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DE VOLTA DO CAOS
Goethe
Contra-capa
Epitáfio de Satã
Jaz, aqui, Satã, para todo o sempre,
Se tanto durar a rebeldia sua.
Criado foi ele pelo Eterno Pai,
Da sempiterna Substância-Amor;
Mas, como descriou-se, ele próprio,
Por arbítrio seu, eis sua sentença:
Terá de recriar-se, por si mesmo,
Em não previsto tempo; ou isto, ou
Reduzir-se-á, para sempre, a nada.
Nem ele, pois, nem os sequazes seus
Retornarão à Celestina Pátria,
Enquanto não se desvirarem todos
De dragões, transformando-se, de novo,
Nas formas belas que possuíam antes.
Mas há esta esperança aos esforçados,
Aos valentes que se negar quiserem:
Altos Numes de esferas mais sublimes,
Inflamados do sacrossanto Amor,
Varando as trevas do Orco levarão
Socorros mil a quem quiser salvar-se,
A quem, de dragão, desejar negar-se,
Reconquistando o perdido Amor.
Luiz Caramaschi
ÍNDICE
3
PRÓLOGO .................................................. 3
I O QUE É A FILOSOFIA ?....................................... 5
V O MÉTODO ............................................................ 27
PRÓLOGO
De início, queremos agradecer a nímia gentileza da “Folha de Piraju” pelo seu grande
trabalho em publicar, em primeira mão, parceladamente, nosso livro anterior “Um Estudo do
Nosso Tempo”. Com este grande e meritório esforço, a “Folha” nos proporcionou a
oportunidade de darmos aos nossos concidadãos o fruto de prolongadas e profundas
lucubrações de largos anos.
Para que essa primeira publicação fosse possível, tornava-se indispensável a
colaboração da “Folha de Piraju”, com tanta proficiência criada, dirigida e mantida por um
grande cidadão pirajuense, Sr. Constantino Leman. Que ele é um grande idealista, não há
dúvida nenhuma, pois, manter um pequeno jornal carinhosamente confeccionado, e por tantos
anos, é trabalho saliente, digno de admiração. Honra é, que ninguém pode extorquir a
Constantino, o haver mantido um jornal em nossa terra até hoje, apesar de tantas
incompreensões, tantas lutas, e enormes apertos e sacrifícios financeiros, se bem que, para
sermos justo, temos de anotar que muitos colaboraram, financeiramente, quando a “Folha”
ressuscitou de suas cinzas - o antigo “O Comércio de Piraju”.
Pirajuense por adoção e por título emérito conferido pela nossa respeitável Câmara
Municipal, nosso esclarecido e digno colega de pena, Sr. Constantino, em mantendo a nossa
“Folha”, prova que ele, ao fechar os olhos para este mundo, quer deixar um legado para Piraju,
um Documento imperecível - a sua querida “Folha”.
Paralelamente ao trabalho de jornalista, aparece o escritor e historiador que é, nas
obras: “Piraju Ontem e Hoje”, “São Sebastião do Tijuco Preto” e “Cem Anos de Piraju”,
este, em fase final de impressão.
Então, nós, como entendedor do verdadeiro heroísmo de Constantino, quisemos
colaborar, se bem que com uma parcela ínfima, na confecção desse grande Documento de
Piraju, publicando nele, em primeira mão, para os nossos irmãos de terra, estes nossos livros.
A obra que irá sair, querendo Deus, traz o título “De Volta do Caos”. Nela se
desenvolvem pontos que já apareceram, em síntese, na obra anterior. Trata-se de obra inédita,
tanto como a precedente, sobretudo o capítulo “Origem das Espécies”, visto como tal
“origem” não se explicou, cabalmente, nem por Darwin, nem por Lamarck, nem pelo
Mutacionismo a partir de Hugo de Vries.
Ambos livros pretendem abrir um ciclo novo para o pensamento filosófico. A Primeira
Jornada Filosófica teve início na Grécia com a polêmica entre Heráclito e Parmênides; é o
ciclo chamado Realismo, que teve o seu termo no fim da Idade Média. Platão é um filósofo
realista, não só porque pertence a este ciclo, como também, porque seu “idealismo” é
objetivo; a realidade, para ele, se situava fora do sujeito, exterior a este, encontrando-se no
lugar celeste ou resplendente – o topos uranos. Tal “idealismo” é polarmente oposto ao de
Kant que fazia tudo brotar do sujeito, como puro subjetivismo, ao ponto de afirmar que “nós
pomos às coisas as suas essências”. Ora, Platão não admitia isto, e, para ele, como, depois,
para seu discípulo Aristóteles, as coisas é que “nos enviam as suas essências”. Tal modo de
conceber o mundo teve seu ocaso no fim da Idade Média, com os filósofos Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino. Com a verificação experimental dos erros científicos de Aristóteles, foi
posta em dúvida também a sua filosofia.
Tomando, precisamente, a dúvida por ponto de partida, na Renascença, com
Descartes, teve começo a Segunda Jornada - o Idealismo ou filosofia moderna. Kant foi o
pináculo deste ciclo, tendo sido continuado por três grandes pensadores absolutistas: Fichte,
Schelling e Hegel. Depois a filosofia caiu no ridículo, e, com Augusto Comte, ela passou à
nivelante condição de simples síntese das ciências. O positivismo achatou a filosofia, tirando-
lhe a terceira dimensão, a altura, que a fazia ocupar-se, primordialmente, com os problemas da
5
origem e fim transcendentais do mundo, do homem e das coisas. Como se não bastasse isto,
veio o pior: surgiu a doutrina científica da evolução pondo em xeque-mate todas as filosofias,
as religiões todas, todas, sem exceção, de bases criacionistas.
Os filósofos contemporâneos, não podendo, por sua vez, resolver o problema do Ser,
desgarraram-se pela senda ingrata de criar doutrinas pessimistas, niilistas, conducentes ao
Nada, sem nenhuma esperança. Nenhuma filosofia contemporânea forma um sistema
completo, pelo que estamos sem filosofia, sem norte filosófico, desde Augusto Comte, como
diz Ortega.
A nossa é a Terceira Jornada Filosófica, a da Síntese, a da Essência-Substância, a
do Ser-Amor, bem própria a nascer no Brasil do qual já se disse que é o “Coração do Mundo e
a Pátria do Evangelho”. O Brasil não só assombra o mundo inteiro com o seu desenvolvimento
econômico; assombrá-lo-á, também com sua cultura, e ainda será o líder espiritual e moral do
mundo, e nisto já se tem mostrado competente com resolver todos os seus problemas políticos
pacificamente. É aqui, então, que tinha de nascer o ciclo novo para o pensamento - a Filosofia
do Amor.
O autor
6
Capítulo I
O QUE É A FILOSOFIA ?
O homem desde os seus primórdios fez filosofia. Mas este fazer é diferente dos outros
quefazeres, porque a idéia de fazer implica ação, movimento. Ora, o fazer da filosofia é
diferente porque significa estar parado, meditando. Não se trata de um fazer físico, porém, de
um fazer mental. Enquanto o homem agia só do ponto de vista físico, material, ele fazia coisas,
não, porém, filosofia. E foi quando ele entrou em si mesmo, esteve em solidão só consigo,
quando, parado, se pôs a pensar sobre as coisas, sobre o mundo, aí é que começou a filosofar.
Por este motivo, o fazer da filosofia é diferente dos outros quefazeres, porquanto estes fazem
coisas, no passo que a filosofia, sendo um estar quedo, em meditação, fez não menos que o
próprio homem.
O homem só se fez tal, quando principiou a usar a razão, a pensar; pensar sobre o que?
Pois pensar sobre as coisas, sobre o mundo; e este pensar sobre as coisas, esta tentativa de
descobrir o que elas são, constitui a filosofia.
Deste modo, a primeira e mais natural definição da filosofia é a meditação sobre o
mundo, para achar um caminho, uma forma de atuar sobre as coisas, um modo de conduzir-se
entre elas, uma forma de conduta. Conseqüentemente, não se pode definir a filosofia antes de
tê-la feito; e foi fazendo-a, um pouco, que nos foi possível chegar à nossa mais elementar e
espontânea definição: a filosofia é a meditação sobre o mundo. Um animal, para agir, segue o
seu instinto; porém, o homem é pobríssimo de instintos naturais; como, logo, agiria sem um
pensamento antecipado? É-lhe, então, imposto o pensar, o escolher e o decidir-se por um
caminho, queira ou não queira. Esta é a razão por que já os antigos diziam do homem que é
um animal metafísico.
Aliás, todas as demais disciplinas que o homem domina, não nasceram de definições
claras, precisas; todas começaram de forma nebulosa, confundidas umas com outras, e só
quando o homem teve boa soma de conhecimentos, é que pôde delimitar os objetos das várias
ciências, isto é, definir, traçar “fines” ou limites às disciplinas.
Daqui se tira que só se sabe o que é filosofia, quando já se é filósofo; mais que qualquer
outra matéria, a filosofia precisa de vivência, e isto se define como sendo aquilo que temos em
nosso psiquismo carreado do mundo exterior, e que forma a nossa mentalidade; é a nossa
convicção pensada, vivida e sentida, e que damos como sendo o nosso conjunto-verdade. É
assim que, sem as experiências da vida, a filosofia não seria vivencial, pessoal, e sim, mero
estudo das experiências alheias condensados nos sistemas e verdades alheios. Pelos livros se
pode chegar a ser um professor de filosofia, isto é, mero repetidor do que os compêndios
dizem. O filósofo é um senhor que calcou as vivências alheias nas próprias, e agora possui um
sistema-verdade (quer dizer, que tem por verdadeiro), a lhe nortear o fazer e a conduta. Um
exemplo: os escritores paisagistas gastam páginas seguidas em seus romances para nos
descrever os sítios que fazem fundo às cenas em que se movem seus personagens. Por mais
minudentes que tais escritores sejam nas descrições, seja dos lugares, seja dos tipos humanos,
não conseguem transferir-nos vivências, e sim, somente, nos sugerem imagens e idéias. Porém,
a partir dessas imagens e dessas idéias, vamos construindo nossos quadros mentais próprios, a
partir de nossas vivências próprias. Isto se chama convivência. Se, todavia, depois, formos aos
locais em que o escritor se inspirou, ainda que ele tenha sido fiel nas descrições, tudo se nos
mostra diferente. É que antes, a linguagem literária ia-nos suscitando uma convivência, e
agora tudo são vivências, tudo, experiências pessoais, diretas, em que tomam parte não só
nossa mente, senão também os nossos sentidos, os nossos sentimentos, as nossas emoções,
tudo como coisas vividas, como vivências nossas.
É por este modo que o filósofo coordena e sistematiza não só vivências, mas também
convivências no seu conjunto-verdade, na sua convicção mais profunda que lhe norteia o
7
fazer e a conduta. Daí que todo homem é filósofo, desde que não se guie por pura fé, por pura
sugestão. Esta é a causa por que poderíamos repetir Huberto Rohden quando afirma que: “a
inteligência humana é filosófica por natureza” 1, ou então, os antigos que davam para o homem
a designação de “animal metafísico”.
No entanto, já se vê, não podemos ter todas as vivências que a vida total, o mundo, nos
propiciaria, se, a um tempo, como que onipresentes, pudéssemos estar em todos os lugares,
vivendo todos os dramas, e ainda trazendo para o presente o passado que já foi. Face a esta
impossibilidade, nós nos consolamos com reviver as experiências alheias, imaginativamente nos
colocando em seus lugares, procurando sentir o que sentiram, e a repensar o que pensaram.
Então, o filósofo não só procura sentir as próprias vivências (que são basilares), e a repensar
os próprios pensamentos, senão, também, busca convivenciar e repensar, isto é, incorpora,
quanto possível, as vivências alheias, e repensa os pensamentos dos outros. A isto também
chamamos meditação sobre o mundo, já, agora, não só sobre o nosso mundo restrito, mas
sobre os vários mundos alheios. Se como diz Ortega, cada filósofo está num mirante que se
abre para o mundo, cumpre-nos ver o mundo de todos os mirantes, enxergando-o, quanto
possível, através de todas as pupilas. Fazendo isto, verificamos que muitas vivências alheias se
assemelham às nossas, de modo que nosso conjunto-verdade se reforça e se enriquece mais do
que se contássemos apenas com as nossas vivências próprias. Neste sentido é que entendemos
o aforismo latino que diz: “primum vivere, deinde philosophari”. Só depois das experiências da
vida se torna possível o filosofar. Esta é a razão por que há gênios precoces na música, como
Mozart, nas matemáticas, como Gauss, porém, não, na filosofia.
Deste modo, não faz filosofia quem não entrar nela, quem não se dispuser a vivê-la com
toda a matilha de sentimentos egrégios, de emoções nobres, como diz Ortega do historiador,
entusiasmando-se com ela, angustiando-se, criticando-a, censurando-a, aplaudindo-a,
completando-a, chorando-a, rindo-se dela, encrespando-se contra ela, abraçando-a, estando
nela “cum ira et studio”. Tudo isto faz quem ama..., sobretudo se o amor se dirige à sabedoria.
Ora, para fazermos isto que nos coloca na posição de filósofos, precisamos entrar em
solidão temporária, retirar-nos, estar só conosco mesmo, fazer aquilo que Goethe põe nestes
versos: “Aqui sim, no meu cantinho,/ vendo rir-me o candeeiro,/ gozo o bem de estar sozinho,/
e esquecer o mundo inteiro” 2. Este é o mesmo pensamento de Montaigne quando escreve:
“Infeliz a meu juízo, quem não tem em casa um lugar de recolhimento, onde esteja só consigo,
onde possa voltar-se para si mesmo, e não para os outros, onde possa esconder-se” 3.
Se, de começo, dissemos que todo homem é filósofo, já agora começa delinear-se o
cariz do verdadeiro filósofo: é filósofo todo aquele que, para pensar, sente necessidade de
retirar-se. O homem-massa não tem esta necessidade pelo que não é filósofo, deixando-se levar
ao sabor dos acontecimentos, guiando-se por pura fé, obediente às determinações do social,
sem nunca perguntar: por que? O filósofo é o homem que quer ser autêntico, que luta por ser
si mesmo, e não o social nele.
Na medida em que formamos o nosso conjunto-verdade, ou sistema-verdade, vamos
fazendo um balanço, pondo em xeque o nosso sistema, incorporando verdades verdadeiras, e
expurgindo dele as verdades falsas tidas por verdadeiras até então, tendo em vista o princípio
que Toynbee tomou de Meredith em “O Túmulo do Amor”, que diz: “Somos traídos pelo
que há de falso em nós” 4. Então, cada vez mais nossa visão se aclara, visão que determina
nossa conduta cada vez mais reta, cada vez mais acertada, sábia. A filosofia, portanto, não é
uma coisa feita, mas em se fazendo, e só estará completa e acabada, quando formos, de fato,
senhores da verdade. Esta verdade é o sistema único que se chama sabedoria.
A filosofia, pois, busca a verdade, a sabedoria, e o homem que estiver inflamado dessa
paixão pela verdade, pela sabedoria, é um filósofo. A própria palavra filosofia quer dizer isso:
1
H. Rohden, Filosofia Universal, 1,21
2
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson XV, 78
3
Montaigne, Clássicos Jackson, XII, 30
4
Arnold J. Toynbee, Um Estudo de História, III, 784
8
amigo da sabedoria, ou amor à sabedoria. Com isto, chegamos a uma definição mais
completa do que seja a filosofia: filosofia é a meditação sobre o mundo, sobre a verdade que
subjaz ao mundo; a posse dessa verdade é o anseio do filósofo; essa verdade é a sabedoria, e
quem a busca é seu amigo, seu amante, isto é, amigo da sabedoria.
Assentado que não podemos ter todas as vivências que a vida global nos ofereceria se
fôramos infinitos, onipresentes e dono de todo o tempo, ou seja, capazes de trazer para o
presente o passado e o futuro, o passado como memória, e o futuro como previsão do que é
possível ser previsto; frente a esta impossibilidade nossa, não nos resta outro recurso senão o
de permutar experiências. Esta permuta seria ver o mundo através dos vários filósofos,
enxergando-o de seus pontos de vista. Assim, para termos todas as vivências de dado
pensador, precisamos ler toda sua obra, colocando-nos no mirante de onde ele enxergou o
mundo. Quando, por exemplo, vemos condensada a doutrina de Hegel no enunciado: “quanto
mais geral, mais real, e quanto mais individual, menos real”, aí temos sua filosofia na máxima
concisão. No entanto, já dizia Horácio: “Esforço-me por breve, torno-me obscuro” 5. Quer
dizer que, com este simples enunciado hegeliano, não podemos viver a sua filosofia. Já se
passarmos e repassarmos por todos os seus argumentos, depois de certo tempo, aquele
enunciado, aquele condensado do grande pensador, se nos mostra cheio de conteúdo vivencial.
Dir-se-á que não temos tempo para ler todas as obras de todos os pensadores. É certo
que não dispomos desse tempo; mas há as obras de divulgação, os escorços, os compêndios
para estudantes de filosofia, em que a condensação é menos restrita, menos compacta que o
simples enunciado. E há mais isto: para as mentes filosóficas, um simples enunciado soa como
se fora uma premissa da qual se pode deduzir todo um sistema. Um simples enunciado já serve
para pôr-nos no mirante que verte para o mundo, em que, realmente, se colocou o filósofo. E
assim como Hegel chegou à sua condensação, à sua fórmula, por indução, nós podemos
deduzir o seu universo a partir de sua fórmula.
O mundo foi enxergado por Hegel, de que ponto de vista? Pois ele viu o universo do
mirante criacionista, que não do evolutivo. Do ponto de vista evolutivo, tudo se faz de baixo
para cima. Houve um tempo em que este nosso universo estava condensado numa esfera de
dez mil anos-luz de diâmetro, que era o Colosso Primitivo de Alpher, Beth e Gamow. Os
átomos, aí, em formação, eram nus. Os núcleos atômicos eram já cosmos, porém, rodeados
ainda pelo caos. Com a expansão do Colosso Primitivo, os núcleos nus ganharam calotas
eletrônicas, pelo que surgiram os átomos; estes, então, eram cosmos, todavia, rodeados pelo
caos. As formações se sucederam de baixo para cima, por este processo, e tudo o que se
organizou, esteve sempre rodeado pelo caos. O indivíduo humano, o seu ente biológico, foi
preciso formar-se primeiro, para que, a partir dele, aparecessem as formações mais altas e
complexas da sociedade, do Estado. O Estado, por conseguinte, é uma unidade em formação,
e, por isto mesmo, em parte, ainda caótico, não podendo ser mais real que os indivíduos, dado
que o Caos mais inteiro é a suprema irrealidade. Daqui se pode construir a fórmula de Hegel
pelo avesso: em todo o âmbito que a evolução abarca, quanto mais geral, menos real, e quanto
mais individual, mais real. Em nosso mundo evolutivo, o real está na razão inversa do
universal, e na razão direta do individual. Há mais ordem e harmonia, e, portanto, realidade, no
cosmo atômico e molecular, do que no organismo estatal; isto é pacífico. O cosmo sideral,
embora amplo, é simples, como se fora uma ampliação do átomo, da molécula. Não confundir
extensão espacial com generalidade.
Estaria, então, errado o enunciado hegeliano? Não está. No mundo celeste, no mundo
pleniluminoso criado por Deus, o mundo resplendente ou topos uranos de Platão, a fórmula de
Hegel se aplica, e quanto mais geral, mais real; a suprema realidade é Deus, da qual todas as
demais realidades decorrem; e dele abaixo, quanto menos geral, menos real. As conseqüências
que Hegel tirou do seu sistema, relativas ao Estado, o Estado teocrático, em que o chefe
manda por eleição divina, aplica-se lá, no topos uranos, onde é inexeqüível a democracia pela
5
Clássicos Jackson, XII, 10
9
qual a massa dos anjos menores elegeria seus chefes, e isto, simplesmente, porque o menos,
ainda que em massa, não pode eleger o mais. Um gênio sozinho pode muito mais do que os
milhões de homens medíocres que se pudessem reunir num parlamento, num conselho, porque
nada de superior será obtido pela potenciação infinita da unidade, do um, ou pela somação de
infinitos zeros. Onde não há elite, não há escolha, e um congresso cem por cento constituído
de nulos, o eleito será um nulo também. E a massa nem sempre sabe distinguir o homem
elegante (donde veio elegente, que sabe eleger ou escolher o que melhor se tem a fazer), o
homem excelente, do demagogo vulgar que não passa dum ambicioso do poder e bem falante.
No entanto, em relação a este nosso mundo evolutivo, Hegel está errado, e nada mais fez do
que recair no passado, porquanto o absolutismo estatal foi o cariz de todos os governos desde
os primórdios da civilização, e, já nos tempos modernos, Luiz XIV (“L’etat c’est moi”), o
Mikado japonês, Hitler, Mussolini, Lenin, Napoleão Bonaparte, Júlio César, Alexandre
Mágno, Anibal, Gengis-Khan encarnaram o “Espírito Absoluto” qualquer que fosse o nome
dado à suma Realidade-Deus.
Como era de esperar-se, em nosso Estado ainda em formação, a anacrônica e
primitivista doutrina de Hegel se mostrou funestíssima, porque a pretensa eleição divina elevou
Mussolini e Hitler ao poder. Tal “eleição divina” não fez mais do que permitir a subida de
verdadeiros demônios do mal ao supremo mando, como o demonstraram as obras demolidoras
de ambos, sobretudo as de Hitler. Basta o que atesta a História para provar que a doutrina de
Hegel está errada em relação a este nosso mundo invertido, egoísta e mau. No entanto, se
aplicada ao topos uranos de Platão, a filosofia hegeliana se nos mostra corretamente certa. Daí
que, conforme o dissemos, a doutrina de Hegel se aplica ao mundo criado diretamente por
Deus (criacionismo), e não , a deste nosso mundo evolutivo, imperfeito, que vem da escuridão
do Caos, em demanda da luz. O liberalismo democrático, portanto, pode não ser o melhor
regime, mas é o que melhor se adapta às condições dragontinas deste nosso mundo em
evolução.
E, pois, que temos feito até aqui, senão uma crítica a Hegel ? Então, a filosofia pode
definir-se, também, como crítica. Cada filósofo, ao erigir o seu sistema, critica os anteriores no
que supõe errado, incorporando o que tem por certo e verdadeiro. Daqui vem, conforme o diz
Ortega, que a filosofia, por um lado, é “o repositório dos erros”, e, por outro, “o tesouro dos
acertos”.
Partindo da definição mais natural e espontânea de filosofia, que é a de meditação
sobre o mundo, podemos perguntar: o que o homem procura descobrir nas coisas, no mundo,
por meio de sua meditação ? Procura descobrir o nexo, a inteligência, a essência das coisas.
A própria palavra inteligência vem de duas palavras latinas, inter (entre) e legere (ler); a
inteligência é, pois, a faculdade de ler, captar ou perceber o nexo que os sentidos não
percebem. A inteligência busca o nexo que co-está com as coisas. É a inteligibilidade das
coisas. Há, nas coisas, um princípio de conexão não só que a todas interliga, senão que
também integra suas partes. O núcleo atômico é uma unidade polarmente contrária aos
elétrons; estas unidades opostas e complementares se conectam na unidade hierarquicamente
superior - o átomo. Os átomos de polaridades elétricas contrárias ligam-se entre si, do que
resultam as moléculas, e assim por diante, tudo o que existe é uma síntese que agasalha, no seu
interior, no seu ser, unidades opostas e complementares. Assim, cada ente, qualquer que seja o
nível, se mostra diferenciado em relação à outra unidade do mesmo nível, mas oposta, com a
qual se combina, formando uma unidade maior, de espécie superior, do que as componentes.
Do homem abaixo, ou do homem acima, o princípio é o mesmo.
Como a inteligência busca o princípio, o nexo, que tudo liga e integra, a meditação
sobre o mundo se reduz à procura do nexo. A este nexo se deu o nome de Eros que é o
princípio de integração, princípio de conexão, de união. A inteligência, portanto, busca Eros, e
Eros é o Amor. Por isto é que Platão via o mundo cheio de Eros; via o universo, e tudo o que
o constitui, como que amorosamente interligado; o universo, para ele, existia graças a esse
10
6
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 209
7
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
8
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, l68
11
conversação de quase três milênios, um diálogo e uma disputa contínuos numa língua comum
que é a própria atitude filosófica e a presença dos mesmos bicórneos problemas” 9. “Deste
modo, a série dos filósofos aparece como um só filósofo que houvesse vivido dois mil e
quinhentos anos e durante ele houvesse «prosseguido pensando»” 10. A filosofia, deste modo,
se nos mostra como uma coisa em se fazendo; mas um dia estará completa, conferindo ao
homem a plena verdade humanamente possível. Existirão luzes verdes para todos os lados,
indicando campos ignotos do saber, somente acessíveis a outros níveis de consciência; porém,
a mente humana, enquanto humana, estará saciada, tendo realizado em ato toda a sua
potencialidade. O objetivo perseguido pelo homem é a felicidade, e o saber é, apenas um dos
caminhos para ela. Todavia, do mesmo modo como um neurônio do nosso córtex nunca
poderá vir a saber o que é o universo-homem em que ele vive, habita, e do qual depende, nós,
humanos, ainda que sapientíssimos, jamais, também conseguiremos saber o que é o Ser, o que
é Deus. No entanto, podemos falar a respeito dele, podemos dar dele o nosso testemunho,
podemos promovê-lo a Estatuto por excelência, a Fundamento primeiro, a Premissa Maior
de todas as nossas conclusões. Somente o homem que chegou a tanto, poderá chamar-se
sophos, sábio. Quanto a nós, por enquanto, contentamo-nos com apenas ser amantes ou
amigos da sabedoria, isto é, filósofos.
Capítulo II
QUE É A SABEDORIA ?
Como a descoberta da verdade se nos assemelha a uma revelação, daí, alétheia,
primitivo nome da filosofia; como tal descoberta vem pejada de sentimento, de emoção ... que
pode chegar ao êxtase, seu descobridor não se sente propenso a cuidar que sua visão é parcial,
que ele observou o mundo apenas de um mirante, que sua visão é uma perspectiva. Sua
tendência natural é considerar-se como detentor da verdade inteira, e, portanto, que seu
sistema é completo; sente-se, não como o que busca a sabedoria, como seu amante, apenas,
mas, como possuidor da inteira verdade. É assim que, antes dos gregos, a verdade que se tinha
relampagueado na mente dos pensadores, era dada como pura revelação indiscutível.
Buda teve o seu lampejo, quando meditava sob a árvore Bó, e achou que toda a verdade
consistia nisto: o mal do mundo decorre dos desejos os quais, em sendo anulados até suas
raízes mais profundas que são o desejo-de-ser, levam o homem a aniquilar-se como
individuação, dissolvendo-se sua mente individual na Consciência Cósmica ou Nirvana. Todo o
mal procede da individuação que se confirma e se reforça com o desejo-de-ser, e todo bem, da
desindividuação ou da dissolução do ser, ou ente, no Todo Universal.
9
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 170
10
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
12
A visão de Buda levou-o à anulação e ao não-ser, e isto, pelo seu método de não
desejar nada, pelo da negação da vida. Em contraposição, a afirmação da vida conduz o
indivíduo a reforçar-se, a impor-se, a individuar-se cada vez mais. Esta afirmação de ser dá
como resultado a ampliação dos desejos que, uma vez repetidamente satisfeitos, torna-se
hábitos que tecem a teia do destino. Como a alma é uma mina inesgotável de desejos, o desejar
não cessa, e em qualquer ponto de parada sobrevém o tédio que é outra forma de sofrimento.
Assim, o homem está condenado a desejar coisas, sofrendo por não poder realizá-las todas; e
se resolve pôr um termo a tanto desejar, aí nasce o tédio que o esporeia e o faz ir por diante.
Iniciando-se, por conseguinte, uma árdua guerra contra os desejos, vencendo-os um a
um, pouco a pouco vai cessando a afirmação-de-ser, e quando o indivíduo, através de várias
reencarnações, chegar à anulação de todos os desejos, até o de viver, até o de ser, terá
chegado à sua extinção total com sua disseminação no Todo, inclusive sua mente que se
dissolve no arqui-oceano da Mente universal ou cósmica de onde saiu, quando se individuou,
e, após isto, prosseguiu no desejo impuro de continuar individuado. E se esta porção do Todo
universal não teve este desejo impuro de individuar-se, e não podia tê-lo, porque inconsciente,
segue-se, então, que tal porção foi, à revelia sua, individuada por Algo estranho a si. Daí a
ponta de revolta de Buda contra esse Algo a cuja vontade se opõe, querendo exatamente o
oposto do que o Algo quis e fez... Quando o indivíduo anelar pela morte, não só a física, mas a
da própria alma, então sobrevém a anulação do ser, e sua mente se dissolve na Mente universal
de onde foi compelida a sair, de onde foi individuada, como uma onda encapelada que se
individua do corpo aquário do oceano, para onde retorna e desaparece. Retornando, assim, ao
Todo primitivo, cessa a individuação, e, com ela, os desejos, e, com estes, todas as dores,
aflições, fadigas e males.
Não adianta Huberto Rohden nos dizer que os budistas sempre consideraram Buda
como uma “alma ébria de Deus”. O que os orientais pensam e sentem em seus desejos de
autoafirmação, isso não conta. O que conta é o que o próprio Buda disse, e é isto: “Os
perseverantes apagam-se como a lâmpada. Onde nada é, onde nada se arrebata, onde nada é
palpável está a Ilha do Nada-Além; chamo-a de Nirvana: a suprema abolição do
envelhecimento e da morte”. Esta premissa de Buda acha-se bem explicitada na obra do seu
maior discípulo ocidental Schopenhauer, no seu livro: “O Mundo como Vontade e
Representação”.
Ora bem: o que quis a Mente universal? A individuação. E que pode mais: é a vontade
individual, ou a Cósmica? É a cósmica. E como pode a mente individual, então, vencer a
Cósmica, anulando em si, o que quis e impôs a Mente universal? Aqui está a incoerência de
Buda e a de Schopenhauer. De outro modo: a Mente universal ou Cósmica quis e operou a
individuação dos entes todos. Querer o contrário, a desindividuação, é estar contra a Mente
universal, é ser anti-cósmico, anti-Deus. Lúcifer e seus consócios chegaram ao não-ser pela
inversão do amor no egoísmo. A este mesmo não-ser pretendem Buda e Schopenhauer chegar,
pelo caminho de não desejar nada, ou pelo de desejar a anulação como indivíduos. Qual,
logo, a diferença entre estes dois modos de ser contra Deus? Pois Satanás, pelo caminho de
querer tudo, de querer ser o centro para onde tudo haveria de pender. Buda e Schopenhauer
não querem nada, nem mesmo ser, que isto é estar abaixo de último. Fale, então, Ortega: “A
rigor, a rebelião do arcanjo Lusbel não o houvera sido menor se em vez de empenhar-se em ser
Deus - o que não era o seu destino - se houvesse obstinado em ser o mais ínfimo dos anjos,
que tampouco o era. (Se Lusbel tivesse sido russo, como Tolstoi, teria talvez preferido este
último estilo de rebeldia, que não é mais nem menos contra Deus que o outro tão famoso)” 11.
Cada ente, logo, para achar a sua felicidade, que é a única coisa que todos buscam, terá
de permanecer no seu posto, fazendo aquilo que o faz ser o que é, numa especialização
proveitosa para todos, que o leve a ser único em sua espécie. São Tomás tem razão: cada anjo
é uma espécie; e Huberto Rohden: “O fim do homem é revelar em sua existência individual -
11
Ortega Y Gasset, a Rebelião das Massas, 178
13
aqui ou alhures - aquele aspecto peculiar e único da divindade que só ele poderá revelar
plenamente. Pois, como todos os seres da natureza, e sobretudo todos os seres humanos, são
originais, únicos e inéditos na sua existência, seres que nunca existiram nem jamais existirão
iguais; indivíduos que não são cópias de outros anteriores, e dos quais não serão feitas cópias
posteriores - segue-se que cada indivíduo e cada personalidade tem a missão peculiar de
concretizar um determinado aspecto da divindade” 12.
Por conseguinte, é na individuação de inconfundível unicidade original que está o fim
do homem, e não na sua despersonificação tendente ao homogêneo, ao amorfismo. O fim do
homem é ser único em si mesmo, e ser o que o anjo é, e “cada anjo é uma espécie”.
Mas Buda não perdeu tempo em explicitar sua premissa, ou chegar a ela por indução;
não se ocupou em descrever suas experiências, em desenvolver seus raciocínios, em
demonstrar sua verdade. Apenas apresentou-a como sendo a verdade mesma, a sabedoria
inteira sem discussão. A doutrina de Buda não aparece como uma busca da verdade, mas como
a verdade achada, inteira, e para revelá-la aos homens, não usou argumentos, raciocínios,
razões, exposições, e sim, apresentou-a como coisa definitiva, indiscutível, na qual se devia
crer de fé.
Assim também ocorreu com Zoroastro, o homem a quem tocou inventar o diabo, pois,
para ele, o único modo de resolver o problema dos males, misérias e dores do mundo, seria
criar um anti-Deus ou Satanás. Mas não diz Zoroastro quando, por que, de que, por quem e
como tenha surgido esse formidoloso Demônio que enche o mundo de mal e dor. Apenas
apresentou sua verdade que tinha de ser aceita de fé, sem discutir. No modo de apresentar a
verdade vai a diferença entre o dogmatismo e a filosofia, entre o fautor de religião e o filósofo;
este, por isto, mais modesto, se contenta com apenas ser amigo da sabedoria, enquanto que o
outro não tem por onde senão mostrar-se como sábio.
Moisés condensou em si toda a cultura de seu tempo, como príncipe que era, valido da
casa de faraó. No entanto, quando previu que o Egito estava condenado, sem remissão, por
causa de a materialidade estar suplantando o espírito, e decidiu fazer-se guia do seu povo
escravizado, não disse nada do que aprendera com os egípcios, não declarou que sua
concepção do Deus único era um aperfeiçoamento do etéreo deus-luz de Akhenaton
(Amenotep IV), um faraó que vivera cem anos antes dele, segundo Charles Potter. Não
anunciou que seu Decálogo, o conteúdo ético de sua religião, fora calcado sobre o Código de
Hamurabi. Nem que o maná das fraldas do deserto que o povo percorrera, era natural aí, e até
hoje é colhido de uns pequenos arbustos (tamargueira). Nem que as codornizes caídas de
cansaço no arraial, não foram enviadas por Deus, mas que até hoje lá pousam de seus vôos
migratórios, depois de vencerem a distância do braço de mar que cada vez mais se alarga com
o afastamento dos continentes. Nada disto disse Moisés, e antes, levou tudo à conta de ordens
e vontade de seu Deus. Por que? Para ter a indispensável autoridade, falou em nome de Deus.
Suas experiências com explosivos no alto do Sinai, eram trovoadas, e quando, um dia,
queimou a cara, e teve de ocultá-la com um saco, veio com a explicação de que Deus lhe falara
face a face, e que desta vista de Deus, seu semblante de homem ficou resplandecente a tal
ponto, que ninguém conseguiria fitá-lo. Em vez de tirar o capuz que lhe cobria a cabeça, e
fazer esta prova magnífica do poder de Deus, apenas deu aquela descabelada versão do seu
acidente, e ficou só nisto. Foi com tais resinas explosivas que Josué pôs abaixo as muralhas de
Jericó, e, para despistar, enquanto os dinamitadores, camuflados, minavam as bases dos muros,
o povo, ao longe, ao largo, faziam voltas procissionais, tocando tambores e trombetas. A
arqueologia descobriu: as muralhas de Jericó caíram para dentro... Também com explosivos
Josué fez desbarrancar as margens do Jordão, bem acima de onde se acampava o povo de
Israel, e tendo secado temporariamente o rio dali abaixo, pôde o povo atravessá-lo a pé
enxuto. Mais verossímil é esta do explosivo, que a hipótese de terremotos para o
desmoronamento das margens do Jordão, e para a queda das muralhas de Jericó, aventada por
12
Huberto Rodhen, Filosofia Universal, 2, 75
14
quem escreveu esta parte de “O Mundo Bíblico” de Seleções... Segundo Sílvio Gesell, há duas
fórmulas de explosivos na Bíblia, bastando variar as proporções: uma é a do “azeite da santa
unção” 13, e outra, a do “incenso santo” 14. Daí a recomendação, em ambos casos, de que seria
extirpado do seio do povo aquele que fizesse uso inadequado de tais incenso e óleo santos,
haja vista os dois filhos de Arão que morreram duma explosão, quando erraram na fórmula do
incenso; mas a explicação é que apresentaram ao Senhor um “fogo estranho” (!) 15. Agora,
então, se sabe como os egípcios rebentavam pedras...
Também, diz Fritz Kahn que “os egípcios sabiam até construir aparelhos (elétricos) de
alta tensão, pois o cientista moderno que ler a Bíblia tem quase a certeza de que a “arca santa”,
da qual os sacerdotes faziam saltar “fogo”e “relâmpagos” que matavam qualquer um estranho
que se aproximasse indevidamente, fora uma instalação de alta tensão” 16. De tais raios morreu
Uzá 17 quando, para amparar a arca que se inclinara no transporte, pôs-lhe a mão. Os
condensadores se descarregaram para a terra pelo corpo de Uzá, e ele morreu. Ou do incenso,
ou destes raios elétricos morreram os sacerdotes filhos de Arão 18, já referidos.
Saradas as queimaduras, descobriu Moisés o rosto, porque aí, então, já se tinha
extinguido o resplendor divino. Ao fazer Miguel Ângelo o seu “Moisés”, talhando-o na pedra,
não teve outro meio de fazer esses raios divinos senão como duas pontas a saírem da cabeça
de Moisés; com isto Moisés saiu de chavelhos confundindo-se com Pã, com Sileno e com os
sátiros e faunos gregos..., para a confusão de algum arqueólogo, de milhares de anos futuros,
que o venha desenterrar de entre as demais ruínas desta nossa civilização...
Foi bom Moisés ter procedido desse modo? Sim, foi. De outra maneira não teria
autoridade sobre aquele povo que, além de fetichista e escravo, estava muito mal acostumado,
por causa da degradação e dos desregramentos dos egípcios. Haja vista que quiseram retornar
à idolatria egípcia e clamavam pelas paneladas que deixaram para trás no vale do Nilo.
Descendo Moisés do Sinai, em cujo cimo Deus lhe dera as Tábuas da Lei, depara-se
com seu povo na adoração do estúpido bezerro feito por Arão com as arrecadas de ouro que o
povo trouxera dos egípcios. Enfurecido, Moisés quebra as Tábuas Sagradas, e com isto obtém
duplo resultado: primeiro mostra todo o seu horror à idolatria, e manda passar pelas armas os
idólatras desnecessários e sediciosos, como escarmento para todos; só os desnecessários, sim,
porque poupou o indispensável Arão por cuja boca falava, visto que era tartamudo. Arão foi o
fautor do bezerro, e interrogado por Moisés sobre por que fez aquilo, respondeu: “lancei (o
ouro) no fogo, e saiu esse bezerro” 19. Esta desculpa mais afeiou o ato de Arão, porque, se
nega que fez o bezerro, então este se fez a si mesmo, pelo que se comprovava ser o verdadeiro
deus. Por tão feio pecado que custou a vida de tantos, Arão não é executado, porque havia
outros que podiam servir de bodes expiatórios, somente contra os quais recaiu a fúria
sanguinária de Moisés.
O outro resultado foi destruir aquelas Tábuas em que Deus escrevera, segundo disse:
por que? Ora, porque rudemente imperfeitas, impróprias a constituírem obra de Deus; com
isto, Moisés teve oportunidade de escrever, ele mesmo, outras, agora com as imperfeições
permissíveis, por serem obra de homem. Que petulância foi aquela de Moisés, de fazer em
pedaços uma obra saída da mão de Deus? E das Tábuas originais, por que não se guardaram,
como relíquias preciosíssimas, ao menos os cacos? Acaso não se podia emendá-los,
reconstituindo toda, inteira, as divinas Tábuas?, como fazem, hoje, os arqueólogos e
paleontologistas? estes com fósseis, e aqueles com cerâmicas, documentos, manuscritos e
utensílios? Mas não. Das antigas Tábuas não se falou mais, e Moisés escreveu outras, agora
13
Ex. 30, 23-24
14
Ex. 30, 34-36
15
Num. 26, 61
16
Fritz Kahn, O Átomo, 22
17
II Sam. 6, 6-7
18
Lev 10, 2
19
Ex 32, 24
15
apresentáveis a homens que ficaram só a imaginar como seriam aquelas em que Deus, tão
portentosamente, escreveu com sua própria mão.
Poder-se-ia perguntar: onde fica Deus em toda esta fantástica história? Pois fica na
mente e no coração de Moisés, porquanto foi de aí que Deus tudo comandou, propiciando
meios de civilizar a besta humana, obra que ainda não está acabada. Nós nos reverenciamos
frente à grande figura de Moisés, o gênio usado por Deus para guiar o rebanho de ignorantes,
egoístas e maus, em demanda da luz. É aí, na mente e no coração do seu ungido, que Deus
atuava, e não com prodígios exteriores, com deslumbramentos e portentosos sinais de força,
que é o que o involudo sempre procura. Akhenaton fracassara, porque era um rei. Moisés
anotou isso. “As grandes inovações nunca vêm de cima; é de baixo que, invariavelmente,
procedem”(Jung). Além disso, Akhenaton não contou com um Paulo, como teve Cristo
(Charles Potter). E sendo Moisés também um príncipe da casa de faraó, desceu do seu
pedestal, fez-se pastor do rebanho de ovelhas do seu sogro Jetro, antes de ir à sua gloriosa
missão de conduzir escravos com o título de “Libertador”, e, como tal, e em nome do seu
tonitruante Deus, triunfar sobre o poder supremo do Egito, traçando depois, com mão firme,
os primeiros rumos da nossa civilização ocidental. Pudera ter ficado com o trono do reino do
Nilo, se aplicasse nisso sua fabulosa inteligência. Mas não. É de baixo que havia de surgir,
heróico, sobranceiro, extraordinário aquele que encheria com sua figura mais de três mil anos
de história. O povo ignorante, dragontino ainda, queria sinais de força? Pois deu-os Moisés, a
mando do seu Deus interior que lhe guiava a mente, o coração e os passos. O faraó do tempo
dos prodígios de Moisés, Ramsés II (Charles Potter), não acreditava nos prodígios, porque
harto os conhecia das mesmas escolas em que estudou Moisés; mas criam-nos as massas, e isto
manietava o rei todopoderoso antes, tornado agora débil. Moisés aprendera a transformar
cajados em serpentes, e o feito de a vara de Moisés comer e engolir as dos sábios do Nilo, não
diminuiu em nada a glória destes de terem sido nisto os mestres de Moisés. Nessa batalha de
magos, os egípcios e Moisés se emparelharam, sem vitória de nenhuma parte, porque o
prodígio se cifrava em fazer cajados virarem cobras, e não, numa serpente maior comer e
engolir as outras. O Nilo transformado em sangue, já suspeitavam, os sacerdotes e o rei, tratar-
se de fenômeno natural; algo invisível e ignorado, em certa época, e sob dadas condições,
tingia de vermelhos as águas. Assim as rãs; assim os piolhos; assim os mosquitos: a história (e
a conheciam) relatava outras iguais ocorrências no passado. Mas o povo ignorava tudo isso, e
sua pressão sobre os sacerdotes e sobre o rei, fazia-os frágeis frente à portentosa figura de
Moisés que não se cansava de dizer que agia a mando e em nome de seu Deus.
Deus tinha então, e tem ainda, um trabalho a executar no mundo, e Moisés foi o seu
instrumento por cujas mãos agia, e, porque gago, Moisés falava pela boca de Arão. E falou
Arão, e Moisés escreveu a fala para a posteridade. Neste trabalho de impor o Bem ao Mal, a
Luz às Trevas, a Sabedoria à Ignorância, todos os meios e estratagemas servem, como soe
acontecer na guerra. Se tenta o Diabo imitar a luz do empíreo, por que não pode Deus fingir as
trevas suas? Os homens dragontinos pediam um sinal de força (eis as trevas!) para crer, porque
só crêem na força, e o tiveram, que, para tanto, Deus tocara Moisés com sua arqui-luminosa e
argêntea vara.
Quem quiser saber a quanto andava a ciência egípcia, veja o que fez Moisés. O que este
ostentou foi o produto melhorado com seu engenho e arte, do quanto se ensinava aos
iniciados, e só a estes. Também os sacerdotes, mestres e magos do Nilo, em relação a Moisés,
poderiam ter antecipado Nero... no que disse este de Tigélinos: “– Agasalhei uma serpente no
meu seio!”, que tal o fora Moisés, para o bem de Deus, e para a desgraça dos egípcios que se
mostraram surdos e insensíveis à voz meiga, mansa e boa de Akhenaton, o rei poeta que
morrera aos trinta anos, ralado de desgostos. Foi esta a primeira grande luz que brilhou em
meio à escuridão imensa, e foi por esta sufocada, até que surgiu Moisés, a grande luz segunda
que as trevas não puderam apagar.
16
Os tempos correram, e Moisés se firmou cada vez mais, brotando dele todos os galhos
e vergônteas que hoje frondejam, floreiam e frutificam nas instituições, na ética e nas leis. À
besta então se pôs os freios: os éticos e os legais, tornando-a no “civilizado” dos dias que hoje
correm. Onde, pois, ficou Deus em toda esta história? Pois ficou na mente e no coração de
Moisés, como idéia e como sentimento, para grandeza e glória do homem, para a glória e
grandeza da civilização. É aí que age Deus, e não, como o desejaria o involuído que pede
efeitos exteriores de força..., a força que esmaga sempre, mas nunca, jamais, convence
ninguém! Saibam-no, os que ainda hoje crêem no poder: uma idéia - Moisés o demonstrou - na
cabeça e uma pena na mão de um gênio, como o que escreveu o Pentatêuco, podem ser muito
mais fulminantes que quantas bombas de anti-matéria se possam produzir..., bombas que só
ainda em teoria são possíveis. Eis Moisés, o portentoso homem de Deus, que só pôde ser
superado pelo Maior de quantos teve o mundo, que disse no Madeiro, nas vascas da agonia:
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!
Estes poucos exemplos bastam para demonstrar que, antes dos Helenos, os senhores da
verdade parcial não se davam como meros amigos da sabedoria, mas se punham na frente de
todos como sábios, porque, até então, o único meio de apresentar a verdade era o método da
fé, o da sugestão, visto que o povo, grosso modo, não era racional. A humanidade também
teve sua infância, e as crianças, e os hipnotizados, obedecem sempre, sem nunca pedir razões.
Grosso modo, dizíamos, porque sempre houve a raça dos discutidores, dos sofistas e dos
cépticos, estes, no sentido grego da palavra, diferente do sentido que se dá hoje a esse termo.
Estes tais, ou entendiam e auxiliavam a obra civilizatória, ou eram os sediciosos, como Datã,
Coré e Abirão, anarquistas todos, que argumentavam: se toda a congregação é santa, por que
se exalta Moisés sobre os demais? Se todos somos santos, por que haver chefes? A estes, com
suas tendas, com seus animais, com seus filhos e com suas mulheres, Moisés enterrou no
deserto, e depois escreveu com mão firme, decidida: a terra abriu-se debaixo de seus pés, os
tragou, e se fechou sobre eles...
O céptico, no sentido grego, nada se parece (diz Ortega) com o negativista de nossos
dias que não crê em nada por mero comodismo, por preguiça de pensar; esse céptico moderno,
sonolento, amodorrado, que não se prende nunca em pensamentos grandes, difere polarmente
daquele outro vivo, ativo, percuciente que se dava ao trabalho de, por meio duma cadeia de
raciocínios rigorosos, apertados, erradicar a fé de seus coevos. Assim, os cépticos e os sofistas
levaram a descrença a todos os gregos, pondo em colapso a sua religião que servira muito bem
até ali.
No entanto, como o demonstra Ortega, “estamos sempre numa crença” que nunca
discutimos, porque a somos. Religião se pode discutir, porque é objeto de razão, de estudos,
mantendo-se, por isto, exterior à nossa vida; a crença que somos, que faz a nossa vida, que,
imperativamente, nos guia a conduta e os passos, essa não podemos discutir, porque a somos,
dado que os fundamentos não se discutem, nem nas ciências, nem nas matemáticas. Quando
perdemos nossa crença, o nosso substrato profundo sobre que nos apoiamos para viver e agir,
ficamos no ar, suspensos. Um homem pode não ter religião, mas terá sempre uma crença, que,
do contrário, não pode conduzir-se, agir, viver. Alguma coisa é sua convicção profunda, e, se
a perde, vê-se obrigado a entrar em meditação, a criar pensamentos novos, a organizar nova
crença. Pois bem: os gregos tinham perdido a crença nos deuses, e aqui, começa, para eles, um
modo diferente de obter nova crença, sem ser pelos caminhos da teofania, da revelação, como
até então fora. O homem grego atingira a idade da razão, a maturidade; não se guiaria mais
pelo princípio da autoridade, pela sugestão, pela hipnose, pela fé, e sim, por racionalidade, por
persuasão. A busca de Deus, do Ser, tinha de fazer-se por via racional, e não mais com base no
princípio da autoridade; em vez de continuarem a perguntar: quem disse?, passaram a
perguntar: por que?
Todavia, o Deus que aparece no fim duma cadeia de raciocínios, não é o mesmo Deus
das religiões. A filosofia, até agora, levou o homem à concepção de um Deus-Essência-Pura,
17
Capítulo III
AS CLASSES DE SABER
Filósofo é todo aquele que se acha possuído do amor pela sabedoria; porém, que classe
de saber ocupa a meditação do pensador? Há muitas classes de saber, como, por exemplo, o
saber instintivo, próprio dos animais, e o saber prático, manual, habitual, reflexivo (que faz o
artesão, o oficial) próprio dos homens ocupados em rotinas. Dizemos que a Natureza é sábia,
porque a vemos resolver os seus problemas inteligentemente, sem, contudo, haver inteligência
nos seus agentes. Há certas lagartas que, quando famintas, possuem heliotropismo positivo.
Atraídas pela luz, tais lagartas começam a subir pelo tronco, pelos galhos das árvores de cujas
folhas se nutrem, indo parar nos brotos mais tenros. Saciada a fome, cessa o heliotropismo, e
as lagartas podem voltar, nos galhos, para esconderijos seguros. Acima dos tropismos situam-
se os instintos animais, e infindos problemas se resolvem por meio deles. Esta sabedoria
irracional levou os homens a criarem aforismos paradoxais quais sejam: a natureza é sábia, e
a natureza é cega... É sábia, mas cega (!)...
No entanto, acima deste saber irracional situam-se outras classes de saber, como é o
caso do saber que procuramos, e do saber que não procuramos; este saber que não buscamos
é-nos imposto pelo nosso contorno social desde o berço. Ao nascermos, achamo-nos alojados
em um mundo social, e desde pequeno os mais velhos vão-nos ensinando coisas, noções, ao
nos transmitir o domínio da língua. Vivemos, destarte, a crédito da sociedade. Nossos
pensamentos não são nossos; são o social em nós. A sociedade nos invade, nos domina,
expulsa-nos de nós mesmos, para que sejamos o que ela é. Nesta fase não somos autênticos,
não somos nós mesmos, e, parodiando o Apóstolo das gentes que disse: “Não sou eu o que
vivo, mas Cristo é que vive em mim” 20, também poderíamos afirmar: não somos nós que
vivemos, mas a sociedade é que vive em nós.
E todos os nossos conhecimentos primeiros nos vêm por esta via do social, sendo esta
teoria do conhecimento muito diferente daquela de Kant, segundo a qual tudo começava nas
intuições puras de espaço, de tempo e de causalidade.
E quando vamos para a escola, a sociedade nos acompanha nas pessoas dos mestres,
prosseguindo no seu afã de expulsar-nos de nós mesmos, para que sejamos apenas mais um
elemento da multidão. Nossos conhecimentos são livrescos, ofertando-nos uma forma de
vivência muito diversa da que nos compete ter para sermos autênticos, para sermos nós
mesmos. O conjunto-verdade da multidão passa a ser o nosso conjunto-verdade com todo o
seu acervo de verdades falsas, tidas por verdadeiras.
Outra classe de saber não procurado é o habitual que nos impõe nossa vida espontânea.
Ao nos levantarmos, de manhã, lavamos o rosto, fazemos a barba, tomamos o nosso café,
vestimo-nos, e, às vezes, até sem nos apercebermos de tudo isto, se estivermos engolfados em
preocupações grandes. Tal, a força do hábito! No entanto, os hábitos foram aprendidos, antes
de se fixarem em automatismos semelhantes ao saber instintivo. Eis, portanto, outra classe de
saber: o saber irracional dos hábitos.
Vestidas as roupas, saímos para a rua, vemos casas, gente, árvores, animais, ouvimos o
barulho do mundo, e assim, chegamos ao nosso local de trabalho. Findo o dia, à tarde,
voltamos para a casa, pomo-nos à vontade para ler o jornal, ver televisão, ouvir música,
meditar sobre o mundo.
Até aqui, vivemos nossa vida espontânea, sem problemas. Todavia, quando, em nossa
meditação sobre o mundo, nos perguntamos: o que é a árvore?, nesse ponto, a árvore passou
a ser-nos um problema, passou-nos a ser objeto de cogitação, de estudo. Enquanto não nos
fizermos nenhuma pergunta, todo o nosso saber se resumia num saber não procurado, num
20
Gal 2, 20
19
saber vivencial, espontâneo, natural, patente. No entanto, quando nos perguntamos o que é a
árvore?, nesse momento, saímos da nossa vida espontânea, maquinal, para penetrarmos em
nossa vida racional. Este saber que procuramos, esse o discutimos, num pleno exercício não só
da razão, mas da vontade; queremos saber, e, por isso, procuramos tal classe de conhecimento.
A árvore tornou-se-nos um problema; queremos saber o que ela é.
Saímos da nossa vida espontânea, dissemos, para penetrar em nossa vida racional;
contudo, não é isto verdade, porque nossa vida espontânea, levamo-la conosco para o gabinete
de estudos. Não nos apartamos jamais, nunca, dela, e quando nos propomos a questão de o
que é a árvore, imaginamos a árvore num ponto da paisagem, e toda a paisagem ao redor
dela. Deste modo, o mundo espontâneo, embora não seja um saber procurado, é o fundo ou
cenário do outro saber, o que procuramos, porque, um homem que jamais tivesse visto árvore,
bosques, florestas, estaria impedido de fazer-se a si mesmo a proposição: o que é uma árvore?
Nunca, ninguém se ocupou de perguntar sobre as coisas estranhas que existem em Vênus; não
obstante, se algum dia chegar a vê-las, sem dúvida perguntará o que são elas. O caso é como o
da laranja para os mãoseanos; se em Mãose (planeta fictício) não houver laranjeiras com suas
laranjas, um mãosito ficaria impossibilitado de saber o que são tais coisas... por lhe faltar o
complexo das vivências sobre que se apóiam os conceitos, as essências.
Já se vê, conseqüentemente, que aquele saber não procurado que o mundo a todo
instante nos oferta, é a base natural indispensável do saber que buscamos. Sem as nossas
vivências, sem nossa vida espontânea, sem isso que está aí fora, sem esse mundo físico ou da
física, não se poderia construir a metafísica, literalmente, depois da física; sem esse antes, que
é a física, não haveria o depois, que é a metafísica. Se um serafim viesse nos dizer como é seu
mundo celeste, não poderíamos entender, porque nos faltam as vivências que subjazem, que
lastreiam, que fazem fundo a esse saber.
Ora bem: como estes dois aspectos: o substancial ou físico e o essencial ou metafísico,
são inerentes a todas as coisas; como o aspecto substância, física, vivência, experiência
sensorial, vida espontânea, e o seu correlato aspecto essência, metafísica, conceito, forma,
razão, vida racional não se separam na unidade do ser-das-coisas, segue-se que a filosofia
não pode considerá-los divorciados como sempre se fez. Conquanto nossa vida espontânea nos
propicie um saber não procurado, ele é o correlativo imediato e a base do outro saber, aquele
que procuramos. E o filósofo terá de considerá-los inseparáveis, do mesmo modo como, de
uma dada coisa, é impossível separar-se a essência da substância, a forma do conteúdo, a
idealidade abstrata da coisidade concreta. Se até aqui os filósofos cuidaram que bastava
conhecer a essência para dominar o ser duma coisa, agora demonstramos que o conhecimento
da essência pura, é só meio conhecimento. E a sabedoria, de que os filósofos se dizem
amantes, não se contenta só com a essência, que tal conhecimento não será sabedoria, visto
que esta vem de sabor, de experiência sensorial.
Conseqüentemente, na conquista do saber integral, o homem se comporta sempre como
um todo de que fazem parte sua razão, de natureza essencial, e suas vivências substanciais.
Todos os cinco sentidos exteriores, e ainda supridos e ampliados por instrumentos, e mais os
outros internos, não se sabe quantos, propiciam as vivências sobre que cavalga o nosso mundo
racional. E o amigo da sabedoria, se quiser sê-lo, agirá como um todo, e não só com sua
inteligência..., porque o saber racional, além de meio-saber, ainda não existiria se não fossem
as vivências que subestão àqueles. A realidade não se põe somente como essência, senão,
também, como vivências que integram, em si, os sentidos todos, e ainda os sentimentos e as
emoções que o mundo circundante pode produzir em nós.
De tudo isto, concluímos que os filósofos andaram equivocados desde os primórdios,
uma vez que se propunham a ser amigos da sabedoria, esta derivada de sabor, de experiência,
de vivência, e no entanto, eles se perderam no cultivo da razão abstrata, do puro conhecimento
racional, pelo que deviam chamar-se epistemólogos, ou filomáticos, mas, não filósofos. Eles
desprezaram, de vez, o substancial das coisas, sob a alegação de que isso era o não-ser; pois
20
tecnologia, o mundo ocidental como o vemos hoje..., mundo que está caindo, porque se
desprezou a filosofia que lhe deu origem..., unicamente a que poderá mantê-lo em pé..., com
lhe resolver os problemas, com lhe responder os reptos (Toynbee), os desafios que enfrenta.
O homem-massa, como o primitivo e o animal, também vive na alteração; o mundo
técnico que outros como ele criaram, é-lhe ameaçador; distrair-se numa rua de movimento de
veículos, é expor-se a ser atropelado e a morrer. Além disso, os demais homens são-lhe, de
alguma forma perigosos, contra os quais é preciso precatar-se. A vida que ele criou o obriga a
correr sem saber para onde, nem para quê. Até que, um dia, tal corredor para nada e para meta
nenhuma, pára, cai em si, mete-se em solidão e medita. Este estar só consigo em solidão, para
repensar o consabido e investigar o ignorado; este esforço inusitado que a massa humana não
conhece; este xeque-mate que se dá à verdade, é o que se chama filosofia. Este, o saber
procurado. E foi por este modo que toda a ciência se urdiu.
Porém, a vida é problematicidade, donde vem que o filósofo tem que prosseguir
pensando. Todos os pensadores, diz Ortega, são como se foram um único homem imortal que
houvesse estado a pensar desde o século VI a.C. até hoje; como o homem é mortal, e suas
energias extinguíveis, o único meio de prosseguir pensando, é fazê-lo em cadeia, a cadeia dos
pensadores no tempo, na história. Então, todos os filósofos começam por estudar o que os
antecessores escreveram, para prosseguir dali. Neste refazer da filosofia, cada um critica nos
predecessores o que há de errado, e incorpora-lhes os acertos. Daqui as três definições da
filosofia: a filosofia é um refazer; é o “repositório dos erros”; é “o tesouro dos acertos”,
como diz Ortega.
A filosofia, conseqüentemente, está sendo refeita, continuamente, para fazer-se. Porém,
quando Kant nega validade à metafísica, argumenta que as outras demais ciências estão aí,
como a física, a química, a astronomia, a matemática, como disciplinas acabadas e
indiscutíveis, no passo que a filosofia é um campo de dissensões irreconciliáveis. Por que
assim? Ora, porque a filosofia está ainda a fazer-se, dada a sua complexidade. Também as
ciências todas que se desmembraram uma a uma da própria filosofia, tiveram esta fase de
dissensão, e só puderam delimitar seus objetos, quando tais ciências estavam já em boa parte
feitas. Da busca da pedra filosofal e do elixir da longa vida, nasceu a química, então, com o
nome de alquimia. O alquímico não podia definir o objeto da sua ciência que se ligava à física e
ambas à filosofia. Quando, no séc. XVII, Isaac Newton expõe sua teoria da gravitação
universal, dá ao trabalho o título de Philosophiae Naturalis Principia Mathematica
(Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), porque a física-matemática ainda estava
envolta pela filosofia. Logo, não estava delimitado o objeto da física, nem o da matemática.
Igualmente, Volta, ao dar nome à sua pilha, chamou-a de “órgão elétrico artificial”, porque já
era conhecido, desde Aristóteles, o peixe elétrico. Volta falava em termos de biologia, porque
os conceitos biológicos eram-lhe mais familiares, mais conhecidos em sua época. O
pensamento de Volta, portanto, estava vinculado à biologia.
O homem é como o bifrontal deus Jano o que tinha uma face voltada para o passado, e
outra, para o futuro, daí janeiro, que é o primeiro mês de cada ano. Podemos dizer, também,
que uma cara do homem-deus-jano se volta para o particular, e outra, para o geral; uma para
as ciências, e outra, para a filosofia. Ora, é pacífico que a visão científica do particular, embora
obtida pelas inúmeras ciências, é mais fácil, menos complexa do que a visão da totalidade. Na
fase evolutiva, as organizações se fazem do simples para o complexo, de baixo para cima, do
pequeno para o grande, do individual para o universal; e assim como, quando os átomos se
organizaram, estiveram rodeados pelo ainda caos molecular, o mesmo ocorrendo com as
moléculas, com a biologia molecular, com os seres unicelulares etc., também as ciências
particulares podem apresentar-se como prontas, acabadas, enquanto que a filosofia continua a
fazer-se, estando ela ainda no seu meio caos. Se Kant nega validade à metafísica, porque ela é
um campo de dissensões, poder-se-ia dizer também que o Estado não é válido, porque ainda
em parte caótico e injusto, ainda ocupado em executar suas variadas experiências quanto à
22
melhor forma de regime. O Estado ainda não está feito; por idêntica razão, também o não está
a metafísica. Contudo, a verdade unitária e geral tem que haver; é impossível que hajamos de
ficar, para todo o sempre, perdidos no relativo, no particular. Kant invalidou a metafísica, por
causa das dissensões dos filósofos; tivesse ele vivido antes, na história, pela mesma razão
haveria de negar valor à física, à química, à biologia etc., que também eram doutrinas
questionáveis. Um dia, a filosofia estará completa num sistema-verdade, e daí por diante será
estável como disciplina do espírito, como sabedoria, como absoluta norteadora da conduta
humana. A filosofia, ainda agora, é o caminho da sabedoria, e ainda os pensadores são
filósofos, isto é, apenas amantes da sabedoria; um dia ela será a “sophia”, a sabedoria, e os
pensadores, “sophos”, sábios.
Eis, pois, como o atesta a história, que o saber procurado nos levou à filosofia, da qual
saíram as ciências todas que, também, por isto mesmo, são saberes procurados... por aqueles
que amam tais saberes, ficando de lado a massa dos que só aprendem por imposição do social.
Da filosofia se desmembraram todas as ciências que lhe eram até pesada carga; daí que ela, em
si, não se exauriu, nem se apoucou, tornando-se até mais leve, porque livre da bagagem
embaraçante; perdeu tudo o que não era si mesma, o que não era generalidade, o que não era
preocupação do Ser que, para o filósofo, continua a fulgurar no seu ofuscante Oriente eterno,
atraindo para si todo o afeto do que se fez pensador.
Uma coisa é o saber puro e simples; outra, o saber por amor ao saber. Um saber não
amado pode ser prático, rotineiro, a serviço da vida; todavia, um saber amado modifica a
conduta do aprendiz; não é exterior como o primeiro, e sim, a própria vida; não mero
instrumental da vida, mas ela mesma. O homem-massa aprende, como o filósofo, e até pode vir
a ser professor de filosofia, mas está destituído de curiosidade pelas coisas do mundo, não tem
surpresas, não se deslumbra, nem se entusiasma com o saber; ele visa apenas uma aplicação
prática, utilitária, imediata do saber; já o homem autêntico, o filósofo, inflama-se ante o
conhecimento, emociona-se até o êxtase frente à descoberta duma porciúncula do universo,
alça-se em pensamentos grandes, quando descobre um ponto periférico no leque cujas varas se
juntam no cabo, na unidade suprema do Ser. O filósofo em nada se assemelha, a não ser pelo
físico, a esse homem espiritualmente acomodado que se deixa levar pela vida, sem destino,
amodorrado em seu viver animal. Um homem comum pode não ver nada no trabalho duma
formiga que segue, indiferente, por seu trilho, levando um grão de milho à cabeça; mas
Salomão pôde tirar dessa faina uma sentença: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, olha para
os seus caminhos, e sê sábio” 21. Para o medíocre, a formiga não passa de uma das coisas
corriqueiras a lhe encherem a vida espontânea, cheia de experiências inúteis, inúteis porque
vazias de saber. Porém, o filósofo, o aspirante à sabedoria, tem seus olhos sempre
deslumbrados como os da coruja de Minerva. O homem-massa não possui curiosidade; para
ele, o mundo é achatado, planimétrico, sem hierarquia, sem significação superior; sua vida é só
a espontânea, a vegetativa, a transcorrer sem criações. O filósofo, diz Ortega, não cessa de
passar e de repassar o fio já cortante de sua mente na pedra que é o enigma do Ser, em razão
do que sabe ele enxergar, em um grão-de-areia, o universo ...
Eis que temos ressaltado qual o saber buscado pela filosofia, e quais os homens que, em
verdade, se podem chamar filósofos, ainda que ocupados em trabalho humilde, como era o do
modesto polidor de lentes, mas grande pensador Espinosa.
21
Prov 6, 6
23
Capítulo IV
22
I João 4, 7
23
I João 1, 5
25
lhe são órgãos pelos quais sente e interpreta corretamente o mundo, alterando-se, corrigindo-
se, reformando-se, refazendo-se, do mesmo modo como os seres vivos se fizeram e se
aperfeiçoaram face aos embates e experiências que o mundo lhes propiciara.
Contudo, a filosofia não é a síntese das ciências, como imaginara Augusto Comte,
porque ela tem o seu domínio próprio: antologia, metafísica, ética, estética e teoria do
conhecimento; por causa disto ela aspira a outra dimensão, a altura, e a ciência só nos pode dar
um mundo planimétrico, superficial, achatado. “A ciência (diz B. Russell) procura reunir os
fatos em feixes, mediante leis científicas; tais leis, mais do que fatos originais, são a matéria
bruta da filosofia” 24. Como as largas conclusões são da alçada da filosofia, por isto, “a ciência,
por si própria, não pode oferecer-nos quaisquer idéias morais, e é duvidoso que as idéias
morais venham a substituir as que devemos à tradição” 25. Ora, as idéias morais tradicionais
nascem da crença metafísica de que há um Deus, e de que a vida não se acaba com a morte
física. Sem esta dupla base não há moral. E a filosofia, desde os seus primórdios, se ocupou
sempre dos problemas do Ser. Pois bem: o Positivismo não conduz ao Ser; olvida-o por
completo; não dá nenhuma consolação e esperança para o homem sofredor, e sua “Religião da
Humanidade” não fez, jamais, um único adepto; “o culto dos heróis” não vale nada por não
dar consolo nem mesmo aos próprios heróis que se finam para sempre no nada, após a morte.
Ora, é nula a recompensa de apenas ter um monumento numa praça pública... Se a melhor das
vidas acaba nisto, às urtigas a vida! às favas o heroísmo! que o dom mais precioso para quem é
nobre de alma, fica sendo o não nascer, o não ser, e, se nascido, o melhor de tudo é morrer
cedo! ...
Aí está, que o vôo para o alto, isso aspira o pensador, o amante da sabedoria. Por esta
razão, a ave de Minerva que já levantou seu primeiro vôo, na Grécia, e, o segundo, a partir da
Renascença, prepara-se agora, de novo, para elevar-se ao aéreo espaço; o declínio da nossa
civilização o exige.
Após seu exaustivo estudo, Toynbee conclui que uma civilização cai, quando não pode
replicar, com sucesso, a determinado repto. Ora bem: a nossa civilização ocidental não soube
replicar ao formidável repto da Doutrina da Evolução assentado por Darwin e seus
consócios. Se nosso mundo veio do caos, e de aí saíram todos os seres vivos inclusive o
homem, então, o ato primeiro do Criador foi “criar” o caos que nega o Ser, Deus, ponto por
ponto. Partícipe, ainda, desta origem, nosso mundo é referto de misérias, de fadigas e de
dores. Mas como conciliar esse caos medonho, princípio genital de tudo, com a bondade, e
com a sabedoria de Deus? Daí que a aceitação, pura e simples, da Doutrina da Evolução, leva,
inexoravelmente, ao materialismo e ao ateísmo. Conseqüência: o mundo começa, hoje,
derrocar-se..., e não caiu de todo ainda, por causa das robustas pilastras das religiões. Todavia,
estas também estão entrando em agonia pela mesma causa. Dividido se acha o mundo, hoje,
entre os materialistas homens de ciência, todos evolucionistas, e os homens de fé que fecham
os olhos para não enxergar as verdades da Evolução. E nenhum filósofo resolveu tal cruciante
problema. Urge, pois, que a coruja de Minerva levante seu terceiro vôo, que a hora é já
crepuscular.
Esta nova idéia (“novae sed antiquae”- nova, mas antiga; “eis que faço novas todas as
coisas”) 26; esta nova idéia propiciará uma nova abertura para o Evangelho, em que Cristo-
Amor será o centro como modelo e exemplo, e não substituto segundo a interpretação
paulina, ou justificação pela fé. Fora do amor não há salvação. O amor a Deus decorrerá do
amor ao próximo como pensava S. Tiago, porque, sendo o amor energia-substância, transita
do amante para o amado, pelo que é necessário seja este algo que se possa ver, tocar e abraçar.
É por este caminho indireto e através do próximo, que se há de amar a Deus, e não,
diretamente. “As qualidades excessivas são nossas inimigas, não as sentimos, sofremo-las” 27;
24
Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 8
25
Bertrand Russell, O Elogio do Lazer, 152
26
Apoc 21, 5
27
Blaise Pascal, Clássicos Jackson, XII, 127
26
eis, pois, que a “simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha” 28. Como pode,
logo, alguém amar diretamente a Deus? O amor direto a Deus é um esforço exaustivo de abrir
os braços para o Eterno, para o Infinito, para o Inacessível, para o Inabraçável... que produz
vazio, desolação e tédio no amante...
Capítulo V
O MÉTODO
Quem faz alguma coisa, o faz de certo modo. O modo, o método de fazer, é tão
importante para a consecução do objetivo, que cada surto de progresso sempre se deveu à
descoberta de um método novo. Um animal que tente resolver dado problema, como seja, por
exemplo, sair duma prisão, segue um método a que se dá o nome de ensaio-e-erro. É o modo
das tentativas, sem ordem, sem planejamento, e da repetição de experiências em que já se
evidenciaram fracassos. Este método animal de resolver os problemas da sua vida, também é
usado pelo homem, quando este enfrenta um problema inteiramente novo. Edison, ao resolver
o problema de achar o material com que fazer o filamento de sua primeira lâmpada
28
Blaise Pascal, Clássicos Jackson, XII, 128
27
incandescente, não tinha por onde senão empregar o ensaio-e-erro, com apenas esta diferença:
não repetia, como faz o animal, as experiências fracassadas.
Todo o progresso científico iniciado no século XVII, na Renascença, se deveu ao
método novo da observação e experimentação descoberto por Galileu. Também, em filosofia,
com a verificação dos erros científicos de Aristóteles, Descartes introduziu o seu método da
dúvida que o levou à simplificação, à geometrização da natureza, e, com isto, abriu um ciclo
novo para o pensamento filosófico - o Idealismo.
A descoberta de um método novo implica, deste modo, na descoberta de novos
mundos, de conceitos novos, resultando numa ampliação da vida racional primeiro, e da
espontânea depois. O que eram outrora puras idéias, são agora máquinas que se movem, e
correm, e enchem o mundo espontâneo.
Também a filosofia nasceu de um método: o racional. E os gregos ficaram tão
entusiasmados com sua descoberta, que passaram a não entender como foi possível os homens
viverem sem ele até então. Não obstante, o método da fé servira muito bem até os gregos,
como é o caso dos hebreus que não precisavam pensar para resolver nada, porque tudo o de
que necessitavam se achava codificado no Pentateuco e demais livros do Velho Testamento.
Igualmente, na Grécia pré-filosófica, os deuses falavam pelos oráculos, e o próprio Sócrates
iniciou sua carreira de racionalidade, porque o oráculo de Delfus havia dito ser ele o homem
mais sábio de Atenas. Ora, como ele se tinha na conta de ignorante, como lhe vem o oráculo
dizer que era o mais sábio? A ser verdade o que dissera o oráculo, em que consiste o saber?
Acaso seria conhecer a própria ignorância? Como descobrir, então, se os demais homens de
Atenas também sabem que não sabem, senão, propondo-lhes questões?
Os demais homens se contentavam com as sentenças dos oráculos, e se guiavam por
pura fé. Sócrates pôs em dúvida a sentença, e foi tirá-la a limpo com a razão.
Eis a filosofia no momento mesmo de nascer, graças ao método novo de propor
questões, de perguntar. Foi, portanto, a partir de Sócrates, no século IV a.C., em Atenas, que
a filosofia tomou consciência de si mesma. Sócrates é o primeiro filósofo que abriu este
caminho para o pensamento, com seu método a que ele dava o nome de maiêutica, e que
significa perguntar.
Os filósofos pré-socráticos mileanos, no VI século a.C., fizeram afirmações... de que a
substância primordial de que tudo o mais saiu, era a água, o ar, a terra, o fogo, ou os quatro
elementos juntos. Vem Heráclito, e assenta que tudo é movimento e transformação; que tudo é
um vir-a-ser, um devir, um tornar-se, seguindo-se disto, que nada é. Contrapõe-lhe,
Parmênides, à idéia de que nada é, do não-ser, a idéia oposta do ser que é, e sempre é, sem
mudanças nem transformações, concluindo, após amadurecido desenvolvimento ideológico,
que Ser e Pensar são um e o mesmo. Já, aqui, Parmênides empregou um método: o da
contraposição, o qual Sócrates iria enxertar na sua maiêutica.
Para saber as coisas, Sócrates saía de sua casa, abordava os transeuntes, na rua, e
perguntava. As respostas suscitavam novas perguntas e novas respostas. To ti? que é isto? –
interrogava ele, e o interlocutor se obrigava a pensar no assunto para responder.
Andando pela praça, Sócrates vê Górgias, o sofista, rodeado de ouvintes; estava ele
arengando sobre a humildade. Depois de o escutar por certo tempo, entra no assunto, e diz:
– Meu amigo, tua sofistaria não me convenceu, porque não disseste o que é a
humildade. Que é ela?
E vem-lhe logo a resposta de Górgias:
– É a virtude que nos dá o sentimento da nossa pequenez.
– Pequenez em relação a quê?
– Ora, em relação a outros que sabemos serem maiores do que nós.
– E se tais outros que sabemos serem maiores que nós, tiverem consciência dessas
superioridades suas em relação a nós, como se chama essa consciência, esse sentimento de
serem maiores que nós?
28
– Esse sentimento que leva o homem a sentir-se mais que os outros, chama-se
orgulho... que se opõe à humildade.
Depois de refletir um pouco, torna Sócrates:
– Se o orgulho se opõe à humildade, e sendo a humildade virtude, que é o orgulho?
– É vício! ora essa! - respondeu Górgias imperativamente.
– Quer dizer que um mesmo homem pode sentir-se tomado de orgulho, que é um vício,
quando olha para baixo de si, e possuído de humildade, que é uma virtude, quando olha para
cima, para os altamente colocados?
– É evidente!
– Então, um mesmo homem que possui a virtude da humildade, também alberga o vício
do orgulho?
–Tem que ser assim. Não vejo modo de não possuir alguém esses contrários
sentimentos no coração.
–Se possui esses dois sentimentos adversos, o homem passa a ter dois comportamentos:
o de humildade, quando trata com os poderosos, e o orgulhoso, quando, com os mais
modestos. Um tal homem de dois pesos e duas medidas, pode ser considerado como virtuoso?
E sua submissão, seu rastejar, quando trata com os poderosos, pode ser levado à conta de
humildade, de virtude?
A este claro raciocínio, Górgias respondeu, pensativo:
– Não..., não pode ser virtuoso esse modo dúbio de proceder...
– Então, volto a perguntar: o que é a humildade?
O interrogado franziu o cenho, demonstrando forte concentração mental, e logo mais
prosseguiu:
– Bom! Aventuro-me a dizer que a humildade é o sentimento de nossa pequenez frente
aos deuses, à imensidade, ao infinito.
– Mas, se o homem sente-se pequeno face às coisas grandes, imensas, inacessíveis,
infinitas, igualmente pode sentir-se grande ao considerar tudo o que se lhe acha abaixo. Tudo o
que há no mundo, se faz de partes, indo parar no átomo que o vidente Demócrito dá como
sendo o fim da divisibilidade da matéria. E pode ser que ainda, com o andar dos tempos, se
venha a demonstrar ser tomo o átomo, ou seja, divisível... Se pudéssemos, por um pouco,
tornarmo-nos como formigas miúdas, certamente os demais homens ser-nos-iam deuses. Se,
logo, o olhar para cima nos faz humildes, quando olhamos para baixo havemos de sentir o
oposto da humildade. Conseqüentemente, humildade e orgulho fazem ponto num mesmo
homem; e como são qualidades oponentes, anulam-se, como virtude, não se podendo dizer que
é virtuoso o homem humilde, quando, mudada a situação, se faz altivo, arrogante, orgulhoso.
Ora, estar em baixo não pode, só por isto, fazer o humilde, nem, em cima, o orgulhoso. Está
certo isto?
– É... está..., – respondeu Górgias, coçando a cabeça, contrafeito.
– Então, o que é a humildade?
A isto, esbravejou Górgias, irritado:
– Acaso não tem fim esse teu interrogatório? Bem mais fácil é perguntar que responder.
Todo mundo sabe muito bem o que é a humildade, e o que é o orgulho. Mas agora, Sócrates,
no exercício gratuito desse irritante e ingrato ofício teu, tu pões em dúvida o que todos
conhecemos, e isso, com nos perguntar... o que é isto? O que é aquilo? Responde tu, então: o
que é a humildade?
– Não te apoquentes, meu amigo! Ando querendo saber o que são as coisas porque as
ignoro. Onde esteja alguém dando instruções, como tu o fazes, aí me ponho como humilde
aluno, a aprender. E visto que eu sou o aluno, e tu o mestre, tua orgulhosa irritação, ao me
interrogares sobre aquilo mesmo em que és mestre, me põe a pensar: não será, acaso, a
humildade, a consciência de nossa própria ignorância? Mas, já que vim para aprender, e acabo
29
sendo interrogado sobre aquilo mesmo que interrogo, não vejo por que continuar aqui; sigo,
então, o meu caminho...
E indo-se Sócrátes, pôs-se a pensar consigo: este homem, como eu, também não sabe o
que é a humildade; só que pensa que sabe, e tanto que estava a falar dela. Ora, eu ainda não sei
o que é a humildade; porém, me distingo dele que nem que não sabe não sabe.
Neste diálogo que imaginamos pudesse ter havido, não se chegou a solução nenhuma;
todavia, nos diálogos de Platão, também, as soluções de Sócrates nunca são satisfatoriamente
acabadas; sempre se interrompem, como a dizer que o processo de interrogar e de responder
continua, indefinidamente.
Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates na sua dialética, e é por isto que, nesta,
podemos enxergar os elementos fundamentais daquela. Conserva o sentido do método
maiêutico que consiste em considerar as opiniões face às quais apresenta as críticas. Partindo
de uma proposição, chega-se a um resultado que logo se critica, apresentando um argumento
contrário que é, por sua vez, criticado por argumentos positivos, e depois, negativos, e assim
se vai abrindo ou fechando uma espiral. A dialética é isto: uma espiral que se abre a partir de
um ponto, em processo dedutivo, ou a ele se fecha por indução. Desenvolve-se ela como uma
espiral que varre, sucessivamente, os mesmos setores do círculo, mas em lugares cada vez mais
afastados do centro, se a espiral se abre, ou em lugares cada vez mais próximos do centro, se a
espiral se fecha. É um movimento convergente a um ponto, ou divergente dele, mas nunca em
planos paralelos, superpostos, como prateleira, como era a visão aristotélica. Aristóteles
enxerga o mundo escalonado por níveis separados, estanques, independentes, e este seu modo
de ver tinha que se refletir no seu estilo clássico, seco, objetivo, frio, racional, peremptório
como um silogismo; ao contrário disto, Platão leva tudo conectado no seu cálido, sonhador,
belo, poético e convergente estilo ático. De Platão se poderia dizer o que se afirma do
Barroco: a unidade na variedade.
Unidade na variedade é o sentido fusionista de Platão, que não se encontra em
Aristóteles, pelo que é Platão, e não, Aristóteles, o pai remoto do Barroco. Embora o Barroco
tenha sua raiz próxima em Aristóteles, como este foi discípulo de Platão, quando, a este
respeito, fala Aristóteles, quem diz é Platão. E o que disse Aristóteles, ecoando Platão, é que
todo ser vivo é uma unidade formada de partes correlatas e interdependentes, um como
uni+verso, ou seja, a unidade mais a sua contraparte pluralidade. Daí que, a este modo de ver
o mundo, se deu o nome de fusionismo. Assim, “a literatura barroca aplicou a regra
aristotélica da unificação dos detalhes ou elementos isolados num organismo vivo, numa
unidade indestrutível, num conjunto orgânico, de modo que o afastamento ou mudança de
qualquer deles acarretaria a destruição do todo” 29. Desta definição nasce o barroquismo cujas
primeiras vozes são as dos jesuítas, e que domina logo os séculos XVII e XVIII, indo até
diluir-se no Gongorismo e no Rococó. Mas a dominância histórica (século XVII) deste estilo
de arte que existiu sempre, e sempre existirá, por refletir a visão fusionista do mundo, se
deveu à reação da Igreja à Reforma religiosa.
Não cause estranheza esta nossa afirmação de que Platão é o pai do barroquismo,
porque este é uma forma de estilo que reflete o modo platônico de ver o mundo. Tal como o
universo de Platão, “a alma barroca é composta desse dualismo, desse estado de tensão e
conflito, exprimindo uma gigantesca tentativa 30 de conciliação de dois pólos considerados
então inconciliáveis e opostos: razão e fé” 31. Esta é a causa por que “há no Barroco um
elemento estético que o liga ao neoplatonismo plotiano, graças ao qual a arte e a literatura
barroca revelam um fundo de esoterismo, mistério, obscuridade, dificílimo” 32. Já dizia Vieira,
do sermão, que há de ser como “estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem” 33. E
29
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T. I, 225
30
Como esta, deste livro que o leitor tem na mão - N. do A.
31
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 218
32
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 240
33
Vieira, Sermões, 1, 62 - Ed. das Américas
30
da voz do pregador, diz o padre, que há de ser como “um trovão do céu que assombre e faça
tremer o mundo” 34. E justifica: porque “como o mundo se governa tanto pelos sentidos,
podem às vezes mais os brados que a razão” 35.
Eis o Barroco, o formidando estilo, qual prodigiosa maça de Hércules, que serve só
para tratar de grandes e graves temas, e decaiu, desde o momento em que foi empregado em
assuntos insignificantes, quando escritores gongóricos se puseram a descrever ninharias com
hipérboles ou figuras do infinito.
Que?!... pigmeus, de Alcides, empregando a invencível arma, para socar formigas num
pilão? Que possa o rosto de Anarda, ainda que ela representava a Mulher em geral, e não,
porventura, determinada mulher (Afrânio Coutinho), que possa tal rosto comparar-se ao Sol, é
fantasia hiperbólica e ridícula do poeta Botelho de Oliveira, que não convence ninguém.
Igualmente sucedeu quando Coelho Neto e Rui Barbosa se perderam em rebuscar frases
campanudas no já decadente Barroco formal. Para ser grande, o Barroco tem que ser
conceptista do qual Vieira é o único exemplo, escoimado dos defeitos de que o grande
pregador ou não quis ou não pôde evitar. Tal poderoso estilo, pois, não morreu, e ressurgirá
sempre, quando o imponha um correspondente grave tema. Não morreu, e “Na alma espanhola
existe (...) um Barroquismo permanente e inconsciente, que remonta à Espanha romana, como
testemunham os escritores hispano-romanos Lucano, Sêneca e Marcial” 36. Até Camões
“(Estudos recentes incluem Camões na órbita Barroca)” 37. Todos estes escritores são
barrocos, antes do Barroquismo histórico, podendo este ser rastreado até sua origem vital mais
remota em Platão que lhe é pai.
E para demonstrar esta tese, comparemos os dois estilos, o clássico-aristotélico,
continuado na Renascença, com o Barroco da pós-Reforma religiosa; tais características
anotadas por Wolfflin encontra-se no livro de Afrânio Coutinho há pouco citado,38. Ei-las:
Renascimento Barroco
6 ) individualista 6 ) universalista
7 ) simples 7 ) complexa
8 ) absoluta 8 ) relativista
9 ) estática 9 ) dinâmica
10) formal 10) conceptiva
11) inteligência fria, racional, exata 11) inteligência imaginosa, figurativa, emotiva
12) esquema de uma prateleira, com planos 12) esquema de um leque, pirâmide, pinha de
superpostos pirâmides unidas todas pelos vértices
Tal, o que significa unidade na variedade cujo esquema planimétrico é o leque o qual
se pode abrir até formar um círculo que, elevado ao volume, dá a esfera ou pinha.
34
Vieira, Sermões, l, 75 - Ed. das Américas
35
Vieira, Sermões, 1,73 - Ed. das Américas
36
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 219
37
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 233
38
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 209
31
Deste modo Platão parte duma intuição ou idéia que logo desenvolve, e logo critica e
depura. No primeiro momento, quando se enfrenta o mistério, o desconhecido, o filósofo sente
admiração, é tomado de surpresa. Daí a afirmação de Vieira: “Dizem os filósofos que a
admiração é filha da ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se
admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque,
admirados os homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas
até as alcançar, e isto é o que se chama ciência” 39.
Esta admiração, portanto, excita as forças intelectivas que se arrojam na direção do
mistério, pela aventação da primeira hipótese que é uma intuição, uma idéia ainda nebulosa.
No segundo momento, vem a crítica para esclarecer a intuição que, com ser primeira, é
insuficiente. Estabelece-se a dialética, e a idéia cada vez mais se depura, aperfeiçoa e aclara na
direção da meta, para Platão, inatingível, porque a idéia, na sua maior pureza, não se situa
aqui, em nosso mundo, mas em outro, pleniluminoso e transcendente. O que se busca,
portanto, pela dialética, é a máxima aproximação possível da idéia, por parte de quem vive
neste nosso mundo, segundo ele, de irrealidades e sombras. A idéia absoluta paira lá nas
alturas, no mundo do Ser, completamente outro, em relação ao nosso de irrealidades; o bom
sucesso nesta empresa de se dirigir àquele, das idéias, não vai além de mera aproximação.
Pelo visto até aqui, a dialética consiste numa contraposição de argumentos a partir da
suposição básica inicial. Um pensamento não somente puxa pelo afim, como se opõe ao
pensamento contrário, de modo que, da contradição, sai uma idéia mais aclarada que
aperfeiçoa a anterior. Deste modo, da discussão travada entre oponentes, o diálogo se
desenvolve, a idéia cada vez mais se delineia na proporção em que se fecha para o geral,
unitário e central, que isto é a indução. Da maiêutica socrática saiu a dialética platônica, e
desta surgiu a lógica aristotélica. Ainda aqui, o procedimento sucessivo dos três grandes
pensadores, é como o de uma espiral que se fecha do particular mundo à mão, mundo
espontâneo, em que se situa a periférica maiêutica, para a geral e unitária lógica. Sócrates
perambulava pelas ruas à cata de opiniões, forçando a que lhe definissem e explicassem as
coisas; Platão emprega o método da contraposição de argumentos na sua dialética; Aristóteles
procura descobrir as leis desses procedimentos na sua lógica.
Isto não significa que, em Sócrates e em Platão, não houvesse a lógica; esta, neste dois
filósofos, era lógica aplicada, vivencial, implícita no discurso. Aristóteles apenas explicitou as
leis que regem o pensamento, formalizando, tirando a essência daquilo que, nos anteriores, era
in concreto, realidade atuante, substancial, vivencial. Aristóteles, portanto, fixou sua atenção
nos movimentos da razão que faz seu trânsito a partir das intuições, das suposições, passando
de uma afirmação a outra, desta à seguinte, e assim por diante. Toma por tarefa induzir as leis
desse trânsito, ou descobrir as leis que possibilitam passar de uma afirmação à seguinte; foi o
homem primeiro que se deu ao encargo de descobrir a lógica implicitada, desde sempre, no
pensamento e nas coisas.
Se, pois, para Sócrates, o método era a maiêutica, e, para Platão, a dialética, para
Aristóteles o método era a lógica como aplicação das leis do pensamento, que possibilitam
passar de uma proposição mais geral para outra menos geral, indo, cada vez mais, no rumo do
particular. Isto se chama dedução; todavia, o processo inverso que leva do particular ao geral,
a indução, também é do domínio da lógica. Este método de filosofar vingou até o fim da Idade
Média, e, durante ela, os escolásticos esgotaram todos os recursos que tal método podia dar.
A partir da Renascença, com Descartes, o método muda completamente de feição. Se
considerarmos que a maiêutica socrática foi o ponto de partida periférico duma espiral que se
fechava numa generalização cada vez maior que culminou com a lógica aristotélica no centro
do círculo varrido pela espiral, na fase inversa, a partir da Renascença, a espiral que antes se
fechou na lógica, abre-se agora, do geral, unitário e central para o particular e periférico, mas
conservando o cariz de lógica, de matematicidade. A espiral que agora se abre, não corre pelos
39
Vieira, Sermões, 15 - 151-152, Ed. das Américas
32
mesmos trilhos da anterior, que levariam, de retorno, à maiêutica, mas, mantendo o mesmo
sentido do movimento, ao abrir-se, segue outros sulcos, embora varrendo os mesmos setores
do círculo. O movimento de fechar gerado pelo impulso primeiro, dado por Sócrates, e que
vinha da periferia para o centro, prossegue, agora, abrindo-se de novo, e, com isto, dá uma
espiral de sentido inverso, como se pode verificar riscando as duas espirais numa folha de
papel.
Se a espiral primeira, a do Realismo, era indutiva, sintética, e vinha do particular e
periférico das coisas para o geral, unitário e central, agora, a outra espiral, a do Idealismo, que
se abre do centro, da idéia, é dedutiva, analítica, indo do geral e unitário, para o particular e
periférico; se a primeira espiral vinha da intuição sensível, confusa, das coisas, para a clareza
unitária da lógica, a segunda espiral que se abre, parte do claro pensamento lógico-
matemático-científico, para cobrir a área das coisas. A primeira vinha das coisas (res) para o
pensamento (essência); a segunda parte do pensamento para as coisas. A primeira espiral, logo,
se colore, vive e respira de um Realismo, no passo que a segunda ressumbra Idealismo em
todo o seu abrir-se para as coisas.
Demonstrado que a primeira espiral parte das coisas, e que a segunda chega a elas,
segue-se que Realismo e Idealismo são dois movimentos invertidos, contrários e
complementares: se, de uma parte, pusemos o eu que pensa, e, da outra, as coisas pensadas,
o movimento, no Realismo, vai das coisas pensadas para o eu que pensa, e, no Idealismo, do
eu para as coisas. O pensamento é a ponte pela qual se dá a transição das coisas para o eu, e
do eu para as coisas.
Descartes, no seu “Discurso sobre o Método”, partia do pensamento para deduzir sua
própria existência ou ser: penso, logo existo, ou penso, logo sou. Para um filósofo realista, a
sentença cartesiana seria às avessas, porque, para ele, preciso é primeiro ser ou existir, para
depois pensar; existo, logo penso, diria Aristóteles. A razão (natural) é clara e manifesta, visto
como quintilhões de entes vivos existem, vivem e agem, sem contudo ainda ter neles surgido o
pensamento. Não podem pensar, e, no entanto, sentem que existem, pelo que se defendem,
ou defendem suas existências por todos os modos que nos dá conta a biologia. Portanto, foi
preciso primeiro existir, para depois pensar; e o pensar surgiu para garantir a existência;
sem o pensamento que dá garantia de sobrevivência, não há segurança nenhuma, haja vista os
animais todos que estão a mercê do homem, só porque este pensa, e aqueles, não. E o próprio
Descartes tem um fundamento realista ao afirmar: eu sou uma coisa que pensa; primeiro ele
havia de ser uma coisa, para, depois, essa coisa que era ele, poder possuir a propriedade de
pensar. A razão natural, portanto, nos diz que o existir está antes do pensar.
Não obstante, a razão formal ou lógica também é clara, porque, quem diz: eu existo, já
se vê pensando na própria existência; esta consciência de existir já implica no pensar. Mas, o
que veio antes? o ser existente, ou o ser pensante? O existir ou o pensar? Do ponto de vista
evolutivo o existir vem antes do pensar, porque o próprio pensamento tem suas raízes mais
remotas na irritabilidade do plasma em razão do que foram possíveis os tropismos, as
impressões, as sensações, os instintos, tudo antes da consciência. Quando, por conseguinte, o
ente vivo tomou consciência de si mesmo, e pôde dizer: eu existo, já existia, de há muito,
tendo, já, sensação dessa existência, donde vem que, conquanto ainda não pudesse pensar, já
se sentia existir.
Do ponto de vista criacionista, primeiro está o pensar de Deus, para que os Filhos e o
Universo pensados pudessem ter existência. Porém, ainda segundo o criacionismo, só depois
de criados, de existirem, é que os Filhos puderam pensar. Em se referindo à Criatura, portanto,
o existir vem antes do pensar; no tocante ao Criador, na relação Criador-Criatura, o pensar de
Deus antecipou quaisquer criações, quaisquer existências.
O pensamento qual o que temos, é histórico; ele tem sua história biológica; e sabe-se
hoje, sem sombra de dúvida, que o meio, atuando sobre o ente vivo, provocou nele uma cadeia
de respostas: a formação dos órgãos dos sentidos, as vias nervosas aferentes a um centro de
33
registro e interpretação – o bulbo nervoso. Este cresceu, avolumou-se, enrolou-se para trás,
enrugou-se para caber em menor espaço, e a camada superficial (córtex) principiou a
coordenar, a inferir, a generalizar, a abstrair. O pensamento humano, pois, não é uma dádiva,
mas penosa conquista, sofrida, custosa, cuja demora se conta por seiscentos milhões de anos,
que é quando já se pôde ter registros fósseis. A vida, no entanto, se remonta a mais, indo, sua
origem, perder-se nas trevas densas, úmidas e quentes do algonquiano. Se o já primordial ente
vivo não sentisse; se o plasma que ele é, não possuísse a irritabilidade que é o início da cadeia
do sentir, não reagiria criando órgãos com que interpretar o mundo, para guiar-se nele no
duplo sentido de atacar e defender-se. Se não houvesse antes o sentir, não poderia ter surgido
o pensamento: do sentir seguiu-se o pensar... isto é sem contradita, decisivo, terminante.
No entanto, com o desenvolver da espiral idealista, aquele fundamento cartesiano eu
sou uma coisa... que pensa, se dilui, dissolve-se e desaparece através dos pensadores pós-
cartesianos, até atingir o máximo de exaustão em Kant, ficando, daí por diante, tudo suspenso
no ar. O idealismo “é uma atitude reflexiva (diz Morente) que gira sobre si mesmo, como
dizem que faz a arma denominada boomerang, que usam os selvagens da Austrália, que volta
ao ponto de partida à mão que o lança” 40. E Will Durant: “Foi nesses fagueiros dias da
metafísica alemã que Jean Paul Richter escreveu: «Deus deu aos franceses o domínio da terra;
aos ingleses, o do mar; e aos alemães, o do ar»”. Mais: "Até o grande materialista Helvecios
escreveu, paradoxalmente: «os homens, se me atrevo a dizer assim, são os criadores da
matéria»” 41. Tal, o filósofo idealista: um senhor semelhante à aranha que tira tudo de si para
fazer sua teia - empregando uma figura de Francis Bacon –, e uma teia toda especial, porque se
vai ver em que se prende ou firma, e a vemos sustida pela própria aranha, e tudo flutuando no
vazio.
Esta revolução do pensamento filosófico mudou, como era de esperar-se, a concepção
do mundo. Platão via as coisas neste nosso mundo misturadas e confusas; daí o dizer que
nosso mundo é pálido reflexo de um outro resplendente de verdades eternas. Para ele, logo,
havia dois mundos: o topos uranos de luz, e o nosso de irrealidades e sombras. Para
Descartes, este nosso mundo e o da verdade absoluta são um e o mesmo, porque encaixados
um no outro. A verdade está imanente neste mesmo nosso mundo, e não, oculto na
transcendência como o intuíra Platão. Numa primeira vista superficial, tudo se nos mostra
como escuro e confuso; mas, acurando o olhar, penetrando mais fundo, tudo se nos torna
inteligível. Assim, não são dois mundos separados e estanques, mas um só com dois aspectos
entre si embutidos, interligados, casados. Aquilo de verdade que há nas coisas, Platão chamava
de participação do transcendente; para Descartes, a verdade se acha imanente nas coisas, e
separando, pela análise, os dois aspectos, podemos enxergar o mundo das idéias de Platão
neste mesmo nosso mundo obscuro e confuso. Platão partia da intuição não declarada do seu
mundo transcendente, para andar pelo nosso mundo com sua dialética que o conduzia, de
volta, à transcendência, agora declarada. Descartes e os demais idealistas principiavam pela
análise, não das coisas, mas do eu que pensa; ou então, partem duma intuição de que
deduziam tudo, para, depois, irem conferir com aquilo que se acha imanente nas coisas.
Esta é a razão por que Espinosa, como idealista, não situava Deus fora deste mundo, e
antes, o via como fundamento das coisas. Sua frase: “Deus sustem a ponte no côncavo de sua
mão”, significava que as leis físico-matemáticas é que mantinham a ponte estendida sobre o
abismo, sendo essas leis o próprio Deus imanente nas coisas. O trabalho das ciências seria
uma constante busca desse Deus imanente que são as leis e princípios científicos que tudo
regem e sobre que tudo se alicerça. Não panteísmo; não que tudo é Deus, como,
absurdamente, se atribui a Espinosa, mas panenteísmo, ou seja, que Deus está em tudo, como
lei, como princípio, como essência. Daí que, para Espinosa, a matemática se torna uma como
ciência divina, dado que trata só de essências, ou do aspecto divino imanente nas coisas. Nesta
40
M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 165
41
Will Durant, História da Filosofia, 292-3
34
ordem de idéias, o cientista puro seria um como sacerdote a serviço desse Deus, todo o
progresso científico, uma aproximação de Deus.
E a moral? Em que havia ela de fundar-se? Não fora da natureza, num mundo
transcendental, porque, para Espinosa, não havia esse fora, essa transcendentalidade; e
dentro da natureza não há moralidade. Pois o nem dentro e nem fora da natureza é o mundo
social humano. Não é dentro, porque o homem civil, e enquanto civil, não segue as regras
naturais, e antes, por causa do império da razão, as tende negar. “Por meio da imaginação e da
razão (diz Espinosa) enfocamos a experiência; tornando-nos criadores do nosso futuro e
libertamo-nos do passado”. E não é fora da natureza, porque esse mesmo homem é um
produto dela, e se acha a ela inextricavelmente vinculado. Conseqüentemente, o bem e o mal
são conceituações só humanas, sendo relativas ao humano. A natureza é como é, sem
preocupações do bem ou do mal. Disto decorre que não há regras morais, senão as que o
próprio homem criou, para atender às necessidades suas de convivência.
Espinosa, nisto, poderia ter-se antecipado a Kant que escreveu a sua “Crítica da Razão
Prática”, em que diz haver, no homem, uma consciência moral, uma intuição do bem,
juntamente com aquelas outras intuições de espaço, de tempo e de causalidade, base de todo o
saber racional. Pois com fundamento nessa consciência moral pré-estante no homem, Kant
desenvolveu suas idéias morais. E Espinosa poderia ter-se antecipado a Kant, seguindo por
este caminho: não disse Espinosa que Deus se acha imanente nas coisas como essência delas?
Sim. Logo, está mais claramente manifesto como essência do homem, buscando, aí,
explicitar-se em condutas cada vez mais humanas e distantes do procedimento animal.
Entre os homens se podem contar alguns sábios e santos; não, todavia, entre os animais.
Segue-se, logo, que o imanentismo divino mais facilmente aflora no homem que nos
animais. O homem se mostra, então, como o metro, a medida das coisas; mas, não qualquer
homem, e sim o excelente, o santo e sábio. Contudo, como não se valeu, diretamente, deste
alicerce, teve de buscá-lo, de modo indireto, na sociedade construída pelo homem.
A natureza, no seu fatalismo mecanicista, produz, indiferentemente, Cristo e Gestas.
Estaria certo Cristo, e Gestas, errado, ou vice-versa? Do ponto de vista natural, ambos estão
certos, porque coerentes com a natureza que os produziu. “Escreverei sobre os seres humanos
(disse Espinosa) como se fossem sólidos, linhas ou planos”. Se as leis que regem os atos
humanos são tão fixas quanto as das geometria, não há liberdade, nem culpa. Sob este aspecto,
não há recompensa para a bondade do santo, nem castigo para a maldade do pecador. Porém,
do ponto de vista da sociedade, pode dizer-se que Cristo está certo, e Gestas, errado. Por que?
Porque Cristo, porque sábio, tinha suas paixões ordenadas, sob controle, no passo que Gestas
as tinha em completo caotismo. A conduta de Cristo brotava de sua sabedoria, e a maldade de
Gestas, de sua ignorância.
A moralidade é desconhecida pela natureza exterior, e, por isto, em estado natural, não
há o pecado, e cada um pode agir de modo a realizar-se, ou seja, de modo a explicitar sua
natureza íntima. Agora, no estado civil, o pecado existe, e constitui tudo aquilo que fira ao
preestabelecido pelo consenso comum como sendo bom. Por este motivo, cada cidadão fica
responsável perante o Estado pelo bem ou pelo mal que venha a praticar. Fora desta órbita
ético-legal da sociedade, não tem sentido falar de bem ou de mal. Só a sociedade pode opinar
sobre se um homem é bom ou mau; saindo-se deste ângulo para o estado natural, não existe
nem bem nem mal, porque a natureza é amoral.
Portanto, se a moral para Kant se fundamenta no próprio homem (consciência moral),
para Espinosa ela se alicerça na sociedade; e esta nasceu, segundo ele, da necessidade que os
homens têm (porque medrosos, porque fracos) de associar-se - único modo de se tornarem
corajosos e fortes. Quer dizer: Kant deixa implícito que o Criador pôs no homem a
consciência moral, do mesmo modo como gravou nele aquelas outras intuições de espaço, de
tempo e de causalidade. Para Espinosa, o Deus-na-Natureza produziu o homem fraco e
35
medroso, e esta fraqueza e temor forçaram a formação da sociedade que criou a moralidade
para subsistir. Ora, a sociedade, o Estado, impôs ao homem ordenar suas paixões, educando-
os, pressionando-os, obrigando-os à conquista da virtude e do saber. Pela inteligência, pela
razão, pelo estudo, o homem alcança o saber, e, por este, ordena as suas paixões que, no
ignorante, são desordenadas; deste modo o homem a si mesmo se melhora, e também a seu
mundo social. Quanto mais o homem tomar consciência das leis e princípios (Deus) que regem
o mundo, mais beneficamente poderá atuar no meio social. Pela razão, pelo saber, o homem se
subtrai ao império das paixões desordenadas que o escravizam em baixo, no mundo animal,
mas, com isto, ele se condiciona a um outro determinismo, um determinismo superior,
resultado de sua consciência da imutabilidade das leis eternas que são Deus. Esta é a razão por
que, segundo Espinosa, o homem não é livre: se animalizado, é escravo das paixões
conflitantes que o fazem infeliz; se superior, ordena as paixões por meio da inteligência, por
meio da razão, e se determina de novo, pelo que, de novo, não é livre. “Só somos livres
quando sabemos”? (Dewey). Errado: quando sabemos, ficamos determinados pelo que
sabemos. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Cristo). Não: conhecereis a
verdade, e ela vos condicionará numa não-liberdade, num determinismo de nível superior.
Conseqüentemente, a moral de Espinosa se confunde com a sabedoria, em
concordância com a trilogia grega Sócrates, Platão e Aristóteles; conforme os quatro
pensadores, os três gregos e o judeu, essa sabedoria só assume o aspecto de moralidade,
quando aplicada ao próprio homem e à sociedade aos quais serve, ordenando, orientando,
corrigindo. Só que os gregos fundavam a moral fora deste nosso mundo, na existência de um
Deus transcendental, no passo que Espinosa alicerça a sua na própria sociedade, como
indispensável à convivência.
Embora Espinosa acreditasse na sobrevivência da alma – “nós sentimos e
experimentamos que somos eternos” –, esta sua intuição era emotiva e não intelectual. Por isto
não se ocupou em explicar o que acontece com as almas pervertidas, com os elementos anti-
sociais que conseguiram burlar a vigilância da sociedade, da lei, neste mundo. Como ele não
acreditava em recompensas futuras, porque, como dizia, a virtude, em si mesma, é já a
recompensa que dá paz e alegria, podemos inferir que a alma do pecador, presa que é de
paixões conflitantes, é punida com isso mesmo: com a infelicidade que decorre de sua perdição
no seu próprio caos passional. Porém, se essas almas perversas se reencarnam, de novo, para
corrigir-se; ou se fazem a correção, lá, não se sabe onde deste mesmo nosso universo,
independente de seus corpos carnais; ou se ficam infernadas para todo o sempre no caotismo
de suas paixões; ou se, por fim, são eliminadas, destruídas, queimadas como a palha, isso
Espinosa não nos diz.
36
Capítulo VI
Esta será uma espiral dupla que contém, em si, os dois movimentos anteriores. Esta
espiral dupla, da síntese, terá, num movimento, o mesmo sentido da espiral do realismo, e, no
momento seguinte, o sentido da do idealismo. Em lugar do transcendentalismo realista e
imanentismo idealista, será o MONISMO FUSIONISTA que engloba os dois aspectos
anteriores na unidade. Partindo da periferia onde todas as ciências se particularizam em
especializações cada vez menores, encaminha-se também ao centro (como na maiêutica, na
dialética), não como mera síntese das ciências, como o viu o achatante positivismo, mas como
visão em globo, plena de vida e dinamismo. O Ser ou Deus, como pura essência, como forma
pura, pura idealidade abstrata, se concretiza com revestir-se da substancialidade que o faz
existente, essa na expressão mais excelsa que é o Amor. Em vez de partir da intuição
intelectual de um Ser único, absoluto, como o fizeram os idealistas pós-kantianos Fichte,
Schelling e Hegel, à ela, à intuição, se remonta, a partir da periferia, concebendo, não um Ser
vazio, ideal, abstrato, feito de pura Essência, mas um Deus cheio de Substância em que
consiste, que é a mesma, modificada, invertida, encontrável nas coisas.
Esta dupla espiral da síntese, como seu nome o indica, não se fecha da periferia para o
centro, senão que também se abre deste para as ciências e para as coisas, pelo que estará
animada de movimento, de dinamismo; será uma espiral que respira, que se fecha no Absoluto,
no centro, na unidade, e que se abre a partir dele para a multiplicidade. Sendo síntese, terá, em
si, os dois movimentos opostos, o de fechar-se para o centro realista, e o de abrir-se deste
centro unitário do idealismo. O puro Ser essencial que, desde Parmênides, ficou fixado na
imobilidade, como a borboleta na prancheta do entomologista (Garcia Morente), solta-se
agora para a vida, para o movimento, dada a natureza livre e móvel da Energia-Substância-
Amor que ele é.
E assim, temos chegado a entender como será essa espiral viva, movente, atuante, que
respira, que se abre por dedução e se fecha por indução. Se a espiral realista tinha sentido de
fechamento, e a espiral idealista possuía sentido inverso de abrir-se, de análise, de dedução,
nossa espiral da síntese contém, em si, o duplo sentido de respiro para dentro e para fora, para
a periferia e para o centro, em movimentos sucessivos e complementares. Quando, em seu
respiro, a espiral se fecha no centro, carreia para aí todo o saber científico de todas as ciências
que se filamentam em especializações cada vez menores, na periferia. Ao abrir-se, de novo,
leva às mesmas ciências um sentido de totalidade, de absoluto e de eternidade, para alegria e
gozo do experimentador que agora poderá enxergar o universo palpitando num grão de areia.
Não mais se perderá ele na relatividade porque a porciúncula vive e respira do absoluto ao qual
deve o seu ser. Já, então, o cientista enxergará a sua especialidade de um plano superior, e
quando lhe perguntarem o que está enxergando no microscópio, poderá levantar a cabeça e
responder: estou enxergando o universo!, vejo o que vê o astrônomo por sua luneta gigante;
eu e ele enxergamos como se comporta a substância em dadas condições. Tem razão Ortega:
“Para quem o pequeno nada é, não é grande o grande” 42. Tudo isto poderá dizer o observador
que olha o mundo pelo microscópio, e com muito mais proficiência poderá armar suas
hipóteses de trabalho.
Que poderosa mentalidade será a daquele que, no seu pensamento e no seu coração,
sentir tudo isto acontecer! Por isto é que esta filosofia fusionista, agora em se fazendo,
irmanará a ciência à religião; ela será um sistema aberto, não fechado como os anteriores. Os
primeiros elementos dela foram postos aqui, para que se ampliem e se tirem as conseqüências
práticas, de futuro.
E o estilo literário que se presta a um tal modo fusionista de ver o mundo, em que
entra o observador não só com sua mente, mas ele, como um todo, não pode ser outro senão o
Barroco conceptista, escoimado de todos os vícios e sutilezas que tinham o objetivo de
deslumbrar, de impressionar, de produzir efeitos, e ainda alimpado do seu aspecto funéreo,
negativo, pessimista e desprezador da vida. O gosto de amedrontar com o túmulo, com a
42
Ortega Y Gasset, Meditações do Quixote, 51
38
caveira e com a morte, tinha em vista cercear o egoísmo natural do homem, e existente em
todo ente vivo. Talvez tenha isso produzido os seus frutos, mas a renúncia vazia não cria nada,
e lança a alma na desolação. Não podemos renunciar o que temos nas mãos, a não ser tendo
em vista posse maior. “A virtude (não esquecer La Mettrie) é o egoísmo munido de óculos de
alcance”!
A atitude fusionista é medianeira entre pessimismo e otimismo; nem cantar um hino à
vida terrena, pelo pouco que ela tem de bom, nem execrá-la, inutilmente, pelo seu feio e mau
aspecto. O sábio não perde tempo nem com uma nem com outra coisa, visto como se
conscientizou de que todo o seu padecimento decorre da sua ignorância sobre como orientar
suas paixões vitais que são inextinguíveis, num sentido criativo, de bem. A renúncia não é
perda; é posse maior; ela não consiste em não desejar nada, o que levaria à inércia conducente
ao niilismo budista; antes, ela se resume em lutar por tudo aquilo que possa perdurar
eternamente. Daí que a posse do saber e da virtude não implica em renúncia vazia de tudo o
mais, mas troca do perecível e efêmero pelo que é eterno. Quando o sábio e o santo,
intimamente, desprezam poder, riqueza, glória, mundo, não o fazem por renúncia, como se
supõe, mas por egoísmo dilatado.
Não fareje que aqui estamos a pregar a fuga do convívio humano, como faziam os
anacoretas do passado. Já o dissemos: a sabedoria é a forma do amor, e este é a substância da
sabedoria. E amor não há sem convívio, sem atuação, sem obras. Fazer amigos, cultivar
amizades, também é conquista eterna, porque a vida continua após a morte física, noutras
dimensões. Ser pai e mãe, amar a esposa ao marido, e este a ela, sacrificarem-se ambos por
criar e educar os filhos, idem. Ser mestre pelo exemplo ou instrutor pela conduta, além de
propiciar a melhoria do meio social em que se está, ainda é eficaz oportunidade de experiência
para o que aspira a sabedoria. O sábio-santo não pode alienar-se, omitir-se, porque a vida é o
campo seu de lutas e de conquistas. O ignorante foge da luta quando pode, e gostaria que a
vida lhe fosse fácil, mansa, suave, sem suores e fadigas, padecendo ele, com isto, da mesma
ilusão da pomba kantiana que achava difícil romper o espaço, por causa da resistência que lhe
opunha o ar. Oh! Quão bom e quão suave seria voar no vácuo!... No entanto, é claro que sem
dificuldades não há resistências em que se apoiar para projetar-se para frente na conquista do
saber e da virtude.
Forte desta consciência, o sábio e santo intimamente se desapega da riqueza, sem,
contudo, abrir mão dela, mantendo-se de ânimo resoluto, fiel à certeza de que ela só é sua de
jus, não de fato, porque, na verdade, ela já pertence a todos os que dela se beneficiaram; e se
os que a receberem por herança forem como aquele que primeiro a administrou, então ela
continuará a ser socialmente útil; se, todavia, não estiverem à altura do excelente antecessor, a
riqueza se dissipará nas mãos de ignorantes que encontrarão nela uma fonte segura, infalível,
de alcançar as maiores desgraças. Deste modo, a riqueza é peso, responsabilidade, exigência de
trabalho, imposição de frutificá-la para o bem de todos. Riqueza individual com função social,
eis a fórmula posta em prática pelo que se fez sábio e santo. Tal, também, com o poder, e tal,
com o próprio saber, ambos para benefício coletivo, e não para satisfação exclusiva daqueles
que os possuem. Até a glória poderá ser útil, quando possa servir de incentivo a outrem, não
para conquistá-la também, que isto é fumo, é nada, mas para inspirar a resolução de seguir nas
pegadas daquele que, sem o desejar, se fez famoso.
A física emprega a palavra momento para tudo aquilo que acontece num átimo. É o
jeito de congelar o movimento numa fórmula ou num gráfico geométrico representativo de
sucessivos momentos em que atua uma força. É deste modo que ela resolve o problema de
reduzir o movimento ao parado numa sucessão de átimos de tempo. Este, o modo de ela lidar
com o que flui, com o que transcorre, com o que existe no tempo, para fixar o movimento na
imobilidade da lei, do princípio. O cinematógrafo pode dar-nos uma idéia vivência de como o
movimento se congela; os quadros representam, cada um, um átimo da cena, e todos, a cena
completa; mas só a cena se move, quando o filme anda no projetor. De igual modo, o som se
39
ao largo, como os israelitas na tomada de Jericó. Este modo fusionista ou barroco de ver o
mundo, leva tudo conectado, sem separar a pura idealidade da realidade substantiva, vivencial,
de sorte que o observador e o fenômeno observado ficam envolvidos na mesma realidade
vital.
Já o dissemos, e o repetimos: o Ser não pode ser alcançado só com a inteligência, e
antes, para acercar-se dele, o homem precisa agir como um todo, e não, apenas, com sua parte
racional. Por que? Porque o Ser não é Essência pura, senão, também, Substância. E vimos já
que os conceitos que temos das coisas e dos seres objetivos não são puros entes de razão, mas
possuem eles conteúdos vivenciais. Ninguém dissociaria do conceito de limão a idéia vivência
de azedo, nem de pimenta, a experiência sensorial de ardido. No entanto, porque os homens
só podem comunicar-se por conceitos, por entes de razão, visto como as vivências, as
experiências vitais de cada um não se transmitem, tendo cada um de adquirir as suas, então,
quanto possível, deve ser empreendido o esforço de reduzir a congérie do mundo a princípio
de razão.
Um alquimista medieval, perdido em meio às suas experiências caóticas, agindo só
empiricamente, por puro ensaio-e-erro, havia de concluir com o desolado Heráclito, que a
humana inteligência é impotente para penetrar no mistério das coisas, para descobrir o fio da
lei perdido na mixórdia do que nada é, por transformar-se sempre. Porém, quando, com o
andar dos tempos, o alquimista, superando-se a si mesmo, fez-se químico, o mundo da matéria
iluminou-se de relativa claridade. O mesmo aconteceu com o físico e, em parte, com o
biologista. Os movimentos dentro da matéria, e dos corpos no espaço, e dos astros no céu
foram conhecidos pelas leis que os governam.
Assim com a filosofia: armados da verdade enunciada no princípio da conservação da
energia-substância, e no de que esta é transformável, percorrendo a cadeia das
transformações, vamos encontrar a matéria-prima primordial na Energia-Substância-Amor.
Disto já tiramos que o Ser, Deus, não é Essência pura, senão que também se constitui de
Energia-Substância. A Doutrina da Evolução a partir do Caos primeiro, implica tenha
havido uma fase de queda, de Involução, que redundou naquele Caos. Armados destes dados,
verificamos que cada filósofo teve sua parcela de razão, pelo que podemos coordenar todas as
filosofias numa unidade total que englobará o substancialismo-realismo dos antigos
milesianos e atenienses, o idealismo-substancialismo dos modernos pensadores, o
involucionismo-evolucionismo, a idéia do Ser, Deus, como Essência-Substância, e
finalmente o Criacionismo-Evolucionismo. Tudo isto animado de vida e dinamismo como no
cinematógrafo. Pode ser tudo isto difícil para os não acostumados a este modo Barroco de
enxergar a Realidade, porém, assim será o futuro da filosofia a partir desta nova abertura. A
não ser deste modo, ela continuará no beco-sem-saída em que a meteu, primeiro, Augusto
Comte; depois, o intelectualismo, o cientismo, o fisicalismo, e, por último, os desesperados e
niilistas filósofos contemporâneos.
41
Capítulo VII
A INTUIÇÃO
Um conceito exige tanto mais notas elucidativas, quanto mais for conciso, quanto mais
for lacônico, reduzido; pela recíproca, será tanto mais explícito, quanto mais contiver
elementos explicativos, esclarecedores, no seu contexto. Deste modo, temos a definição
sintética e a analítica. Quando, todavia, um termo não puder ser explicitado, e se nos mostrar
como um todo irredutível a outro, aí temos uma intuição, como é a de espaço, de tempo e de
causalidade. Como o Ser não tem notas que o esclareçam, por isto é também uma intuição que
fundamenta tudo, mas que não se funda em nada. Não é porque lhe faltem notas definidoras
que, por isto, se confunde com o nada, como pensava Hegel. É certo que do Ser não se pode
predicar nada, como nada se pode predicar do nada; mas o nada é uma intuição absolutamente
vazia, enquanto do Ser não se pode dizer que seja vazio. Ora, o absolutamente cheio, cuja
plenitude transcende o Universo, portanto prenhe de significações, conquanto estas também
intuitivas, não pode confundir-se com o absolutamente vazio; a plenitude infinita não pode ser
idêntica à vacuidade extrema, só porque nem de uma nem de outra a razão encontra meios de
42
apresentar notas esclarecedoras. Em vez de declarar a falência da razão, Hegel sai-se com o
estapafúrdio de afirmar que o Ser se confunde com o nada.
O Ser é uma intuição, e uma intuição não se define, que se isto fosse possível, não
seria uma intuição, e sim, um conceito. Mas como distinguir a intuição do Ser, da intuição do
nada, se, racionalmente, ambas nos parecem vazias, por lhes faltar notas esclarecedoras?
Onde fraqueja a razão, entra a atuar o sentir. Quando a razão leva ao vazio, onde sentimos
que há a plenitude, é que ela está exorbitando de seus poderes; faz-se preciso, então, correr em
seu socorro o sentir, e a intuição emotiva nos fará ver um Ser pleno de si mesmo, cheio da
sua Substância, repleto do Amor que é. Isto vem em reforço da nossa tese segundo a qual o
homem não pode acercar-se do Ser só com sua inteligência, e sim terá de agir como um
todo... um todo de que fazem parte o consaber da experiência sensível entranhada em todo
conceito racional, a razão, a sensibilidade estética e axiológica, a vontade, os sentimentos, a
emoção e o afeto.
Haverá quem nos esteja objetando que este é um modo confuso de raciocinar; que
filosofia é metafísica, é razão, não tendo nada que fazer aqui o obscuro sentimento; que Hegel
tem razão, e o Ser, porque não pode definir-se, por isto, de fato, se confunde com o nada !
Se o Ser não pode definir-se, ou seja, se não pode ser recortado num todo maior,
segue-se que é uma intuição. Notas esclarecedoras são tentativas de recortar, de definir. E
Hegel nos diz que quando não se pode definir uma coisa, quando não se lhe pode juntar notas
elucidativas, essa coisa se confunde com o nada. Tiremos disto as consequências:
Os fundamentos das ciências todas são intuições; logo, tais fundamentos se confundem
com o nada. Os postulados da matemática, assim como os axiomas, são evidentes por si
mesmos. Não aceitemos isto, por ora, porque vamos nos fazer, neste momento, racionalistas
puros, e quem se propõe a dar razões tem de dá-las, não se lhe permitindo sair com esse
subterfúgio de postulados e de axiomas. Muitos teoremas geométricos, por exemplo: os
ângulos opostos pelo vértice, provenientes de duas linhas que se cruzam, são iguais entre si;
muitos teoremas quais este, são evidentes por si mesmos; basta olhá-los no papel, e já se
constata a evidência. No entanto, o matemático se deleita em demonstrá-los... porque há jeito
de o fazer. E vai, até que, de repente, dá com um tão claro e evidente como os anteriores,
porém, sem possibilidade de demonstração. Então, sai-se com essa escapatória de que não se
precisa demonstrar, por ser evidente por si mesmo, isto é, axiomático. Evidente por si
mesmo? nada disso: demonstre, aí, o axioma, como demonstrou outras evidências por si
mesmas, só porque demonstráveis... Se o axioma é intuitivo, e por isso não pode ser
demonstrado, sem notas esclarecedoras, se confunde com o nada, no dizer de Hegel. Como,
logo, pode a ciência mais exata de todas, a matemática, fundamentar-se no nada dos axiomas,
e pior ainda, no nada que são os postulados indemonstráveis, aos quais não se podem juntar
notas nenhumas definidoras?
O ponto geométrico é carente de dimensões? Se o é, não existe... que existir é estar no
tempo, no espaço-tempo; e se existe, tem que ser, já, um círculo de duas dimensões. Muito
menor que o ponto que o geômetra pinga numa folha de papel, é a célula, a bactéria, o vírus
que são complexíssimos mundos diminutos; isto para não descer à molécula, ao átomo, ao
próton e ao elétron. O ponto, diz o geômetra, não tem dimensões; porém, o elétron, trilhões de
vezes menor que ele, as tem, e três. O matemático não conta com outro meio para nos dizer o
que é o ponto, senão, empiricamente, pingando-o numa folha de papel; e depois nos diz que
aquilo ali (e o aponta com o dedo) é uma abstração, e que não tem dimensões. Para mostrar
o que é o ponto, usa o empirismo, grafando-o; depois afirma que essa realidade existencial,
objetiva, patente, é uma abstração, não lhe vindo à cabeça que não há idealidade abstrata de
ponto geométrico, continuando ele a ser real, como imagem subjetiva, no espírito do
observador, nunca podendo sair desse nível imagético para o do pensamento abstrato e geral.
O que pode ser imaginado, isto é, representado por figuras na imaginação, não é
abstrato. O plano das imagens é intermediário entre o mundo da abstração, e o mundo da
43
objetividade, da realidade concreta. Tal já o entendia Platão para quem “os conhecimentos
matemáticos não constituem (...) o ápice da ciência. São ainda uma forma de inteligibilidade
primeira, marcada por compromissos com o plano sensível: as entidades matemáticas são
múltiplas (faz-se um cálculo ou uma demonstração geométrica utilizando-se diversos 3 ou
vários triângulos); além disso a própria representatividade manifesta um liame do plano
matemático com a sensibilidade, a denunciar seu caráter de intermediário entre a percepção
sensível e a inteligibilidade plena. Esta só se alcança quando, além das entidades matemáticas,
chega-se à evidência puramente intelectual (noésis) das idéias. Não se trata mais de vários 3,
mas da essência mesma da «trindade», que confere sentido àqueles seus reflexos matemáticos;
não se trata mais de triângulos – de vários tipos –, mas da «triangularidade» que neles se
efetiva, sem se esgotar em nenhum deles”50. Subindo à irrepresentabilidade, de muitos
triângulos chega-se à triangularidade; de muitos cavalos, à cavalaridade; mas de ponto não se
pode subir à “punctualidade”, porque não há vários pontos geométricos dos quais se pudesse
abstrair ou generalizar no plano das essências ou idéias-conceitos unitários, irrepresentáveis,
conforme a sexta propriedade dos objetos ideais, anotada anteriormente neste mesmo livro.
Como o ponto geométrico é representável, não é abstração, e sim, realidade objetiva, objeto
real, de duas dimensões.
Como se vê, o que afirmamos não é novo. Hobbes, diz Schopenhauer, “no tratado «De
principii Geometrarum» faz ressaltar de modo assaz bizarro o empirismo absoluto de sua
tendência mental, negando as matemáticas puras propriamente ditas e sustentando com
obstinação que o ponto tem uma extensão e a linha uma largura. Ora, como não estamos em
condições de pôr-lhe sob os olhos um ponto sem extensão e uma linha sem largura, não
podemos demonstrar-lhe a aprioridade das matemáticas” 51.
Se não pode demonstrar que Hobbes está errado, como pode ter-se por certo
Schopenhauer ao sustentar a aprioridade da matemática? Se não está, Schopenhauer, em
condições de provar sua verdade, sua afirmação é gratuita, isto é, sem legitimidade no campo
da razão. E não é só Schopenhauer, mas nenhum pensador está em condições de demonstrar o
apriorismo matemático, porque se põe contra ele a razão histórica. É que o pensamento não é
um dom, uma dádiva, como o creu o criacionismo kantiano, porém custosa conquista da
Vida, conforme o prova a Evolução. Ele principiou lá embaixo pela irritabilidade do plasma
(tropismos), passando pela fase do instinto, antes de tornar-se pensamento e consciência. A
evolução do sistema nervoso guarda inextricável relação com o surgimento da consciência.
Igualmente, os órgãos dos sentidos, como todos os demais órgãos, têm sua história biológica,
e apareceram como respostas do plasma às atuações, aos embates do meio. Se a própria
inteligência surgiu a partir da irritabilidade, tornou-se sensações, impressões e imagens, antes
de atingir as generalizações do pensamento abstrato, como pode haver algo na inteligência que
não tivesse estado antes nos sentidos? Logo, as intuições sensíveis são a base de todo o saber
racional, inclusive o das matemáticas, donde vem que estas e aquele são a posteriori.
A questão se resume em saber como, por que, de que, por quem e quando surgiu na
vida o pensamento. Se ele tivera aparecido como um dom, como uma dádiva, então a
matemática seria apriorística, e tudo teria acontecido como o supusera Kant. Contrariamente,
porém, a Evolução demonstra que o pensamento surgiu de baixo, evoluiu com o sistema
nervoso, com o cérebro, donde tiramos que o pensamento é histórico, tem sua história,
primeiro biológica, e depois social, dando a conseqüência de que a matemática é a posteriori.
Prova-o o sistema numeral dígito, e se o homem fora monodátilo, se possuísse um só dedo
como prolongamento de cada braço, não como a pata do cavalo, mas dedo móvel, plástico,
rico de possibilidades criadoras, sua matemática seria binária, como a dos computadores. Nas
mãos, nos braços, nas pernas, nos pés se basearam os primeiros sistemas de medidas. Nas
mãos unidas em concha vai uma medida primitiva de capacidade - a mancheia. E ainda o povo
50
História das Grandes Idéias do Mundo Ocidental - Os Pensadores, I, 62
51
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 126-127
44
inglês, porque conservador, tem sua polegada saída do polegar; o pé, do pé que, por fim, se
padronizou pelo pé do rei. Igualmente, o palmo vem de palma; a braça, de braço; a vara, do
primeiro varapau que deu real poder ao homem primitivo, e por isto se notabilizou no cajado
do patriarca, no báculo do bispo, na vara do juiz, no bastão do militar, no cetro do rei. A
geometria nasceu de riscos, de linhas, de figuras, de desenhos, que o homem antigo deixou
sobre as paredes das cavernas pré-históricas. Riscando na areia, na terra e na pedra, o homem
descobriu as primeiras relações geométricas. Antes de Euclides, e sem base em postulados
nenhuns, os egípcios já empregavam a geometria, e suas gigantescas pirâmides ficaram para
contar essa história. A matemática foi primeiro concreta, objetiva e prática. Sua expressão
abstrata é de ontem. Hobbes tem razão: a matemática é a posteriori; a numeração decimal
nasceu dos dez dedos; a geometria (de geo = terra; e metria = medida) surgiu de riscos feitos
sobre a terra, areia e pedra, e, aqui, o ponto, como a linha, tinham comprimento e largura, e o
continuam tendo na imaginação de onde não podem subir para o plano da abstração.
No entanto o homem cresceu em ciência, complicaram-se suas relações sociais, tomou
ele gosto pelas especulações e pesquisas abstratas, e foi preciso procurar uma base imóvel, um
padrão fixo que ficasse para sempre. De dois riscos paralelos cortados por uma secante,
oblíqua, já tinha saído a geometria. Agora, a dúvida: seria possível prolongar esses riscos retos,
paralelos, pelo espaço a fora, rumo ao infinito? Da forma do espaço iriam depender as
propriedades da reta, e, desta, as das figuras geométricas nascidas do seccionamento das retas
paralelas. Qual seria a forma do espaço? Euclides a supôs plana para todos os lados, e infinita;
mas não podia prová-lo. Então pediu, postulou (de postulare - pedir) que se lhe concedessem
traçar as retas paralelas. E sobre este postulado quinto, reestruturou toda a geometria já de há
muito existente.
Geômetras modernos demonstraram ser possível a demonstração dos teoremas
euclidianos sem o seu postulado famoso. Todavia, para isto, os geômetras hão de apoiar a
demonstração em outra base, e esta, em outra, em outra ..., até que, finalmente, terá que haver
uma intuição indemonstrável que será, ou um outro postulado, ou um axioma. E se não
procederem deste modo, cairão no círculo, na petição de princípio, isto é, uma demonstração
terá apoio no que está ainda por demonstrar. Afastar o incômodo postulado de Euclides, como
se vê, é apenas deslocar o problema que continuará idêntico ao primeiro, para outro lugar, sem
solucioná-lo.
Porém, o precedente do postulado da reta fora aberto, e sobrevieram o abuso e o
escândalo da geometria, Lobatschevski, Bolyai, Riemann, Gauss, criaram geometrias não
euclidianas, tão válidas quanto a do grego. Uma delas será a verdadeira, por corresponder à
real forma do espaço. E se o espaço for dinâmico (campo - Einstein), móvel, e o é, pois o
universo se acha hoje em expansão, em cada situação deste, haverá uma geometria que se lhe
aplique. Quem acaba tendo razão é o matemático, antes de filósofo, Bertrand Russell para
quem “a matemática é a ciência em que nunca sabemos de que coisa está falando, nem se o que
ela diz é verdadeiro”.
Os postulados da matemática e das ciências são indemonstráveis; por isso é que de
postulados diferentes puderam ser construídas geometrias diferentes. Como os postulados são
indemonstráveis; como não se lhes pode juntar notas elucidativas; como são intuições, segue-
se que tais postulados, tais intuições se confundem com o nada (Hegel), não indo além de pura
prosopopéia, de psitacismo puro. Conseqüentemente, as ciências todas, inclusive a mais exata
de todas, a matemática, nasce do psitacismo e se apóia sobre o nada. Porém, os homens crêem
nas ciências, e curvam-se, respeitosos, frente a uma demonstração matemática. E chegam a
dizer, com ar sério, circunspecto, doutoral, “que uma ciência será tanto mais verdadeira, exata,
quanto mais contiver, em si, de matemática”. Todavia, como o mesmo fundamento da
matemática é o nada, desse nada deduzimos tudo, e esse tudo fica suspenso no vácuo. Para
criar, Deus teve de empregar uma Substância que é a sua própria, visto como não pode haver
nada além de si, nem mesmo este além, porque ele é infinito.
45
E que possamos nós criar do nada, acaso não é isto superar o próprio Criador? Não! –
diz Santo Agostinho – ; não é superar, mas imitar, porque também “Deus criou o mundo do
nada”. Está, então, descoberto o mistério: o homem e o mundo são nada, porque tudo o que
existe é seu aspecto anterior modificado; e como era nada no princípio, sê-lo-á para todo
sempre, tenha o aspecto que tiver. Logo, o homem é nada; mas como ele, diz o Gênese, é
imagem e semelhança de Deus, em que ponto esse homem-nada pode assemelhar-se a Deus?
Pois não pode ser noutro que não neste: tal qual Deus, o homem-nada participa de poder
criar também a partir do nada; é por isso que ele cria suas ciências a partir de nadas ... que
são os primeiros princípios, e os postulados indemonstráveis.
No entanto, é peremptório, inquestionável, taxativo, terminante, que não se pode dar
crédito às ciências, se forem postos em dúvida os seus fundamentos; e como estes são
indemonstáveis, como são intuições, para serem indubitáveis, apesar de não racionais, hão de
ser como pontos de fé. Segue-se que a ciência nasce de um ato de fé ..., a fé nos primeiros
princípios e nos postulados. A raiz da ciência é a fé. Rir-se, pois, da fé, é rir-se dos
fundamentos das ciências; é proceder como o macaco que, porventura, zomba do rabo alheio,
olvidando o próprio sobre o qual está sentado. O homem de ciência que se ri da fé, age como
aquele que não se sente estar voando, embora esteja embarcado, e seu avião em pleno espaço.
Voa a ave, e sente o ar roçar-lhe o corpo, as penas; e essa ave é o místico; voa o homem em
seu avião, e, porque não sente o ar, cuida que não voa; e esse homem é o cientista, o
matemático. O místico sente o ar do ponto de fé na própria pele. O cientista não sente o ar do
postulado, o ar dos primeiros princípios, por causa do envolvimento da ciência, em nosso
exemplo, o corpo do avião, e, neste, sente-se seguro; ou então, se o avião oscila e ameaça cair,
por instinto, agarra-se à poltrona. Que adianta agarrar-se, firmemente, ao avião, se este está no
ar? Não tem sentido invalidar o apoio aéreo das religiões, e confiar no apoio aéreo dos
postulados das ciências, sobretudo, na mais exata de todas, a matemática.
Se a ciência se fundamenta nos primeiros princípios indemonstráveis, nos postulados,
aceitos de fé, o que vem a ser a fé? Pois ela é tudo aquilo que transcende a razão, que está para
além da inteligência. Só o que é transracional, e só isto, deve ser aceito de fé, não se lhe
permitindo a ela ingerir nos assuntos do domínio da razão. Conseqüentemente, o nada
racional (só racionalmente nada, atentemos bem) é a intuição formal, é a transracionalidade,
é a fé luminosa, não a cega, fanática, obtusa, separatista por causa de questiúnculas, mas fé
luminosa em que a mesma ciência se apóia para edificar-se. Uma vez que há a fé cega que,
como os planetas, só refletem a luz alheia, então, há essa claridade alheia que é a fé luminosa,
de luz própria, como as estrelas. Ora, a fé luminosa é a intuição, no passo que a fé cega é a
sugestão... cujo fundamento é o princípio de autoridade.
Assim como, no decurso da evolução, a fase dos instintos animais cede seu lugar à fase
racional que a suplanta, também a fase intuitiva supera a razão. O instinto é como a linha, de
uma dimensão, sem liberdade de se sair para os lados; a razão é essa linha alargada num plano,
com possibilidade de infinitos caminhos de livre escolha; a intuição é o volume consciencial
nascido, como em matemática, da movimentação do planimétrico racional. Para a consciência
linear do instinto, a razão também é um inconcebível, também é um nada, do mesmo modo
como a intuição, por sua natureza tridimensória, é um nada para a razão planimétrica. Por
isto é que Hegel confunde o Ser com o nada, porque nenhum nem outro pode receber notas
elucidativas. É que tanto o Ser como o nada estão fora da competência, da alçada da razão, e
quando esta, exorbitando os seus limites, confunde o Ser com o nada, nossa intuição emotiva
e volitiva nos determinam, peremptoriamente, o Ser como pleno, e o nada como vazio. Para
“pensar” por intuição, para intuir, o gênio se levanta no tope duma perpendicular baixada
sobre um ponto no planimétrico da razão, e, lá de cima, vê claro o que os da superfície não
podem enxergar..., a não ser depois da demonstração racional.
A razão, de começo, tardonha e dificultosa, toda feita de pensamentos concretos,
vivenciais, imagéticos, cada vez mais se abstratiza rumo à generalização total. Paralelamente a
46
isto, o pensamento se vai tornando cada vez mais veloz, até atingir a fase intuitiva pela qual a
verdade é apreendida de relâmpago, num repente. Do mesmo modo que o instinto é uma razão
retardada, ou iniciante, que levou milhões de anos “pensando” por ensaio-e-erro para fixar-se
nos automatismos dos instintos, a intuição é a mesma razão tornada relâmpago, veloz como o
raio, capaz, por isto, de percorrer, num átimo, toda uma série dialética, saltando, de súbito,
para o resultado final da generalização, ou da premissa às conseqüências.
Quando corria mundo a notícia de que Einstein ia, ainda, um dia, escrever um livro com
o título “Teoria dos Campos Unificados”, alguns repórteres vieram saber dele o que vinha a ser
isso de unificar todas as energias e todas as matérias do universo sob um denominador
comum – a energia-substância. “Einstein respondeu a todos: «Sobre esse ponto, venham ver-
me daqui a mais vinte anos». Um dos repórteres estranhou a resposta e perguntou ao pai
intelectual da bomba atômica se ele não tinha certeza sobre essa identidade das energias
cósmicas, ao que Einstein replicou: «Certeza tenho, sim, mas não posso provar»” 52.
Assim, porque a certeza vem antes da demonstração, a dificuldade de Einstein não
consistia em descobrir, mas em demonstrar sua descoberta. Essa certeza antes da prova
racional é a fé luminosa. Ora, a fé do ignorante tem outra base: funda-se ela no princípio da
autoridade, não passando ela de pura sugestão, pura hipnose.
Àquele, pois, que nos objetou dizendo que metafísica é razão, e que tudo isto que
expomos, com ser fusionista, é “irracional”, respondemos que se a metafísica é só razão, é
chegada então a hora histórica de nascer a parametafísica que se ocupe da suprarrazão,
porque a razão, sozinha, acabou por dar-se a si mesma uma rasteira, com superar os seus
limites, ou então, fez ela como a lendária cobra que se engoliu a si mesma pelo rabo. A razão é
muito boa, somente dentro de seus domínios..., tornando-se em absurdo e loucura, quando se
põe a pontificar fora dos seus limites, a exemplo do disparate de Hegel, sensível a qualquer
um, ao afirmar que o Ser e o nada se confundem. Se a razão serve para demonstrar
extravagâncias quais essa de Hegel, é tempo de apontar à razão o seu non plus ultra, coisa
que devia ter sido feita já na Grécia, acabando com a loucura da razão de Parmênides e de
Zenão de Eléa.
Não se diga, portanto, que a intuição é nada, visto que se lhe não pode juntar notas
nenhumas elucidativas, nem que tal fé luminosa é, como a outra, a sugestiva, irracional; diga-
se, isto sim, que a intuição ou tal fé é suprarracional; que, se a razão é planimétrica, a
intuição é volumétrica e abarca todo o conhecimento como num globo, não só em superfície
(razão), mas também em profundidade (terceira dimensão). Conseqüentemente, como a
metafísica, sozinha, não pode chegar ao Ser, porque a metafísica é só racional, e o Ser,
transracional, para acercar-se dele, o homem precisa fazer-se parametafísico, suprarracional,
intuitivo, agindo como um todo, e não só com sua inteligência discursiva. O porque, já o
demos: é que o Ser não é Essência pura, senão, também, Substância. Esta é a diferença entre
fé luminosa e razão, entre racionalidade e intuição.
A intuição, conseguintemente, tanto está na base das religiões, como na das ciências:
daí para frente é que os processos se mudam, porque dos postulados religiosos o místico tira
logo regras de conduta, de agir, que deságua na moral, na ética, no passo que o cientista se
ocupa com a pesquisa, com o fazer cuja última conseqüência é a técnica. A filosofia, que não é
nem ciência nem religião, fica na crista das vertentes que correm para esses dois lados, sendo a
única, logo, que pode promover a integração da ciência à fé; e se ainda não o fez, foi porque a
filosofia sempre esteve na crença de que se poderia chegar ao Ser só com a inteligência, pela
razão. Ora, como a inteligência só trabalha com abstrações, com conceitos, o fim de toda
cadeia racional ia sempre dar num Ser feito só de pura Essência. Em contrapartida, o Deus das
religiões era intuído ou sentido como Substância. Contudo, o Ser fixo na imobilidade desde
Parmênides, solta-se agora para a vida, para o movimento, com fazer-se, não só a síntese das
filosofias entre si, senão também a destas com a religião por um lado, e da filosofia com a
52
Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 115
47
ciência por outro. Para isto faltava uma chave, e esta é a Evolução a qual, para ser possível,
implica tenha havido uma fase inversa involutiva pela qual a Substância organizada desceu
desta organização para o mais inteiro Caos. A chave, pois, consiste na incorporação, por parte
da filosofia, do Evolucionismo universal, e da Substancialidade do Ser.
48
Capítulo VIII
Todavia, o homem, devido à sua complexidade mental, volitiva, emotiva, está habilitado
a ter outros tipos de intuições mais complexas. As situações aludidas atrás são físicas; no
entanto, há situações não físicas que podem ser vistas sem o auxílio dos olhos da cara. É
evidente por si mesmo, é axiomático, é intuitivo, que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo
tempo. Não é preciso demonstrar que uma laranja não é uma pera, nem que o branco não é
preto. A relação de diferença, o princípio de contradição pelo qual tudo o que existe tem o seu
contrário; o princípio de identidade pelo qual um triângulo é idêntico só a si mesmo, não
podendo ser um círculo, são intuições formais, visto que dizem respeito à essência, à forma.
Quando sentimos (e este sentir forma nossa crença profunda, radical, aquela que somos, pelo
que não a pomos como objeto de discussão); quando sentimos que o Ser por sua plenitude
infinita se opõe polarmente ao nada, este como vacuidade extrema, não adianta Hegel esfalfar-
se por provar, racionalmente, que ambos se confundem. Nossa intuição emotiva estará alerta
para desconcordar com Hegel. Quando Zenão de Eléa vem demonstrar a Diógenes que o
movimento não existe, este se põe a andar, mostrando que o problema não era de solução
racional (até então não o era), mas da alçada da intuição sensível: eis a solução, diz Diógenes,
ao tempo em que se põe a andar.
Se tudo o que existe, sem nenhuma exceção, se compõe de essência e de substância,
as intuições que têm por base a substância são sensíveis, volitivas e emotivas, e as que se
referem à essência, à forma, são formais. Os filósofos costumam chamar esta intuição formal
de intuição intelectual, o que é um contra-senso; sendo a intuição o ato de captarmos a
idealidade de algo de um golpe, e referindo o intelectual ao dialético, ao discursivo, isto é, ao
trânsito com que passamos de uma idéia a outra mais geral, segue-se que intelectual e intuitivo
são termos oponentes que se excluem, se fizerem parte de uma mesma afirmação. Assim,
intuição intelectual soa-nos como se disséssemos “madeira de ferro” para usar uma expressão
de Schopenhauer. Em vez de intuição intelectual, digamos: intuição formal.
Fora estas intuições formais, há outras, como já dissemos, com base na substância; elas
dependem do modo como pomos os objetos, ou nos pomos frente a eles. Esta posição dos
objetos depende do nosso ânimo, do nosso sentimento, frente aos objetos postos a exame por
nós. Um lógico não põe um objeto, ou não se põe frente a ele, com a mesma alma de um
artista, de um esteta, de um místico, de um volitivo. Ora, se cada um pode ver aspectos
diferentes num mesmo objeto, segue-se duas coisas: a primeira é que há vários tipos de
intuições; a segunda, que as coisas podem ser vistas de várias perspectivas, em razão de
ocuparem diferentes planos de realidade. Como o filósofo quer conhecer as coisas em sua
realidade integral, não tem por onde senão olhá-las de todas as perspectivas, de todos os
pontos de vista possíveis, tendo, delas, todas as intuições.
Nós e o mundo somos feitos juntamente no tempo e no espaço, um e outro construído
como que de camadas, como que de planos, e podemos nos situar nesses níveis de nós
mesmos, e ver o mundo a partir deles. Em todos os níveis, o que está em nós tem seu
correlato, tem sua correspondência com o que se acha fora de nós; ou, pela recíproca, todos os
níveis do mundo acham sua correlação nos níveis de que somos feitos. Por que assim? Porque
fomos plasmados juntamente com tudo o que nos cerca pelos mesmos agentes, pelas mesmas
forças da Evolução, e de uma única substância primordial.
Na superfície está o mundo espontâneo, o mundo à mão, com seu correlato em nós ...
nas impressões sensoriais, nas intuições sensíveis as quais carreiam para o nosso psiquismo
todo o mundo exterior sob a forma de imagens. Se de uma parte estamos nós, e da outra, o
mundo objetivo, todas as imagens que apreendemos dos objetos exteriores têm sua correlação
nos mesmos objetos. Deste modo, se o lugar em que nos situamos é o periférico dos sentidos,
e vivemos nossa vida espontânea, sem problemas, sem questões, sem perguntas, então, o
correlato do mundo será sua imagem refletida em nosso espírito, como uma paisagem num
lago. E há os que pensam por imagens, por corrente de imagens, que são os artistas; eles nos
fazem descrições, nos apresentam pinturas, ocupando-se sempre de objetos individuais, e não,
50
de conceitos puros que são gerais. E a imaginação pode criar quadros inexistentes, ou mudar,
alterar, melhorar os anteriormente vistos. Os inventores, por exemplo, não podem, durante
todo o trabalho da invenção, pensar por conceitos, porque a máquina que tentam construir, é
um objeto real no espírito do inventor, e tende a ser projetada para fora como realidade
objetiva. Partindo de algum princípio científico, Edison criava, sobre ele, alguma coisa em seu
mundo imagético, desenhava o seu invento, repensava-o, corrigia-o, e por fim, punha mãos à
obra, e o invento surgia no mundo exterior para dar conforto e enriquecer a vida. Uma grande
cidade, com tudo que nela existe, é como uma segunda natureza, porque foi criada, inventada,
pelos homens. E antes de lançada fora da imaginação, antes de projetada no papel, e, depois,
no mundo exterior, teve de ser construída ponto por ponto no mundo subjetivo. A simples
vista ou intuição sensível de uma peça mecânica, nos faz ver, imaginariamente, a outra peça
contrária, correlata, com a qual a primeira se encaixa e funciona. Sem as intuições sensíveis,
pois, sem as correntes de imagens em nosso mundo subjetivo, seria impossível nosso trabalho
como artista, como inventor.
O polvo que vê a ostra e a pedra chata ao redor, e pega da pedra para, com ela, impedir
o fechamento das conchas da bivalva, certamente que não resolveu o seu problema de
alimentar-se, partindo de ideações, de construções mentais imagéticas; seguiu o instinto.
Porém, o instinto teve sua gênese no ato primeiro executado pelos indivíduos; depois, o ato,
pela repetição, se fixou em hábitos, e estes, no instinto, porque os polvos, como todos os entes
vivos, são, por suas formas, por suas essências, imortais. Aquele saber instintivo nasceu por
ensaio-e-erro, para depois fixar-se como automatismo, qual os nossos hábitos que, se
fortemente fixados, aparecerão como tendências, como hábitos inatos, como instintos, noutras
existências corporais do vivente. O caminho percorrido pelo instinto em sua formação, não
pode ser senão o exposto.
Abaixo deste nível superficial, vem para o mundo e para nós a camada das essências.
Não é que as essências, as idéias abstratas, os conceitos estão primeiro em nosso espírito de
onde os projetamos fora, sobre os objetos, sobre as coisas, como pensava o Kant-moço; o
Kant-velho escreveu a sua "Antropologia" defendendo, antes de Darwin, a tese do homem
provindo do macaco, e este, de um ancestral mais remoto e inferior, até descer aos primórdios
da vida, abaixo dos seres conchíferos e moluscóides. Então, como se formaram os conceitos
em nosso espírito, senão vindos do mundo exterior, carreados pelas imagens, ou a cavaleiros
delas? Quando vemos uma laranja, intuímos sua forma esférica; a esfera não é uma criação do
nosso espírito, que, depois, transladamos para a laranja, senão que a imagem da laranja vem-
nos, já, com sua forma de esfera ao nosso psiquismo. Mas, a esfera, o círculo, o triângulo são
idéias; logo, essas idéias estão, lá, no mundo objetivo, de onde as tiramos para o nosso uso.
Admitida a Evolução, o velho Kant (não ele mesmo, quando moço, o da “Crítica da Razão
Pura”, mas o outro, o Kant-velho da “Antropologia”) teve de curvar-se a esta evidência: o
cérebro evoluiu de baixo, e, com ele, o pensamento que, logo, tem sua história biológica e é
histórico. Não há intuições, portanto, que não tivessem sua gênese na história da vida.
Conseqüentemente, nada há na inteligência que não tivesse estado antes nos sentidos,
inclusive a própria inteligência... que tem sua história remota na irritabilidade do plasma. Os
dados da ciência barram o questionar filosófico.
É, portanto, categórico, imperativo, taxativo, indiscutível que não somos seres
especiais, de modo distinto, criados por um Deus antropomórfico e exterior. Fomos criados,
em tempo próprio, e de permeio a tudo o mais, segundo os mesmos princípios e leis pré-
estantes – que estavam antes – (eis a imanência divina), e por isto somos co-participantes de
todos os níveis da realidade que se acham fora de nós. Não o bosque em si, como pretendia o
Realismo, nem o bosque em mim, como o supusera o Idealismo, mas, primeiro, ele em si;
depois, eu nele; por causa disto, ele em mim; e finalmente, nós na paisagem rodeada pelo
mundo que se integra no universo. O sujeito e o objeto são correlativos e se interatuam
formando parte do mundo.
51
53
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 170
54
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
55
Salmo 19, 1
53
para realizar-se, para afirmar-se como ser. Eu, vontade, ação, obstáculos, soluções (pelo
ensaio-e-erro), pensamentos, eis o sexteto que move o mundo cuja criação, em primeiro lugar,
exigiu houvesse o Eu-Vontade do Criador.
Deus quis o mundo, e por isto, pensou-o, e não que primeiro o pensou, para depois o
querer; em pensando-o, traçou as linhas no seu pensamento, que são as leis, e estas modelaram
a substância – criou o mundo. O mundo existe por um ato do querer de Deus; e assim como
ele, as nossas realizações, inclusive a de nós mesmos, seguindo o esquema divino, decorrem do
ato de nossa vontade. Ninguém age por razões claras; age por imposição da vontade, por
sentimentos, e até contra as razões claras, de modo que, depois, se é obrigado a racionalizar as
ações, a justificar a conduta nascida do querer. Esta é a razão por que Aristóteles, antes de
Schopenhauer, chama ao homem de animal metafísico. Os outros animais apenas desejam e
agem; mas o homem deseja, age, e depois justifica seu agir com razões. Goethe procurando,
em versos, o que era no princípio, escreve: “No princípio era o Verbo... No princípio era o
Senso... No princípio era a Potência... Agora é que atinei: No princípio era a Ação.” 56. Ora,
ação não há sem vontade; portanto, no princípio era a Vontade.
Mas, o que é a vontade? Acaso é ela essência? Essência ela não é, porque não se aplica
a ela as categorias dos objetos ideais. Então, é substância? Não pode deixar de sê-lo, visto
como é corrente considerá-la como uma forma de energia moral, pelo que se fala no poder da
vontade ou na força de vontade. Se a vontade é força, é, então, energia, donde classificar-se
entre as energias-substâncias. Se a vontade pode ser forte, fraca ou nula, então há gradação
desta energia moral, semelhante ao que ocorre com as demais energias, por exemplo, com o
calor, pelo que se pode aplicar a ela o princípio de polaridade. Em rigor, o oposto da vontade é
a sua negação total, como se verifica com o calor cujo oposto é o frio. Mas o frio é apenas
menos calor, e ainda a zero grau centígrado há calor. Zero grau ainda é calor, e tanto, que
certos animais das regiões frias costumam aquecer-se na água a essa temperatura, quando a do
ar caiu para vinte, trinta, quarenta, sessenta graus negativos. Se o oposto do calor é o frio, o
contrário do querer é o não-querer.
Como já o dissemos, a intuição é como uma perpendicular baixada de um ponto a um
dado planimétrico; se esse for o da razão, nossa intuição será formal; se for outros
planimétricos, ela será volitiva, emotiva, etc. E podemos ir subindo, em altura, pela
perpendicular, atravessando os vários níveis do mundo, pois que todos eles têm
correspondência em nós. Suponhamos que o mundo é uma esfera constituída de camadas que
são os níveis. A perpendicular baixada a partir da calota periférica cortará todos os níveis rumo
ao centro, como se fora raio da esfera. Como desse centro não poderá passar, ele será o nível
do Absoluto, e que fundamenta todos os demais. Na hierarquia das intuições será esse o mais
profundo, além do qual não se poderá mais descer. Nós estamos, neste caso, descendo em
profundidade pela hierarquia dos níveis, a fim de achar aquele basilar que não se fundamenta
em nada, e fundamenta a todos os demais. Vamos supor que descemos, significando, este
descer, alcançar cada vez maior profundidade.
Neste caso, a casca do universo é o nível do mundo espontâneo, do mundo à mão, que
os nossos sentidos apreendem sem esforço, e é o da intuição sensível. Sua correspondência
em nós é o mundo das imagens refletidas em nosso psiquismo. Abaixo das imagens situa-se o
universo das essências, dos conceitos que nos dão a inteligibilidade das coisas. Abaixo deste
nível está o do querer da vontade. Descendo mais, verificamos que a mesma vontade se
sustenta sobre a vida.
Porque, se tudo tem por assento a vontade, não é qualquer vontade que alicerça tudo,
senão a vontade de viver, a vontade de ser. Ora, o adjunto restritivo “de viver” modifica o
termo vontade, e tanto que se em vez de “de viver”, fosse “de morrer”, a mesma vontade
conduziria ao aniquilamento, à morte, que não à vida. Portanto, o alicerce da vontade é a vida,
que sem vida não há querer.
56
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV - 80
54
mundo espontâneo do qual temos intuições sensíveis. Descendo pela perpendicular baixada da
superfície da esfera, este raio aprofunda-se até dar no centro, sendo a deste centro, a intuição
basilar por excelência; daqui por diante não há mais descer, porque se há chegado ao
Absoluto, à máxima intuição afetiva como Amor-Sabedoria.
Tal, o raciocínio que se nos impõe, se nossa suposição for a de que o mundo é uma
esfera de conceitos hierarquizados da periferia em que se situa o relativo, para o centro onde
está o Absoluto. Tudo isto, não nos esqueçamos, com correspondência em nós que, tal qual o
mundo, nos apresentamos como um todo.
Podemos, todavia, intuir Deus como Amor..., para depois descer dele; e será que ele
criou os Filhos de sua Energia-Substância? Para criá-los, pensou-os, e seu pensamento se
tornou a lei a que as coisas estão sujeitas. Ainda assim, no começo da cadeia estará o Amor
que Quer ... dar-se nos Filhos, e por isto se lança à Ação de os criar, para o que os Pensa, e
este pensar de Deus é a lei que os plasma a eles da Substância Amor. Amor no começo e
Pensamento no fim; e como os extremos se unem em Deus, por isto, ele é Amor-Sabedoria,
que é o mesmo que Substância-Essência, sem primazia de um sobre outro aspecto, visto que
ambos pertencem ao mesmo nível hierárquico, e o segundo não pode Ser se o primeiro não
Existir.
Capítulo IX
O EQUÍVOCO DE SCHOPENHAUER
57
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, X e XI, Prefácio. O grifo é nosso.
58
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 37. O grifo é nosso.
57
caso, com o querer da vontade, visto ter-se invertido o sentido do amor? Mudado o amor à
vida em ódio e desprezo a ela, neste mesmo ponto, mudada a causa, o motivo da vontade, esta
se inverte de querer viver em querer morrer. Que é, logo, que está antes da vontade como
fundamento, senão o amor? Para ser a vontade a base de tudo, absoluta e autônoma, como
pretende Schopenhauer que ela seja, havia ele de ter escrito: ao menos por todo o tempo da
duração da vida que se subordina a um inexorável querer fundamental, absoluto, autônomo,
de modo que a vontade independe do amor ou do ódio que qualquer ente vivo possa ter à vida.
Como qualquer irracional, o homem seria, então, um condenado a viver a qualquer custo,
sendo-lhe o suicídio um ato absolutamente inconcebível. Mas não. Os suicídios, todos os dias,
estão aí relatados pelos jornais, como uma prova irrefutável de que a vontade de viver nasce
de um fundamento mais remoto que lhe é a causa – o amor à vida. Diz mais, o pensador
pessimista:
“Eis a vontade que se afirma. O oposto, a negação da vontade de viver tem lugar
quando o conhecimento aniquila o seu querer; os fenômenos isolados que reconhece não
agem mais sobre ela com motivos para estimulá-la; antes, na concepção das idéias que refletem
a sua própria imagem e lhe ensinam a reconhecer a essência do mundo, encontra um sedativo
que acalma e a leva a anular-se livremente a si mesma” 59 .
Se “o conhecimento aniquila o seu querer”, isto é, o querer da vontade que subestá
como fundamento, então o conhecimento pode mais que a vontade. Como, logo, é a vontade
autônoma, absoluta, se pode ser vencida, suplantada por algo que criou de si através da vida?
Neste caso, como o conhecimento pode aniquilar a vontade, mais forte é ele que ela, e na luta
entre a razão e vontade, vence a razão. Por conseguinte, é a razão a absoluta, que não, a
vontade. Como gostaria Hegel de ouvir esta conclusão! Como se vê, nesta frase, o sistema de
Schopenhauer se reduz ao de Hegel, ao da Razão Absoluta como base de tudo. Tiremos outra
conseqüência:
Se a vontade de viver depende de “motivos para estimulá-la”, e o maior dos motivos é
o amor à vida, primeiro: a vontade de viver está subordinada a motivos, pelo que não é
autônoma, nem absoluta; e segundo: como o maior dos motivos é o amor, temos que é este o
fundamento primário de tudo, e não, a vontade.
E partindo ainda da afirmação de Schopenhauer a respeito do império da razão sobre a
vontade, podemos tirar esta outra conclusão: se o conhecimento, a razão, tem poder sobre a
vontade para aniquilá-la, também, igualmente, o terá para reforçá-la, dependendo de como é
esse conhecimento. Se a fereza, maldade e dores do mundo fizeram a Schopenhauer concluir
que melhor é a extinção total que a vida, descoberto que o mundo já veio do caos, do
aniquilamento, para onde Schopenhauer pretende retornar, sua pretensão se torna como num
nadar contra a correnteza. Descoberto que o mundo é mau, perverso, porque se acha, em
parte, invertido, o caminho não será o do retorno ao aniquilamento, mas o avanço para frente
no sentido da retificação, do endireitamento. Tal conhecimento, ao invés de aniquilar a vontade
de viver, dá-lhe novo alento para prosseguir. E o próprio Schopenhauer já havia chegado a
este conhecimento quando conclui:
“As dores e as misérias são, pelo contrário, outras tantas provas em apoio, quando
consideramos o mundo como obra da nossa própria culpa, e portanto como uma coisa que não
podia ser melhor. Ao passo que na primeira hipótese (a de Deus ter criado este mundo como
ele é), a miséria do mundo se torna uma acusação amarga contra o criador e dá margem aos
sarcasmos, no segundo caso aparece como uma acusação contra o nosso ser e nossa vontade,
bem própria para nos humilhar. ( ... ). De um modo geral não há nada mais certo: é a pesada
culpa do mundo que nos causa os grandes e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e
entendemos esta relação no sentido metafísico e não no físico e empírico. Assim a história do
pecado original reconcilia-me com o antigo testamento; é mesmo a meus olhos a única verdade
metafísica do livro, embora aí se apresente sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência
59
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 40. O destaque é nosso.
58
desperta, atuante, ativa, nada se consegue, porque é muito mais difícil nadar contra a
correnteza, do que se abandonar a ela. Esta é a razão por que se pode afirmar dos budistas o
que Vieira escreveu dos cristãos: os budistas o são de meias, porque crêem em Buda, mas não
crêem a Buda; crêem em Buda, porque crêem nele; mas não crêem a Buda, porque não crêem
ao que ele diz, pelo que é dúbio que haja algum crente budista em condições de entrar no
Nirvana. Se crêssemos a Cristo, nosso mundo ocidental seria hoje um paraíso, e se os budistas
levassem Buda a sério, o populoso (!) oriente amarelo, de há muito, já, se tinha extinguido.
Contudo, o fundamento primário não é a vontade, mas o amor, e o que ama busca o
outro com o qual se integra numa união proveitosa para ambos. No mesmo ponto em que um,
generosamente, quer dar de si e do seu, recebe, em contrapartida, o que os outros têm, e lhe
falta. No entanto, para que esse um possa ter interesse para os outros, precisa valorizar-se,
necessita tornar-se desejável. E é por isto que ele se põe em ação de afirmar-se como indivíduo
inconfundivelmente específico, tentando atingir o fim supremo de ser único em si mesmo. Rico
de valores pessoais, atrai, para si, os de polaridade contrária com o quais se integra, formando
novas unidades, agora, sociais. Por que quer o homem ser homem, e a mulher, mulher? Não,
porque sim, mas porque o impõe o amor. A posição do outro obriga a que se oponha o eu, não
como igual, mas como diferente até à oposição, dado que só os contrários se atraem, se casam,
se integram. Então, a vontade quer o quê? Pois não outra coisa senão aquilo que impõe o
amor; e o amor impõe ser o complemento do outro para a união.
Não se quer por querer ou porque sim, a esmo, sem finalidade, sem meta; quer-se por
um motivo, e o motivo por excelência é o do amor. O amor leva em si o interesse que
movimenta a vontade que desencadeia a ação que encontra resistências que obrigam a pensar,
a conhecer. O conhecimento vence os obstáculos que impediam a ação de realizar a vontade
originada do interesse do amor. Logo, o amor cria e move tudo, sendo a vontade um elo
apenas da cadeia, ou seu instrumento de realização. Quem ama alguma coisa, põe sua vida a
serviço desse amor que pode ser a riqueza, o poder, o saber, a arte, a ciência, e ainda algum
ente humano ou divino. Quando São Paulo dizia: não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive
em mim, afirmava que seu amor é Cristo a cujo serviço pôs sua vontade, sua vida. Sete anos
de pastor Jacó serviu a Labão, por Raquel, porque ela, seu amor, polarizou seu querer, sua
vida. E Santo Agostinho: meu amor é meu peso; por ele vou a toda parte que vou.
O objeto do amor move o amante, sendo ele, o objeto, que põe o sujeito em ação,
agora sim, esta ação encontra resistências, obstáculos, e o sujeito se ocupa em decifrá-los, em
entendê-los, transformando-se num solucionador de problemas. Daí que, com muita
propriedade, se diz, do termo filosofia, que significa amor à sabedoria; primeiro é preciso
que haja o amor no sujeito pelo objeto, para depois este objeto ser buscado.
Conseqüentemente, na raiz do saber está o amor, e a inteligência nasceu naquele que, amando
a vida, quis ser, e, para sê-lo, para afirmar-se, lutou, sofreu, angustiou-se, mil vezes perdeu o
sono, e cem mil meditou, ensaiou, esquadrinhou problemas sem conta, chorou frente ao
inevitável, sempre levando no peito a mais férrea e obstinada vontade de realizar-se..., não para
nada, mas para um fim. Iludido por imagens e fantasias, perdido, sem rumo, sem norte, sem
bússola, como Júpiter, toma nuvens por Juno; cai em si, reflete, arrepende-se, traça novos
rumos, anda, corre, tropeça, cai, levanta-se de novo, até poder um dia alcançar a finalidade do
homem que é ser sábio e santo, e santo porque sábio, e, para isto, há de gastar número sem
conta de existências corporais na matéria densa.
Se no nível periférico da nossa vida espontânea temos intuições sensíveis; se num nível
um pouco mais abaixo podemos ter intuições formais; se, aprofundando mais ao longo do
raio rumo ao centro, deparamos com as intuições volitivas, e, depois, com as emotivas,
místicas e estéticas, indo-nos ao fundamento primeiro, no centro, daremos com as intuições
afetivas, e daqui por diante, não há mais descer, porque o amor é o alicerce primordial por
excelência, que tudo embasa, cria, nutre e faz crescer. O Amor é a Substância de Deus
esparzida no Universo e individuada nos seres que, por isto mesmo, se querem, se buscam, se
60
interatuam dos elétrons e núcleos atômicos ao Universo. Deus não está imanente no Universo
só como essência das coisas, senão, também, como substância, embora (atenção a isto),
modificada, degradada e invertida por causa da Involução que aconteceu, e que agora se
reendireita por Evolução. Santo Agostinho estava certo: o Amor de Deus move o Sol; e o
estava, porque antes dele acertara Platão: o Universo está cheio de Eros e vai movido por
Eros.
Só que Platão cuidara que o nosso mundo é sombra, irrealidade, ilusão, o que,
absolutamente, não o é: nosso mundo é a realidade pelo avesso, invertida, negativa, como
uma fôrma ou negativo fotográfico. Ninguém diria que seu saldo devedor numa conta bancária
é ilusão, só porque a dívida é a negação do haver. A dívida é tão real quanto a posse; apenas
que se mostra no contrário, no negativo do possuir, inferior ao não ter nada. Não possuir é
estar a zero; ter saldo negativo é estar abaixo de zero, tendo-se de expender real esforço,
trabalho e energia para chegar a zero, isto é, ter pago a dívida. Tal qual, nosso mundo é real,
porém, em parte, abaixo de zero, tendo estado pior antes do que é hoje, quando era inteiro
Caos medonho, danoso, furibundo, formidável.
Não se infira do exposto, todavia, que somente somos, com Espinosa, panenteísta,
achando que Deus está em Tudo como essência. Não só Deus está imanente em Tudo como
essência, como pensara Espinosa, senão que Ele, também, o está como substância; e Ele não
só está manifesto nas coisas, estas formadas do unibinário essência-substância, senão,
também, que Ele paira muito acima desse Tudo com transcendentalidade inacessível para a
razão, mas intuível pela hiperconsciência, em todos os sentidos, tridimensória. Para a intuição
global (não uma, mas todas juntas), o Universo total, formado deste nosso e do Mundo
celeste, é uma formidanda esfera suspensa no seio do Oceano infinito da Energia-Substância-
Amor do qual se individuou, semelhante a uma onda encapelada que se individuou da água do
mar. Desse Oceano infinito da divina Substância, o Universo total formou-se, nutre-se, vive, e
respira. E pode ser que o Criador dos mundos tenha formado outros Universos dos quais não
podemos ter ciência, por causa de estarem fechados em suas curvaturas além das quais suas
luzes não passam, do mesmo modo como nossas luzes se acham confinadas pelos limites do
nosso Universo total. Se fôramos habitantes de um átomo, como iríamos saber da existência
do átomo vizinho que, com o habitado por nós, forma uma única molécula? Como, logo, saber
da existência das outras moléculas que são as mini-galáxias que compõem o mini-universo de
uma célula viva? Como poderia um neurônio cortical ter ciência do universo-homem?
61
Capítulo X
ONTOLOGIA E METAFÍSICA
Lavoisier afirmou que, na natureza, nada se cria e nada se perde, mas tudo se
transforma. Esta sua sentença filosófica de base heracliteana, se especificou na química por
outro enunciado ou lei: numa reação química, o peso dos reagentes é igual ao peso dos
produtos da reação. Que uma coisa se transforma em outra, isso foi a primeira observação do
homem; daí que o princípio de causalidade é o primeiro na história da vida, estando ele já na
base dos reflexos condicionados pré-instintivos, conforme Pavlov o demonstrou. A esta
associação e estímulos, o primeiro como causa do segundo, Bertrand Russell deu o nome de
“inferência fisiológica”. Abaixo dos instintos, no pleno domínio dos reflexos naturais, a vida
já sabe inferir, associando a causa ao efeito que se lhe segue. E a esta associação de estímulos
(causa - efeito) Pavlov deu o nome de reflexos condicionados.
Se um acontecimento antecipa outro em que se transforma, então, toda causa produz
um efeito que é causa de outro efeito, e assim sucessivamente; pela recíproca, toda causa é
efeito doutra causa, e assim por diante até remontar-se a uma Causa primária incausada. Tal o
exige o pensamento, e esta Causa incausada foi, sempre, a preocupação dos filósofos. Se, pois,
uma coisa se transforma em outra, deve haver uma substância primeira da qual a cadeia de
transformações começa. Como era de esperar-se, a filosofia, já nos seus balbucios, ocupou-se
em procurar a causa primária de tudo, a substância primordialmente antecedente.
Para Tales de Mileto, era a água o começo de tudo; para Anaximandro, era o
“apeiron”, uma pré-coisa indefinida; para Anaxímenes, era o ar; para Empédocles, eram
quatro os elementos básicos: ar, água, terra e fogo. Pitágoras faz exceção à regra, porque,
para ele, o princípio genital de tudo é o número, por sua natureza ideal, imaterial, abstrato.
Procurando pelo antecedente causal, Heráclito descobre que tudo é movimento,
transformação, em que nada é, num constante vir-a-ser ou tornar-se. O que existe é o
movimento. Como o movimento era então totalmente, e ainda o é em parte, inapreensível pela
razão; e como a inteligência só sabe lidar com o que é racional, Heráclito findou os seus dias
num pessimismo resignado, crente de que a humana inteligência é impotente para alcançar o
princípio das coisas. Por que? Porque as coisas são contraditórias em si mesmas em dois
momentos sucessivos, pelo que elas são isto, agora, e, daqui a pouco, já não são mais isto.
Deste princípio de contradição heracliteano da lógica natural que enuncia: na
natureza nada é idêntico a si mesmo; tudo se contradiz; deste princípio, Parmênides extraiu
o princípio oposto: na lógica formal, tudo é idêntico a si mesmo, nada se contradiz. Esta
contraposição parmenídica marca o início da filosofia propriamente dita, mas reparemos bem:
os pensadores anteriores a Parmênides, exceto Pitágoras, buscavam um princípio causal, um
começo de tudo numa substância basilar; procuravam eles quem existe em si, visto que as
demais existências eram decorrentes. Como existir vem de “ex sistere”, que significa estar no
tempo, eles procuravam algo que implicasse tempo, ainda que infinito tempo, ainda que tempo
eterno. Aqui, agora, o reparo que pedimos: a contraposição parmenídica deslocou o esforço
do pensamento da substância para a essência; do de que as coisas se constituem, do de que
são feitas, para o que elas são. Ora, o ser duma coisa não indica a sua matéria, a sua
substância, o de que ela se constitui. Procurava-se por quem existe (temporal, causal), e
Parmênides apresenta o que é, a essência, por sua natureza intemporal, incausal. Neste
instante da história do pensamento, o que se buscava, quem existe?, foi reduzido ao o que é,
e, inadvertidamente, este o que é (essência - intemporal), foi tomado como sendo quem existe
(temporal). E a inadvertência foi mais longe: foi dado como sendo realidade este o que é
puramente ideal. Se realidade vem de res = coisa, e coisa não há sem substância, como podia
ser realidade aquilo que não possuía substância? Aquilo que era essência pura? Aquilo que era
pura idealidade abstrata? Desde que Parmênides fez a transposição do real, substancial,
62
objetivo, concreto, para o ideal, subjetivo, essencial, abstrato, neste ponto, tinha-se de
substituir o termo realidade por idealidade. Mas não; baralhou-se tudo, pelo que ficou tendo
razão Cícero que disse: “Nada existe de obscuro que não se possa encontrar nos livros dos
filósofos” 61.
Neste caminho aberto por Parmênides foram achados todos os pensadores até Kant;
com este encerrou-se o ciclo parmenídico, isto é, o que intentava descobrir o fundamento
primeiro racional, o Ser que é, mas que não existe, dado que existir é estar no tempo, ser
temporal.
Se a razão, como o afirmara Kant, é impotente para chegar ao Ser fundamental,
contudo, acrescenta ele, ela aspira ao Incondicionado que tudo condiciona. Então, por isto,
foi que surgiram os filósofos absolutistas pós-kantianos interessados em, de novo, procurar o
fundamento na substância, exceto Hegel, não mais substância física (água, ar, terra, fogo),
porém, substância moral (vida, eu, emoção, sentimento, vontade).
Podemos verificar que uma espiral, partindo da periferia em que se situa o mundo
substancial dos primitivos filósofos milesianos, rapidamente se fechou no centro, no primado
racional de Parmênides. Munido deste primado, Sócrates, com sua maiêutica, principiou, na
periferia das coisas, outra espiral que passou pela dialética de Platão, indo fechar-se, de novo,
no centro, com a lógica de Aristóteles. Esta espiral respirou por todo o tempo da Idade Média.
Com o Renascimento, a espiral que se fechara no centro, na lógica aristotélica, de aí, se abriu
de novo para as coisas, a começar por Descartes e terminando por Kant. A seguir, o
fundamento racional parmenídico-aristotélico-kantiano, foi substituído, no centro da espiral,
pela substância de novo, exceto para Hegel, não mais substância física, mas substância moral,
de modo que três outras espirais se abriram: a do Eu Absoluto - Fichte; a da Harmonia
Absoluta - Schelling; e a da Vontade Absoluta - Schopenhauer, Nietzsche e Dilthey. Este é o
esquema que vamos desenvolver neste capítulo.
Os primeiros pensadores se perguntavam: quem existe? É preciso examinar as
credenciais daquilo a que se dá a qualidade de existir. Daí a idéia do em si, e do em outro,
distinção que os gregos já souberam fazer. Quem existe? Eu, as coisas, o mundo, o universo
existimos. Esta é a resposta mais natural e espontânea que ocorre a todos os não filósofos, ou
aos mesmos filósofos quando estiverem despreocupados do rigorismo, da disciplina mental, o
que vale dizer, em todas as horas do dia em que não estiverem a filosofar. Esta resposta
natural leva, do latim, o nome de res que quer dizer coisa, donde realismo. Tal resposta: eu,
as coisas, o mundo, o universo existimos, poder-se-ia chamar realismo espontâneo, natural.
Todavia, apenas esboçada esta concepção, não encontrou nenhum filósofo antigo ou moderno
que a esposasse. Basta um instante de reflexão para verificar-se que nem todas as coisas
existem, ou porque, ao serem examinadas, se desvanecem, ou porque a outras maiores se
reduzem. Ora, o existir pleno, a existência do em si, é singular, primordial, abarcando em sua
unidade todas as outras existências. Aquilo que não consiste em nada maior, e é consistido de
tudo o que se lhe acha abaixo; aquilo cujo tempo (existência) abarca todos os demais tempos
(existências menores); esse é o que, por excelência, Existe.
O realismo começou na Grécia tendo como ponto de partida o realismo espontâneo que
existiu desde o aparecimento do homem. Com isto, os gregos se fizeram fautores da filosofia.
Os demais povos, antes dos gregos, tiveram cultura, religião, sabedoria, porém, não, filosofia.
Entretanto, vai para cinqüenta anos, sobretudo a partir de Schopenhauer, que se começou a
falar em filosofias orientais, hindu e chinesa; no entanto, tais concepções da vida e do mundo,
ainda que geniais, não são expostas como o fizeram os gregos, com método, com reflexão,
deixando exposto o modo como chegaram a esta ou àquela conclusão. Os gregos acreditavam
que, com a razão, poderiam chegar ao fundamento das coisas. Antes dos gregos a sabedoria se
fazia só de vislumbres, de intuições, e paravam nisto. Quem, pois, existe? qual o Ser em si
mesmo, e não em outro? Este foi o primeiro discernimento operado pelos filósofos que
61
Will Durant, História da Filosofia, 18
63
62
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 234
63
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 240
65
Entretanto, diz Heráclito, quando atentamos para as coisas dadas como basilares, que,
por isto mesmo, foram postas por fundamento, verificamos não só que se mudam, senão que
ainda se transformam, de modo que nunca são o que foram antes, nem serão depois o que são
agora. Conseqüentemente, a realidade flui. Tudo muda, tudo anda, tudo corre, tudo se
transforma, tudo é um tendo-sido e um estando-a-ser contínuo, em que as coisas, assim como
as porções d’água dos rios, passam, e não voltam mais. Nunca, deste modo, nos banhamos
duas vezes no mesmo rio. O que existe não é nada estático, parado, e sim, o fluente, o
movediço, o dinâmico. De maneira que as coisas, porque se mudam num devir constante,
nenhuma em particular, nem todas no geral, podem pretender o qualificativo de existir em si
como independente de qualquer outra causa anterior. As águas dos rios e dos mares produzem
as nuvens que dão as chuvas, e estas formam os mananciais, os rios que correm a encher os
mares. O gás carbônico do ar é retido, decomposto e fixado pelos vegetais em alimentos,
folhas e frutos, e os animais, ingerindo tais hidratos de carbono, desfazem essa fixação,
recompõem o gás carbônico, devolvendo-o à atmosfera, voltando tudo como era dantes. Se os
ciclos quais este são viciosos, reversíveis, então o que existe é a circulação da substância, seja
pelo simples movimento, seja pela transformação. Nada existe como é, senão um só momento,
fugaz aqui, mais lento ali, mas sempre um tendo-sido e um vir-a-ser. O que existe é a
mudança, pelo que a realidade está constantemente sendo o que ainda não é, e deixando de ser
o que foi. Mudança, movimento, transformação, eis a realidade que existe. Com isto Heráclito
antecipou o que, depois, se lê em Plotino, no passado, e modernamente em Bergson.
Esta constatação da realidade, por Heráclito, conferiu-lhe um ceticismo resignado, uma
crença firme de que o problema de quem existe é demasiado grande e complexo para a frágil
inteligência humana, absolutamente incapaz de descobrir o que fundamentalmente existe por
detrás ou debaixo de todo esse movimento e transformação.
Tinha já Heráclito concluído a sua obra, e neste mesmo século VI a.C., surge na
história da filosofia uma grande figura, Parmênides, grande, porque assim a considerou Platão.
Este que nunca elogia ou vitupera, que sempre é cortês e comedido ao referir-se aos outros
pensadores, pasma-se frente a Parmênides, e não pôde furtar-se de reputá-lo “o grande”.
Como os heróis de Homero, Platão sempre qualifica Parmênides com o honroso título de “o
grande”. Então, no momento em que Heráclito pôs termo à sua atuação na filosofia, aparece o
maior pensador de seu tempo, o gênio que muda por completo a face da filosofia, da
metafísica, propelindo o pensamento humano por um caminho de que não se saiu até hoje.
Dois mil e quinhentos anos são passados, e ninguém pôde desprender o Ser da imobilidade em
que o fixou Parmênides, e por isto ainda, o grande Parmênides. Este grande filho de Eléia,
deste modo, provocou a maior revolução do pensamento, e que dura até hoje, faz vinte e cinco
séculos, pois ainda não conseguimos sair dos trilhos em que nos meteu Parmênides.
Heráclito serviu de resistência sobre que se firmou Parmênides para projetar-se para a
frente e para o alto; seu pensamento nasce, cresce, multiplica-se, adquire esplendor ao
empreender sua crítica a Heráclito.
Parmênides encara a solução que deu Heráclito ao problema metafísico, e verificou que,
segundo o irascível efésio, uma coisa é e não é ao mesmo tempo, uma vez que está a fluir do
tendo-sido ao estando-a-ser. Analisando esta idéia do vir-a-ser, do devir, o grande eleata
descobre a contradição lógica de que o ser é e não é em dois tempos sucessivos. Ora, como
pode acontecer de que o que é não é? Ou é, ou não é; o que não pode ser, são as duas
afirmações juntas. Assim, a realidade heracliteana possui, entranhada, uma contradição, e isso,
diz Parmênides, é absurdo, e, por isto mesmo, ininteligível. É, pois, preciso opor ao absurdo de
Heráclito a inteligibilidade de um princípio de razão que consiste nisto: o ser é, e o não-ser
não é. Bastaria a determinação desta verdade intuitiva, axiomática, luminosa para que
Parmênides tivesse dado enorme contribuição à filosofia. No entanto, foi além, construindo
uma metafísica até então desconhecida, a do Ser que é.
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não-é. Pela recíproca, se houvesse dois seres idênticos entre si, eles não seriam dois, mas um,
visto como se coincidiriam entre si, encaixar-se-iam um no outro, com que ficariam um.
Outra propriedade é ser eterno; e fôra melhor se Parmênides dissera intemporal.
Eternidade é um tempo que não flui, sem começo nem fim. Se o Ser não fosse eterno, teria
tido princípio e teria fim; se tivera começo, teria nascido doutra coisa, e esse algo anterior
negaria o posterior em que se diferenciou; o primeiro estado negaria o segundo com quebra do
princípio de identidade; esse algo que diferenciasse o Ser anterior do posterior, seria o não-
ser, o que é absurdo. E se pudesse transformar-se em outra coisa diferente do que é, essa coisa
resultante também seria o não-ser em relação ao Ser pré-estante.
Pela mesma razão de ser único e eterno, o Ser também é imutável. Se mudasse,
quebraria o princípio de identidade pelo qual o Ser é si mesmo, fixo, sem movimento, sem
transformação, sem mudança. A mudança, a transformação, implicaria em que o ser deixe de
ser o que é, para tornar-se no que não-é. Por isto, o Ser, necessariamente, é imutável.
Depois de uno, eterno, imutável, é também infinito, quer dizer, não possui limites. Se
pudesse ser recortado num todo maior, esse todo maior seria o não-ser que estaria para além
do Ser. Por este motivo, o Ser é infinito 64 não possui “fines” ou limites; é ilimitado, infinito,
indefinível.
Poderia Parmênides ter acrescentado que o Ser é incausado, visto que não teve
antecedente nem começo, como intemporal ou eterno; que não possui em si, como Essência
que é, o princípio de contradição, pelo que não tem polaridade nem contrário, inversamente
do que ocorre com todas as demais coisas, todas polarizadas em virtude da substância. Poderia
ter afirmado que o Ser essencial, como ilimitado, indefinido, por isto é irrepresentável,
inimaginável; que não sendo mutável, que sendo fixo, é determinado, determinístico, logo,
sem liberdade; que não podendo alterar-se (de alter = outro; tornar-se outro), é impassível,
desconhece os sentimentos, sendo-lhe impossível ou gozar, ou sofrer, ou querer, ou amar.
Que, sendo fixo, não tem liberdade; e sendo impassível não tem vontade... não podendo
querer criar nada, e mesmo que crie algo sem o querer, para criar é preciso a substância, e
esta o que é? Que, sendo imaterial, não ocupa lugar no espaço, pelo que é inespacial, (em vez
de infinito) não podendo ser achada fora de nós, fora da nossa inteligência, ficando sem
projeção exterior, objetiva, concreta... por faltar-lhe a substância com que se revestir.
Apesar deste impossível que é a existência de um mundo ideal fora de nós, objetivo,
mas sem a indispensável substância, Parmênides conclui..., e esta conclusão indecorrente e
impossível, outra vez passou inadvertida, despercebida, burlando a vigilância racional dos
pensadores. Apesar de impossível a conclusão, Parmênides conclui que há dois mundos: este
nosso, em que vivemos, e o outro do Ser somente IDEAL, subjetivo, SEM SUBSTÂNCIA,
único, SEM TEMPO ou eterno, SEM ESPAÇO ou ilimitado, imóvel. Este nosso mundo
heterogêneo, vário, calidoscópico, colorido, de movimento, de transformações, de fadigas, de
ignorâncias, de males, de dores, de mortes é pura ilusão ou aparência. Vivemos iludidos como
quem supõe que o mundo é verde, ou vermelho, ou azul só porque porta óculos de vidros
dessas cores. A percepção sensível é falsa, irreal, e só o inteligível é real. Daí que há dois
mundos: o sensível e o inteligível, e esta distinção que o gênio de Eléia soube fazer, domina
toda a filosofia até o presente. Este mundo sensível que nos circunda e nos penetra por todos
os sentidos, parece real, porque está aí, à mão; todavia, quando tentamos entendê-lo, ele se
nos mostra contraditório face à lógica que simplesmente afirma: o Ser é, e o não-ser não-é.
Esse mundo que não-é, ou do não-ser, ou sensível, se opõe polarmente ao mundo inteligível
em que o Ser é, sem contradição. Incrível mundo é este do Ser puro: está fora de nós, mas
que não tem espaço; é objetivo, mas que não tem substância; existe, mas que não tem
movimento, nem tempo! E que tivéssemos, faz vinte e cinco séculos, aceito este absurdo até
hoje? que não pudéssemos ter saído desta prisão em que nos meteu Parmênides? É de
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Tal como Parmênides usou o termo eterno em vez de intemporal, empregou o vocábulo infinito em lugar de
inespacial; o Ser, como pura idéia-sem-substância, não é espacial.
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pasmar! ... Deste absurdo fundamental saíram todos os demais, dando, harto, razão a Cícero
que disse: “Nada existe de obscuro, que não se possa encontrar nos livros dos filósofos” 65.
A metafísica, desde Parmênides, se firma sobre esta base, o Ser que é, da qual se
levantaram aqueles pilares que são as qualidades do Ser, polarmente contrárias às do não-ser
(pluralidade, temporalidade, causalidade, mutabilidade, limitação, movimento, transformação,
polaridade), que são as mesmas dos objetos reais ou ontológicos, já citadas. Como este nosso
mundo sensível é contraditório, obscuro, ininteligível, não pode ser mais que pura ilusão e
falsidade, assim o entendia Parmênides. Este mundo falso que vemos, que tocamos com as
mãos, que sentimos, é ininteligível, incompreensível, ao passo que o outro, o inteligível, não
podemos ver, nem tocar, nem sentir, nem representar; contudo (pasmeno-nos frente à loucura
da razão!), é este o mundo real, verdadeiro, porque, sujeito às leis da lógica, sem contradição
do princípio de identidade, pode ser apreendido pela inteligência. Por este motivo, o
inteligível é o mundo real, autêntico e verdadeiro, enquanto que o outro, o da substância, é
aparencial, falso, ilusório, irreal.
Como se vê, desta primeira contraposição decorre a segunda de que sai a terceira. A
primeira consiste na pergunta quem existe?, e Parmênides, em vez de respondê-la, saiu-se com
esta afirmação impertinente de que o ser é. Ora, não foi isto, quem é?, que se perguntou,
mas quem existe? A segunda contraposição parmenídica foi chamar real a seu mundo das
essências, quando real vem de res = coisa, e nenhuma essência é coisa. O real é o que existe,
porque só aqui há o tempo, o movimento, a transformação, a coisidade. Pois,
inadvertidamente, tomou-se o puramente ideal por realidade, por coisidade. Desta segunda
inadvertência (a transposição do ideal para o plano da realidade) saiu a terceira que consistiu
na projeção do ideal para fora do indivíduo, mas isto, pasmemo-nos, sem o apoio da
substância (?!). Um mundo só de essências puras, abstratas, sem substância alguma, mas que
está alhures, fora de nós, é a mais arrematada loucura da razão, e custa crer que aceitaram
isto incontestáveis gênios! ... Primeiro: perguntava-se por quem existe? (temporal, espacial,
causal, substancial), e responde-se a pergunta: quem é? (intemporal, ideal, incausal, inespacial,
insubstancial). Segundo: este ser ideal, abstrato, subjetivo foi dado por Parmênides como
sendo a “realidade”, e, inadvertidamente, foi aceito, como tal, pelos filósofos. Terceiro: uma
vez que esta idealidade abstrata, subjetiva foi aceita como “realidade”, como “coisidade”,
como “objetividade”, então se procedeu a projeção desta falsa “realidade” para fora do
indivíduo, criando-se o mundo do Ser, colocado alhures, longe deste nosso mundo, mas,
aquele, sem substância alguma, sem espaço e sem tempo.
Como, todavia, a verdade não admite inadvertências, imprevidências, descuidos,
cochilos, e estas três contraposições passaram despercebidas, a filosofia tornou-se campo de
dissensões em que cada filósofo se supõe autorizado a tecer suas fantasias, a falar do modo
como lhe apraz, criando, cada um, um vocabulário seu, próprio, como se isto fosse
permissível. Lá vem Espinosa, e chama a essência de substância, o perfeito de completo, o
ideal de objetivo, objetivamente de subjetivamente, formalmente de objetivamente (Will
Durant), e que fique o estudioso a resolver sua charada geométrica, como se bastasse pôr uma
doutrina em linguagem matemática, para ela tornar-se verdadeira. Por que não se faz o mesmo
na física, na química e na biologia? e cada cientista não organiza seu vocabulário esdrúxulo?
Quando é que os filósofos vão organizar um vocabulário comum, coerente, sem
arbitrariedades? Se realidade vem de res = coisa, e que significa o mesmo que coisidade, real
é o sensível, e ideal, o inteligível. Ou os filósofos aceitam em dizer as coisas do modo como
elas têm de ser ditas, ou então, é fazer como Cícero que largou mão da filosofia porque,
segundo disse, “Nada há de confuso que não se possa achar nos livros dos filósofos” ! 66.
No entanto, não há quem não se curve, respeitoso, frente à genialidade de Parmênides,
visto que foi o primeiro a descobrir o princípio de identidade que esteia uma parte importante
65
Will Durant, História da Filosofia, 18
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Will Durant, História da Filosofia, 18
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da lógica formal, única pela qual se guia o pensamento. Por sua contraposição terceira,
projetou o Ser fora de nós, independente de nós, idêntico só a si mesmo, mas que coincide
com o que podemos racionalmente pensar dele; pois claro: esse Ser saiu da nossa intimidade,
do nosso pensamento, do mesmo modo como, mais tarde, e por outros caminhos, iriam fazer
os filósofos idealistas, a partir de Descartes. A maravilha de Parmênides foi a de que não
precisou (tal como também, os pensadores idealistas) sair de si para descobrir a autêntica
idealidade do Ser (que ele chamava realidade), e antes, pelo contrário, como se fora um
Descartes, tirou a lei basilar do Ser do seu próprio pensamento pleno de luz, imperecivelmente
belo e lógico. Os filósofos comparam-se ao bicho-da-seda que tiram o fio de si mesmos para
construírem seus casulos nos quais se fecham: depois saem as borboletas..., quando os bichos
não são cozidos. Como o Ser saiu de seu pensamento, coerentemente, as propriedades
essenciais desse Ser são idênticas às do pensar, e em bronze de vinte e cinco séculos, gravou-
se, com mão firme, esta frase rica de conteúdo metafísico: “Pensar e ser são uma e a mesma
coisa”.
O Ser, pois, ficou fixado na imobilidade, até hoje, feito só de pura Essência, carente de
substância, e só agora, com a Terceira Jornada da Filosofia, foi possível encher-lhe a forma
vazia e ideal da incriada Substância, do coeterno Amor. Um Ser só pensado, é um Ser feito só
de puro pensamento, um Ser subjetivo que só está em nós. Supô-lo fora de nós, sem
Substância alguma, é uma projeção do ideal para fora de nós no nada. Ou o Ser possui
Substância para poder situar-se fora de nós, ou é pura abstração só encontrável na nossa
inteligência, sem realidade exterior. Isto que é tão claro, evidente, peremptório, taxativo,
terminante, foi sempre o nó górdio da filosofia, porque como a Substância é não-ser,
ininteligível em si, todos sempre refugaram este ponto como faz o cavalo face a alguma coisa
que o amedronta.
Zenão de Eléia, famoso discípulo de Parmênides, muito citado em toda a filosofia
grega, partilha, por inteiro do pensamento de seu mestre, de que tira outras conseqüências.
Ocupa-se ele, sobretudo, com o movimento que considera ininteligível, ilusório, aparencial,
uma vez que é impensável, isto é, até então o era. Ora, segundo o princípio de identidade entre
ser e pensar, o que não pode ser pensado não-é; o movimento não pode ser pensado, logo,
não-é. Conseqüentemente, o movimento é outra das muitas ilusões dos nossos sentidos a que
estamos sujeitos. E para demonstrar sua tese, propunha o problema de Aquiles e a tartaruga.
Conquanto Aquiles fosse tido por homem dos pés ligeiros (ocus podas), não alcançaria a
tartaruga numa competição, desde que se desse a esta uma dianteira. No momento em que
Aquiles chegasse ao ponto de onde partiu a tartaruga, esta teria andado um pouco mais;
quando Aquiles tivesse vencido esse pouco, ela ter-se-ia adiantado mais um tanto. A distância
ir-se-ia tornando cada vez mais curta, mas nunca seria zero, porque a extensão é divisível ao
infinito. Zenão não queria afirmar que, na prática, Aquiles não ultrapassasse a tartaruga em três
pulos, e sim que esse acontecimento é ininteligível, ilusório, fantástico, irredutível à
matemática, isto é, até então, o era.
Proposto o problema a Diógenes, com o fim de demonstrar a ilusão do movimento,
esse principiou ostensivamente a andar, para provar o erro da tese de Zenão. Mas o eleata não
negava o movimento ilusório no mundo irreal do não-ser; o que afirmava era que o real é
pensável, donde ser e pensar constituírem uma e a mesma coisa; ora, o movimento contradiz
o princípio de identidade entre ser e pensar; como o movimento não podia ser pensado (até
essa época não o era), não possuía o caráter de ser. A prova de Diógenes era irracional, e, com
esta, pretendia ele refutar o argumento de Zenão. O que Zenão dizia é que o movimento não
pode ser pensado; ora, o impensável é irreal, é não-ser; logo, o movimento é ilusão. Aceita a
premissa de Parmênides de que o ser é, e não-ser não-é, de que saiu a conclusão lógica que
consiste na identidade entre ser e pensar, o argumento de Zenão, quanto ao movimento, é
apenas uma conseqüência do implícito na premissa parmenídica. Racionalmente, o argumento
de Zenão era perfeitamente válido, daí que Platão o incorpora à sua doutrina, não fazendo
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