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organização
Adriana Vianna
O fazer e o desfazer
dos direitos
experiências etnográficas
sobre política, administração
e moralidades
ISBN 978-85-7650-369-9
Este livro foi viabilizado por recursos do projeto Diverso – Políticas para a Diversidade e os Novos
Sujeitos de Direitos: estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e organizações de governo,
realizado com financiamento da Finep através do Edital de Ciências Sociais 2006 (Convênio Finep/FUJB
nº 01.06.0740.00, REF: 2173/06), coordenado por Antonio Carlos de Souza Lima, Adriana Vianna e Eliane
Cantarino O’Dwyer. Recebeu, também, apoio da Faperj, através do projeto “Às portas dos direitos: as
dinâmicas entre relações de gênero, redes sociais, instituições de Justiça e ação política”, edital Jovem
Cientista do Nosso Estado, 2010 e do CNPq, através do projeto “Instituições de justiça, redes sociais
e relações de gênero: uma antropologia da experiência dos ‘direitos’ e do fazer político”, bolsa de
produtividade em pesquisa, nível 2.
F295
O fazer e o desfazer dos direitos : experiências etnográficas sobre política,
administração e moralidades / organização Adriana Vianna. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : E-papers, 2013.
216 p. ; 23 cm. (Antropologias ; 10)
Inclui bibliografia
ISBN 9788576503699
1. Direitos humanos. 2. Antropologia. I. Vianna, Adriana. II. Série.
13-04590
CDU: 342.7
Lista de quadros
Lista de tabelas
Apresentação 11
12 Adriana Vianna
Num certo plano, lê-los sugere-me uma brincadeira com o título do
texto de Hastrup, citado por Vianna2: podemos pensar que estamos aqui
diante de etnografias do potencial dos direitos numa administração do
mal comum, tomando para isso administração seja no sentido de gerência,
governo, regência, seja nas acepções de ministração, aplicação, infl ição,
cominação do mal que é banalizado, e/ou coletivizado?
Que em breve outras coletâneas e etnografias completas presididas por
essa perspectiva e contidas nas teses que geraram a maioria desses pode-
rosos trabalhos e outros mais circulem com tanta fluência e rapidez como
os “idiomas” por eles tratados se fi zeram presentes em amplos setores das
coletividades e agências englobadas pelo Estado Nacional brasileiro.
2 HASTRUP, Kirsten. Representing the common good: the limits of legal language. In: WIL-
SON, Richard A.; MITCHELL, Jon P. Human Rights in Global Perspective: Anthropologi-
cal Studies of Rights, Claims and Entitlements. London: Routledge, 2003. p. 16-32.
Adriana Vianna1
16 Adriana Vianna
distintos da malha administrativa do Estado e outros atores sociais que
se representam ou percebem como “fora” do Estado; as conexões entre
dramas singulares e causas políticas, considerando a produção de atores
coletivos nesses processos, bem como a dimensão afetiva e moral aí pre-
sente; e, por fi m, a complexidade de níveis, planos e sentidos do Direito e
dos “direitos”.
4 Nas palavras de Abrams (2006, p. 125): “In sum: the State is not the reality which stands
behind the mask of political practice. It is itself the mask which prevents our seeing political
practice as it is.”
5 Reproduzo aqui o raciocínio dos autores mais extensamente: “por administração não
entenderemos apenas a administração (‘pública’) governamental direta (municipal, estadual
e federal), seja em sua morfologia, operação cotidiana – nas práticas estruturantes e estrutu-
radas pela história institucional e pela interação de seus funcionários –, seja em seus aspectos
normativos. Consideraremos como parte desse domínio a própria forma social acreditada
como ordenando uma coletividade (no caso do Estado nacional brasileiro, o regime republi-
cano e a democracia), na qual se combinam crença e materialidade, por exemplo, na divisão
de poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário). Incluímos, assim, o jogo político partidário
e a esfera do Direito, entre tantas outras coisas, como, por exemplo, organizações ditas não
governamentais que exercem ‘funções de Estado’ à luz dos diplomas legais que jurídico-po-
liticamente ordenam a coletividade brasileira; e redes articuladas de agências de cooperação
técnica internacional governamental e não governamental, sem as quais o próprio funciona-
mento do que é tido como administração direta no Brasil não é compreensível neste momen-
to. Juntem-se a isso segmentos do empresariado e do ‘mundo do mercado’ imbricados pro-
fundamente no funcionamento real da ‘máquina pública’” (TEXEIRA e LIMA, 2010, p. 57).
6 Talvez seja possível fazer uma aproximação entre o Estado-ideia de Abrams e o centro
exemplar do Negara, o Estado-teatro balinês tratado por Geertz (1991), na medida em que
ambos nos apontam para a relevância do plano representacional do Estado, algo que parado-
xalmente só se conecta com sua “materialidade” por uma espécie de produção contínua da
falta, da imperfeição e da limitação.
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No conjunto de textos que se seguem, algo dessas interações pode ser
visto com riqueza. Ao acompanhar, por um lado, o registro policial de
desaparecimento de pessoas e, por outro, a formação de uma rede insti-
tucionalizada envolvendo familiares, organizações civis e agentes locali-
zados em diferentes pontos da organização administrativa estatal, Letícia
Carvalho de Mesquita Ferreira conduz-nos por entre zonas de desconfian-
ça mútua, acusações, responsabilizações e irresponsabilizações. “Proble-
ma de família”, “problema de polícia” ou, de modo sugestivamente vago,
“problema do Estado”, os desaparecimentos de pessoas vão demarcando
múltiplas ausências e engendrando a defi nição de faltas e de faltosos. A
produção de diagnósticos, justificativas, demandas e cobranças vai sendo
recolocada de acordo com seus contextos, revelando processos dinâmicos
em que os próprios limites da família, da polícia ou do Estado – esses focos
paradoxais de problemas e soluções que explicam o “desaparecimento” –
são deslocados.
Tensões semelhantes aparecem em outros textos da coletânea, revelan-
do-nos o quanto os processos de fabricação de certos “problemas sociais”
podem colaborar para discutir os efeitos de separação entre Estado e so-
ciedade e suas implicações. Adolescentes soropositivos que são o centro
de projetos implementados por organizações não governamentais – elas
mesmas parte fundamental dos recursos e tecnologias de gestão estatais –,
como nos traz a pesquisa de Claudia Carneiro da Cunha; o “infanticídio
indígena” colocado no centro de tramas de acusações feitas por e mediante
revistas e jornais, como aborda Rita de Cássia Melo Santos; ou o drama
moral e político da “pedofilia”, matéria de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) que clama pela participação da “sociedade de bem”, como
discute Laura Lowenkron, apresentam-se completamente atravessados por
essas linhas fronteiriças que ora são reforçadas como se estáveis e nítidas
fossem, ora são diluídas nas imagens da “colaboração” ou da “participa-
ção” de segmentos da sociedade interessados na questão.
O recorte de um conjunto de práticas, relações e, consequentemente,
sujeitos sociais como sendo um “problema” no qual se deve intervir é si-
multaneamente resultado e produtor das indagações sobre as formas e os
agentes adequados para realizar tais intervenções. Nesse processo, capitais
políticos e técnicos são definidos e acumulados, reputações singulares po-
dem surgir ou ser transformadas e novas categorias são organizadas para
localizar diferentes sujeitos e os papéis que desempenham nesse “proble-
ma”. A evocação das obrigações do Estado ou da ação da sociedade, desse
7 Materializa-se com clareza aqui a formulação de Foucault sobre uma das dimensões do
biopoder como algo a ser pensado no plano dos mecanismos, técnicas e tecnologias de poder
especialmente centradas no corpo individual (FOUCAULT, 2000, p. 288).
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conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em Sobral (CE), Damião
Ximenes converte-se em centro de uma denúncia “inédita”, tanto mais ex-
pressiva porque erigida contra um Estado nacional tido como exitoso em
sua política de saúde mental. O que passa a figurar como a faceta pública
mais conhecida do “caso”, porém, encobre diversas outras ordens de dis-
puta, como processos locais que resultam em indenização a alguns mem-
bros de sua família e a reformas na organização administrativa de serviços
locais de saúde. A coesão da imagem quase antropomórfica do “Brasil no
banco dos réus” ofusca, mas não desfaz, desse modo, outras dimensões
contraditórias e plurais que compõem as dimensões judiciais, políticas,
administrativas e familiares em torno dessa morte específica.
A representação de parte do aparato da administração como antago-
nista – indo além, portanto, das acusações de mera ineficiência – aparece
de forma distinta também no trabalho de Paula Lacerda sobre o “caso dos
meninos emasculados” de Altamira (PA). Ao se articularem politicamente
para exigir a investigação dos bárbaros crimes que atingiram meninos da
região, os “familiares” e outros ativistas constroem-se como atores em
oposição a uma polícia local tida como omissa e corrupta. Para tanto,
recorrem tanto a estratégias diversas de mobilização, como passeatas e
atos públicos, quanto aos apelos a atores vistos como aliados potenciais,
tanto mais valiosos porque colocados fora desse plano local. Para tornar
os crimes merecedores de atenção da própria polícia e conectá-los a qua-
dros maiores de violências e indignidades, foi preciso delinear e destacar
com especial força o antagonismo entre “movimento social” e “polícia”,
produzindo-os como unidades ativas e polares. Estar “contra” a polícia,
porém, pode significar estar ao lado (ou trazer para seu lado) parte do
“Estado” e da “sociedade”, encarnados na figura de políticos, segmentos
da Igreja, Polícia Federal, procuradores e promotores de justiça, represen-
tantes de organismos das Nações Unidas e outros.
As experiências etnográficas presentes nos textos capturam, portan-
to, algo desses processos de fi xação e destituição de limites, fronteiras e
unidades organizacionais, políticas e morais. O “dentro” e o “fora” do
Estado, como expus, não se referem a localizações ou estatutos precisos,
mas a possibilidades de nomeação, qualificação, aliança e oposição entre
atores diversos. O acionamento de determinadas estratégias argumentati-
vas é fundamental para que se produza, em níveis e contextos variados, a
credibilidade dos atores sociais como estando comprometidos com o “fa-
zer direito” que pleiteiam, tenha esse “fazer direito” a forma de denúncia,
reivindicação, protesto ou projeto. No item a seguir, procurarei esboçar
8 Em sua “tópica da denúncia”, Boltanski destaca a forma “affaire” como aquela que mais
eficazmente fornece elementos para que a indignação e a acusação possam ser recebidas
no espaço público, fazendo com que virtualmente todos tenham de se posicionar. O caso
Dreyfus seria um dos exemplos históricos exemplares desse processo, em que um aconteci-
mento é transformado, pela constituição de um sofredor e daqueles que estão comprometidos
em defendê-lo da injustiça sofrida, em uma causa coletiva (BOLTANSKI, 1993, p. 94-95).
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perpetrador, um causador do mal que possa ser identificado com clareza
(BOLTANSKI, 1993), o que acaba por obrigar também à elaboração de
conexões e causalidades que vinculem o dano a seu causador. O sofrimen-
to deixa, assim, de ser descarnado não apenas no que diz respeito àquelas
que seriam suas vítimas, mas, o que é vital para sua dimensão pública e
política, em relação aos que ocuparão o lugar de apoiadores engajados e
indignados.
O espetáculo público da CPI da Pedofilia analisado por Laura Lo-
wenkron traz-nos um quadro nítido das dinâmicas de fabricação de ví-
timas, defensores e perpetradores com tonalidades morais marcantes. O
vocabulário aí movimentado varia da malignidade à monstruosidade, não
deixando espaços para a ambiguidade interpretativa. As vítimas têm seus
corpos exibidos em fotografias que operam como artefatos de constran-
gimento e adesão políticos, tornando-se paradoxalmente imateriais nesse
processo, já que passam a constituir o espectro vago das “crianças” abs-
tratas a ser defendidas. De modo semelhante, o “pedófilo” como monstro
incompreensível e indefensável vai sendo fabricado narrativamente como
sombra virtualmente presente em qualquer lugar e em (quase) qualquer
um. O espetáculo da violação de direitos das crianças alardeado nesse
contexto tem como efeito mais concreto e material não apenas a alteração
de uma legislação específica, retratada como parte do problema por ser
insuficiente e precária, mas sim a produção de novas figuras morais, os
heroicos defensores dessa “causa”.
O “interesse desinteressado” daqueles que se indignam é, assim, peça-
-chave da veracidade sempre em suspenso de seu engajamento, devendo ser
reiterado e provado continuamente.9 Pode não ser suficiente, portanto, atu-
ar como um profissional da produção política de direitos – caso daqueles
que têm mandatos legislativos, por exemplo –, sendo importante demons-
trar que a obrigação do cargo vai além desses limites, configurando-se
como compromisso moral profundo. A indignação e a repulsa performati-
zadas são as do “pai de família”, do “homem de bem”, que conclama seus
iguais a agir em conjunto, traçando uma linha clara e indelével que não
permite contestação ou variações. A exacerbação das imagens do sofri-
10 Em The tactical uses of passion, Bailey critica a oposição entre razão e emoção que nos
seria cultural e politicamente cara. Como ele argumenta, “there can be no purposive activity
without emotion, for purpose implies goal, and goal, in the end, entails passion: the fi nal
goal must always be cathected. Reason has no power to move: without passion, one remains
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terlocutor compreenda a importância do caso singular indicam a presença
de um embate de fundo entre relações pessoalizadas, de cunho fortemente
afetivo e moral, e categorias de enquadramento ou classificação que fazem
parte das rotinas de gestão administrativa. Vemos, assim, que os esforços
de particularização defrontam-se com a previsibilidade dos roteiros em
que as denúncias de desaparecimento podem ser distribuídas no setor da
polícia delas encarregado, bem como com as deduções nem sempre explici-
tadas acerca das práticas e trajetórias sexuais de adolescentes e, sobretudo,
com os diagnósticos sociais e morais embutidos na categorização quase
imediata das “famílias” faltosas que são antevistas por trás das crianças e
jovens que ocupam o centro de boletins de ocorrência, de políticas de saú-
de ou de denúncias de ordens variadas. Nesse sentido, é importante notar
que, para cada figura ou personagem que ocupa o centro de uma denúncia
ou de um “problema”, como jovens soropositivos ou pessoas portadoras de
transtornos mentais, há toda uma rede de relações que é posta sob suspei-
ta, ambiguamente localizada entre a posição de vítimas indiretas dos dra-
mas em torno desses personagens e de relativamente responsáveis por eles.
Ver-se ou sentir-se na situação de suspeição em relação ao que é narrado
ou, sobretudo, aos próprios sentimentos de angústia, afl ição e dor diante
do diagnóstico recebido, do filho desaparecido ou morto pode constituir a
experiência extrema de dissolução moral de si.
Nesses contextos, o acionamento da gramática dos direitos é combina-
do frequentemente com noções de (des)respeito e (in)sensibilidade, como
forma de reação a experiências de não reconhecimento. A utilização de
termos como “buscar os direitos” ou “conhecer/não conhecer os direitos”,
que aparecem em situações etnográficas distintas, fala-nos não somente do
controle da legislação, mas desse aprendizado surgido das arriscadas e às
vezes penosas interações com aqueles que ocupam de algum modo o lugar
de “autoridades”. A denúncia da indiferença, insensibilidade, desconside-
ração ou mesmo má-fé identificadas em funcionários, policiais, médicos e
psicólogos de serviços de saúde e projetos sociais, bem como em muitos
outros ocupantes dessas posições de autoridade, torna-se parte do hori-
zonte dos direitos a serem buscados e defendidos. Os relatos em torno das
experiências e sensações de desrespeito têm papel importante na cotidiani-
zação e subjetivação da própria ideia de direitos, estabelecendo, portanto,
inert, unmoved oneself and unable to move others” (1983, p. 24). A exibição de emoções
precisaria ser pensada, assim, em relação a estratégias de persuasão e convencimento, e mo-
vimentando retóricas distintas, e não como antagônica à razão, o que permite pensar a di-
mensão propriamente tática de sua utilização.
11 Em etnografi a feita com base em grupos de ajuda mútua, Carolina Branco de Castro
Ferreira destaca a importância tanto da imaginação da experiência de sofrimento comum
quanto da participação nas práticas padronizadas das reuniões para que se crie nos sujeitos
a percepção profunda de pertencer a uma “irmandade universal imaginada” (FERREIRA,
2012, p. 68). Com isso, estabelece-se o que ela chama de um “processo imaginativo e de
identificação dos sujeitos” a uma gama muito mais ampla e transnacional de sofredores si-
milares. Processos semelhantes, guardando as devidas diferenças em termos de contextos
etnográficos, podem ser vistos nos textos desta coletânea.
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rotas.12 Para vislumbrá-las, é preciso considerar também o lugar que emo-
ções, afetividades e desejos têm nos próprios aparatos complexos de gestão
de recursos e coletividades. Como destaca Stoler, a distribuição dos sen-
timentos faz parte também das racionalidades políticas e administrativas,
sendo seu domínio e regulação elementos relevantes nas artes de gover-
nar.13 Embora o universo a que a autora faz menção tenha uma série de
especificidades próprias à situação colonial analisada no texto, é possível
identificar em outros cenários a existência de preocupações semelhantes
com o excesso, a escassez ou as formas assumidas pelos sentimentos nas
ações administrativas.14
Na etnografia de Claudia Carneiro da Cunha sobre os jovens soropo-
sitivos, essa disposição à modulação e à pedagogia sentimental aparece de
forma nítida. Incitados a falar, refletir e mimetizar práticas, imaginações e
moralidades sexuais, os jovens vão adquirindo e performatizando vocabu-
lários atravessados pelo que deve ser dito e pelo que não pode ser dito ou
escutado. O formato técnico dos dramas encenados propicia experiências
de subjetivação política em que a forma assumida pelos sentimentos tem
papel central, sendo exagerada, posta no centro, examinada e, fi nalmente,
reajustada em economias de expressão e contenção. Na modalidade pro-
tegidamente ficcional assumida por esses experimentos de gestão, tanto
os jovens que são alvo dos projetos quanto os diversos “técnicos” neles
envolvidos põem em movimento memórias de suas relações prévias com
28 Adriana Vianna
de recursos transnacionais, como as cortes internacionais, o estatuto mi-
noritário de grupos e populações, os debates e articulações políticos em
torno do acesso desigual ao mundo judicial, entre outros elementos, levou
a questionamentos teóricos e metodológicos importantes.
Mais do que uma discussão sobre divergências culturais ou formas de
composição entre lógicas e sistemas de ordem diversa, o que está em jogo é
a crescente utilização de espaços de contradição inerentes ao universo dos
“direitos” por atores sociais posicionados, entre os quais frequentemente
também se encontram antropólogos. Se disputas, discordâncias e desajustes
sempre ocuparam lugar de destaque nas discussões da antropologia legal
e correlatos, o que viria se alterando, sobretudo a partir de meados dos
anos 1990, seria a utilização da linguagem dos direitos humanos como
gramática primordial para denunciar abusos e injustiças (WILSON e
MITCHELL, 2003, p. 2-4). Nesses termos, as próprias linguagens “locais”
e mais circunscritas da injustiça se veriam combinadas a narrativas,
valores, práticas, estratégias e personagens dos direitos humanos, como
“mulheres”, “crianças”, “minorias” etc. Como indicado por Richard
Wilson, o trabalho de cientistas sociais passa cada vez mais a ser o de
refletir sobre as interconexões estabelecidas entre legislações sobrepostas
e ordens de regulação que se interpelam e influenciam mutuamente,
erodindo as polarizações entre “universalismo” e “relativismo” que em
outros momentos pareciam oferecer os mapas teóricos e políticos mais
abrangentes no campo (WILSON, 2007, p. 239).
Por outro lado, como esse mesmo autor destaca, falar em tais circuitos,
redes e fluxos de ideias, códigos e recursos institucionais não implica dei-
xar de lado a centralidade dos processos levados a cabo por e em Estados
nacionais. É nessa escala ou, poderíamos dizer, retomando discussões já
feitas no primeiro eixo do texto, nessa malha de materialidades e crenças
que se produzem as possibilidades de organização de atores, ações e reper-
tórios de “direitos”, seja como demandas politizadas e/ou judicializadas,
como denúncias e projetos de alteração do acesso a bens sociais, políti-
cos e simbólicos, ou ainda como espaço de articulação de coletividades.
Tensões políticas constituídas em torno de personagens transnacionais,
como “crianças abusadas”, “pessoas com transtornos mentais” ou “jovens
soropositivos”, se, por um lado, colocam em questão limites desses mes-
mos Estados nacionais, inclusive pelas imagens de fronteiras perigosamen-
te fluidas ou por descuidos locais inadmissíveis, por outro reforçam seus
contornos. Penalidades internacionais, políticas públicas exibidas como
exitosas ou combates contra inimigos assustadoramente imateriais se fa-
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Fruto das próprias críticas epistemológicas e políticas à generalização do
“indivíduo” mitológico e historicamente marcado que teria dado origem
à concepção de direitos humanos, a “era dos direitos”, nos termos con-
sagrados por Norberto Bobbio (1992), encontraria na especificação dos
sujeitos um de seus sentidos e caminhos. Nesses termos, a elaboração dessa
linguagem implicaria também o delineamento das distinções, diferenças e
desigualdades que atravessam coletividades, recursos e dinâmicas de po-
der. O modo pelo qual esses limites serão tornados válidos, tematizados e
transformados em matéria de alguma ordem de “direito” implica, por sua
vez, a movimentação por entre paradigmas complementarmente tensos,
do ponto de vista das reflexões jurídicas. Como indica Rios com base nas
discussões de Nancy Fraser, a tensão entre paradigmas de distribuição ou
de reconhecimento, cruciais nos debates contemporâneos em torno dos
direitos ligados à discriminação e à desigualdade, fala-nos da relação in-
dissociável – embora contraditória – entre igualdade e diferença que está
na base dos direitos humanos (RIOS, 2012, p. 248-250).
Sem querer avançar nessa discussão, gostaria apenas de destacar que
esses atritos estão muito longe de se revelar matéria apenas do conheci-
mento de expertos ou mesmo de atores que se percebam como diretamente
implicados em dramas políticos ou judiciais específicos. Como demonstra
com propriedade o trabalho de Rita Santos, em certos contextos é o pró-
prio “relativismo” que pode ser transformado em vilão da história. Em
defesa de outro personagem, as “crianças indígenas”, capazes de simbo-
lizarem tanto as marcas sociais da diferença quanto as da universalida-
de, jornalistas e leitores transformam “antropólogos”, agências estatais e
organizações governamentais em artífices ou cúmplices de uma violação
de direitos ou, mais precisamente, de um crime. Os “direitos” e, mais pre-
cisamente, os “direitos humanos” abrem-se como terreno de discordân-
cia tanto em termos de sua natureza ou composição, por meio da crítica,
por exemplo, aos limites dos direitos culturais ou de um grupo específico,
quanto em termos da legitimidade de se relativização daquilo que deve ser
moralmente universal. Como a autora mostra, nesse processo de discussão
ganham forma certas figuras morais e afetivas projetadas como universais,
como as “mães”, cujas “dores” permitem questionar por dentro o que seria
visto como uma defesa perversa de “tradições” ou “culturas”.
Em cenário distinto, envolvendo as regulações sobre os direitos de
crianças e adolescentes, Laura Lowenkron mostra-nos que a contradição
intrínseca à condição desses “sujeitos especiais de direito” no que tange à
temática da sexualidade só pode ser suprimida quando, em nível nacional,
32 Adriana Vianna
A pluralidade de sentidos dos direitos fala-nos, assim, de processos e
configurações sociais que vão sendo demarcados com base na inscrição
daquilo que foi conseguido e, simultaneamente, do que permanece perdi-
do; no que vai se consagrando como sendo da ordem da alteração ou da
transformação e no que vai sendo vivido crescentemente como congelado,
estagnado e, por isso mesmo, intolerável. A justiça que não foi feita, o des-
caso que permanece, a reparação que é insuficiente, a indenização que foi
endereçada a quem não merecia.17 Isso se dá, entre outros motivos, porque
as formas e os tempos mais organizados dos “direitos”, tenham eles a fei-
ção de processos judiciais, de protestos políticos ou de formulação e gestão
de uma política, não esgotam sua penetração na vida cotidiana. As dores
ou os cuidados reclamados por meio desses recursos e gramáticas são tam-
bém da ordem do cotidiano, das relações morais e afetivas fundamentais,
das condições rotineiras de existência. Deslocando um pouco a preciosa
imagem forjada por Veena Das, trata-se de pensar a “descida dos direitos”
para a dimensão do ordinário, e não apenas o inverso.18 É também no tem-
po continuado dos que permanecem e sobrevivem que a pluralidade dos
“direitos” vai ganhar sentido, como estratégias e expertises adquiridas,
decepções que se acumularam, percepções sobre desigualdade, narrativas
de resiliência ou de esperança.
Como apresentado no começo desta Introdução, os artigos da coletâ-
nea não procuram resolver essas tensões e complexidades, mas as tomam
como guia para etnografias construídas com base em pessoas, coletivi-
dades, moralidades, institucionalidades e linguagens que, ao fazerem e
17 Borneman (2011) discute algumas tensões em torno das indenizações por perdas rela-
cionadas em especial com processos que acabam sendo constituídos como crimes políticos,
comparando situações em que o dinheiro se apresenta como um componente desmoralizante
e outras em que pode ser trabalhado moralmente de modo a não “contaminar” o sentido
da perda e, o que é especialmente importante, a memória da perda. Em todas as situações
tratadas por ele, fica claro que o processo de “troca” ou “compensação” realizado por essas
indenizações recoloca de maneira socialmente delicada os lugares estabelecidos pelos diferen-
tes atores, sobretudo por aqueles que recebem diretamente o dinheiro.
18 Em Life and words, Veena Das defi ne como uma das linhas mestras de sua atenção et-
nográfica o modo como os eventos dramáticos penetram no cotidiano e, ao mesmo tempo,
como é nesse espaço do rotineiro e do ordinário que o sentido para o mundo temporaria-
mente perdido e tornado inabitável se restabelece. Como ela apresenta, “[…] just as I think
of the event as attached to the everyday, I think of the everyday itself as eventful” (DAS,
2007, p. 8). Fiona Ross, por sua vez, em seu texto centrado nas falas das mulheres durante
as audiências para a Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, mostra-nos o
quanto narrativas centradas no que chama do “idioma da esfera doméstica” desenham luga-
res políticos distintos, bem como modulações hierarquizadas sobre o que seja violência ou
sofrimento (ROSS, 2001).
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1. Introdução
No dia 9 de março de 2009, a enfermeira Clara Gonçalves, de 56 anos,
dirigiu-se a uma delegacia policial (DP) do Rio de Janeiro para comunicar
o desaparecimento de seu sobrinho, Domingos Mota, 36 anos, solteiro,
desempregado. Segundo Clara, Domingos saiu de sua residência “sem des-
tino certo”, na tarde de 15 de fevereiro do mesmo ano. Ele estaria passan-
do por “problemas emocionais” e fora visto pela última vez no município
de Belford Roxo. Antes de ir à delegacia, Clara fez contato com amigos de
seu sobrinho “e procurou por Domingos em diversos hospitais, abrigos e
necrotérios, mas não teve êxito em encontrá-lo”. Ao solicitar o registro do
desaparecimento, entregou à polícia uma foto dele.
A fotografia foi anexada a um registro de ocorrência (RO), assim como
outros documentos posteriormente produzidos acerca do desaparecimento
de Domingos. Esse conjunto de papéis compôs uma ficha que permaneceu
por cerca de um mês na DP e, em seguida, foi encaminhada ao Setor de
Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicídios (DH) do Rio
de Janeiro – setor dessa delegacia especializada que se dedica exclusiva-
mente a investigar casos de desaparecimento. No SDP, a ficha em nome de
Domingos passou a integrar um processo intitulado Sindicância.
Dia 11 de junho de 2009, passados três meses da comunicação do desa-
parecimento de Domingos, Clara compareceu ao SDP. Informou a um dos
inspetores que trabalhavam no setor que o paradeiro de Domingos já era
conhecido e disse estar ali para oficializar o fato. Em 27 de março, Clara
recebeu telefonema de uma comadre informando que Domingos estava in-
ternado em um abrigo no Centro da cidade e vinha sendo atendido em um
centro psiquiátrico. Em suas declarações, esclareceu que seu sobrinho de-
38 Adriana Vianna
cância em nome de Domingos Mota arquivada pelo SDP. Em documentos
como a Sindicância de Domingos, pessoas desaparecidas figuram como
“vítimas” de uma ocorrência intitulada “Desaparecimento (outros)”. Não
obstante, no cotidiano de conselhos tutelares, associações de mães de desa-
parecidos e serviços de assistência social como os chamados “SOS Crian-
ças Desaparecidas”, presentes em diferentes estados brasileiros, familiares
e conhecidos de pessoas desaparecidas são recebidos, assistidos e classifica-
dos também como “vítimas” de casos de desaparecimento. Nessas institui-
ções, parte-se da premissa de que os casos incidem dramaticamente sobre
familiares e conhecidos dos desaparecidos, de modo semelhante ao que
ocorre com as chamadas vítimas ocultas da violência urbana (SOARES
et al., 2006). 25 Em suma, instituições que lidam diariamente com casos
de desaparecimento não abordam o fenômeno com base em uma mesma
gramática e, por isso, situam diferentes sujeitos na posição de “vítimas” do
desaparecimento de pessoas.
Para além das abordagens de atores que lidam institucionalmente com
o desaparecimento, tampouco operam segundo uma mesma gramática os
(poucos) estudiosos dedicados ao fenômeno. De modo excludente, há inter-
pretações que classificam o desaparecimento como uma das faces da “vio-
lência urbana” (ESPINHEIRA, 1999), enquanto outras o encaram como
consequência direta da “violência intrafamiliar” (OLIVEIRA e GERAL-
DES, 1999) e de valores do patriarcalismo e seus impactos sobre relações
de gênero e geração no interior de famílias brasileiras (OLIVEIRA, 2007).
Pesquisar o cotidiano e os arquivos do SDP e ainda integrar reuniões
da ReDesap, participando de debates entre seus membros, permitiram-me
confi rmar a inexistência de uma única gramática pela qual instituições,
estudiosos e demais atores sociais encaram o desaparecimento de pessoas.
Não obstante, o dia a dia do SDP e os encontros da rede levaram-me ainda
a concluir que abordagens excludentes e dicotômicas pouco iluminam o
fenômeno. Afi nal, como sugere a foto que a tia de Domingos, protagonista
do caso com que abri este capítulo, retirou de documentos policiais para
recolocar em um álbum de família, o desaparecimento de uma pessoa pode
inscrever-se, a um só tempo, tanto na seara da segurança pública quan-
to em tramas familiares. Ademais, pode não consistir em acontecimen-
to decorrente de qualquer tipo de violência facilmente classificável como
“intrafamiliar” ou “urbana”, como sugerem, respectivamente, Oliveira e
Geraldes (1999) e Espinheira (1999).
40 Adriana Vianna
“aborrecida com a vida, cansada e extremada”. 28 Na mesma gaveta, por
fi m, há o caso comunicado por moradores de um edifício cujo síndico teria
roubado o condomínio e desaparecido em seguida; o registro solicitado
por uma mulher que afi rmara a policiais que seu sobrinho “vivia vagando
pelas ruas como pedinte”; e, ainda, o caso de desavença entre marido e
mulher que engendrou o desaparecimento do primeiro.29
Embora tão distintos entre si, tais exemplos não só convivem em uma
mesma gaveta de arquivo como também foram igualmente registrados
como casos de desaparecimento. O que chama atenção nessa coleção é
que, de modo geral, as ocorrências não têm componentes especificamente
criminais, constituindo, nos termos de Mota (1995), “casos sociais”. 30 A
especificidade dos “casos sociais” abarcados pelo nome de desaparecimen-
to, entretanto, é que componentes criminais eventualmente se fazem pre-
sentes, não podendo ser excluídos a priori.
A presença eventual e por vezes apenas virtual de componentes cri-
minais faz com que policiais não reconheçam casos de desaparecimento
como parte constitutiva de suas atribuições profissionais (cf. OLIVEIRA,
2007), ao menos não sem submetê-los a severos questionamentos. Assim
como nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs) estu-
dadas por Soares (1999), setores e delegacias que, como o SDP, dedicam-
-se a desaparecimentos são vistos como “delegacias de papel” e têm sua
importância posta em dúvida por seus próprios funcionários, entre outros
policiais.31 Essa questão é, inclusive, um dos mais recorrentes objetos de
reflexão no interior do SDP.
42 Adriana Vianna
caso de um senhor de avançada idade que foi registrado por seus vizinhos
como desaparecido. As investigações do SDP permitiram concluir que os
vizinhos solicitaram o registro para que a polícia tomasse conhecimento
de que ele vinha sendo explorado por uma jovem, que passara a morar
em sua residência e ter acesso a seus bens. Segundo a policial, os vizinhos
esperavam da polícia alguma atitude em relação à jovem, e fi zeram uso
do termo desaparecimento para acioná-la. Executando o que ela chama
de serviço de “assistência social”, a inspetora foi, em companhia de outro
inspetor, até a casa onde o casal estaria vivendo, no intuito de averiguar
se haveria entre eles uma relação de exploração. Constatou então que, em-
bora a mulher estivesse de fato usufruindo dos bens do senhor, por outro
lado estava cuidando dele diariamente. A situação que, do ponto de vista
dos vizinhos, seria de submissão do senhor pela jovem, para a inspetora
era uma troca justa de favores, já que o homem não tinha familiares e/ou
pessoas que dele cuidassem tão de perto quanto a jovem vinha fazendo.
Casos como esse, nas palavras da policial, não são “problemas de
polícia”, e sim “problemas do Estado”, que devem ser solucionados por
medidas que fogem ao alcance da polícia. São, portanto, exemplares da
“atipicidade” do desaparecimento, característica da maioria dos casos que
chegam ao SDP: “problemas de família” desprovidos de componentes cri-
minais que, por sua própria natureza, exigiriam soluções adequadas por
parte “do Estado”, e “não da polícia”. Segundo a inspetora, desapareci-
mentos são experiências de pessoas que deixam suas casas, vizinhanças e
comunidades em decorrência de circunstâncias e fatos de natureza familiar
e privada, nos quais a polícia não deve intervir.32 Logo, não consistem em
eventos que permitam identificar vítimas e perpetradores. Apenas o agente
moralmente responsável por assistir (BOLTANSKI, 1993) os envolvidos
nos casos seria facilmente reconhecível: “o Estado”.
Em um esforço para classificar a natureza dos casos de desaparecimen-
to, portanto, relatos e reflexões de policiais que lidam com o fenômeno
promovem não só a divisão entre “problemas de polícia” e casos que não
contam com componentes criminais, mas também a contraposição entre
o que seriam “problemas de família” e o que lhes parece ser efetivamente
atribuição da polícia. Ao fazê-lo, policiais procuram depurar o que é de
32 Soares (1999) apresenta dados de uma pesquisa sobre decisões judiciais em torno de casos
de violência conjugal em que fica claro o recurso a esse mesmo tipo de separação privado
versus público. Nos acórdãos e pronunciamentos citados pela autora, impera “a noção de
que o que acontece no domínio da intimidade (e que, se ocorrido entre estranhos, configura
claramente um delito penal) não é de responsabilidade da Justiça” (p. 36).
44 Adriana Vianna
3. Enfrentando a ausência: um evento e muitas causas
Entre os dias 2 e 5 de dezembro de 2008 teve lugar no Rio de Janeiro o II
Encontro da ReDesap. Eu soube do evento uma semana antes que ele acon-
tecesse, em uma manhã de pesquisa no SDP, por intermédio de uma inspe-
tora do setor. Seguindo sugestão da policial, inscrevi-me e soube então que
o evento fora organizado por órgãos do governo federal e do governo esta-
dual do Rio de Janeiro. Os principais responsáveis pela estrutura, logística
e programação do encontro foram a SEDH/PR e a Fundação para Infância
e Adolescência da Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro. Não
obstante, policiais da DH também auxiliaram na organização, tendo um
dos inspetores do SDP ficado encarregado de providenciar transporte para
56 delegados de polícia de diferentes estados que participariam do evento.
O encontro foi a segunda reunião aberta ao público promovida pela
ReDesap, rede criada em 2002 que articula 42 organizações (entre órgãos
públicos, policiais e assistenciais, e iniciativas não governamentais) que li-
dam com o desaparecimento de crianças e adolescentes no Brasil.34 A rede,
como informam folhetos distribuídos no evento, apresenta-se como “pilar
decisivo no enfrentamento do problema em foco” e “tem como objetivos
constituir um cadastro nacional de casos, criar e articular serviços espe-
cializados de atendimento ao público e coordenar um esforço coletivo e de
âmbito nacional para busca e localização dos desaparecidos”. Desde sua
criação, foi construído um website que tem funcionado como embrião do
referido cadastro nacional de casos.35 As organizações da rede alimentam,
46 Adriana Vianna
do evento que não falaram nas Mesas programadas, mas apresentaram
tópicos em discussão nos almoços e intervalos. Apesar dessas limitações,
os quadros são úteis para a visualização dos pontos centrais discutidos no
evento em sua relação com as autoridades presentes. Os tópicos reunidos
no Quadro 2, nesse sentido, explicitam o que as autoridades listadas no
Quadro 1 julgaram relevante à compreensão, ao combate e à prevenção de
casos de desaparecimento no Brasil.
48 Adriana Vianna
Nome da Mesa Temas apresentados e discutidos
50 Adriana Vianna
4. Multiplicando a ausência: do que é feito um problema social
Além de remeterem uns aos outros em suas falas, os representantes de
membros da ReDesap que se pronunciaram e debateram ao longo do en-
contro demonstraram partilhar de alguns pressupostos do desaparecimen-
to de pessoas. Ainda que tenham se posicionado uns em relação aos outros
de forma distinta, e mesmo que tenham apresentado abordagens divergen-
tes quanto às causas e maneiras de enfrentar o fenômeno, representantes
de variados órgãos governamentais, associações de mães de desaparecidos
e repartições policiais não apenas concordaram, como foram até redun-
dantes no tocante a algumas questões.
O desaparecimento compareceu em quase todas as falas como fenôme-
no invisível, pouco conhecido e que não pode prescindir de eventos como o
II Encontro da ReDesap. De encontros como esse dependeria a visibilidade
da gravidade adquirida pelo fenômeno no Brasil e, ainda, a conscientiza-
ção de toda a população quanto à importância de registrar e divulgar casos
que ocorrem rotineiramente e, no entanto, não recebem atenção. Dita logo
na Mesa de abertura do evento e rememorada em diferentes momentos, a
frase “o desaparecimento é uma questão invisível, mas que não pode ser
silenciosa” sintetiza, portanto, um dos pontos partilhados pelos presentes.
Casos célebres foram mencionados repetidas vezes por distintos pales-
trantes e tiveram enfatizados, ao mesmo tempo, tanto seu caráter represen-
tativo (de todo um universo de casos que acontecem diariamente) quanto
sua excepcionalidade (em função da divulgação que tiveram).37 A recor-
rência de referências a um mesmo repertório de casos sugeriu que certos
desaparecimentos, aos quais foi conferida ampla divulgação e visibilidade
por diferentes meios de comunicação, compõem uma fonte comum que ali-
menta imaginações e sustenta enunciados proferidos acerca do fenômeno
(BOLTANSKI, 1993, p. 103), ainda que tais enunciados sigam em direções
divergentes.
Igualmente presente em todas as Mesas, outro ponto comum foi o uso
indiferenciado das combinações de palavras “famílias de desaparecidos/
crianças e adolescentes desaparecidos” e “mães de desaparecidos/crianças e
adolescentes desaparecidos”. Chamando a atenção para a dor dessas “famí-
37 Os casos citados como objeto de ampla divulgação e repercussão foram “o caso Pedrinho”,
“o caso Carlinhos” e o “o caso Madeleine”. Este último diz respeito a uma menina inglesa que
desapareceu em um hotel na praia da Luz, em Portugal, na noite de 3 de maio de 2007. “O
caso Carlinhos”, por sua vez, refere-se ao sequestro de um menino, na noite de 2 de agosto de
1973, no Rio de Janeiro. Por fi m, “o caso Pedrinho” diz respeito a um caso de subtração de
incapaz em que um bebê foi levado da maternidade em 21 de janeiro de 1986, em Brasília, por
uma mulher que o registrou como seu fi lho e o criou em Goiânia.
52 Adriana Vianna
teção: crianças, adolescentes, idosos e deficientes mentais A inexistência de
leis que regulem a gestão e o combate do fenômeno do desaparecimento no
Brasil seria, enfi m, uma primeira ausência a ser enfrentada.
As referências ao desaparecimento feitas nas Mesas, nos debates e nos
intervalos do encontro carregaram consigo certo ar de certeza, como se de-
saparecimento e desaparecidos fossem categorias autoevidentes, que pres-
cindissem de mais explicações. Interlocutores diversos, entre palestrantes
e público, policiais, gestores governamentais e membros de associações de
mães de desaparecidos, apresentaram-se e dialogaram como se operassem
com base em uma mesma gramática e uma mesma defi nição do que é o
desaparecimento de pessoas no Brasil. Entretanto, no decurso dos dias,
descortinou-se a olhos vistos a circulação de diferentes abordagens do de-
saparecimento entre todos esses atores. A diversidade de abordagens, con-
tudo, só foi apontada por um dos palestrantes, em uma única Mesa, e não
foi questionada ou ecoada nas Mesas e nos debates seguintes.40
Conforme já apontado, três frentes de debate aglutinaram divergências
no evento: as causas apontadas como raízes do desaparecimento, as manei-
ras como o problema deve ser combatido e, por fi m, a relação que há entre
os atores envolvidos na questão. Tais divergências revelaram a distinção
entre três grupos de atores no interior dos quais vigem supostos específicos
acerca do desaparecimento: o grupo dos funcionários de órgãos governa-
mentais, o grupo das mães de desaparecidos, reunidas em organizações
não governamentais, e o grupo dos policiais. A seguir, busco explicitar as
posições desses grupos em torno daquelas três frentes de debate. Apresen-
to, então, o jogo de forças de caráter enunciativo que a descrição de tais
posições revela.
40 Nessa fala, destoante e com pouca ou nenhuma repercussão, o palestrante afi rmou que,
diante da variedade de casos de diferentes naturezas e da multiplicidade de concepções que
o termo desaparecimento abrange, melhor seria não utilizá-lo. Juiz de direito, esse locutor
dissonante esteve presente no encontro como representante da Associação Brasileira de Ma-
gistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude (ABMP).
54 Adriana Vianna
das pelos episódios por que passaram, mas, ao contrário, identifiquem o
perverso agente perpetrador de desaparecimentos e possam indignar-se
diante dele (BOLTANSKI, 1993, p. 98): o fenômeno da “violência intra-
familiar”. Compreendê-lo, enfi m, permitiria reconhecer, a um só tempo,
“famílias” específicas como vítimas particulares e a “violência familiar”
como causa geral dos casos de desaparecimento.
Assim entendido o fenômeno do desaparecimento, fundamentalmente
as formas de prevenção a serem adotadas devem ser dirigidas às “famílias”
e às “comunidades”. Em função disso, muitos gestores descreveram os li-
mites e as possibilidades abertos por serviços públicos de assistência social
e pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC),41
e afi rmaram a necessidade de fornecer atendimento psicológico e progra-
mas de reintegração de crianças e adolescentes a suas “famílias”. Tornan-
do possível essa reintegração, abrigos e outras medidas temporárias de
acolhimento seriam “de fato temporárias”, nas palavras de gestores, já que
as “famílias” estariam mais bem preparadas para receber e “proteger”
seus fi lhos, prevenindo novos desaparecimentos.
Em múltiplas falas, gestores afi rmaram que é preciso dar atenção às
“famílias” sobretudo porque “as mães perdem seus referenciais, seus em-
pregos e nem podem contar com seus companheiros” quando seus fi lhos
desaparecem. Chamando a atenção para sua “força”, nomearam algumas
mães presentes e associações de mães representadas no evento e ecoaram
trabalhos como os de Araújo (2007) e Nobre (2005), dizendo que “muitas
mães só reencontram sentido para viver ao se reunirem” e integrarem as-
sociações, ONGs e movimentos sociais.
Ainda que, segundo os gestores, o alvo fundamental de ações de pre-
venção deva ser “a família”, para eles é preciso, também, “capacitar aque-
les que recebem as denúncias: nossos policiais”. Treinando “a polícia” e
conscientizando seus funcionários quanto à gravidade do problema, seria
possível estabelecer as bases para “o atendimento adequado das famílias”
e, assim, reverter o fato de que atualmente muitos casos não são objeto de
registros policiais. Além disso, seria necessário que “a polícia” comparti-
lhasse com conselhos tutelares as ações de busca e localização de desapa-
41 Instituído em 2006, o plano é apresentado como “um marco nas políticas públicas no
Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortale-
cer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários
preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A manutenção dos vínculos fami-
liares e comunitários – fundamentais para a estruturação das crianças e adolescentes como
sujeitos e cidadãos – está diretamente relacionada ao investimento nas políticas públicas de
atenção à família” (BRASIL, 2006, p. 17).
56 Adriana Vianna
de crianças e adolescentes em seu estado de origem como também seguiu
carreira política como vereadora.
Em suas falas, diferentemente dos gestores governamentais, as mães
não destacaram números e estatísticas, nem apresentaram diagnósticos do
desaparecimento. Emitindo “enunciados de opinião”, e não “enunciados
de saberes” (BOLTANSKI, 1993), seu relatos foram construídos na pri-
meira pessoa (ora do singular, ora do plural), apresentaram suas trajetórias
como mães, como parte de famílias vitimadas por um mesmo infortúnio
e, ainda, como fundadoras de associações que buscam suprir a falta de
assistência que cada uma delas enfrentou ao vivenciar o desaparecimento
de um fi lho.42 Fazendo uso do que Boltanski (1993) designa como “estilo
emotivo”, as mães inscreveram-se em seus enunciados, tornando-se elas
próprias objeto de suas falas. Ao fazê-lo, transportaram suas experiências
de sofrimento para o amplo espaço de debate propiciado pelo encontro,
generalizando suas emoções, expectativas e posições diante dos desapa-
recimentos específicos de seus filhos para tratar do desaparecimento de
pessoas no Brasil. Nesse sentido, referiram-se a suas trajetórias tanto como
fundamentais para a apresentação de si quanto como representativas de
uma coletividade: as mães de pessoas desaparecidas.
Frases impactantes e reveladoras da articulação entre singularidade e
generalização empreendida pelas mães foram repetidas vezes enunciadas.
Melhor que qualquer descrição, alguns exemplos descortinam e sintetizam
sua posição no evento:
“Eu tenho vergonha de viver num país que tem um cadastro nacional de
veículos roubados, mas não tem sequer um banco de dados nacional sobre
pessoas desaparecidas.”
43 Houve duas ausências na Mesa programada para tratar do papel dos meios de comuni-
cação na prevenção e no combate aos desaparecimentos. Como os organizadores não foram
avisados previamente, no horário programado para a Mesa esperamos por alguns minutos
que os palestrantes chegassem, supondo apenas um atraso.
58 Adriana Vianna
Afi rmaram que suas vidas “perderam o sentido” quando seus fi lhos
desapareceram e narraram experiências pessoais de divórcio, perda de em-
prego, dívidas contraídas com detetives particulares e noites consumidas
em angústia. Indo ao encontro de uma das afi rmações repetidas por ges-
tores, relataram que tentam reencontrar esse “sentido” reunindo-se em
organizações e tentando suprir a carência de assistência vivida por outras
mães. Citaram, nesse sentido, exemplos de estratégias por elas desenvol-
vidas para enfrentar a “negligência do poder público”, como a chamada
“Mãe da Vez”, rede de cuidados idealizada por uma associação de mães de
desaparecidos em que uma mãe fica responsável por várias crianças de sua
vizinhança quando outras precisam se ausentar. Afi rmaram, enfi m, que
“juntas vamos guardar nossas crianças”, mas que pra isso é também ne-
cessário o engajamento do “Estado”, visto como responsável pela questão.
Nas palavras de uma das mães, “não importa se a criança fugiu de casa, o
Estado tem que se responsabilizar”.
A ausência do “Estado” manifesta-se, do ponto de vista das mães, so-
bretudo na inexistência de legislação pertinente que regule a gestão e o
enfrentamento de casos, de tecnologia (sistemas de informação, bancos de
DNA e sistemas de envelhecimento de fotografias são por elas vistos como
essenciais) e de serviços de assistência social de qualidade. A ela soma-se,
ainda, outra ausência de que as mães se queixam enfaticamente: a falta de
sensibilidade, conhecimento e capacidade para lidar com casos de desapa-
recimento, característica da “polícia” ou das “delegacias”. Evocar tanto a
ausência do “Estado” quanto de sensibilidade por parte de funcionários
de repartições são formas pelas quais cidadãos lidam com a humilhação
e a indiferença que eventualmente sofrem por ocasião de encontros bu-
rocráticos (cf. HERZFELD, 1992). No caso das mães de desaparecidos,
humilhação e indiferença são apenas dois dos vários sentimentos elencados
em suas denúncias daquelas ausências.
Também recorrendo a relatos em primeira pessoa, as mães narraram
cenas de maus-tratos, preconceito, negligência e desconfiança por que pas-
saram nas delegacias de polícia a que se dirigiram para reportar o desa-
parecimento de seus fi lhos. Afi rmaram que policiais demonstraram desco-
nhecimento do tema e, por vezes, ofensivamente associaram seus fi lhos e
fi lhas a redes de prostituição e diversas suspeitas de crime. Tais afi rmações
permitiram compreender a defesa de um “atendimento adequado” nas de-
legacias proferida por muitos gestores governamentais.
As quatro mães afi rmaram ter sido orientadas a retornar às delega-
cias 24 e/ou 48 horas depois da constatação do desaparecimento de seus
60 Adriana Vianna
tempo. Duas mães perguntaram a policiais, em distintos momentos do
evento, “o que acontece com as investigações dos casos com a passagem
dos anos?”, revelando o descompasso entre temporalidades (HERZFELD,
1992) inerente a encontros entre cidadãos e funcionários de repartições
burocráticas. Depositando esperanças no desenvolvimento de tecnologias,
perguntaram também se já há disponibilidade em alguma repartição po-
licial de sistemas de envelhecimento de fotografias que permitam divulgar
fotos de seus fi lhos que os retratem não como eram quando desaparece-
ram, mas como seriam em qualquer momento presente.
Enfi m, confi rmando o que me foi dito por inspetores do SDP, as mães
sentem que há desconfiança por parte da polícia diante de suas narrativas.
Se, conforme me disseram no setor, “famílias mentem”, da perspectiva
das mães é exatamente essa premissa que orienta policiais no atendimento
rotineiro a todos aqueles que se dirigem a delegacias. Tal desconfiança le-
varia policiais a sequer iniciar as investigações, “muito menos levar a sério
que existe tráfico de órgãos e tráfico de pessoas no Brasil” – fenômenos
que, nas palavras de algumas das mães presentes no encontro, seriam as
reais causas de muitos desaparecimentos.
Para essas mulheres, o desaparecimento não deriva da falta de uma
“família que protege” os seus, como afi rmaram os gestores, mas é a causa
da desestrutura de grupos familiares. As causas do fenômeno residiriam
em outros fenômenos, igualmente complexos e de imprescindível combate,
como o tráfico de seres humanos, o tráfico de órgãos e, ainda, a falta de
serviços públicos de assistência social que forneçam apoio e proteção a
“famílias” e lhes permitam manter-se “unidas”. Para as mães, em suma,
o desaparecimento é um problema de que são vítimas, que lhes causa um
sofrimento continuado e que evidencia a ausência do “Estado” nas vidas
daqueles que necessitam de assistência seja para cuidar, seja para localizar
seus fi lhos. Não obstante, o sofrimento que o fenômeno causa é ainda
agravado pela maneira como policiais agem diante delas e de seus relatos.
De seu ponto de vista, para caracterizar a atuação da “polícia” diante do
fenômeno, melhor seria falar em omissão, indiferença e inação.
62 Adriana Vianna
meios de investigação como característica geral da “polícia” que recai es-
pecificamente sobre cada um deles e cada delegacia policial, engendrando
um tratamento inadequado dos casos.
Do ponto de vista de delegados e inspetores presentes no evento, o de-
saparecimento é um problema invisível e mal investigado por policiais em
função de três ausências específicas: o tema não consta dos cursos de for-
mação e capacitação de policiais, não é objeto de instrumentos legais ade-
quados e muitas repartições policiais não têm os meios necessários para in-
vestigar casos com celeridade. A falta de viaturas, computadores, sistemas
de informação, tecnologia e outros bens imprescindíveis a seu trabalho,
portanto, seria uma das raízes da maneira falha com que a polícia tem
lidado com o desaparecimento. Nos termos de um policial, “não temos a
estrutura necessária” e “não sabemos lidar com as tragédias das famílias”.
À falta de estrutura deve ainda ser acrescentado, segundo os policiais,
o fato de que “famílias” de pessoas desaparecidas que retornam a suas
casas frequentemente não notificam a volta do desaparecido. Muitas inves-
tigações policiais, por isso, restariam abertas, embora os casos já tenham
sido solucionados. Esse seria um indício de que, nas palavras de um delega-
do de polícia, “as famílias fornecem informações precárias” e dificultam o
trabalho policial – palavras essas que ecoaram e ampliaram dizeres de ins-
petores do SDP já apresentados aqui. Portanto, ainda que tenham pedido
desculpas às mães presentes por atendimentos pouco respeitosos e/ou ine-
ficazes, policiais também afi rmaram que parte das dificuldades de se lidar
com o desaparecimento de pessoas decorre da maneira como as “famílias”
se aproximam da “polícia”. Se, conforme enunciaram as mães, a “polícia”
encara as “famílias” de forma omissa, desrespeitosa e indiferente, para
os policias tal relação consiste em uma via de mão dupla. Somando-se as
perspectivas desses dois grupos de atores, portanto, nota-se que o encontro
entre “policiais” e “famílias” engendra o crescente distanciamento entre
os dois grupos, vistos como unidades facilmente diferenciáveis e tipificá-
veis, e perpetua estereótipos (HERZFELD, 1992) construídos por ambos
a respeito uns dos outros e de suas condutas.44
44 A circulação de estereótipos entre atores e sua mútua concepção como unidades estan-
ques e facilmente tipificáveis é mais um traço característico de encontros burocráticos, con-
forme apontado por Herzfeld (1992), que se faz presente nas falas sobre o atendimento de
mães e “famílias” por policiais. Nas palavras do autor, “the art of bureaucrat game-playing,
whether from client to bureaucrat or the other way about, lies in esentializing one’s own
actions as logical on the strongly implied grounds that they rest on eternally valid rights or
self-evidence. The other side’s actions, by contrast, are capricious and irrational, based on
personal or cultural fl aws, and wrongheaded” (HERZFELD, 1992, p. 86).
5. Considerações finais
A análise de Boltanski (1993) da introdução da compaixão na política,
processo constitutivo da própria ideia de espaço público, revela que formas
de compadecimento diante de episódios de sofrimento desempenham pa-
pel central no estabelecimento de laços sociais e políticos. Precipitando-se
em “causas” pelas quais é moralmente imperativo mobilizar-se, a exibição
de experiências de sofrimento engendra a modulação de enunciados, a de-
limitação de grupos e a identificação, em processos variados, de “vítimas”,
“espectadores” e “agentes” implicados em episódios de sofrimento (BOL-
TANSKI, 1993, p. 95).
Casos de desaparecimento de pessoas comparecem em falas e relatos
de policiais, gestores governamentais e mães de desaparecidos como epi-
sódios causadores de sofrimento que exigem empatia, mobilização e com-
prometimento por parte de múltiplos atores sociais. Conforme revelam as
posições e reflexões registradas no presente trabalho, para inspetores do
SDP da DH do Rio de Janeiro e para membros diversos da ReDesap, casos
de desaparecimento permitem identificar “vítimas” e “agentes” de sofri-
mento, bem como “agentes” capazes de combatê-los. Contudo, policiais
e diferentes membros da ReDesap identificam de modo bastante distinto
64 Adriana Vianna
quem são essas “vítimas” e “agentes” do sofrimento específico causado
pelo desaparecimento de uma pessoa.
Distribuindo responsabilidades por meio de atos de fala, gestores go-
vernamentais diagnosticam o desaparecimento como fenômeno causado
pela “violência intrafamiliar” e passível de combate por “famílias” que,
apoiadas em redes de assistência social, protejam seus membros e evitem
suas fugas de casa. Para eles, a ausência de uma “família” que proteja seus
membros tem como consequência o desaparecimento de alguns deles. Já
para mães de desaparecidos, o desaparecimento deve ser encarado como
consequência da ausência de um “Estado” que disponibilize redes de as-
sistência social de qualidade e serviços policiais sensíveis e competentes
para prevenir e solucionar casos como os de seus fi lhos. Para policiais,
fi nalmente, o fenômeno é objeto de desconhecimento e, se recebe trata-
mento inadequado, isso se deve à ausência de saberes e meios materiais ne-
cessários à boa investigação dos casos no interior de repartições policiais.
Situado na interseção entre tantas ausências, portanto, o desaparecimento
comparece nas falas e reflexões desses atores como um problema social
constituído por vazio plural.
Sintetizando o que argumentei até aqui, o vazio que constrói o desapa-
recimento de pessoas não concerne simplesmente à falta do desaparecido em
meio àqueles que o procuram. Sem dúvida, essa ausência causa impactos
profundos em todos que venham a se envolver com um caso de desapareci-
mento. Entretanto, a análise aqui empreendida sugere que uma multiplici-
dade de outras ausências faz da falta da pessoa desaparecida a manifestação
particular de um problema social. A relação entre cada caso e o fenômeno
do desaparecimento, nesse sentido, não consiste simplesmente na dupla par-
te versus todo. Em vez disso, cada caso se torna parte do problema social
mais amplo por ser encarado como consequência de um conjunto maior de
ausências: a ausência de um “Estado” assistente, a ausência de uma “polí-
cia” sensível e competente e, ainda, a ausência de uma “família” protetora.
Buscando estabelecer limites rígidos de competências diante do desa-
parecimento, gestores governamentais, mães de pessoas desaparecidas que
se tornaram, também, membros de organizações não governamentais e
inspetores e delegados de polícia referem-se de forma recorrente a três uni-
dades delimitadas como “a polícia”, “as famílias” e “o Estado”. Essas uni-
dades são substancializadas no jogo enunciativo que tece o desaparecimen-
to como problema a ser combatido. Mais do que um fenômeno em função
do qual indivíduos desaparecem sem deixar vestígios, fazendo sofrer suas
“famílias” e demandando atenção da “polícia” e assistência do “Estado”,
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1. Introdução
Os adolescentes e jovens vivendo com HIV/Aids têm despontado como
figuras privilegiadas das ações mais recentes no campo da Aids. Apesar de
“jovens” infectados pelo vírus HIV não serem uma novidade na epidemia
(CRUZ, 2005), o que se tem configurado como “novo” é a emergência da
ideia de jovens e de uma juventude vivendo com HIV/Aids, a partir, so-
bretudo, do crescimento das crianças infectadas por transmissão vertical
(da mãe para o bebê), cuja promessa de vida esteve fortemente ameaçada
até o advento dos antirretrovirais de alta potência, o “coquetel”, surgido
em meados da década de 1990.46
A etnografia que embasa este trabalho47 revela a complexidade de ques-
tões em torno do surgimento da figura de jovens vivendo com HIV/Aids.
Como indicam as discussões baseadas nas observações de campo, não se
trata de compreender as “especificidades” de uma “juventude sobreviven-
te” afetada pela Aids, mas sim entender como esses sujeitos se constroem,
vão sendo gestados e gestam a si próprios, com base em determinadas
imagens, representações e linguagens consolidadas nesse mundo social. A
sexualidade é o locus privilegiado dessa gestão, uma vez que é percebida
48 O autor salienta que, apesar das disputas teóricas, “no senso comum jurídico, sujeito de
direito é o ser humano concreto, capaz de adquirir direitos subjetivos e contrair obrigações.
É uma categoria que abrange tanto seres humanos quanto pessoas jurídicas” (RIOS, 2003,
p. 100). Trata-se de uma categoria socialmente construída, tendo sua compreensão condicio-
nada à história.
49 Na pesquisa que subsidia este trabalho, percebe-se uma distinção entre os termos
“adolescente”/“adolescência” e “jovem”/“juventude”. Os primeiros estariam associados a
uma visão mais “problemática”, relacionada com a “idade” e seus “hormônios”. Os últimos,
por sua vez, estariam associados a uma visão mais positiva, de sujeitos propositivos, capazes
de tomar decisões acertadas e de agir com certa “independência”. Neste trabalho, privilegia-
rei a palavra “jovem” por ser aquela que predomina no universo do projeto estudado, ainda
que preserve os termos “adolescente”/“adolescência” nas expressões êmicas e nos trechos de
autores citados. Cabe dizer que o termo “soropositivo(a)” será utilizado ao longo do texto
como sinônimo de “pessoa vivendo com HIV/Aids”. Para um melhor entendimento dessas
nomenclaturas na história da epidemia, ver Valle (2002).
50 “[…] tecnologías del yo, que permiten a los individuos efectuar, por cuenta propia o con
la ayuda de otros, cierto número de operaciones sobre su cuerpo e su alma, pensamientos,
conducta, o cualquier forma de ser, obteniendo así una transformación de sí mismos con el
fi n de alcanzar cierto estado de felicidad, pureza, sabiduría o inmortalidad” (FOUCAULT,
2008, p. 48).
70 Adriana Vianna
posta expõe as vísceras de um processo tenso de cuidado e responsabiliza-
ção no qual os jovens soropositivos, entre “vítimas” e “algozes”, vão sendo
desenhados e projetam a si mesmos.
Dramas em cena
Como forma de trazer à tona a experiência dos jovens com a Aids, a ofi-
cina sobre o tema da “revelação do diagnóstico” consistiu na proposta de
criação de histórias reais ou imaginadas sobre essa temática e na posterior
encenação teatral de uma das histórias eleitas pelos jovens. Os jovens fo-
ram organizados em duplas e auxiliados pela coordenadora das oficinas,
que lhes propunha “casos típicos” de situações de revelação do diagnósti-
co, de modo que não precisassem, necessariamente, “falar de si mesmos”.
Cabe sinalizar que o grupo, predominantemente constituído por jovens
infectados por transmissão vertical e marcados por perdas em decorrência
da Aids, como a orfandade, apresentava uma particularidade. Parte dele
era composta por jovens de camadas populares, moradores de bairros de
baixa renda, inseridos em arranjos familiares diversos (netos vivendo com
avós ou tios, adotados por familiares ou não etc.), e outra parte era for-
mada por jovens moradores de uma casa de apoio52 voltada para crianças
“órfãs da Aids” ou de famílias em situação de pobreza.
Os jovens da casa de apoio, apesar da origem pobre (e do retorno a
ela com a saída da casa de apoio em razão da maioridade), parecem viver
durante determinado tempo de suas vidas em uma espécie de “bolha so-
cial”: estudam em escola particular, viajam com frequência, têm uma vida
cultural intensa, entre outros aspectos. A ideia de “bolha social” também
serve para representar as fortes restrições quanto ao trânsito dos jovens
fora da casa de apoio e desacompanhados de educadores. Esses elementos
impactam profundamente a forma como os jovens lidam com a Aids, con-
sigo mesmos e com os outros.
52 Para uma discussão sobre casas de apoio voltadas a crianças e jovens vivendo com HIV/
Aids, ver Cruz (2005).
72 Adriana Vianna
Retomando a oficina, após a criação das histórias, as duplas de jovens
deveriam relatá-las para todos os presentes e, em seguida, dramatizar uma
história de escolha do grupo. A primeira história, relatada por uma dupla
de rapazes, tinha como personagens “o pai e o fi lho”. O pai não revelou
para o filho que este era portador do HIV. Assim, o filho só foi informado
pelo pai sobre sua condição sorológica quando já jovem, após uma relação
sexual sem preservativo. O fato de a mãe do rapaz não ter realizado o pré-
-natal e o protocolo de prevenção da transmissão vertical estaria relacio-
nado com a transmissão do vírus da mãe para o filho. Nota-se que, após
descobrir ser soropositivo, o rapaz teria iniciado o tratamento. Segue o
modo pelo qual a dupla relatou a história:
o fi lho não sabia que tinha o vírus e transou, o pai não contou para ele.
Só depois que o menino nasceu que o pai soube [que ele e a esposa eram
portadores do HIV], a mãe não fez o pré-natal. Foi isso: rolou sem cami-
sinha, descobriu [o HIV] e começou a se tratar. (grifo nosso)
Jovem 1: Para o médico, é mais fácil dar o diagnóstico, o médico não tem
relação pai e fi lho, é o trabalho dele.
Jovem 4: [se foi infectado por] via sexual mais fácil é o médico [contar
sobre a soropositividade do jovem].
Jovem 5: Minha avó [com quem morava por conta da orfandade] nunca
me contou. Perguntava para ela e não me contou por ignorância: [pensa-
va] “ela [neta] vai morrer mesmo”. Não aceito, era para ter contado, senão
[eu] ia saber por boca de médico.
74 Adriana Vianna
Nas demais histórias do grupo, destacam-se aquelas produzidas pela
maior parte dos jovens da casa de apoio. Nessas histórias, o jovem se infec-
ta por via sexual (o oposto da experiência de todos: a transmissão vertical)
na ocasião de uma festa, em decorrência do uso de álcool e do descontrole
quanto às medidas preventivas. É frequente uma marca de gênero, uma vez
que quem se “descontrola” com o álcool é do sexo feminino.
A história escolhida pelo grupo para a dramatização é exemplar desse
tipo de narrativa. Trata-se de uma jovem que recebe a primeira permissão
dos pais para ir a uma festa. Nesse contexto, ela ingere bebida alcoólica,
relaciona-se sexualmente sem o preservativo e se infecta pelo HIV. A des-
coberta da condição sorológica se dá depois que a jovem se sente mal e
realiza o teste anti-HIV. Após a descoberta do diagnóstico, sem saber o
que fazer, ela conta o fato aos pais. Interessante perceber nesses enredos
que, após a relação sexual desprotegida, sentir-se diferente ou mal é o
sinal necessário à busca imediata pelo teste anti-HIV, com um recorrente
desfecho de vida normal ou de não deixar de ser uma pessoa normal,
apesar da infecção pelo HIV e do decorrente tratamento da Aids. Vale
destacar a construção da narrativa pela dupla de jovens: “Clara foi a uma
festa, a primeira permitida pelos pais, bebeu, dormiu junto, sentiu-se mal
e fez o teste [anti-HIV], deu positivo e não sabia o que fazer e contou para
os pais” (grifo nosso).
Na dramatização dessa história, um personagem médico foi criado
para mediar a situação de revelação do diagnóstico de Clara aos pais. O
médico foi dramatizado por Camila, jovem órfã, adotada pelos tios depois
de viver a infância com a avó, que omitia a doença à neta. Clara, a per-
sonagem principal, foi protagonizada pela coordenadora das oficinas do
projeto. Os personagens do pai e da amiga (Fernanda), que promoveu a
festa, foram desempenhados por um rapaz e uma moça da casa de apoio.
E o papel de mãe foi representado pela psicóloga da ONG-Aids. Vale dizer
que tais cenas foram feitas em sequência, de improviso, sem roteiro ou
ensaios, com base na história destacada construída pela dupla de jovens.
Segue a dramatização:
Médico: [com a mão no queixo, diz]: Tenho uma fi lha da sua idade…
O médico: Tudo bom, mocinha? Não tenho uma notícia muito boa. Você
está com o vírus [HIV]. Você não tem Aids. Se você se cuidar, não vai
te deixar na cama… [mas se você não se cuidar] a Aids praticamente te
mata.
Clara [repetidas vezes, pergunta]: Mas qual a diferença [entre estar com
o vírus HIV e ter Aids]?
Médico [dirigindo-se a Fernanda, a amiga]: Você contou pra mãe dela [de
Clara] que ia ter bebida na festa?
Médico [dirigindo-se à amiga]: Poderia ser você [ter transado sem o pre-
servativo e se infectado].
76 Adriana Vianna
Médico: Sua fi lha andou cansada… Você deixou ela ir para a festinha,
cada um tem uma reação… Sua fi lha está com uma doencinha, ela pegou
Aids, HIV. É só ela se cuidar!
Mãe [grita para o pai, estupefato]: Ela está com o vírus da Aids!
Fim de cena.
54 Sigo aqui as proposições de Becker (1977) sobre desvio. Para o autor, o desvio não é algo
que exista no próprio comportamento, mas decorre da interação entre a pessoa que comete
um ato e aqueles que reagem a ela.
55 Sobre esse conceito, ver Camargo Jr. (2005) e Luz (2007).
Jovem 1: Ele [o médico] tem obrigação [de contar], se ela [Clara] é de me-
nor. Se fica doente, a culpa é dos pais.
Jovem 4: Ele [jovem que infectou Clara] podia não saber que tinha o HIV.
56 Refi ro-me aqui à Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) e ao Estatuto da
Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
78 Adriana Vianna
Coordenadora das oficinas: O médico conta [para os pais sobre a
soropositividade do adolescente] quando minha vida está em risco, 57
ele [o médico] poderia ter perguntado ao adolescente: tem alguém [em]
que[m] você confia [para trazer à consulta]?
Se nasceu [com o HIV], mais fácil se conformar, [se infectar por via] se-
xual é mais difícil… nunca tomou remédio… pegou Aids, tem que tomar
remédio, chatéssimo! Uma pessoa que nunca tomou [os remédios] e come-
ça a tomar, chatão… [lidar com os] sintomas… de uma hora para outra
descobrir que pegou. Se pegasse [o HIV] agora ia me sentir mal. (Camila,
15 anos, transmissão vertical)
Oitenta por cento dos casos das pessoas que sabem mais tarde têm uma
reação e se mata… É mais fácil uma pessoa que nasceu cega do que aquela
que já enxergava. Tem muito do costume. Eu nunca tomei remédio pra
nada. [Ter de tomar] três comprimidos todos os dias… A pessoa que nas-
ceu [com o vírus] tomava [remédio] na mãozinha da mamãe. (Ricardo, 19
anos, transmissão sexual)
80 Adriana Vianna
Observa-se ainda nas dramatizações e relatos apresentados a presença
de tecnologias de reforma do sujeito calcadas na emoção, que se afigura
como meio de expressão e veículo privilegiado de comunicação da expe-
riência de viver com Aids na juventude. Com base nessas mesmas tecno-
logias, estruturou-se a atividade subsequente de “troca de papéis”, que
envolveu jovens e profissionais de saúde. Descrevo a seguir essa atividade.
Invertendo os papéis
Para a participação das ações de capacitação do projeto social, foram ins-
critos 36 profissionais, a maioria mulheres, com o seguinte perfil: 11 en-
fermeiras, 1 técnica de enfermagem, 9 psicólogas, 2 médicas (1 pediatra e
1 infectologista), 1 estudante de medicina, 1 bióloga, 1 ativista de ONG-
-Aids, 1 pedagoga, 4 assistentes sociais (3 cursando pós-graduação) e 1
assistente administrativo. No entanto, apenas 11 profissionais permanece-
ram até o fi nal das ações do projeto, que ofereceu encontros de capacita-
ção mensais durante um ano.58
O grupo de jovens incluídos no projeto somava um total de 20 partici-
pantes, 10 vinculados ao serviço de saúde do Ministério da Saúde (hospi-
tal) e 10 vinculados à ONG-Aids. Todavia, apenas três jovens, os poucos
que frequentavam as oficinas nos dois espaços (ONG-Aids e hospital), se
dispuseram a participar da atividade aqui analisada. Cabe dizer que os
jovens da casa de apoio dependiam da autorização e da companhia dos
educadores da instituição, o que dificultava sua presença nessa atividade
“extra”, pois esta era realizada fora do dia e horário habituais do projeto.
Por sua vez, os jovens ligados ao hospital estavam distantes em termos de
localização da ONG-Aids, onde a atividade foi realizada, o que foi um
empecilho à sua participação.
Quanto ao perfil dos três jovens envolvidos na atividade, todos eram
maiores de idade, sendo dois deles irmãos, Paulo e Rita, de 18 e 20 anos,
respectivamente. Esses irmãos, órfãos e infectados por transmissão vertical,
eram egressos da casa de apoio, cursando os últimos anos do ensino médio.
82 Adriana Vianna
única cena, de forma espontânea, desconhecendo previamente o enredo das
histórias e os personagens que seriam protagonizados pelos profissionais.
A primeira dramatização era sobre o tema “revelação do diagnóstico”.
Tratava-se de um casal que, acompanhado da fi lha, buscava auxílio de
um médico para lidar com o fato de a filha ter menstruado, entrando na
adolescência. Estava subentendida a possibilidade de a filha soropositiva
exercer a sexualidade, mesmo que esse tema não tenha sido mencionado
nas falas dos pais da jovem. Essa possibilidade se fazia sentir pela urgência
e afl ição, demonstradas pelos pais, quanto à revelação do diagnóstico para
a fi lha.
Na maior parte da dramatização, o pai e a mãe trocaram ferozes acu-
sações, em uma busca de culpados e responsáveis pela infecção do HIV
no seio da família. A mãe culpava o pai por tê-la infectado, por via sexual,
e ela, por sua vez, era acusada pelo pai de ter infectado a filha, por trans-
missão vertical. O confl ito era testemunhado pelo médico, protagonizado
pelo jovem João, que desde o início da “consulta” mostrou-se indiferente à
demanda do casal, por meio do silêncio e de uma postura de impaciência,
pouca disponibilidade e pressa.
No momento em que os pais pararam de discutir, como se aguardas-
sem um retorno do médico, este os encaminhou, sem mais explicações, ao
DIP (ambulatório de doenças infectoparasitárias). Os pais, atônitos com a
resposta do médico, recomeçaram a discussão, sinalizando total descon-
certo quanto ao manejo da puberdade da fi lha em meio à Aids. Logo em
seguida, o médico se levantou e saiu do consultório, benzendo-se com o
sinal da cruz no peito, deixando os pais falando sozinhos.
Nota-se que, apesar de algumas tentativas, a filha do casal, protago-
nizada por uma profissional de saúde, pouco conseguiu se manifestar,
restando-lhe um papel infantilizado e secundário na trama. É interessante
perceber a retórica de “desconhecimento” do diagnóstico por parte da jo-
vem, quando esta esteve presente o tempo todo na cena, demonstrando por
meio de poucos gestos e meias-palavras estar a par de sua situação.
Por fi m, João afi rmou a todos os presentes sua intenção de compor um
personagem frio, impaciente e descomprometido com a situação trazida
pelos pais da jovem. Buscava marcar a desigualdade de poder na relação
médico-paciente, reproduzindo o que ele próprio teria vivido.
O jovem descobriu ser portador do HIV ao doar sangue no hospital onde
atualmente se trata. Fora esse contexto, não teria descoberto sua condição
sorológica, pois não se percebia como “vulnerável” ao HIV. Por tudo isso, o
84 Adriana Vianna
tou que, ao acompanhar a amiga em uma das consultas, teria escutado da
médica que as assistia a seguinte declaração: “Vou [a amiga] te deixar de
lado porque você não tem mais jeito… ela [Rita] correndo atrás de remédio
[com as possibilidades terapêuticas esgotadas] e você desperdiçando: [não
vou] aturar adolescente queimando remédio à toa!”
Ao fi nal dessa cena, uma das profissionais de saúde participantes da
atividade exclamou: “Tá vendo o que a gente faz? Chama de ‘aborrecente’
e eles se sentem assim.”
***
86 Adriana Vianna
Segundo a jovem, na casa de apoio o diagnóstico de soropositividade
não assumia o caráter de um momento específico de “revelação”, sendo
maioria menor, vai explicando devagarinho, em reuniões. Isto é, como um
espaço que “respira Aids”, as crianças vão sendo introduzidas no tema e
em sua condição sorológica desde muito pequenas.
Rita rememorou a longa estada na casa de apoio, para ela um sonho
que virou pesadelo, em referência à saída da instituição e à volta às con-
dições de vida anteriores. Tais lembranças conduziram os pensamentos da
jovem aos pontos críticos na lida com a doença, a exemplo de uma interna-
ção prolongada e sofrida por causa de uma tuberculose que quase a levou à
morte. Ao fi nal desse relato, a jovem chorou, e com ela vários profissionais
de saúde ali presentes.
Nesse momento, os profissionais se entreolhavam, como se reconheces-
sem por meio da cumplicidade de olhares que teriam ido “longe demais”
no diálogo com os jovens. O silêncio que se seguiu foi interrompido por
uma profissional de saúde que falou com um tom conclusivo: lidar com
HIV ainda é um mito!
É importante perceber nesse ponto da atividade o quanto a emoção
atenuou a distância “médico-paciente” em termos de suas posições sociais.
Um clima de “grupo de ajuda mútua” parecia englobar a todos em um
mesmo plano. Nesse contexto, os profissionais entusiasticamente começa-
ram a lançar depoimentos pessoais, por exemplo, sobre a experiência de
viver com uma doença crônica, que, “ainda que não fosse a Aids”, trazia
a dificuldade de tomar remédio todos os dias. Ou, ainda, teceram consi-
derações no sentido de baixar o grau de exigência em relação à aderência
ao tratamento: a recaída também faz parte do tratamento, recair faz parte
do recomeçar.
E, nesse movimento de “igualar as dores” e “minimizar” o poder da
ciência, da biomedicina e dos médicos, alguns profissionais faziam menção
aos remédios alternativos,63 que, em certo sentido, poderiam até substituir
os antirretrovirais: “Comer inhame levanta o sistema imunológico! Mas,
cuidado, três vezes por semana corta o efeito do coquetel!” Nessa caco-
fonia, os antirretrovirais eram personificados: “A gente fala mal do Kale-
tra!” E tema de brincadeira: “Um paciente me diz: ‘Não tomo T20… eu
tomo todas!’ [expressão popular em relação às bebidas alcoólicas].”
Jovem (Paulo) pergunta para a Profi ssional de Saúde 1: Você quer ter
fi lho? Por que não usar [o preservativo]?
Profi ssional de saúde 1: Porque eu sou igual às mulheres aqui, e você acha
que não vai ser traída.
Jovem (João): Alguém que fale para o paciente: “use camisinha” e não
usa… porque a questão não é ética, é da cabeça da pessoa.
88 Adriana Vianna
Profi ssional de saúde 3: Negociar [o preservativo] é muito difícil, infor-
mação não muda atitude.
Profi ssional de saúde 4: Eu tenho certeza [de] que a maioria dos profissio-
nais de saúde não usam [preservativo] e não assumem…
65 Para mais informações sobre os direitos dos adolescentes e jovens no âmbito da saúde,
ver Brasil (2005).
90 Adriana Vianna
inocentes” de pais percebidos como descuidados, os infectados por trans-
missão sexual são compreendidos como “culpados”, “displicentes” no cui-
dado de si, pela não prevenção e uso do preservativo.
As noções de “vítimas” e “culpados” remetem às representações do
início da epidemia. A Aids foi vinculada a grupos específicos, inicialmente
atingidos: homossexuais e bissexuais masculinos, os hemofílicos e demais
pessoas que receberam sangue e hemoderivados e usuários de drogas in-
jetáveis (cf. CAMARGO JR., 1994; CZERESNIA, 1997). Os hemofíli-
cos e demais pessoas que receberam sangue e hemoderivados foram tidos
como “vítimas”, seja do desconhecimento da doença – por exemplo, de sua
transmissão pelo sangue – ou mesmo da negligência de alguns bancos de
sangue que não realizavam o teste anti-HIV. Nos demais casos, a ideia de
que o indivíduo “procurou” a doença atribuiria a infecção a seu compor-
tamento “errado”, sendo ele próprio, portanto, o único “culpado”.
Vale ressaltar a permanência da ideia de “comportamento de ris-
co”, apesar da abertura conceitual e da prática proposta pela noção de
“vulnerabilidade”,66 calcada no ideário dos direitos humanos. A ênfase no
comportamento individual acaba por restringir a infecção pelo HIV à ado-
ção ou não de medidas preventivas por parte de indivíduos. A noção de um
indivíduo racional capaz de fazer escolhas acertadas e “saudáveis”, com
base na aquisição de “informações”, sustenta esse tipo de compreensão.
As contradições relativas aos jovens soropositivos como sujeitos de di-
reitos especiais aparecem nas descrições das cenas teatrais e nos discursos
dos jovens e profissionais de saúde vinculados ao projeto. Tais profissio-
nais, não obstante a familiaridade com os princípios legais do ECA,67 reco-
nhecem na assistência aos adolescentes soropositivos pobres uma lacuna
entre teoria e prática, quando os sujeitos de quem cuidam devem ser pro-
92 Adriana Vianna
não totalmente capazes de “proteger os outros”, notadamente da infecção
pelo HIV, o que traria um ônus à sua própria “proteção”.
Quando se percebe um coletivo ameaçado pela possibilidade de dissemi-
nação do vírus, como garantir “o melhor interesse do adolescente”? Como
conciliar a tolerância à irresponsabilidade parcial da idade com a noção que
prega que sejam os jovens soropositivos, antes de tudo, responsáveis?
Se os jovens devem, como condição de seu “bem-estar”, exercer a se-
xualidade, sendo a “saúde sexual” algo a ser garantido no escopo dos
direitos, como fica o caso dos jovens soropositivos, por tudo o que foi dito
até aqui, diante da máxima que reza que os jovens devem “assumir sua
sexualidade de modo positivo e responsável”?
Tal “embaraço”, revelado quando da junção Aids, adolescência, juven-
tude e sexualidade, se expressa por uma linguagem cifrada, partilhada por
todos os atores sociais do campo investigado. Esse “embaraço” parece ser
“resolvido”, por um lado, reforçando-se a “menoridade”, o que significa
enfatizar uma posição subalterna dos jovens em relação aos indivíduos
“adultos”, em uma constante avaliação negativa dos primeiros em relação
aos atributos dos últimos. Por outro lado, intensificando-se o controle de
si, que deve traduzir-se na exemplaridade do “cuidado de si e do outro”.
Trata-se da conversão dos sujeitos em seus maiores e melhores “gover-
nantes de si”, por meio de pedagogias de reforma moral, e, na medida em
que os jovens passam a se enxergar e a ser vistos a partir desse lugar de
“protetores” de si e do outro, que eles podem ocupar o lugar de protago-
nistas. O estímulo ao protagonismo do jovem pode ser parte fundamental
do jogo de responsabilização ilustrado nas cenas etnografadas, sendo uma
forma de condução dócil desses sujeitos, partindo da ideia de “defesa de
seus próprios interesses”.
Referências
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Legislação
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA/1990). Brasília: Presidência da República, 1990.
Laura Lowenkron 69
98 Adriana Vianna
em razão do caráter “naturalmente” assimétrico dessas interações e da
condição especial desses sujeitos, considerados (ainda) irresponsáveis para
consentir livremente em relações sexuais e mais vulneráveis à “violência”
e a outros “riscos”.
Vale destacar que, na medida em que crianças e adolescentes são reco-
nhecidos como “sujeitos de direitos”, o fundamento utilizado para legiti-
mar a proibição (no caso de menores de 14 anos)74 e a restrição (entre 14
e 18 anos)75 da atividade sexual envolvendo menores de idade não é a re-
pressão da sexualidade – o que iria de encontro ao ideal de “liberdade” dos
direitos humanos –, mas a garantia dos direitos de crianças e adolescentes
à “proteção integral” e ao “desenvolvimento sexual saudável”.
Portanto, embora procure emancipar as discussões políticas sobre se-
xualidade tanto das premissas religiosas (que separam o sexo em moral
e imoral) quanto dos modelos médicos (que dividem o sexo em normal e
patológico), a ordem sexual que emerge no fi nal do século XX, pautada
pelos princípios dos direitos humanos, reorganiza as hierarquias e estabe-
lece novas fronteiras entre sujeitos e comportamentos sexuais.76
Para que fosse possível construir a sexualidade como um valor e, as-
sim, um “direito”, foi preciso criar os “inimigos” da “boa sexualidade”,
de modo que essa nova ordem sexual também produziu seus próprios re-
síduos: os “irresponsáveis”, que não tomam o cuidado devido (consigo e
com os outros), e, no limite mais extremo e monstruoso, os “pedófi los” ou
“abusadores” de crianças, que desrespeitam os três critérios – “responsabi-
lidade”, “consentimento” e “igualdade” – que defi nem o sexo livre, seguro
e legítimo, de acordo com o paradigma dos direitos humanos. É nesse qua-
77 Vale destacar que os debates em torno da “violência sexual contra crianças” são entre-
meados por um léxico amplo e variado – como “abuso sexual infantil”, “exploração sexual
de crianças e adolescentes” e “pedofi lia” –, e os próprios termos fazem parte das disputas
políticas. A construção e o sentido dos diferentes termos e esse universo de embate categórico
foram objeto de análise de outro texto (cf. LOWENKRON, 2010).
78 Art. 227 da CF/1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profi ssionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimina-
ção, exploração, violência, crueldade e opressão.”
79 O primeiro Congresso Mundial aconteceu em Estocolmo, na Suécia, em 1996, o segundo
foi realizado em 2001, em Yokohama, no Japão, e o terceiro, no Rio de Janeiro, no Brasil,
em 2008.
investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das
respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em con-
junto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apura-
ção de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas
ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”
83 Ao longo dos trabalhos da CPI da Pedofi lia, outras modalidades de crimes sexuais contra
crianças foram sendo incorporadas a seus debates, conforme casos de “abuso” e “exploração
sexual” de menores eram denunciados na imprensa e/ou tinham alguma repercussão pública
especial. No entanto, vou me concentrar na análise do combate à pornografi a infantil na
internet, que é o principal objeto dessa comissão.
84 A “pedofi lia” não é, originalmente, uma categoria jurídica, mas uma categoria diagnós-
tica da psiquiatria, que se refere menos aos desvios do comportamento do que aos desejos e
fantasias sexuais. De acordo com o DSM-IV-TR (Diagnostic and Statistical Manual of Men-
tal Desorders, da Associação Americana de Psiquiatria), a “pedofi lia” é uma modalidade de
“parafi lia” caracterizada pelo foco do interesse sexual em crianças pré-púberes (geralmente,
com 13 anos ou menos) por parte de indivíduos com 16 anos ou mais e que sejam ao menos
cinco anos mais velhos que a criança, ao longo de um período mínimo de seis meses. O diag-
nóstico de pedofi lia pode ser feito, segundo o manual, se a pessoa realizou esses desejos ou se
os desejos ou fantasias sexuais causaram acentuado sofrimento ou difi culdades interpessoais.
Nos discursos dos senadores, a “pedofi lia” é defi nida como um “cri-
me”, uma “tara”, um “vício” e uma “chaga”, e os “pedófilos”, como “cri-
minosos desgraçados”, “compulsivos”, “insaciáveis” e “monstros”. Na
matemática do presidente da CPI, senador Magno Malta: “para mim, a
pedofi lia é 5% de doença e 95% de safadeza”. Nos termos do senador
Romeu Tuma, os pedófi los são “monstros, eu não poderia dizer que são
animais, porque o animal respeita, mas são verdadeiros monstros que não
podem conviver em sociedade”; “são verdadeiros monstros que não têm
uma formação digna e eu acho que viraram as costas para Deus”; “é uma
coisa terrível, que é antagônica à condição de ser humano”.
O primeiro objetivo da CPI da Pedofi lia era revelar essa “monstruo-
sidade” para a sociedade brasileira, transformando-se em uma espécie de
vitrine do horror: “essa CPI, entre outros papéis, cumprirá o papel de se
transformar numa grande vitrine para constranger, de fato, para sobre-
tudo constranger, para inibir, para constranger e, futuramente, para pu-
85 Segundo Vigarello (1998, p. 239), “o temor durante muito tempo focalizado no inimigo
público se desloca para o homem comum, o vizinho de quem se deve desconfiar”. Justamente
por se parecer conosco de maneira inquietante, o “pedófi lo” se torna uma ameaça permanente.
86 É importante destacar que, mesmo quando outros órgãos de imprensa não comparecem
às sessões das CPIs, estas contam, ao menos, com a cobertura da TV Senado e da Agência de
Notícias do Senado, que, por sua vez, serve de fonte para outros veículos.
Isso está muito próximo do que a gente chama de “confl ito de princípios”.
A gente tem o princípio da intimidade, da privacidade, mas, ao mesmo
tempo, você tem o princípio de proteção de uma criança que está sendo
violada. […] Mas um princípio pode se sobrepor, até certo ponto, em
relação ao outro, [sic] quando se entende que para aquele caso ele é mais
relevante.
87 Outros projetos de lei, que ainda estão tramitando no Congresso Nacional, foram apre-
sentados pela CPI da Pedofi lia, com propostas de outras alterações no ECA, no Código Penal
e no Estatuto do Estrangeiro. Por questões de espaço e de foco, não tratarei desses outros
projetos neste texto.
Sei que são empresas e elas concorrem, são concorrentes entre si, e acho
que quando o Brasil se levanta na defesa dos seus fi lhos, principalmente
das suas crianças hoje, há um levante da sociedade, ganhará com a socie-
dade a empresa que mais tiver à disposição da família e perderá aquela
que estiver mais à disposição do criminoso, ou seja, de proteger quem co-
mete crime na internet principalmente nesse viés familiar. (Magno Malta
em audiência pública da CPI da Pedofi lia)
88 Durante os dois anos de litígio, o MPF/SP chegou a aplicar multa à Google por dia de
atraso em responder às ordens judiciais.
90 Nas palavras do presidente da CPI da Pedofi lia: “O que a família precisa aprender? Pri-
meiro, quem é o pedófi lo. […] É alguém acima de qualquer suspeita. Ele não é truculento, ele
é uma pessoa amável, fácil de fazer amizade. De cada dez casos, seis têm pai no meio. Pode
ser um tio, pode ser o próprio avô da criança, pode ser o melhor empregado, pode ser aquele
sujeito que leva as crianças para a escola […]. Como eles agem? Eles não são truculentos.
O estuprador é truculento. […] O pedófi lo não; o pedófi lo é amável, um conquistador […].
É alguém que gosta de presentear, de andar com a criança no colo, se prontifica sempre a
tomar conta dos seus fi lhos. O modus operandis deles é sigiloso. Eles operam, conquistam,
oferecem, trocam a emoção, a confi ança da criança por um brinquedo, por um doce, por um
lanche, por um tênis. Depois, bolinam a criança, manipulam a criança; depois, levam para o
abuso defi nitivo. E aí impõem o império do medo sobre a cabeça da criança. E o império do
medo é sempre assim: ‘Olha, é um segredinho nosso. Ninguém pode saber, nem seu pai nem
sua mãe. Se alguém ficar sabendo, pode acontecer uma coisa ruim.’ E a criança, debaixo do
império do medo, começa a sinalizar. E mãe e pai precisam aprender, perceber uma criança
abusada. Uma criança abusada dá sinais, […] volta a fazer xixi na cama […], cai em rendi-
mento na escola; […] come compulsivamente […] ou para de comer; fica depressiva; […] tem
pesadelo, grita dormindo; reclama de dor nas pernas; ou fi ca malcriada, mal-humorada. […]
Mas a quarta coisa mais importante é imunizar uma criança. […] Como imunizar a criança?
É preciso quebrar os tabus. É pegar a criança, na hora do banho – a mãe, pai não – e dizer
assim: ‘Meu fi lho, isto aqui é seu órgão…’ Criança não entende o que é órgão genital. Mas
falar assim: ‘Meu fi lho, isto aqui é seu piu-piu’… ‘Isto aqui, minha fi lha, é sua perereca. Aqui
é seu bumbum.’ É assim que tem que fazer: ‘Isto aqui, Papai do Céu deu para fazer xixi. Nin-
guém pode tocar, ninguém pode botar a boca aqui, ninguém pode colocar o dedo, ninguém
pode. Carinho em criança, meu fi lho, faz no rosto, faz na mão, faz na testa. Quem põe a mão
aqui não gosta de você, não gosta de papai, não gosta de mamãe. Ele quer ver você triste, ele
quer ficar alegre e deixar você triste. Você vai crescer um homem triste, você vai crescer uma
mulher triste, você vai chorar de noite, vai ter pesadelo. Meu fi lho, se alguém fi zer isso, você
corre, você grita.’ […] E aproveita e pergunta logo se alguém já não fez. É preciso imunizar,
com informação, os nossos fi lhos, porque o abuso acontece em todos os lugares” (Magno
Malta, pronunciamento no Plenário do Senado Federal, 13 ago. 2009).
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em: 18 fev. 2010.
92 Este texto está marcado pela seguinte padronização de grafi as: itálico para expressões
conceituais; aspas para categorias e transcrições de atores e autores referidos; e sublinhado
para destaque.
93 Mestre e doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/MN/UFRJ.
94 Projeto de Lei n. 1.057, de 2007: “Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas
à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras
sociedades ditas não tradicionais.”
95 Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a Funai nada faz
para impedir o infanticídio (Veja, edição 2.021, p. 104-106, 15 ago. 2007).
niões etc.), nos permitiu perceber a existência de duas ordens de análise.
A primeira, referida às tipologias de gêneros narrativos próprias a cada
um dos textos, ou, segundo Boltanski (1993), as estratégias que garantem
a eficácia na produção do “sofrimento a distância” – identificações entre
pessoas e situações narradas, que não são diretamente relacionadas (BOL-
TANSKI, 1993, p. 95), e que parecem conduzir o objetivo dos textos anali-
sados neste capítulo. E a segunda torna-se evidente na contraposição entre
os domínios impresso e online, realizada na análise das revistas. Essa con-
traposição permite iluminar as estratégias narrativas quando as condições
de leitura e acesso (por exemplo, se a leitura do veículo é exclusivamente
paga ou se há possibilidade de lê-la gratuitamente; se é necessário identi-
ficar-se para publicar um comentário ou se é permitido o anonimato) são
modificadas. Essa distinção será, mais à frente, detidamente trabalhada.
Por meio dessas ordens de análise, propus-me identificar e analisar os
elementos que corroboraram as significações da prática infanticida entre
os grupos indígenas. Para tanto, coloquei-me, a cada texto jornalístico
analisado, os seguintes objetivos: a) identificar as categorias recorridas e os
significados a elas associados; b) localizar os contextos em que o infanticí-
dio é associado a práticas étnicas; c) identificar quais são os responsáveis e
as vítimas apontados; d) identificar quando e de que modo o infanticídio e
o infanticídio indígena são aceitáveis ou condenáveis; e, e) quando conde-
náveis, quais são as soluções apontadas por nossos interlocutores.
Pretende-se que essa investigação possa iluminar como, em alguns dos
domínios discursivos da mídia brasileira, deu-se a circulação de sentidos
e de localidades verificada em relação às práticas infanticidas. O interes-
se nesse tipo de proposta é compreender não apenas como determinadas
produções sociais foram circundadas por sentidos pré-moldados ou como
nelas atuaram sujeitos recorrentes, mas também os modos pelos quais,
por meio de um conjunto de casos reiteradamente narrados, constituem-se
em um problema social com agenda de demandas próprias e para o qual
soluções são exigidas.96
99 A Veja online, pela recorrência de postagens sobre o tema, será analisada em continui-
dade com as notícias publicadas na revista Veja impressa. Não foram localizadas quaisquer
postagens na Época online.
100 Todas as passagens marcadas entre aspas nesse tópico foram extraídas da matéria publi-
cada na revista Veja, edição 2.021, p. 104-106, 15 ago. 2007.
101 As grafi as dos nomes indígenas seguirão as utilizadas pelo Instituto Socioambiental
(ISA) (<http://pib.socioambiental.org/pt>). Nos casos de transcrição das matérias, serão man-
tidas as grafi as utilizadas pelos redatores.
102 Para uma análise detida dos contextos em que se inscreve a gênese da ação salvacionista
na tradição indigenista, ver Lima (1987, p. 161). Com outro objetivo, Vianna (2005) também
sugere uma interessante linha de compreensão desse fenômeno, ao analisar os elementos sig-
nificativos nas narrativas míticas de elaboração de fi liações nos casos de guarda e adoção de
crianças no período de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Para esse
caso, ela indica a “cena de salvação” como um de seus elementos operantes (VIANNA, 2005,
p. 39-40).
103 Nome posteriormente associado ao projeto de lei do deputado Henrique Afonso (PT-
-AC), apresentado em 2007.
104 Não foram citadas quaisquer fontes precisas de onde os dados foram extraídos, como
relatórios, anais, sites etc.
105 Um caso exemplar é a postagem de 11 de agosto de 2007, na qual os dados veiculados
Eis aí. Vocês já me conhecem o bastante para saber que não sou tipo que
acredita que todas as culturas se igualam. Eu, de fato, defendo a superio-
ridade da nossa, a ocidental e cristã. De que superioridade falo? Aquela
traduzida no reconhecimento dos direitos individuais e da inviolabilidade
pela Veja impressa são literalmente transcritos: “Treze etnias ainda eliminam as crianças que
apresentam alguma deficiência. Segundo levantamento da Fundação Nacional de Saúde, só
os ianomâmis mataram, entre 2004 e 2006, um total de 201 crianças. O que dizer desses
‘especialistas’ que se calam diante da morte? Seu relativismo cultural os torna cúmplices de
homicídio” (sábado, 11 ago. 2007, 05:32).
106 Para as implicações da análise de situações sociais com três elementos, ver Simmel (1964).
107 Para uma análise da relação entre relativismo, moral e antropologia, ver Diniz (2001,
p. 32-33).
108 “Se estes índios estivessem internados na floresta, sem qualquer forma de contato com
a nossa civilização, não seria um caso de condescendência dos ‘brancos’, mas de ignorância.
Estando, no entanto, ao abrigo das leis que regem o Estado brasileiro (e eles estão), fazer
vistas grossas diante do crime ou, pior, criar obstáculos a que se o impeça constitui, a um
só tempo, ato imoral e também criminoso. É o momento em que o relativismo cultural se
torna homicida. São menos os índios a matar aquelas crianças do que os ‘brancos’ dispostos
a condescender com aqueles hábitos” (sábado, 11 ago. 2007, 20:53).
109 “Tenho tratado aqui do relativismo cultural. Com frequência, ele flerta com as práticas
as mais estúpidas sob a desculpa de que é preciso respeitar as diferenças culturais” (sexta-
-feira, 17 abr. 2009, 04:43).
110 “E que diabo de ONG é essa tal Secoya? Fui procurar: ‘Serviço e Cooperação com o
Povo Yanomami’. Em sua página eletrônica, ao apresentar os índios, o texto começa com a
seguinte pérola: ‘Os Yanomami representam uma das etnias que mais recentemente manteve
[sic] contato com a sociedade envolvente.’ Em que língua essa porcaria é escrita? Português é
que não é. Gente que escreve assim merece chicote” (sexta-feira, 17 abr. 2009, 04:43).
“A Declaração dos Povos Indígenas, adotada pela maior ONG do mundo – corrupta, diga-
-se, como quase todas – tem 46 artigos (íntegra em: <http://www.cimi.org.br/pub/publicaco-
es/1191526307_Encarte299.pdf>). É ela que fundamenta a militância das ONGs e da Funai.
(quinta-feira, 18 abr. 2008, 17:57).
“É mesmo o conjunto dos índios que quer a saída ou só aqueles já devidamente instruídos
por ONGs e outras entidades que sonham com comunidades indígenas vivendo em completo
isolamento – o que, ali, de resto, é impossível? Estamos falando de índios já aculturados, que
convivem há muito tempo com a nossa, vá lá, civilização. Alguns antropólogos da Funai que
justificam até infanticídio em nome da diversidade cultural devem estar contentes” (quarta-
-feira, 9 abr. 2008, 06:21).
111 Todas as citações entre aspas neste tópico são dessa referência, salvo quando houver a
indicação explícita de outra referência.
113 Todas as citações neste tópico são dessa matéria, salvo quando houver outra indicação.
“Se eu levá-la para a casa dos Zuruahã e ela não andar, vou ter de dar veneno pra ela. O meu
coração não está nem pensando em voltar para os Zuruahã por causa da minha fi lha. Eu fi-
caria muito tempo com os brancos para ela melhorar.” O programa cita ainda que oito índios
foram levados pelos missionários a um sítio em São Paulo (“Fantástico”, 18 set. 2005. Dispo-
nível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL695084-15605,00.html>.)
117 Disponível em: <http://www.survivalinternational.org/informacao/hakani>.
118 Esta formada, sobretudo, pelo incentivo a reuniões para divulgação do material publici-
tário disponível no site <http://www.hakani.org>.
119 Os dados são tanto apresentados de modo genérico e impreciso (“números alarmantes”,
“centenas de casos”) quanto posicionados em dados censitários (“Com base no Censo Demo-
gráfico de 2000, pesquisadores do IBGE constataram que, para cada mil crianças indígenas
nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto, no mesmo pe-
ríodo, a população não indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada
mil. A taxa de mortalidade infantil entre índios e não índios registrou diferença de 124%. O
Ministério da Saúde informou, também em 2000, que a mortalidade infantil indígena che-
gou a 74,6 mortes nos primeiros 12 meses de vida. Curiosamente, nas notícias do IBGE e do
Ministério da Saúde não há qualquer explicação da causa mortis”). Todo o contexto social
de expropriações, insuficiências de recursos médicos, sanitários e alimentares, em que vive
parcela significativa da população indígena brasileira, é pela ONG Atini desconsiderado sob
o argumento de que não há qualquer explicação.
4. Do particular ao coletivo
Ao longo dos tópicos anteriores, vimos como os casos citados nas posta-
gens da Veja online espelham as matérias da Veja impressa, que, por sua
vez, tem argumentos e caso principal (que fundamentam a identificação da
vítima, agressor e da denúncia) diretamente associados a Márcia Suzuki
(fundadora da ONG Atini) e a Hakani, criança Zuruahã por ela adota-
da. A construção narrativa da Veja impressa assemelha-se igualmente ao
caminho proposto pela Atini, ou seja, apresentação de casos particulares;
generalização da prática aos índios brasileiros (em um domínio difuso,
sempre indicado por “mais de…”, “já são conhecidos… casos”); e, por fi m,
denúncia de violação dos direitos humanos, materializada pela identifica-
ção das situações de ameaça sofridas pelas crianças.
As matérias destacadas da Folha de S. Paulo e da revista IstoÉ ten-
tam dinamizar suas abordagens ao introduzir, no primeiro caso, diferentes
pontos de vista, e ao indicar, no segundo, que os costumes são passiveis de
transformação. No entanto, o quadro a seguir recupera sucintamente os
atores e as ações referidos pelos textos jornalísticos analisados e permite
perceber, apesar das variações na composição dos argumentos, o núcleo
duro das matérias analisadas, o qual remete a dois eixos comuns: a vitima-
ção das crianças e a ameaça da tradição cultural.
Veículo de
comunicação Vítima Denunciador Agressor Denúncia*
analisado
Índios orientados pela cultura
Veja Crianças Imprensa e apoiados pela Funai e pelos Crime
antropólogos
IstoÉ Crianças Imprensa Costumes/tradição Barbárie
Folha de S.
Crianças Imprensa Tradição Maldição
Paulo
Atini Crianças Atini Tradição cultural Tabu
* A denúncia é aqui entendida como a acusação pública a que está submetido um agressor face a
vitimização de um sujeito identificado.
120 Aqui, tentamos realizar uma aproximação das indicações de Boltanski et al. (1984)
acerca da análise de denúncias publicadas pelo Le Monde. Nestas, os autores orientam perce-
ber como se dá a instauração do sistema de relações entre 1) aquele que denuncia, 2) aquele
em favor do qual a denúncia é realizada, 3) aquele em detrimento do qual a denúncia é rea-
lizada, 4) aquele junto ao qual ela é operada (p. 6) e como se opera, ou não, a generalização
de casos particulares. Para uma compreensão detalhada do método actancial de análise, ver
Boltanski et al. (1984).
121 Para uma crítica recente aos usos e classificações jornalísticos sobre indígenas brasilei-
ros, ver Oliveira (2010). Para uma discussão sobre o uso de estruturas de localização para
conformação de ideários de submissão e de domínio, ver Said (1999, p. 88).
122 Para os limites da eficácia da ameaça, ver Boltanski (1993, p. 136), para o qual a ame-
aça não tem a força necessária para acionar o vocabulário dos sentimentos para comoção.
Mais adiante nos deteremos na análise da linguagem da comoção.
124 Ver, por exemplo, a fala do menino Amalé, transcrita na revista IstoÉ: “Minha verda-
deira mãe não é a minha mãe. Minha mãe é Kamiru [indígena de etnia distinta da de Amalé.
É identificada como a mulher que o salvou].”
125 Disponível em: <http://www.hakani.org>.
126 Para uma análise dos usos sociais das emoções, ver Mauss (1980, p. 60-61).
127 Ver, por exemplo, relato do viajante português Diego de Castro e Albuquerque, que, em
1778, realizou uma expedição ao Pantanal, na qual registrou práticas infanticidas entre os
índios Kadiwéus. Para registros mais recentes, ver a revista Veja, edição 84 (15 abr. 1970),
ou ainda a edição 1.148 (19 set. 1990).
128 Antonio Carlos Souza Lima (1995), por exemplo, ao mencionar a pesquisa desenvolvida
nos arquivos nacionais do Brasil sobre as populações indígenas, correlaciona-os com verda-
deiras selvas para as quais o pesquisador necessita conceber expedições de reconhecimento
do terreno – isto é, passar fi lme a fi lme, fotograma a fotograma, até conseguir estabelecer um
mapa mínimo de documentos a serem abordados (1995, p. 27).
129 Para uma crítica dos pressupostos impostos pela antropologia aos estudos dos grupos
étnicos, ver Oliveira (2004).
130 Para alguns caminhos de compreensão da administração de populações indígenas no
Brasil, ver Lima (1995).
131 Relatório do Centro de Investigação do Unicef, em Florença, Madri, fev. de 2004 apud
<http://www.hakani.org>.
132 Um dos princípios-chave que têm vigência no Direito internacional estabelece que o
indivíduo deve receber o mais alto nível possível de proteção e que, no caso de crianças, “o
interesse superior da criança [art. 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança] não pode
ser desatendido ou violado para salvaguardar o interesse superior do grupo”.
133 O Decreto brasileiro n. 5.051, de 2004, em seu art. 8º, n. 2, “garante aos povos indí-
genas o direito de preservar seus costumes e instituições próprias desde que eles não sejam
incompatíveis com os direitos fundamentais defi nidos pelo sistema jurídico nacional nem com
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.
134 No estudo do Instituto Innocenti, do Unicef, chamado “Assegurar os direitos das crian-
ças indígenas”, há uma referência às práticas tradicionais nocivas: “Por outro lado, as reivin-
dicações de grupo que pretendem conservar práticas tradicionais que pelos demais são consi-
deradas prejudiciais para a dignidade, a saúde e o desenvolvimento do menino ou da menina.”
Referências
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l’exotisme: essais d’anthropologie critique. Toulouse: Anacharsis Éditions, 2006a. p. 23-72.
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BOLTANSKI, Luc. La souffrance à distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris:
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___; DARRÉ, Yann; SCHILTZ, Marie-Ange. La dénonciation. Actes de la Recherche en
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BRASIL. Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organiza-
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mingo, 6 abr. 2008, 05:21. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/
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___. Contra o falso óbvio 1 – É Raposa/Serra do Sol, mas pode chamar de anta do obscuran-
tismo. Veja online, Blog Reinaldo Azevedo, quarta-feira, 9 abr. 2008, 06:21. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/contra-falso-obvio-1-raposa-serra-sol-mas-po-
de-chamar-anta-obscurantismo/>. Acesso em: 5 jul. 2009, 10:54.
___. Delinquência antropológica e “antalógica”. Veja online, Blog Reinaldo Azevedo, do-
mingo, 6 abr. 2008, 05:19. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/
indios-1-delinquencia-antropologica-antalogica/>. Acesso em: 5 jul. 2009, 01:20.
___. O roteiro da “independência” dos “países” indígenas. Veja online, Blog Reinaldo Aze-
vedo, quinta-feira, 18 abr. 2008, 17:57. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinal-
do/geral/roteiro-independencia-dos-paises-indigenas/>. Acesso em: 5 jul. 2009, 01:25.
Sites
ATINI. Disponível em: <http://www.atini.org>. Site oficial da ONG.
MÃES DA ARTE. Disponível em: <http://artesanatocontemporaneo.blogspot.com>.
UMA VOZ PELA VIDA… HAKANI. Disponível em: <http://www.hakani.org>.
Paula Lacerda135
1. Introdução
O “caso dos meninos emasculados de Altamira” é como ficou conheci-
do o conjunto de crimes contra meninos com idades entre oito e 14 anos
que ocorreu na cidade de Altamira, sudoeste do Pará, entre 1989 e 1993.
Além da tentativa de assassinato – em alguns casos consolidada – e casos
de desaparecimento sobre os quais é difícil caracterizar o que ocorreu,
alguns meninos foram torturados e tiveram seus órgãos sexuais mutilados,
com o auxílio de instrumentos cortantes de precisão cirúrgica, como ficou
atestado pela perícia. As variações em torno da extensão e característi-
cas da mutilação sexual, no contexto do processo judicial instaurado, na
mídia e no dizer dos familiares, tenderam a ser tratadas sob o mesmo ter-
mo, “emasculação”, inicialmente empregado pelo médico responsável pelo
atendimento a dois dos sobreviventes.
Como veremos ao longo deste capítulo, a referência à “emasculação”
funciona como um classificador de crimes de que foram vítimas crianças
de certo perfil (do sexo masculino, com idades entre oito e 14 anos, de
origem humilde), em determinada cidade (Altamira), durante um período
de tempo preciso (de 1989 a 1993). Esses “contornos” são importantes de
ser assinalados, uma vez que o número de vítimas não é consensual entre
aqueles agentes que atuam no caso, mas, ao contrário, é alvo de disputa e
controvérsias. Enquanto a polícia instaurou sete inquéritos policiais, defi-
nindo, assim, que houve sete vítimas, para o movimento social, represen-
tado sobretudo pelo Comitê em Defesa da Vida da Criança Altamirense,
136 A parte judicial do caso, por motivo de espaço, não será trabalhada aqui, mas é im-
portante esclarecer que, em relação ao processo judicial, foi construída uma situação ainda
mais complexa: aberto no nome de uma vítima, pouco tempo depois, recebeu como anexos
inquéritos policiais não fi nalizados de mais seis casos, alguns deles ocorridos antes do crime
contra a vítima em nome da qual o processo foi aberto. Outros quatro casos, apesar de não
terem resultado em inquérito policial, aparecem no processo por meio de depoimentos de seus
familiares. Contudo, somente os crimes relativos a cinco vítimas foram a julgamento.
137 Trata-se, basicamente, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-
-Emaús) e do Comitê em Defesa da Vida da Criança Altamirense. As características desses
grupos, bem como sua participação no caso, serão discutidas adiante.
138 Os nomes das vítimas sobreviventes foram alterados e estão em itálico. Os nomes dos
meninos mortos e de todas as outras pessoas aqui citadas, no entanto, são reais. Essa decisão
foi resultado de um acordo prévio com os familiares das vítimas participantes do comitê, oca-
sião na qual concordamos que seria certo preservar a identidade dos sobreviventes e divulgar
o nome das vítimas mortas, inclusive com o propósito de visibilizar os crimes e colaborar
com a politização em torno dos casos.
139 De competência municipal, os conselhos tutelares foram instituídos pela Lei n. 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e funcionam como órgão au-
tônomo, não jurisdicional e encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e
do adolescente. O papel do Conselho Tutelar pode ser entendido tanto como “passivo”, uma
vez que é encarregado de receber denúncias de maus-tratos, evasão escolar etc., quanto como
“ativo”, caracterizado pelo atendimento às crianças que tiveram seus direitos ameaçados e
fazer com que seja cumprido o Estatuto da Criança e do Adolescente. Na cidade de Altamira,
o Conselho Tutelar foi criado em 1994, após os crimes de emasculação, podendo ser enten-
dido como um reflexo direto da militância em torno do caso. D. Rosa Pessoa (mãe da vítima
Jaenes Pessoa) e Antonia Melo (militante pelos direitos das mulheres) foram duas das cinco
primeiras conselheiras tutelares da cidade.
140 Para um relato jornalístico da abertura da rodovia, ver Morais, Gontijo e Campos (1970).
141 Almeida (1993), em seu trabalho sobre ações dos movimentos camponeses, instituições
religiosas e setores do Estado na Amazônia durante os anos 1970-1990, apresenta um qua-
dro detalhado da situação fundiária na Amazônia da década de 1990. Observando os dados
relativos aos confl itos de terra na Amazônia, notamos a concentração de boa parte desses
confl itos nos estados do Pará e do Maranhão. Em 1980, por exemplo, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT) identificou 87 confl itos no Pará, número esse só superado pelos dados relativos
ao Maranhão, que chegam a 128 (1993, p. 99).
2. A instrução policial
145 No Brasil, não existe nem jamais existiu uma lei ou normativa que condicionasse o
início das buscas de desaparecidos (fossem menores de idade ou não) ao prazo de 48 horas.
Contudo, essa prática é a tal ponto cotidiana – não apenas em Altamira, mas em todo o
Brasil – que, em dezembro de 2005, foi sancionada uma lei que acrescenta o seguinte pará-
grafo ao art. 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “A investigação do desa-
147 Analisando o caso de Febrônio Índio do Brasil, Peter Fry (1982) chama a atenção para
a relação, anunciada pela psiquiatria, entre sadismo, homossexualidade e violência. Em suas
palavras: “As ligações feitas pela psiquiatria entre homossexualidade/misticismo e sadismo,
erigindo a figura de Febrônio ao status de um princípio universal, atingiram em cheio a cons-
ciência dos indivíduos e conquistou [sic] seu lugar no senso comum dos cidadãos. Foi, sem
dúvida, um, momento importante na produção da figura doente e agressiva do ‘homossexual’
que sobrevive até o presente, apesar dos trabalhadores contestadores dentro da ciência e fora
dela” (p. 80).
148 A ocasião da prisão de Rotílio se deu da seguinte forma: após a jovem Ana Patrícia ter
ido à delegacia de Altamira dar queixa do crime de estupro de que tinha sido vítima, alguns
policiais a acompanharam ao local do crime e lá encontraram Rotílio, prontamente reconhe-
cido pela moça como seu violador. Imediatamente algemado, Rotílio foi levado à delegacia e
prestou depoimento ao delegado de polícia Carlos Augusto da Mota Lima, tendo confessado
o crime de estupro. No processo que apura o “caso dos meninos emasculados” há duas ver-
sões desse depoimento, mas somente uma está devidamente assinada e registra a necessária
presença de um promotor de justiça. Vejamos as diferenças das duas versões. Na versão
assinada, Rotílio teria confessado o estupro de Ana Patrícia e, quando perguntado “como
praticou o crime contra os menores vítimas”, o acusado disse não se lembrar. Em perguntas
anteriores, Rotílio teria dito que não bebia com regularidade, mas, quando o fazia, perdia
a memória. No depoimento sem assinaturas, ao contrário, Rotílio afi rma que não cometeu
crime contra nenhuma criança. Argumenta que, assim como confessara o estupro, confessa-
ria as mortes dos meninos se as tivesse cometido. Quando perguntado pelo delegado quem
eram seus parceiros nos crimes de emasculação, ele teria respondido não saber o que seria
isso. Todos os dois depoimentos (o assinado e o não assinado) são iniciados pelas mesmas
perguntas (cidade natal, trajetória social) e apresentam como data o dia 9 de janeiro de 1992.
Processo Judicial n. 2002.2.20272063, fls. 961 e 969. Como no processo não existe qualquer
menção a esses depoimentos divergentes, nem mesmo denúncia dos procedimentos policiais,
no mínimo suspeitos, considero que os dois depoimentos foram anexados como cópias de um
mesmo documento.
149 Na “Carta Aberta à Comunidade Altamirense”, incluída nos autos às fl s. 9, lê-se “So-
mos sabedores que até o presente momento os órgãos responsáveis não mostraram eficiência
em desvendar os referidos crimes, sendo vítima dessa incompetência o Sr. Rotílio do Rosário,
que foi acusado dos crimes de emasculação e morte dos menores, e que veio a falecer no
Quartel General da Polícia Militar em Altamira, em circunstâncias que deixam muito per-
plexa a população.”
150 Chamamos a atenção novamente para semelhanças com o caso de Febrônio Índio do
Brasil. Antes do crime cometido contra meninos e rapazes no Rio de Janeiro, Febrônio iden-
tificava-se como Bruno Ferreira Gabina, falso médico e dentista que desnecessariamente ex-
traía dentes e realizava amputações em braços e pernas, provocando extremo sofrimento
físico em seus pacientes (cf. FRY, 1982; CASOY, 2004).
151 Segundo listou o delegado de polícia Brivaldo Pinto Soares, o material apreendido con-
sistiu em 15 fotos do indiciado; uma fotografi a de painel fotográfico; cinco cartões comemo-
rativos de festejos natalinos com motivos infantis; uma carteira porta-cédulas com brasão da
República com os dizeres Infantaria do Exército; oito fotos com crianças na faixa dos oito
aos 12 anos; dois livros pornográficos (Êxtase e Os amantes); sete livros (A terceira visão,
Holocausto, A senhora da magia, Aids, A fúria, A erva do diabo, Perfume e O satanista);
uma fita cassete na qual consta o nome de César; três fitas VHS (“Querelle”, “My beautiful
Laundrette”, “The alchemist”).
152 Em Lacerda (2005), analisando crimes contra homossexuais, busquei demonstrar como
a polícia e a mídia construíam um “perfi l” do criminoso com base no “perfi l” da vítima e
de certas características dos crimes. Vianna e Carrara (2004), analisando processos judiciais
de latrocínio e homicídio contra vítimas supostamente homossexuais, também observaram a
construção do “perfi l criminoso” por parte da Justiça.
De acordo com o delegado, esse crime teria sido realizado com o ob-
jetivo de tão somente causar confusão de raciocínio à polícia. Uma vez
que o réu Amailton Madeira Gomes estava detido em Belém do Pará, o
crime teria sido perpetrado com o objetivo de insinuar sua inocência. Para
o delegado, alguns aspectos do cadáver do menor provariam sua evidente
distinção em relação aos casos anteriores. E é desta forma que o Relatório
se conclui:
Diante do que foi exposto acima é fácil concluir que neste caso na realida-
de ocorreu o crime de Homicídio com requinte de perversidade contra um
menor. E o autor deste Homicídio tentou usar o álibi de retirar o pênis do
menor objetivando causar confusão de raciocínio à Polícia, ao Judiciário
e à sociedade em geral, porém os indícios deixados eliminam qualquer
dúvida em se afi rmar que não se trata na verdade de caso de emasculação.
(Processo n. 2002.2.20272063, fls. 1.059)
Então nós fomos para a rua, nós éramos apenas umas cem pessoas e era
tão grave a situação de medo na população que por onde nós passávamos
na rua, em plena passeata, as pessoas fechavam as janelas. A gente deduz
que era para que alguém não visse que eles estavam vendo a passeata. Foi
uma situação de muito terror, de muito medo. (D. Antonia Melo)
153 A respeito de sua atuação nas CEBs, que foi considerada como o início de sua mili-
tância, D. Antonia declara: “Nas CEBs eu aprendi bastante; aprendi que é importante estar
organizado, lutando para conseguir direitos, para conseguir que a cidadania seja efetivada e
que as pessoas aprendam a ter conhecimentos dos seus direitos, que saibam exercer a cidada-
nia para que a cidadania funcione; tanto a cidadania individual quanto a coletiva…”
154 Comeford (1999) nos oferece uma brilhante análise dos diferentes signifi cados que o
termo “luta” assume no discurso de sujeitos ligados a organizações sociais. Na pesquisa
do autor, sobre as organizações camponesas, o termo “luta” faz referência ao sofrimento
envolvido no engajamento social, que em geral apresenta como “causa” um “problema” de
difícil solução, em que será necessário grande envolvimento. Acredito que essa defi nição –
dentre outras possíveis apresentadas pelo autor – se enquadre perfeitamente no discurso de
D. Antonia, e aqui reproduzo um trecho de nossa entrevista que, para mim, é ilustrativo
dessa concepção de “luta”: “Há momentos em que a gente percebe que eles [os familiares das
vítimas, associados do Comitê em Defesa da Vida da Criança Altamirense] estão cansados,
desacreditados, mas a gente reanima, estamos dando este total apoio para que as famílias se
levantem, se reanimem e continuem lutando [breve pausa] conosco. Então, é uma luta perma-
nente. Eu sempre digo para eles assim: ‘essa é uma luta que ninguém sabe quando vai parar’.
É uma luta de muitos anos, que nós não temos nem ideia” (D. Antonia Melo).
Então, depois dessa nossa mobilização, passaram-se oito meses sem que
se matasse alguma criança. Aí nós não tivemos suficientes condições para
que mais pessoas se juntassem à nossa luta, continuassem essa pressão
contra os assassinatos de crianças. Os criminosos perceberam que estava
enfraquecida a luta e mataram o fi lho da Rosa, e mais crianças foram. (D.
Antonia Melo)
Eu tinha jurado perante o túmulo do meu fi lho que eu ia lutar para encon-
trar os assassinos dele, mesmo que tivesse que andar os quatro cantos do
mundo. Mas depois disso me veio uma grande fraqueza. E as coisas foram
acontecendo. Houve um outro caso, com o irmão da Esther, e aquilo me
motivava muito para lutar, sair da cama e fazer alguma coisa (D. Rosa
Pessoa, mãe de Jaenes)
159 Leite (2009), em seu artigo sobre mobilização de parentes de vítima da violência no Rio
de Janeiro, nos relata um pouco do processo de formação dessas redes: as mães que já expe-
rimentaram “a dor da perda” e que integram um movimento por “justiça” ficam atentas a
notícias de jornais que divulguem casos de violência semelhantes. O próximo passo é anotar
o nome completo, buscar na lista telefônica e fazer uma chamada, prestando apoio, solida-
riedade e convidando para fazer parte do movimento.
Nós registramos o comitê nessa época [em junho de 1993], para que a
gente tivesse mais força para lutar por justiça. Quando estivéssemos pe-
rante o ministro da Justiça, nós diríamos “quem está aqui é o comitê,
representado pelas famílias dos meninos emasculados de Altamira”. (D.
Rosa Pessoa, mãe de Jaenes)
No dia 1º de outubro de 1992, meu fi lho saiu de casa às 9h30 para prender
alguns bezerros que a gente criava, e a partir de 11h ele já não se encontra-
va mais no local. Foi dada a notícia. Toda a comunidade foi procurá-lo, e
não foi encontrado. Dois dias depois, no dia 3, nós o encontramos morto,
emasculado, com seus olhos arrancados e suas genitais e pulso cortados.
Não tivemos o direito de chegar perto, de abraçá-lo, de despedir. Não ti-
vemos esse direito, tanto eu quanto as outras mães. Sete mães sabem onde
estão suas crianças, as demais não sabem, pois desapareceram; outras
foram sequestradas. Temos três crianças que sobreviveram e hoje vivem
as suas agonias, os seus sofrimentos. Foram desprezadas também pelas
160 Essa informação me foi dada durante o período em que estive em sua casa, no mês de
maio de 2010, e faz parte do caderno de campo, não tendo sido gravada.
161 Na Carta Aberta à comunidade altamirense, ainda sob as iniciativas do Movimento
contra a Violência e a Favor da Vida, anterior à formação do comitê, lê-se: “Contudo, o
problema é bem maior: em Altamira, as crianças e os adolescentes são vítimas de outras for-
mas de violência: prostituição infantil, maus-tratos, estupros, falta de assistência médica, de
oportunidades para estudar, de alimentação suficiente, de morada digna…”
Algumas das características dos sujeitos que atuam como líderes ou re-
presentantes de movimentos sociais ou mesmo políticos foram sociologica-
mente estudadas. Um desses autores, Bourdieu (1984) eleva a “modéstia” a
um papel central na conduta de sujeitos que agem como representantes ou
como mandatários de grupos. Ao termo modéstia, o autor pretende vincu-
lar a capacidade de fazer uma passagem correta, no tempo correto, entre
o “eu” e o “nós”, ou seja, entre o ato de apresentar para a plateia perante
a qual se apresenta seu envolvimento com a causa – pois é necessário ter
algum – e, de maneira hábil, passar a tratar dos problemas da coletividade,
deixando os interesses meramente individuais de lado.
Por fi m, resta sublinhar a importância da crença na demanda pleitea-
da. Não obstante as ações ineficientes conduzidas pela polícia, as decisões
da Justiça que impronunciaram os acusados, os habeas corpus que lhes
permitiram voltar às ruas da cidade, os integrantes do comitê disseram
jamais terem perdido as esperanças de que “houvesse justiça”. Paul Ri-
coeur (2008) traça uma distinção importante entre vingança e justiça, no
contexto da discussão mais geral sobre a própria ideia de Direito, que se
baseia, por sua vez, na premissa de que o Estado tem o poder legítimo da
violência e dos julgamentos de violência, não tendo a sociedade – nem mes-
mo as partes ofendidas – competência para julgar ou punir. Em um trecho
da fala de D. Rosa Pessoa nessa mesma reunião da Comissão de Direitos
Humanos, a distinção entre justiça e vingança aparece bem marcada:
4. Perspectivas finais
Neste capítulo, analisando as ações da polícia no “caso dos meninos emas-
culados”, procurei demonstrar, por um lado, a força do movimento social
organizado na “luta” contra ações policiais entendidas como ineficientes e
negligentes, e, por outro, o intenso entrecruzamento das ações da polícia
e do movimento social, que, ao longo do período analisado, apresentaram
questionamentos, justificativas e respostas que foram mutuamente condi-
cionados ao longo do caso. No entanto, como foi dito, as relações – e
interações – entre polícia e ativismo não são as únicas possíveis, mas, ao
contrário, perfazem apenas uma das dimensões que o caso nos possibilita
observar.
Por um lado, temos a polícia como instância oficial do Estado, “a ser-
viço do cidadão”. Conforme aparece no trabalho de Letícia Carvalho de
Mesquita Ferreira, “O desaparecimento de pessoas no Brasil contempo-
râneo: a ausência como matéria-prima de um problema social”, incluído
nesta coletânea, as delegacias de polícia são os braços do Estado mais
acessíveis à população, abertos 24 horas por dia, sete dias por semana. A
delegacia é o local ao qual primeiro se comparece quando alguém desapa-
rece, ou quando seu corpo, com ou sem vida, é encontrado. Não obstante
a avaliação de que a polícia era ineficaz, de que não havia registro dos
casos nem buscas eram realizadas, isso não impediu que os familiares das
vítimas de Altamira fossem atrás de seus serviços. No entanto, em nenhum
dos casos a ida à delegacia excluía outros caminhos ou a tentativa com
outras instituições, fossem elas hierarquicamente superiores, inferiores ou
não concorrentes, como a Polícia Federal, o Exército, o Ministério Público,
a Funai.
Referências
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Sociology, v. 1, n. 1, p. 58-89, mar. 1988 [1977].
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zônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e o Estado. Tese (Dou-
torado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Rio de Janeiro, 1993.
BAILEY, F. G. A political system. In: BAILEY, F. G. Stratagems and spoils: a social anthro-
pology of politics. Oxford: Basil Blackwell, 1970. p. 1-18.
Legislação
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______. Lei n. 11.689, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-lei n. 3.689, de
3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras
providências. Brasília: Presidência da República, 2008.
______. Lei n. 11.259, de 30 de dezembro de 2005. Acrescenta dispositivo à Lei n. 8.069/90
– ECA, para determinar investigação imediata em caso de desaparecimento de criança ou
adolescente. Brasília: Presidência da República, 2005.
1. Introdução
Em julho de 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte
IDH) condenou o Brasil por violação de direitos humanos, abrindo um
precedente nacional e internacional.164 Considerado um marco histórico
por muitos, nem tanto na história da psiquiatria e do asilo quanto naque-
la da luta em defesa dos direitos humanos, esse episódio ficou conhecido
como caso Damião Ximenes. Trata-se da primeira condenação do Brasil por
violação de direitos humanos, bem como a primeira vez em que um país
foi condenado por violar direitos humanos de pessoas portadoras de trans-
torno mental. Algumas condições de possibilidade da condenação serão
apresentadas neste capítulo.
A condenação da Corte IDH de 2006 aconteceu quase sete anos após
a denúncia enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) em novembro de 1999, segundo a qual uma pessoa portadora de
transtorno mental tinha sido morta por maus-tratos em uma clínica priva-
da conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Após a condenação, uma
indenização no valor de 156 mil dólares foi concedida à família da vítima,
em setembro de 2007, cuja maior parcela foi dada à mãe e à irmã, e a me-
162 O material documental com base no qual o texto foi elaborado chegou ao autor princi-
palmente por meio do contato regular com interlocutores-chave. Agradeço especialmente aos
professores doutores Jackson Sampaio e Luis Fernando Tófoli, à professora doutora Maria
Gabriela Godoy e a Irene Ximenes os arquivos generosamente cedidos.
163 Doutor em Antropologia Social no PPGAS/MN/UFRJ e professor-adjunto do Departa-
mento de Ciências Humanas e Saúde (IMS) da Uerj. O estudo publicado é produto do projeto
de pesquisa “O Desafio da Tutela no Processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira”, desenvol-
vido entre 2006 e 2011, durante o doutorado, sob fi nanciamento do CNPq.
164 Isso apesar das muitas denúncias de indivíduos, grupos e organizações da sociedade civil
a organismos internacionais, que nunca resultaram em condenação, acontecidas em diferen-
tes décadas do século XX. Nenhuma corte internacional havia julgado e condenado o Brasil
por violação de direitos humanos até então, nem havia condenado um país por violações des-
sa ordem contra pessoas com problemas psiquiátricos, eis os “precedentes” (BORGES, 2009).
nor, ao pai e ao irmão. Denúncia, condenação e indenização apreendidas
de diferentes maneiras, por diferentes atores sociais situados em variadas
posições institucionais e geográficas, como membros da Coordenação Na-
cional de Saúde Mental em Brasília (DF), da organização não governamen-
tal (ONG) Justiça Global no Rio de Janeiro (RJ) e da TV Verdes Mares em
Fortaleza (CE).
O Brasil, à época, era um país reconhecido internacionalmente pelo
êxito da política nacional de saúde mental, seguindo as recomendações
da Declaração de Caracas no sentido de privilegiar a atenção comunitária
mais do que a hospitalar (BRASIL, 2001a). Entretanto, um tribunal inter-
nacional de proteção aos direitos humanos condenou esse mesmo Estado
nacional por violar os artigos do Pacto de San José, por não ter sido capaz
de garantir direito à vida e à integridade pessoal, nem o de garantias e
proteção judiciais a Damião Ximenes Lopes. Documentos menos legais do
que morais, essa declaração e esse pacto, regulamentações cujas sanções
são mais dependentes da opinião pública do que da imposição de normas
escritas, são o produto do acordo entre grupos sociais especializados em
gerar consensos e cartas de intenções, como é o caso de parte dos membros
da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados
Americanos (OEA) e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O nome do paciente psiquiátrico morto na Casa de Repouso Guarara-
pes era Damião Ximenes Lopes. Tanto o episódio da morte quanto a con-
denação ficaram conhecidos internacionalmente como caso Damião Xi-
menes; a denúncia e a indenização, nem tanto. Assim também foi nomeado
um serviço extra-hospitalar de atendimento em saúde mental, o Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), criado na cidade de Sobral (CE) em 2000,
pouco depois do fechamento de Guararapes: o Caps Damião Ximenes Lo-
pes (cf. PEREIRA e ANDRADE, 2001). Isso também aconteceu com uma
das salas nas quais teve lugar a III Conferência Nacional de Saúde Mental,
em 2001, realizada pouco depois da promulgação da Lei n. 10.216/ 2001
– relativa à proteção dos direitos humanos de pessoas portadoras de trans-
torno mental e que modificou uma legislação vigente desde 1934 no Brasil
–, a Sala Damião Ximenes (BRASIL, 2001a). Para não falar do Instituto
Damião Ximenes (IDX), criado por sua irmã – a denunciante – em 2009
na cidade de Ipueiras (CE), ONG inaugurada para lutar em defesa dos
direitos de pessoas portadoras de transtorno mental no estado do Ceará.
Centro, Sala e Instituto que apontam para uma homenagem póstuma a
esse morador de Varjota (CE), que esteve por três vezes internado em Gua-
rarapes e uma vez em consulta médica no hospital psiquiátrico de Messe-
165 Segundo Amarante (1998), desde 1978 o processo de reforma psiquiátrica estava em
curso no Brasil, tendo sido o primeiro Caps criado justamente em 1987, em São Paulo (SP), e
a primeira rede de atenção em saúde mental substitutiva ao asilo em 1989, em Santos (SP). O
primeiro Caps do estado do Ceará é do ano 1991, instalado em Iguatu, tendo sido a primeira
rede criada em Quixadá em 1998, e não havia Caps em Sobral (CE) quando da morte de
Damião Ximenes Lopes (SAMPAIO e CARNEIRO, 2007, p. 9).
166 As aspas serão usadas em todas as palavras, expressões e frases nativas, sendo elas reti-
radas de documentos – como estas acima, retiradas de notícias sobre o caso Damião Ximenes
– ou de entrevistas com atores sociais envolvidos no caso.
2. A entrada em campo
Soube do caso Damião Ximenes por meio de uma mensagem recebida em
agosto de 2006, mais ou menos um mês após a sentença de condenação do
Brasil por violação de direitos humanos pela Corte IDH. Participo desde
essa época de um grupo virtual designado “Em defesa da Reforma”, tendo
sido convidado a fazê-lo – como muitos outros militantes do movimento
pela reforma psiquiátrica brasileira – pela Coordenação Nacional de Saúde
Mental do Ministério da Saúde (CNSM).
O grupo virtual “Em defesa da Reforma” foi criado pelo órgão federal
de gestão da política pública de saúde mental no Brasil, a CNSM, tendo
sido convidadas a participar pessoas envolvidas no movimento conhecido
como Reforma Psiquiátrica Brasileira (a partir de agora, Reforma), que
desde a década de 1970 vinha lutando por mudanças no “modo da [sic]
sociedade lidar com a loucura” (BIRMAN apud AMARANTE, 1998),
entre outras transformações em âmbito cultural, assistencial e legislativo
que terminaram por se resumir em dois lemas: “por uma sociedade sem
manicômios” e “cuidar sim, excluir não”.
Quando a condenação foi divulgada nesse grupo virtual, em 2006,
fazia pouco mais de um mês que ele tinha começado a funcionar, com
pouco menos de 50 participantes, congregando hoje mais de 500. Outros
dois outros grupos surgiram dentro dele: um deles destacando um cargo
de gestão relevante na montagem de uma rede nacional de Caps e outros
serviços extra-hospitalares, os “supervisores da saúde mental”, e outro se-
parando dos demais os profissionais que mais foram se extinguindo nos
Caps ao longo dos anos, os “psiquiatras da saúde pública”.
Embora o caso Damião Ximenes tenha sido divulgado nesse grupo
virtual primeiramente por meio da condenação, foram as denúncias de
mortes em manicômios – como a de Damião – que mobilizaram os parti-
cipantes que também eram ligados ao governo federal; a notícia da indeni-
zação pouco mobilizou os participantes.
Em agosto de 2006, o então gestor público municipal de saúde mental
de Sobral enviou essa notícia, levando-me a ficar curioso do assunto e
chamando minha atenção para a cidade, local da morte de Damião Xime-
nes Lopes, como também – tal como a mensagem faria constar – para o
fechamento da Casa de Repouso Guararapes e o surgimento da Rede de
Atenção Integral em Saúde Mental de Sobral-CE (RAISM).
167 Detalhes sobre a pesquisa no âmbito do doutorado em antropologia social podem ser
conferidos em três publicações do autor: Silva (2009a), sobre os desdobramentos do caso Da-
mião Ximenes; Silva (2009b), acerca dos mediadores entre comunidade e nação da RAISM; e
Silva (2010), no que tange à relação entre profissionais, usuários e familiares no período entre
o fechamento de Guararapes e a construção da RAISM.
168 Ao fi nal do texto há uma lista de notícias sobre o caso Damião Ximenes, impossíveis de
citar uma a uma, mas possíveis de ser consultadas pelo leitor.
No dia 1º de outubro de 1999, Damião foi levado por sua mãe […] à
Casa de Repouso Guararapes. Ela temia pelas crises do fi lho, que tam-
bém sofria de epilepsia. Na segunda-feira seguinte, […] [a mãe] voltou à
clínica, mas teve a notícia de que o paciente “não estava em condições de
receber visitas”. Segundo a irmã de Damião […], a mãe resolveu entrar
à força. Lá, encontrou o fi lho “amarrado, com as roupas rasgadas, san-
grando, coberto de hematomas e andando com dificuldades”, relata […]
[a irmã]. Caído aos pés da mãe, Damião teria dito: “Polícia, polícia…”
“Vendo o fi lho naquele estado, […] [a mãe] solicitou aos funcionários
que o levassem para tomar um banho, indo em seguida procurar por um
médico que pudesse atendê-lo na clínica”, relata o processo encaminhado
à Corte pela Organização Não Governamental Justiça Global, que repre-
sentou a família. “Encontrou fi nalmente o Dr. […] – diretor da Casa de
Repouso Guararapes e legista do IML de Sobral –, que se limitou a pres-
crever alguns remédios, sem sequer examiná-lo. Sem opção, a mãe voltou
à sua casa, no município de Varjota, a 70 km de Sobral. Mal chegou, foi
chamada de volta à clínica. Lá, descobriu que o fi lho havia morrido. A
Damião dá entrada em Guararapes, à noite, tendo sido levado de táxi por sua
1.10.1999
mãe
Morte de Damião em Guararapes, após procedimento de contenção, aplica-
4.10.1999
ção de injeção e quedas do leito
22.11.1999 Denúncia realizada pela irmã junto à CIDH
14.12.1999 Envio da petição/denúncia ao Brasil pela CIDH
O caso Damião Ximenes foi considerado admissível pela CIDH, após ausência
25.11.2002
de resposta por parte do Brasil à petição enviada
Sem pronunciamento do Estado brasileiro, CIDH concluiu que o país era res-
8.5.2003
ponsável por violação de direitos humanos
10.2003 Justiça Global (ONG) torna-se peticionária da irmã de Damião, denunciante
31.12.2003 CIDH envia ofício ao Brasil, com suas conclusões
17.3.2004 Primeiro pronunciamento do Estado brasileiro: pede prazo
23.10.2004 Segundo pronunciamento do Estado brasileiro: contesta conclusões da CIDH
30.10.2004 CIDH envia o caso Damião Ximenes à Corte IDH
3.11.2004 Corte IDH notifica o Brasil sobre o envio
Brasil contesta admissibilidade do caso Damião Ximenes, procedimento que,
8.3.2005 para evitar envio do caso para julgamento na Corte IDH, precisaria ter sido
feito em 2000
30.11.2005 Audiência pública em Costa Rica
170 “Reintroduzir a incerteza é reintroduzir o tempo, com seu ritmo, sua orientação, sua
irreversibilidade, substituindo a mecânica do modelo pela dialética das estratégias…”
(BOURDIEU, 1980, p. 170).
171 Borges (2009) principalmente, autora também atuante na ONG peticionária do caso,
ou seja, no órgão que defendeu a denunciante, diferentemente de Seixas e Nagado (2009),
atuantes na SEDH, que participou da defesa do Estado brasileiro. Clínico, pesquisador e mi-
litante do movimento pela reforma psiquiátrica na época do caso Damião Ximenes, o autor
deste texto atualmente é consultor técnico de saúde no sistema penitenciário no Ministério da
Saúde, ou seja, atua como gestor federal e integra o que no contexto do jogo de forças entre
ONGs, cortes e Estados nacionais seria descrito como “o Estado brasileiro”.
Isso é confi rmado por Seixas e Nagado (2009, p. 299 e 304), acentu-
ando o caráter mais moral do que legal das recomendações proferidas pela
CIDH Interamericana e sentenças da Corte IDH, pois a sanção “[…] pre-
judica sua imagem [do país] no cenário internacional […]”, mas seu “poder
coercitivo” é limitado, sem sanções econômicas, por exemplo, buscando
em grande parte um “efeito didático”.
Contudo, o que torna uma denúncia admissível para um tribunal in-
ternacional, ou seja, o que faz de uma denúncia um caso? O fato de a
denúncia ser realizada pela “família”, pela “pastoral” ou outro órgão tem
participação na admissibilidade do caso e no desdobramento do julgamen-
to? As ONGs, movimentos sociais e outros organismos têm alguma co-
laboração na produção e no resultado das denúncias? Como certos casos
vêm resultar em condenações, e outros, não? Todas essas perguntas foram
aqui resumidas na seguinte: quais são as condições de possibilidade da
primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos, ou seja,
do caso Damião Ximenes?
Vimos anteriormente que o elemento moral, mais do que o legal, pre-
valece, não só no que tange à relação entre a Corte IDH e os Estados na-
cionais, mas também na própria formulação das denúncias.
Boltanski (1993, p. 94-97) retoma outros “casos” historicamente da-
tados, por meio da análise documental, para postular pelo menos duas
maneiras pelas quais a forma caso é construída: suscitando a indignação
comunitária/unânime por meio da indicação de uma pessoa inquestiona-
velmente culpada, ou a indignação esclarecida por meio de acusações que
6. Considerações finais
No dia 12 de março de 2000, o Diário do Nordeste divulgou matéria com
o título “Hospital psiquiátrico de Sobral sofre intervenção” e o subtítulo
“Instituição é acusada de maus-tratos desde outubro de 1999”, acompa-
nhada de uma foto dos pacientes psiquiátricos da Casa de Repouso Guara-
rapes no pátio. A matéria trata da junta interventora instituída pelo gestor
municipal da saúde em Sobral, justificando a intervenção e apresentando o
nome dos diferentes envolvidos. Na justificativa, menciona-se a denúncia
realizada em diferentes órgãos, não constando o nome da denunciante e
mencionando-se apenas entidades estaduais de direitos humanos, saúde e
justiça.
Nessa mesma data e jornal, outra matéria voltou a destacar a inter-
venção em processo em Guararapes. Com o título “A morte de Damião
Ximenes motivou a realização de auditorias”, caracterizou a instituição
com vagar – referência de atendimento psiquiátrico para toda a região nor-
te do Ceará, funcionando há 26 anos, média de 300 a 400 atendimentos
por mês, no momento com 58 pacientes internados – e destacou o papel
de outra comissão que não a CIDH: a Comissão de Direitos Humanos e
Cidadania da Assembleia Legislativa (CDHCAL), na qual aconteceu “en-
trevista coletiva” para colaborar na apuração da morte de Damião.
Essas notícias não estão a tratar do caso Damião Ximenes, mas do
caso Guararapes, ou seja, não se faz referência à denúncia junto à CIDH,
mas àquela junto à delegacia de Sobral, que se desdobrou em um processo
penal e civil na comarca da cidade. Outro caso, outra cronologia, não mais
entre 1999 e 2006, mas de 1999 a 2009, esta última data na qual foram
condenados os acusados pela morte de Damião Ximenes Lopes. Não mais
o Estado nacional como responsável, mas o dono da clínica psiquiátrica, o
médico, a enfermeira, o auxiliar de enfermagem e os “auxiliares de pátio”
Cronologia 2. Ação Penal n. 647/2000 – Comarca de Sobral sobre o caso Guararapes (7.2009)
Cronologia 3. Caso Guararapes na sentença da Corte IDH sobre o caso Damião Ximenes
Referências
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BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008 [1963].
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BRASIL. Lei n. 2.016, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pes-
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Brasília: Presidência da República, 2001b.
___. Decreto n. 6.185, de 13 de agosto de 2007. Autoriza a Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência da República a dar cumprimento à sentença exarada pela Corte Inte-
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Notícias na internet
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crime. TV Verdes Mares, Fortaleza, 1º jul. 2009. Disponível em: <http://tvverdesmares.com.
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FUNCIONÁRIOS de hospital são presos: eles foram acusados da morte de um interno, em
1999. TV Verdes Mares, Fortaleza, 1º jul. 2009. Disponível em: <http://tvverdesmares.com.
br/cetv1aedicao/funcionarios-de-hospital-sao-presos>. Acesso em: 23 jul. 2010.
LOUCURA é alvo de tortura e morte. URA Online, Uberaba, 4 fev. 2005. Dis-
ponível em: <http://www.uraonline.com.br/especial/especial.html>. Acesso em:
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REDE de saúde mental de Sobral é reconhecida em todo o Brasil. O Noroeste Online, So-
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