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ABORDAGEM SOCIOINTERACIONISTA NO ENSINO, LEITURA E ESCRITA (1) João

Wanderley Geraldi | ago 24, 2018 | Blog | 0 Comentários

Depois de longo período em que predominou a tecnologia educacional no meio


brasileiro, sustentada especialmente pelo projeto de “modernização e desenvolvimento
nacional” imposto à nação pelo regime militar, os anos 80 inauguraram, no que
concerne ao ensino de língua materna, duas preocupações distintas no meio
acadêmico universitário. De um lado, um extenso programa de pesquisa
esquadrinhando sob diferentes ângulos, o desemprenho linguístico de estudantes,
debruçando principalmente sobre as práticas de leitura de textos e sobre textos
produzidos por alunos. De outro lado, inúmeros professores universitários engajaram-
se na elaboração de propostas de ensino e no processo de formação em serviço de
professores de 1º. E 2º. graus.
O objetivo deste texto é retomar aspectos que fundamentaram as propostas de ensino
mais correntes nos país, dando relevo a um de seus pressupostos básicos, a questão
da artificialidade no tratamento escolar dado a textos, a partir de elementos de
pesquisa obtidos na observação de 1226 horas-aula em escolas de primeiro grau da
cidade de São Paulo (2).
Abordagens sociointeracionistas do ensino de língua materna
O desenvolvimento de pesquisas, patrocinado pela criação e ampliação de cursos de
pós-graduação no país, desvelou uma realidade educacional que os dados estatísticos
estavam sempre a denunciar: para além de legião de analfabetos e do baixo índice
escolaridade do brasileiro, a qualidade da instrução ou formação permitida pela escola
estava muito abaixo do que esperaria uma sociedade fortemente marcada pela cultura
letrada tradicional, no sentido que lhe atribui Rama (1984).
Concluídos onze anos de formação, candidatos aos cursos superiores apresentavam
baixos escores de desempenho linguístico em vestibulares e textos produzidos em
situação de vestibular (concurso de ingresso ao ensino superior brasileiro) forma
tomados como corpora de análises textuais e/ou discursivas e os resultados pareciam
revelar inúmeras incapacidades: incapacidade de ler e compreender um texto;
incapacidade de formular paráfrases; incapacidade de extrais informações relevantes;
incapacidade de manipular recursos expressivos com correção gramatical, entendida
esta como domínio da norma culta padrão; incapacidade de distinguir recursos
tipicamente orais daqueles próprios da modalidade escrita. Estas, entre outras
supostas incapacidades, deixaram em alerta aqueles que defendiam uma “educação
humanística”, em que “a educação era uma questão de linguagem: uma questão de
falar e escrever, de escutar e de ler, de fazer coisas com as palavras, de introduzir os
nossos membros da comunidade num universo de signos cuja encarnação mais
eminente era a biblioteca. […] Através de sua iniciação na biblioteca, as pessoas
adquiririam uma determinada maneira de entender o tempo humano (um certo sentido
de tradição e continuidade no tempo) e uma determinada maneira de entender a
comunidade humana (um certo sentido de pertencimento)”. (Larrrosa, 1995:44-45)
As causas de tais “malefícios” variavam segundo o olhar de cada analista, atribuindo-se
maior ou menor culpa á escola e seus professores; aos modernismos da “tecnologia
educacional” e seus exercícios de múltipla escolha; a uma atribuída facilitação nos
processos de ensino e nas exigências postas para aprovações; ou, de outro lado, à
depauperização do magistério, seus baixos salários e péssimas condições de trabalho.
No embate entre propostas de ensino, ora apareciam defesas do retorno ao ensino
tradicional, centrado em obras literárias clássicas e nas classificações e normatizações
gramaticais, ora emergiam soluções mais recentes, inspirando-se essencialmente na
Linguística da Enunciação (Benveniste, Bakhtin) e na psicologia sócio-histórica
(Vigostki).
A questão acaba merecendo a intervenção do Estado, especificamente depois da
“abertura política”, o que se dará através de Planos Curriculares das Secretarias de
Educação dos Estados e através de Diretrizes no nível federal, normalmente
acompanhadas de projetos de formação de professores. Nestas intervenções,
propostas sociointeracionistas tornaram-se hegemônicas, e à noção de interação
somou-se a noção de “negociação orientada para determinados fins”, no sentido que
lhe atribui Roulet (1985).
Assim é que, da pesquisa linguística contemporânea são retiradas três grandes
contribuições para o ensino de língua materna: a forma de conceber a linguagem e, em
consequência, a forma como define seu objeto específico, a língua; o enfoque
diferenciado da questão das variedades linguísticas e a questão do discurso,
materializado em diferentes configurações textuais. Tendo no horizonte estas três
diferentes contribuições, as Diretrizes para o aperfeiçoamento do ensino/aprendizagem
da língua portuguesa, elaboradas pela Comissão Nacional nomeada pelo Ministério da
Educação (MEC, 1986), sugerem um ensino centrado em três atividades: a prática da
leitura de textos, a prática da produção de textos e a prática da análise linguística.
No processo das relações de ensino (3) em sala de aula, tais práticas não podem,
obviamente, ser tomadas como atividades estanques, mas, ao contrário, interligam-se
precisamente na unidade textual, ora objeto de leitura, ora resultado da atividade
produtiva do estudante. A reflexão linguística, terceira prática apontada, se dá
concomitantemente à leitura, quando esta deixa de ser mecânica para se tornar
construção de uma compreensão dos sentidos veiculados pelo texto, e à produção de
textos, quando esta perde seu caráter artificial de mera tarefa escolar, satisfazendo
necessidades de comunicação à distância ou registrando para outrem e para si próprio
suas vivências e compreensões do mundo de que participa.
Para que as práticas propostas não se tornem apenas outro rótulo para atividades
tradicionais, é necessário retomar os pressupostos que inspiraram sua proposição, ou
seja, retomar as três contribuições essenciais da Linguística ao ensino de língua
materna. A compreensão adequada destes pressupostos permite aos sujeitos
envolvidos na relação de ensino a construção criativa de situações interlocutivas no
interior das quais necessariamente emergem a leitura de mundo, as diferentes formas
linguísticas de, aproximando-se do mundo, expressar sobre ele uma compreensão
materializada num texto oral ou escrito.
Concepção de linguagem. Mais do que ver a linguagem como uma capacidade humana
de construir sistemas simbólicos, concebe-se a linguagem como uma atividade
constitutiva, cujo locus de realização é a interação verbal. Nesta relacionam-se um eu e
um tu e na relação constroem os próprios instrumentos (a língua) que lhes permite a
intercompreensão. Obviamente, nascemos num mundo onde muitos eus e muitos tus
se encontraram. E a herança de seu trabalho encontramos não só nos produtos
materiais, mas também na própria compreensão destes produtos, e esta compreensão
expressa-se ´simbolicamente. A língua é uma destas formas de compreensão, do modo
de dar-se para cada um de nós o sentido das coisas, das gentes e de suas relações.
Por isso, a aquisição da linguagem, como salienta Bakhtin (1974), dando-se pela
internalização da palavra alheia (a palavra do adulto, especialmente da mãe) é também
uma internalização de uma compreensão do mundo. As palavras alheias vão perdendo
suas origens (ser do outro), tornando-se palavras próprias (internas) que utilizamos
para a compreensão de cada nova palavra, e assim ininterruptamente. É neste sentido
que a linguagem é uma atividade constitutiva: é pelo processo de internalização do que
nos era exterior que nos constituímos como os sujeitos que somos, e, com as palavras
de que dispomos, trabalhamos na construção de novas palavras. Também aqui um
trabalho ininterrupto. Por isso a língua não é um sistema fechado, pronto, acabado, de
que poderíamos nos apropriar. No próprio ato de falarmos, de nos comunicarmos com
os outros, pela forma como o fazemos, estamos participando, queiramos ou não, do
processo de constituição da língua.
Entendamos o sentido com que estamos usando a expressão palavra. Por certo, trata-
se de cada item lexical; mas trata-se de muito mais: das formas internas de cada
palavra (os morfemas que as constituem), cujo conhecimento revelamos na construção
de novos itens lexicais muito antes de sabermos o que significa derivação (todos nós já
convivemos com crianças que combinam diferentes morfemas e constroem novas
palavras, às vezes insólitas, por exemplo infantilice com base em meninICE); das
formas de combinar itens lexicais para construir frases (regras de combinação que são
diferentes na oralidade e na escrita); das formas de construir textos completos, cada
vez mais complexos (muito antes da escola, aprendemos a narrar, a relatar
experiências vividas, a descrever objetos, a defender pontos de vista, etc.).
Assim compreendida a noção de palavra, aproximamo-nos do seu sentido bíblico
de logos, e podemos substituí-la por um termo mais técnico – recurso expressivo.
Assim, uma língua é um conjunto de recursos expressivos, conjunto não fechado e
sempre em constituição. Estes recursos expressivos remetem a um sistema
antropocultural de referências, no interior do qual cada recurso adquire significação.
Este sistema, também ele certamente aberto porque histórico, está sempre em
modificação, refletindo as mudanças que sobre o mundo vamos produzindo na história
e nossas compreensões desta mesma história.
Variedades linguísticas. Como aprendemos a língua no convívio com os outros e como
as pessoas se repartem diferentemente na sociedade, a variedade linguística que
aprendemos é aquela falada no grupo social de que fazemos parte. Esta variedade é
tão complexa como qualquer outra (também ela é um conjunto de recursos
expressivos, e portanto com uma gramática própria). Como a repartição dos homens
numa sociedade não é absolutamente sem consequências, o acesso a bens da
herança do passado se dá de forma diferenciada. Entre estes bens é preciso incluir a
variada gama de bens culturais que representam diferentes modos de conceber a vida,
as coisas, as gentes e suas relações. Como vimos no item, a linguagem é
precisamente esta atividade constitutiva de sistemas de recursos expressivos que
remetem ao sistema de referências, isto é, às diferentes e amplas formas de
representação. Aprender uma variedade linguística é também aprender um sistema de
referências.
Os estudos linguísticos sobre as variedades mostraram, fundamentalmente, a
complexidade de cada um dos dialetos (regionais, sociais), suas diferenças e suas
semelhanças. Com isso, mostrou-se que a noção de erro não é uma questão linguística
estrita, mas deriva da eleição social de uma das variedades como a certa. Não por
acaso, esta variedade é aquela falada pelo grupo social que detém o poder
(econômico, político, social). E esta variedade foi a base para a construção da escrita,
porque na história somente aqueles que tiveram tempo disponível para refletir puderam
debruçar-se sobre as formas de falar e num longo processo histórico foram construindo
a modalidade escrita.
O estranhamento de uma criança de grupos sociais desprivilegiados, ao entrar para a
escola para aprender a ler e a escrever, resulta também do fato de que os modos de
compreender o mundo e sobre ele falar são diferentes dos modos a que se habituara
nos convívios de que participou. Não se pense, no entanto, que a diferença bloqueie as
possibilidades de aprender. Numa sociedade, até para que o poder se exerça, há
interferências entre uma e outra variedade. O mesmo aluno que fala diferente é capaz
de compreender (e relatar) textos (uma (tele)novela, por exemplo) expressos na
variedade considerada certa (dialeto padrão culto).
No processo pedagógico, não se tata de substituir uma variedade pro outra (porque
uma é mais rica do que a outra, porque uma é certa e outra errada etc.), mas se trata
de construir possibilidades de novas interações dos alunos (entre si, com o professor,
com a liderança cultural) e é nesses processos interlocutivos que o aluno vai
internalizando novos recursos expressivos, e por isso mesmo novas categorias de
compreensão do mundo. Trata-se, portanto, de explorar semelhanças e diferenças,
num diálogo constante e não preconceituoso entre visões de mundo e modos de
expressá-las.
Como a unidade comunicacional é o texto (que pode ser uma palavra ou uma obra
completa), e como a sociedade é complexa, diferentes tipos de textos nela circulam.
Cada texto é produzido no interior de um processo interlocutivos. Por isso responde
aos objetivos deste processo, é marcado pelos sujeitos nele envolvidos e pelas práticas
históricas que forma se constituindo ao longo do tempo no interior de cada instituição
social. Assim, um texto oral de conversação durante uma refeição tem características
diferentes de um texto oral produzido num debate numa reunião sindical. Porque
ambos respondem a interesses diferentes, resultam de atividade de sujeitos envolvidos
numa relação diferente (ainda que possam ser os mesmos sujeitos) e submetem-se a
regras diferentes resultantes de práticas históricas diferentes (conversar durante um
almoço ou defender um ponto de vista durante uma reunião).
Nossa longa tradição de produzir textos foi cirando diferentes configurações para cada
tipo de texto, quer orais, quer escritos. Numa sociedade como a nossa,
fundamentalmente oral, convivemos muito mais com textos orais do que com textos
escritos. Tanto é assim que se chegarmos a uma repartição e solicitarmos a um
funcionário alguma informação e ele nos entregar um texto escrito dizendo os
procedimentos que devemos adotar para conseguirmos o que desejamos,
imediatamente achamos que o funcionário está atendendo de má vontade! A oralidade
é uma das características de nossa cultura. Nem por isso, no entanto, podemos nos
restringir a esta modalidade linguística em nossas relações. A escrita nos permite uma
interlocução à distância no tempo e no espaço e mesmo que não desejemos escrever
cartas (ou recebe-las) nem nos aproximarmos das visões de mundo registradas por
aqueles que no passado escreveram, vivemos numa sociedade letrada e para nos
movimentarmos de um lugar para o outro acabamos necessitando indicações
registradas por escrito em ônibus, placas, nomes de bares, etc. Por isso, a vida
daquele que não sabe ler, numa sociedade letrada, torna-se mais espinhosa e está
sempre dependendo de outro capaz de lhe transmitir as informações de que precisa
para sobreviver em sua própria cidade.
Aprender a ler é, assim, ampliar as possibilidades de interlocução com pessoas que
jamais encontraremos frente a frente e, por interagirmos com elas, sermos capazes de
compreender, criticar e avaliar seus modos de compreender o mundo, as coisas, as
gentes e suas relações. Isto é ler. E escrever é ser capaz de colocar-se na posição
daquele que registra suas compreensões para ser lido por outros e, portanto, com eles
interagir.
Compreendidos os pressupostos que embasam as práticas de ensino propostas, a elas
podemos retornar. Centrar o ensino no texto é ocupar-se e preocupar-se com o uso da
língua. Trata-se de pensar a relação de ensino como um lugar de práticas de
linguagem e a partir delas, com a capacidade compreendê-las, não para descrevê-las
como faz o gramático, mas para aumentar as possibilidades de uso exitoso da língua.
O ensino tradicional da língua portuguesa investiu, erroneamente, no conhecimento da
descrição da língua supondo que a partir deste conhecimento cada um de nós
melhoraria seu desempenho no uso da língua. Na verdade, a escola agiu mais ou
menos como se para aprender a usar um interruptor ou uma tomada elétrica fosse
necessário saber como a força da água se transforma em energia e esta em claridade
na lâmpada que acendemos. Obviamente, há espaço para saber estas coisas todas e
há aqueles que a elas se dedicaram e as sabem. Se precisar de uma informação,
posso consulta-los. Mas o número de conhecimentos disponíveis na humanidade é
imenso e muitas das tecnologias de que dispomos hoje nós sabemos usar, embora não
saibamos como elas se produziram nem saibamos explica-las. Ninguém mais é capaz
de dominar o conhecimento global disponível. Mas também não temos com as coisas
uma relação mágica: sabemos que as coisas podem ser explicadas ou poderão ser
explicadas um dia (há muito a saber sobre o mundo). Cada um de nós, em sua área
profissional, tem conhecimentos e pode transmiti-los a outros, mas nenhum de nós
imagina que todos queiram saber os conhecimentos que caracterizam a nossa
profissão. É preciso saber usar eficientemente, e os conhecimentos suficientes para
tanto lhe bastam. Ninguém precisa tornar0se especialista em tudo!
O conhecimento gramatical é, pois, um conhecimento necessário para aquele que se
dedica ao estudo da língua e ao seu ensino, para que possa exercer dignamente seu
ofício de construir situações adequadas para aquele que quer aprender a usar a língua,
selecionando inclusive quais destes conhecimentos lhe são necessários. Mas não é um
conhecimento, em seu todo, necessário para aquele que quer aprender a ler
criticamente e a escrever exitosamente.
Estas perspectivas que devem iluminar as práticas de leitura, de produção de texto e
de análise linguística no ensino de língua portuguesa, desde que se queira
efetivamente ampliar o número de pessoas que leem e escrevem em nossa sociedade.
E ampliar este número é ampliar o exercício da cidadania, com o mais adequado
preparo para o trabalho: aquele em que cada um aprende a aprender. Porque ninguém
lê pelo leitor, ninguém escrever pelo autor. E para o aluno tornar-se leitor e autor de
seus textos não há regra única, porque depende das relações de interlocução que se
estabelecem nas diferentes leituras e nos diferentes momentos de produção de textos
que, enquanto tais, respondem a objetivos e buscam seus leitores.
A ortodoxia escolar como entrave à prática com textos
Dados de pesquisa de campo realizada junto a quinze escolas de 1. Grau da cidade de
São Paulo, estado que mais investiu na formulação de Planos Curriculares e em
projetos de formação de professores, observando 1.225 horas-aula das diferentes
disciplinas curriculares, mostram que a prática escolar permanece praticamente
imutável e que sob novos rótulos continuar-se a copiar, ditar e responder questões
superficiais sobre textos dados à leitura ou a corrigir-se aspectos gramaticais na
superfície do texto, sem qualquer intervenção que considere as condições de produção
e os objetivos da elaboração do texto.
Considerem-se, por exemplo, os dados relativos a episódios de produção de textos
registrados nos Diários de Campo pelos observadores (Azevedo e Tardelli, 1994):
Episódios de produção de texto oral 606
Episódios de cópia e ditado 432
Episódios de produção de texto escrito 296
Episódios de circulação de textos 122
Foram registrados como episódios de produção de texto oral as exposições de
professores, as exposições (raras) de alunos a propósito de um tema previamente
definido pelo professor, os pares pergunta/resposta sobre tema exposto, em que os
alunos são levados a responder perguntas formuladas pelo professor e este fecha a
sequência repetindo a resposta que toma por certa ou complementando-a, na fórmula
apontada por Legrand-Gelber (1988:87).
O professor dirige os turnos de fala. Em toda relação educativa, as trocas tendem a se
constituir em três intervenções, o aluno se encontra “ensanduichado” entre uma
abertura e um fechamento do professor. Este sistema é geral no diálogo pedagógico. O
professor abre a troca por uma pergunta que, utilizando-se a terminologia do Grupo de
Genebra, constitui um ato diretor com função iniciativa. Este impõe ao interpelado três
obrigações discursivas: reagir verbalmente (um gesto ou uma recusa são improváveis),
dar uma resposta (um comentário ou uma pergunta são raros), dar uma boa resposta.
A resposta do aluno constitui um ato subordinado com função reativa que pretende
satisfazer as três obrigações precedentes. Uma nova intervenção do professor constitui
um ato subordinado com função reativa que encerra a troca e o aluno satisfez as três
obrigações, há então uma retomada se uma das obrigações não for cumprida
satisfatoriamente.
Surpreendente, no entanto, foi a grande quantidade de tempo gasto nas primeiras
séries (especialmente na terceira série) com cópia de textos disponíveis em livros-
didáticos, dos quais cada aluno dispunha deum exemplar e o ditado de palavras soltas
ou de pequenos textos que, uma vez ditados, não eram utilizados para outras
atividades que não a verificação do domínio da ortografia e sinais de pontuação por
parte do aluno (Silva e Carbonari, 1994).
No que concerne à produção de textos escritos, a grande maioria resultou de retomada
de tema de texto lido, sobre o qual o aluno deveria escrever outro texto, resultando na
verdade em um pequeno resumo ou em paráfrase mal enjambrada das ideias do texto
lido (Teixeira, 1994). Pouquíssimos foram os episódios observados em que a retomada
dos textos produzidos pelos alunos, na análise linguística, tenha ultrapassado a mera
higienização gramatical da superfície do texto (correções ortográficas, de concordância,
de regência ou de coesão), esquecendo-se por completo os processos enunciativos
que orientam o trabalho de elaboração textual (Jesus, 1995).
Esses poucos dados empíricos levam à constatação de que as abordagens
sociointeracionistas no ensino de língua materna fazem uma exigência muito além
daquela para a qual estão preparados os professores, impondo-lhes uma atuação
sempre atenta às interlocuções de sala de aula e aos indícios de compreensões dos
alunos, com uma capacidade de análise intuitiva da linguagem que os obriga a terem
competência de um super-homem (Varlotta, 1996), dificuldade que os faz retornar às
práticas tradicionais, para eles mais seguras, encobrindo-as pelos novos rótulos postos
em circulação pelos Planos Curriculares oficiais.
Se esta dificuldade é contornável somente por um processo de reflexão sobre a forção
do professor e pela mudança radical das condições de trabalho e de salário, outra
dificuldade, era de ordem teórica, impõe-se à reflexão. Trata-se de pensar o
pressuposto que orientou as propostas de ensino sociointeracionistas que pretendiam
ultrapassar a artificialidade das leituras feitas em sala de aula, tirando-lhes o caráter
escolar, e a artificialidade dos textos produzidos pelos alunos em contexto escolar cuja
destinação não ia além das quatro paredes da sala de aula, destinados a um único
interlocutor-leitor e corretor, o professor. Na verdade, esta reflexão deverá retomar “os
rituais de sala de aula” e provavelmente assumir que um gênero próprio de texto escrito
se constitui em sociedades escolarizadas, gênero que impõe suas próprias constrições
à produção do aluno e que não pode ser equiparado ao uso da escrita em outras
instituições sociais.

Notas
 A Profa. Cecília Horta foi companheira de trabalho da minha mulher, Corinta
Geraldi, no antigo PADES – Programa de Aperfeiçoamento Docente do Ensino
Superior, na segunda metade dos anos 1980. Depois se tornou assessora da
Associação de Educação Católica do Brasil, que mantém uma revista. Seu último
número de 1996 seria dedicado às diferentes disciplinas do currículo de ensino básico.
Ela me convidou para escrever sobre a disciplina Língua Portuguesa, e eu insisti para
que a revista entrasse em contato com a colega Magda Soares para participar do
mesmo número. Foi assim que saiu este texto, que obviamente retoma textos
anteriores e que continua insistindo uma abordagem sociointeracionista, de origem
bakhtiniana, no ensino da língua materna. E aqui, especificamente, trato de alguns
dados produzidos no projeto de Pesquisa, financiado pelo CNPq, com sede na USP, do
qual participei e de que resultou a trilogia “Ensino de Português Através de Textos” (Ed.
Cortez). O texto foi publicado no número 101, out/dez 1996, da Revista da AEC.
 Os dados aqui manuseados são parte do conjunto mais amplo de episódios
registrados pelo projeto “A circulação de textos na escola”, ainda em execução, sob a
coordenação geral da Profa. Dra. Lígia Chiapini de Moraes Leite, na Universidade de
São Paulo (Proc. CNPq 522849/95-4(NI)) de que participo, tendo orientados os artigos
aqui citados.
 Com a expressão “relações de ensino” pretendo retomar uma discussão
produzida por Smolka (1988). As relações de ensino constituem-se nos processos
interativos de sala de aula, entre professores/alunos e, na emergência destes
acontecimentos, modificam-se os sujeitos envolvidos pela compreensão dos objetos e
temas sobre que se debruçam e que constroem como verdadeiros conteúdos, previstos
ou não, da relação pedagógica. Na tarefa de ensinar, ao contrário, nada de novo
emerge do próprio processo. Trata-se de transmitir de um lugar para outro (do
professor para o aluno) em blocos fechados e acabados, um conhecimento prévio e já
definido. Numa passagem da autora: “A tarefa de ensinar, organizada e imposta
socialmente, baseia-se na relação de ensino, mas, muitas vezes, oculta e distorce essa
relação. Desse modo, a ilusão e o disfarce acabam sendo produzidos, não pela
constituição da relação de ensino, mas pela instituição da tarefa de ensinar. Em várias
circunstâncias, a tarefa rompe a relação e produz a ‘ilusão’. Ou seja, da forma como
tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar adquire algumas características (é linear,
unilateral, estática) porque, do lugar em que o professor se coloca (e é colocado) ele se
apodera (não se apropria) do conhecimento; pensa que o possui e pensa que sua
tarefa é precisamente dar o conhecimento à criança. Aparentemente, então, o
aprendizado da criança fica condicionado à transmissão do conhecimento do professor”
(Smolka, 1988:31).
Referências bibliográficas
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