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DESPERTAR

EMOCIONAL
Uma aventura de Yatou
Eu acordo aos poucos, embalada pelo som constante dos carros na Avenida Viger West, gentilmente
embelezado com as notas do violino de Emilie Autumn em meus fones de ouvido. O calor não é muito
forte, apenas perfeito para ser aconchegante enquanto estou à sombra de uma árvore, sentada na encosta
gramada. O meu sonho era, como de costume, sempre tão agradável e encantador e como sempre o deixo
com pesar.
Um jovem, muito bonito, com uma barbicha curta e cabelos castanhos curtos me olha intensamente
com seus olhos de avelã. Ele se senta mais pra baixo do que eu na encosta e acho que se eu estivesse com
uma saia mais curta, ele teria um show de graça.
— Oi!
— Oi, moça. Sou um prisioneiro deste lugar desde que te vi. Você é tão bonita que eu poderia ficar
aqui e ficar te olhando até morrer de fome.
— Muito obrigada! É bom acordar assim. A propósito, todos me chamam de Yatou.
— Todos me chamam de Kiasé.
Apesar do ruído constante dos carros, podemos ouvir os gritos de uma criança se aproximando. Kiasé
se vira e eu perco o contato com esses olhos tão atraentes.
— O que foi, Sheif?
Ele fala com a menina. Ela está toda vestida de preto, tem longos cabelos pretos e parece
extremamente frágil, dada a sua magreza e o fato de estar chorando. Ela se aproxima dele para lhe dar um
abraço, que ele retribui. Talvez seja a irmã dele.
— O meu professor... ele é muito babaca; ele acaba com toda a minha criatividade e magia.
A voz dela é tão fraca que eu não teria ouvido nada se não tivesse me aproximado deles e tirado meus
fones de ouvido. Sentindo a minha presença por perto, ele se afasta dela e olha para mim.
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— Sheif, esta é Yatou. Yatou esta é Sheif.
Ela olha para mim sem sorrir. Obviamente, sou uma intrusa na vida dele.
— Qual é o nome do seu professor?
— Robert.
— Sim, Robert, é um nome muito comum. Os pais dele não tinham imaginação. Mas tenho certeza
que há Roberts por ai que são muito engraçados. Volte para casa, eu vou tentar arrumar isso.
Kiasé olha para mim com surpresa e um olhar interrogativo.
— Não vou deixar um professor arruinar a vida de uma menina tão bonita.
Eu me levanto e começo a ir para a escola primária mais próxima. Kiasé assobia para mim como se eu
fosse apenas mais uma garota bonita, e diz:
— Não só é a mais bonita deste planeta, mas também a mais doce. Encontrei o Amor da minha vida!
— Você sempre diz isso, torna-se tão banal...
Perco o resto da conversa deles porque estou muito longe. Quando chego à frente da escola, vejo
vários carros e dezenas de adultos e crianças. Aproximo-me da primeira pessoa que vejo.
— Desculpe, pode me mostrar quem é o professor Robert?
A jovem loira me mostra um adulto de casaco que olha para todos com um olhar severo e descontente.
— Olá, Robert!
Eu digo à medida que me aproximo dele. Ele se afasta e olha para mim com um olhar de raiva.
— Quem é você e o que quer de mim, menina?
Eu lhe dou um sorriso radiante abrindo meus braços como se fosse para lhe dar um abraço.
— Não me reconhece mais? Todos me chamavam de Yatou, fui da sua turma há uns anos atrás!
Ele nem parece estar tentando se lembrar (afinal é a primeira vez que o vejo) e começa a se afastar
dizendo:
— Deve estar enganada, menina. Tenha um bom dia.
Muitos olhos se voltam para nós. Poucas pessoas neste pátio iriam querer me negar um abraço! Ainda
assim me aproximo mais dele e olho para as suas mãos para ter a certeza que não tem alianças nos dedos.
Não quero causar um escândalo ou arruinar a vida dele.
— Eu te vi enquanto passava aqui pela escola e pensei que deveria te dizer o quanto suas aulas me
ajudaram a entender melhor o mundo.
Ele se vira para mim com um suspiro de irritação.
— Ouça menina, eu não te conheço e não tenho tempo a perder.
— Claro, eu sei, mas você ainda tem que comer para ser manter vivo. Então, podemos ir jantar em
algum lugar?
É isso! Agora eu realmente o desarmei. Foi muito repentino, e na hora ele fica sem palavras. Assim
continuo:
— Sim, eu sei, as más línguas podem falar. Por isso, podemos jantar na sua casa e ninguém vai saber
disso. Te vejo às 6:00. Até lá!
Eu me afasto rapidamente, deixando-o tentar entender a situação em que ele se meteu. Eu entro na
escola e um professor me para imediatamente com um olhar severo.
— Ei, menina! Onde você está indo?
— O professor Robert deixou sua bolsa na sala de aulas e me pediu para pegá-la. Sou sobrinha dele e o
meu pai está conversando com ele lá fora, eles não se veem há muito tempo!
Eu rapidamente continuo a minha caminhada pela escola, perseguida pelo professor que
provavelmente quer que eu saia. As escolas já não são as peneiras que costumavam ser! Aumentei minha
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velocidade em um corredor e entrei em uma sala de aula para me esconder. Considerando meu tamanho,
não é muito difícil passar por debaixo da mesa do professor e roubar sua bolsa no caminho.
Olho para dentro e descubro que pertence a uma Sarah Côté. Não me interessa. Eu verifico se
ninguém está por perto, ponho a bolsa no lugar e entro noutra sala de aula. Percebo com assombro que
tirei a sorte grande; encontrei a mala de Robert Tremblay!
Depressa! Tenho de sair da escola antes que mais professores e supervisores voltem do pátio da escola
quando os ônibus saírem. Já há muitos deles correndo pelos corredores da escola, provavelmente à minha
procura. Quando estou no corredor perto da porta de saída, ouço um grito atrás de mim.
— Pare ai!
Corro em direção à porta e a empurro com toda a minha força. A bolsa é muito pesada e me atrasa em
minha corrida pelo pátio, mas eu sou ágil e conheço bem a área. Só paro depois de algumas centenas de
metros, confiante de que os perdi de vista. Vou para a rua onde vive a Sra. Eikura, a minha velhota
favorita, e que sabe da vida de todo mundo...
Quando Robert Tremblay chega em casa no final deste dia horrível, ele provavelmente espera que a
pequena patife seja severamente punida e que ele consiga recuperar sua mala. Ele estaciona seu Hyundai
Élantra cinza, abre a porta da frente e acende a luz. A surpresa que ele tem faz com que derrube as chaves
no tapete de entrada.
No centro da sala de estar, na mesa de café em frente ao sofá está um porta-retratos com uma foto de
sua falecida esposa, rodeada por sete velas vermelhas dispostas a formarem um coração em torno dela. Ele
percebe que sua mala está ao lado da porta da frente. Ele a abre e percebe que não resta nada lá dentro,
exceto um bilhete no qual está escrito: “Oi Robert, eu e os garotos pensamos que não fazemos uma
caminhada há muito tempo, então decidimos sair para passear”.
— Sua vadia!
Ele emite estas palavras secas e furiosas entre os dentes. Vai apagar as velas e pegar o seu telefone, mas
ele desapareceu, a base está vazia, exceto por um post-it no qual está escrito: “Recebi uma chamada
urgente, volto logo”.
Ele então se deu conta de que sentia o cheiro de molho de espaguete cozinhando em sua cozinha e
ouviu o barulho de água fervendo. Rapidamente ele correu para lá e ficou apenas parcialmente surpreso ao
ver a jovem hippie delinquente na frente de seu fogão cozinhando macarrão.
— Boa noite! Desculpa pelo jantar simples, mas não tive tempo para mais nada.
Ela se aproxima orgulhosamente com um sorriso maroto e pega um copo de vinho tinto na mesa para
lhe oferecer.
— Não se preocupe! Eu lavo os pratos desta vez, mas não se acostume.
Ele hesita entre a ideia de bater, empurrar ou gritar com ela e tenta desajeitadamente fazer os três ao
mesmo tempo.
— Calma! Calma! O que diriam os policiais se soubessem que você bateu na sua sobrinha quando ela
te fez um bom jantar. A maioria dos homens gostaria de estar no seu lugar! Senta e vamos conversar um
pouco em vez disso!
— Mi, minha, minha, minha, minha sobrinha? Repito, nem sequer te conheço! Não, é muito ridículo,
vou chamar a polícia agora mesmo!
— Vá em frente, pode brincar de esconde-esconde com seu telefone e diga à polícia que você tem medo
da garota bonita que esta lhe fazendo um belo jantar acompanhado de um excelente vinho que ela mesma
pagou porque você não tem nenhum em casa.
Ela volta para o fogão para mexer na comida.
— Dito isto, só tenho que te servir agora, por que quero que coma enquanto está quente. Você teve um
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dia longo, deve estar com fome.
— Mas qual é o seu problema?! O que quer de mim?! Ele parece frustrado, deprimido e desanimado ao
mesmo tempo.
Coloco o prato dele na mesa e depois lhe respondo.
— Eu quero que você sorria novamente, quero que seja feliz e pare de se afundar nessa espiral de
desgraças que tem vivido desde a morte de sua esposa. Não vou deixar a sua vida até te ouvir sorrindo,
mesmo que isso signifique lhe fazer cócegas.
Eu digo isso agitando os dedos como se estivesse fazendo cócegas nele e ele quase sorri para a situação
ridícula. Ele se senta no seu lugar e olha para mim.
— Muito bem, pegue um prato e vamos conversar.
Pego um prato e me sento colocando-o sobre minha cabeça. Imediatamente, ele corou de raiva e
tentou se levantar.
— Para de agir como se fosse estúpida! Vou te dar uma oportunidade de se explicar, não a desperdice.
— Você me disse para pegar um prato.
— Vai buscar macarrão. Ouvi sua barriga roncando agora há pouco.
— Não cozinhei nada para mim. Eu não como os meus presentes.
Ele parece quase comovido, mas eu posso facilmente sentir que ele está ansioso para que eu saia. Ele
tira o prato das minhas mãos, põe metade da sua parte no meu prato e me diz:
— Vai lá e faz mais macarrão, então.
— Sim, mestre.
Eu não olho para ele enquanto estou cozinhando novamente, mas posso quase sentir seu desânimo e
frustração no meu pescoço.
— Então, por que está fazendo tudo isto?
— Por que não? Você é infeliz e eu posso ajudar, por isso eu ajudo. Desde a morte da sua mulher, tudo
o que faz é trabalhar e esperar pela morte, já não sente o gosto da vida. Seu coração está duro como uma
rocha, ninguém mais te ama e você não ama mais ninguém. A sua esposa vive no seu coração e nas suas
memórias e você faz de tudo para envenenar isso. Se ela estiver olhando para você agora, deve estar
chorando como Maria Madalena e estar se sentindo tão miserável quanto você, se ela ainda te amar.
Porque vamos admitir, a maioria das pessoas encontraria alguém que não nos causa dor como retribuição
pelo nosso amor.
Eu quase sinto que ele está comovido, mas ele é sério demais para se deixar levar pelas palavras de uma
estranha. Eu, por outro lado, não tenho este filtro e as lágrimas escorrem pelas minhas bochechas.
— E você acha que falar comigo sobre a minha esposa falecida, vai me fazer rir esta noite?
— Depende se você ainda a ama ou se você quer continuar a fazê-la sofrer como você esta fazendo
agora. Mas eu já tenho a resposta para isso, sei que você ainda a ama e que toda a esperança que ela
colocou em você não está perdida.
Comemos em silêncio por alguns momentos e ele até provou o meu vinho. Ele é tão sério que nem
sequer pensou em me oferecer um pouco, como se eu nunca tivesse bebido álcool porque sou muito nova.
Então ele disse:
— Tudo bem. Entendi o seu ponto de vista e farei um esforço. Assim está bom?
— Não. Você precisa de tratamento de choque. Coloquei mais macarrão no seu prato e ele olha pra
mim com espanto. Eu lhe dou outro sorriso maroto.
Ele se levanta e diz: — Agora quero você fora da minha casa.
Quando ele disse estas palavras, eu escorrego para debaixo da mesa e com um movimento rápido passo

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pela porta. Da sala de estar, ele me ouve dizer:
— Se me encontrar, eu te conto onde é que a sua carteira está escondida.
— Não vou brincar de pique-esconde.
— Tudo bem. Então ficarei escondida na sua casa até morrer de fome.
Depois de um momento de hesitação, ele se dirige para a porta da frente. Não tenho escolha a não ser
usar minha última carta.
— Eu escondi o meu celular na sua sala de jantar e tudo o que ele filma esta sendo transmitido tudo
para o meu computador. Vou fazer uma montagem de vídeo muito simples que vai provar que você
abusou da sua sobrinha.
Ele para de forma repentina e se volta para o último lugar onde ouviu a minha voz. Finalmente, o jogo
começa! Depois de dez minutos, ele consegue me encontrar atrás de uma cortina e eu passo por baixo dos
braços dele tentando me agarrar. Corro para a cozinha e grito:
— Vou contar até 20! Boa sorte!
— Pare com estes vossos jogos estúpidos! Não estou brincando!
— Claro que está, você acabou de me encontrar. Vai lá, vou poupar seu dinheiro, já que você está duro
e tem um coração partido, vamos mudar o jogo mais tarde. A propósito, sua carteira estava escondida em
uma gaveta da última vez que a vi, mas provavelmente ela vai para outro lugar porque ela é claustrofóbica.
— Merda! Merda! Merda! Ele vem em direção à cozinha. Realmente, percebo um coração definhando
enquanto ele se aproxima!
— A propósito, quando conto na frente de uma câmera, gosto de ficar nua!
Começo rapidamente a me despir e assim que ele entra na cozinha, ele dá um salto para trás. Ele é
educado demais para praguejar, mas tenho certeza que ele pensou em alguma blasfêmia. Ouço-o se afastar
para se esconder e conto em voz alta até 20 sem esquecer dos 19 e meio e 19 e três quartos enquanto me
visto novamente.
Revistei a casa toda, mas ele a conhece melhor do que eu. Depois de 30 minutos, encontro-o atrás de
restos muito poeirentos no porão. Ele quase tem um sorriso orgulhoso.
— Aha! Está sorrindo! É um enorme progresso, provavelmente o primeiro desde o momento fatídico e
deve ser um bálsamo para a dor de sua esposa. Dou-lhe uma palmadinha no ombro com as palavras “Pego”
e corro para o térreo. Claro, ele suspira irritado, mas vem atrás de mim.
Jogamos durante quase três horas jogos diferentes: verdade ou consequência, imitamos animais e se eu
fosse vinte anos mais velha (ou ele vinte anos mais novo), provavelmente teria ido parar no quarto dele,
mas neste caso fomos para a sala de estar para continuar a provar o seu vinho (e agora, ele até permitiu
que eu bebesse um copo!)
Ele riu mais de uma vez, eu perdi a conta. Ele estava sorrindo e exausto.
— Então, assim que eu sair daqui, os policiais virão atrás de mim por ter entrado aqui, roubado coisas,
te oferecido um jantar, uma garrafa de vinho, e te fazer jogar e sorrir, é isso?
— Não, não, não, não, não tenha medo. Cancelarei a minha queixa assim que encontrar o meu
telefone. Vai apagar esse vídeo?
— Acha mesmo que eu faria um vídeo que destruiria a vida de alguém que eu estava tentando salvar?
Ele está comovido e luta para esconder isso desta vez.
— Vamos voltar a nos ver?
— As más línguas diriam coisas horríveis sobre você. O que você precisa, o que sua esposa quer, é que
você seja feliz, mesmo que seja com outra pessoa. Depende de você se você quer ficar viúvo, mas não fique
sentado pensando sobre sua velha vida sozinho. Se você se sentir tentado a afundar novamente, pense nela

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e nos esforços que fiz para impedir que você envenenasse sua vida.
— Obrigado. Obrigado. Ele pronuncia estas palavras como uma pessoa que acabou de ser salva de um
afogamento.
Ele se levanta e eu também. Eu vou até a porta para evitar que ele se depare com a situação
constrangedora de escolher entre um aperto de mão ou um abraço. Antes de sair, eu acrescento:
— Se voltar a se afundar nesse marasmo, lembre-se que não serei tão simpática da próxima vez.
Enquanto eu ando pelo ar fresco da noite de Montreal, eu penso no lindo moreno que conversou
comigo no gramado. Não preciso de mais nada para ser feliz, mas não me recusaria a ter um pouco mais.

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