas isto fomenta o cinema nacional, até
porque você conversar com o distribuidor é melhor, pois ele entende de
cinema e o diretor de marketing de uma empresa não necessariamente. Ele
busca outros objetivos, são interesses distintos.

O trecho acima corrobora o texto de Rocha (2004) e Matta e Souza (2009), que
observou que a participação das majors seleciona a oferta de filmes ao mercado, exigindo que
os produtores brasileiros dediquem maiores esforços ao processo de seleção dos projetos a
serem filmados. Outro aspecto interessante sobre a rede de alianças que se estabelece um
filme, é a participação da Globo Filmes como parceira. A empresa apoia o filme de duas
maneiras: oferta de mídia e consultoria artística e, eventualmente, cedendo atores do seu
casting. A Diler & Associados trouxe um elemento novo ao revelar que a produtora recorre a
um “agente financiador externo”, ou seja, a um investidor de risco (não necessariamente
vinculado ao mercado de cinema), que decide aportar recursos e se tornar cotista do produto
cinematográfico. Nem todas as produtoras, conseguem a participação deste agente, pois ele se
une ao filme por razões financeiras, mas a identificação desse investidor “pessoa física” está
atrelada ao capital social (Burt, 1999) detido pela produtora.
Diante deste cenário, surge uma importante reflexão: qual a lógica de criação de valor
(Doz e Hamel, 1998) das alianças realizadas? Flexibilidade, instinto empreendedor e
capacidade de análise do mercado parecem guiar a formação de parcerias na Diler. Talvez
sejam estas características que conferem sustentação para a empresa cooptar seus parceiros.
Em Domingos Oliveira, flexibilidade e instinto empreendedor também devem ser ressaltados,
mas a percepção obtida é que a coespecialização é o principal imperativo estratégico na
costura das alianças. No seu caso, recursos escassos e habilidades específicas são combinados
com a expectativa de explorar nichos da indústria cinematográfica (mercado cinematográfico
independente). A Conspiração Filmes também possui uma tendência à coespecialização, com
destaque para o relacionamento da empresa com a Globo Filmes e com a major. Por fim, a
Globo Filmes tende a estabelecer suas alianças praticamente através da cooptação de seus
parceiros, dado sua visível superioridade de mercado (capacidade de seleção de projetos,
amplitude de divulgação e fôlego financeiro), frente às produtoras brasileiras de cinema.
No que diz respeito ao modelo de financiamento do setor, pelo que foi apurado, a
estrutura padrão é composta por: produtor – coprodutor – empresa privada (via artigo 1º);
distribuidor (via artigo 3º); investidor de risco (recurso próprio) – merchandising (empresa
privada). Com exceção do último, todos, em geral, tornam-se cotistas do filme.
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Podem participar do arranjo acima a Globo Filmes, os fornecedores de infraestrutura
(iluminação, equipamentos de filmagens, etc.), as produtoras complementares (edição,
finalização, etc.) e os talentos do filme (atores, diretores, produtores, roteirista e autor da
ideia). Dependendo dos acordos estabelecidos, todos podem ser cotistas. A Tabela 5 revela o
quadro societário de um filme, a partir das informações obtidas da Diler & Associados.

Tabela 5:
Quadro societário de um projeto cinematográfico.
Sócios do filme Percentual da cota
Major – artigo 3º 40% (variação: 30% a 40%)
Globo Filmes 15% (variação: 15% a 20%)
Talentos - roteirista, diretor, elenco 12%
Infraestrutura e parceiros complementares 8%
Investidor de risco 3% (variação: 3 a 10)
Coprodutoras - artigo 1º 10%
Diler & Associados 12%
Fonte: Elaborado pelos autores a partir das entrevistas realizadas.

Cabe ainda ressaltar, a inovação do modelo desenvolvido por Domingos Oliveira,


chamado de BOAA (baixíssimo orçamento e altíssimo astral). O aspecto inédito desta
filosofia consiste na contratação de profissionais em um modelo cooperativo e voluntariado.
Conhecer o pacto comercial que rege as relações entre os players no mercado é um
aspecto seminal para o conhecimento da fonte de valor das produtoras. O depoimento dos
entrevistados confirmou, em grande parte, as informações fornecidas por Luca (2004),
conforme se verá nas constatações a seguir.
 1ª constatação: a partir do momento que o filme gera receita com a bilheteria, o
distribuidor ganha a sua porcentagem (relativa à distribuição) e, simultaneamente, até
que o P&A (print & adversiting) seja quitado, o percentual do produtor;
 2ª constatação: Os gastos com P&A são pagos, num primeiro instante, pelo
distribuidor. O produtor herda essa dívida, que não precisa ser paga caso o filme
fracasse. Nas demais janelas, a responsabilidade da dívida ainda permanece;
 3ª constatação: A Globo Filmes possui um modelo misto, em função de sua atuação
como distribuidora e produtora. A empresa é sócia dos filmes que apoia e
concomitantemente recebe um percentual da distribuição.
No que diz respeito aos percentuais de remuneração na cadeia, houve variações entre
os participantes da pesquisa. A tabela 6 ilustra o que foi informado por cada entrevistado:

Tabela 6:
Distribuição da receita bruta das salas de cinema (Brasil)
Conspiração Diler & Associados Globo Filmes
Exibidor 50% 52% 50%
Distribuidor 7,5-15% 15-30% 20-30%
Produtor 35-42,5% 18-33% 20-30%
Nota: A referência para o cálculo das porcentagens é a renda bruta de bilheteria; O papel de distribuidor e produtor pode ser
exercido por uma ou mais empresas. Fonte: Elaborado pelos autores a partir das entrevistas realizadas.

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A diferença maior ocorre entre a Conspiração, de um lado, e a Globo Filmes e a Diler
& Associados, de outro. Parte dela pode ser explicada pelo fato das negociações variarem em
cada produtora, em cada projeto - dependendo do orçamento do filme e do envolvimento com
outros parceiros, sugerindo que não há um modelo rígido de remuneração. Nas demais janelas
de exibição (TV e home vídeo) são praticados outros percentuais, conforme aponta a Tabela 7.

Tabela 7:
Distribuição da receita líquida de um filme entre as janelas de exibição
Diler &
Conspiração Globo Filmes
Associados
Salas de cinema 64% 52,5% 60%

Home vídeo (varejo e locadoras) 20% 30,3% 20%


TV – aberta e fechada 16% 17,2% 20%
Nota: Receita líquida = receita bruta – impostos - gastos com comercialização (P&A e outros). Fonte: Elaborado
pelos autores a partir das entrevistas realizadas.

Os números indicam um consenso sobre a superioridade da janela cinema. A maior


disparidade está no percentual da Diler no segmento home video. A explicação possível pode
estar no posicionamento de mercado e/ou no perfil da sua carteira de filmes.
O quadro retratado indica a frágil articulação do setor cinematográfico brasileiro com
a matriz televisa e reforça a dependência de recursos produtivos governamentais, impedindo a
autossustentabilidade da indústria, além de aumentar o poder decisório do distribuidor.

6. Considerações finais

Parece sensato afirmar, que a visão sobre o fazer cinematográfico é um dos aspectos
que influencia o posicionamento de mercado das produtoras e, por sua vez, influencia os
arranjos formados para a realização de um filme, resultado que corrobora a ideia de Abell e
Hammond (1979).
O exame da natureza das alianças nos casos estudados sugere que a capacidade de
contágio e a posse de capital social são direcionadores centrais do desempenho no campo em
estudo. Kirschbaum (2006, p. 61) chegou à opinião semelhante ao afirmar que “A produção
de um filme não se realiza numa estrutura hierárquica ideal nem em uma estrutura de mercado
ideal, na qual os atores trocam mercadorias sem estabelecer laços sociais”. Dentro deste
recorte de análise, seria enriquecedor a realização de um estudo preocupado em identificar os
mecanismos associados à obtenção de capital social e de capacidade de contágio na rede.
A visão de que, em tempos atuais, há uma tendência, em variados setores econômicos,
pela extrapolação dos limites da firma (Doz e Hamel, 1998; Shapiro e Varian, 1999; Nelson e
Winter, 2005; Chesbrough, 2006; Pellegrin et al., 2007; Balestrin e Verschoore, 2008), parece
também ser verdadeira no campo cinematográfico. Kirschbaum (2006, p. 62) conclui que:

A produção de um filme pode ser considerada como uma firma de curta


duração, na qual indivíduos se reúnem para concluir um projeto e, depois,
voltam a se dispersar. Sob essa perspectiva, uma produção implica a
formação de uma organização em rede que funciona por poucos meses.

A indústria americana fez esse movimento em direção a uma hierarquia em rede na


década de 1920 do século passado (Lampel e Shamsie, 2003). No Brasil, esta transição foi
intensificada com as alterações no marco legal do setor. O Estado abandonou o modelo de
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investimento direto na produção, via a Embrafilme, e estabeleceu instrumentos de incentivos
indiretos, que obrigam a articulação dos produtores com empresas privadas - dispostas a
financiar a cultura e conseguir como contrapartida reduções tributárias - e outros agentes do
campo cultural. Neste novo modelo, como pôde ser visto nos casos examinados no trabalho, a
participação do distribuidor cresceu em importância. Além das funções de distribuição e
divulgação do filme (tradicionalmente exercidas na indústria), esses players atuam na seleção
dos projetos a serem executados e no financiamento da produção, retendo parte significativa
do lucro na indústria (profit share), muito em função do aumento do risco do negócio. Os
produtores, orientados para um cinema comercial, como Conspiração Filmes e Diler &
Associados, enxergam tal participação como vital, pois o distribuidor aumenta o potencial de
sucesso de seus empreendimentos. A crítica frequentemente apresentada a este arranjo, é que
apenas projetos com apelo comercial (o que não necessariamente quer dizer que os mesmos
tenham qualidade ruim) chegarão às bilheterias. Ou seja, o mercado é que seleciona o que será
visto pela população brasileira, mas quem financia a indústria é o Estado.
Em função do domínio oligopolista das majors, o setor nacional herdou o padrão
americano de divisão de receitas. Entretanto, a estrutura mercadológica dos EUA é baseada no
modelo de integração vertical (os estúdios são de propriedade das majors) e numa relação
estreita com as emissoras de televisão, em função de leis antigas, que obrigam a veiculação de
conteúdos independentes nas emissoras. Sem falar no tamanho do seu mercado consumidor,
na preferência nacional do americano pelo cinema e na relação histórica do mesmo com o
fortalecimento do nacionalismo e da internacionalização daquele País. Esses fatos, somados à
diminuição do ciclo de vida do produto filme e ao pequeno percentual de projetos que
conseguem captar recursos junto à iniciativa privada (por meio dos mecanismos já citados),
assevera a competitividade na produção.
Outros aspectos, sob a ótica da demanda, também precisam ser levados em
consideração na análise de competitividade da indústria, tais como: o alto preço dos ingressos
(no Brasil, o peso relativo do ingresso em relação à renda é maior do que nos EUA.); elevado
custo total da ida ao cinema (ingresso, transporte e alimentação); existência de atrativos
substitutos (entretenimento doméstico, lan games, TV paga, etc.); barateamento de aparelhos
eletrônicos, melhorias tecnológicas nos mesmos e aumento da oferta de crédito para consumo
desses bens; pirataria elevada; diminuição da janela cinema, que foi cedendo espaço para TV
paga e home vídeo (Reis, 2007; Earp e Sroulevich, 2008). Merece reflexão a bandeira da
desoneração tributária da cadeia cinematográfica, levantada por Souza (2008). Segundo o
autor, tal medida aumentaria a capacidade de reinvestimento da indústria.
Por fim, à luz do importante trabalho de Lampel e Shamsie (2003), tido como uma das
referências centrais para as pesquisas no campo, cabe tecer comentários sobre os recursos
chaves para o desempenho da indústria nacional. Os autores afirmam que, no contexto da
indústria norte estadunidense, a participação dos recursos criativos no filme determina,
significativamente, seu desempenho. Kirschbaum (2006, p. 70) encontrou, no cinema
brasileiro, situação diferente.

De forma geral, ao contrário dos resultados de Lampel e Shamsie (2003), os


recursos de transformação [diz respeito ao desenvolvimento de script, à
liderança do diretor, à performance dos artistas, à articulação entre os
agentes, dentre outros.], e respectivamente o sucesso do filme, são um
previsor melhor da popularidade do filme que os recursos mobilizados [o
mesmo que recursos criativos - produtor, diretor, roteirista e elenco].

As evidências encontradas neste trabalho apontam para uma concordância com este
último autor, embora seja necessário acrescentar que o sucesso na indústria está relacionado à

13
visão do empreendedor sobre o seu próprio negócio – ou seja, aos seus objetivos, à
importância simbólica do fazer cinematográfico e à equivalência estrutural entre os produtores
e distribuidores – e à sua capacidade de realizar alianças, em especial, no caso do cinema
comercial, à articulação com o distribuidor e com a Globo Filmes. Ambos contribuem na
transformação de recursos utilizados diretamente no filme (como, por exemplo, na seleção
dos projetos, na escolha do elenco, da equipe, na condução artística das filmagens) e
indiretamente (divulgação e legitimação da película). Naturalmente, essas sugestões reflexivas
não podem ser tomadas como padrão da indústria, dado que cada projeto cinematográfico é
um arranjo temporário e os papeis e os retornos financeiros podem sofrer variações em cada
filme.
Conclui-se o trabalho na expectativa de que o exame aprofundado da estrutura das
produtoras e de suas relações com os demais elos tenha proporcionado melhor compreensão
mais sensível dos condicionantes da competitividade setorial.

7. Referências

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