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Paralelamente à luta pela alfabetização, pela vida política das mulheres (direito de votar
e ser votada), por meio da imprensa da época, havia a forte crítica e oposição por parte
dos homens, em razão do machismo.
É importante destacar que a violência contra a mulher em razão do gênero também está
associada a outros marcadores de desigualdade como a raça, etnia, orientação sexual,
classe social entre outros. Na época colonial, às mulheres negras era reservado todos os
gestos e insultos mais chulos em razão de ser mulher e negra, pois eram vistas como
investidas sexuais fáceis, diferentemente das mulheres brancas. Até hoje se pode observar
a dupla exploração da mulher negra em razão do gênero e de sua raça.
Segundo Del Priore (2013, p. 6), “não importa a forma como as culturas se organizaram”,
a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizada. No Brasil colônia, a
estrutura patriarcal e hierárquica possibilitava um poder do homem sobre a mulher de tal
forma que até a legislação era influenciada, onde castigos e assassinatos de mulheres eram
autorizados.
Del Priore diz que o patriarcalismo brasileiro foi uma soma da tradição portuguesa da
mulher associada à castidade de Nossa Senhora e enclausurada, juntamente com a
colonização agrária e escravista. Era esse patriarcado que “garantia a união entre parentes,
a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais”
(2013, p. 10).
A legislação posta em prática no Brasil antes do Código Civil (1916) foi a portuguesa,
que era constituída pelas Ordenações Filipinas. Nestas, as mulheres não eram vistas como
seres capazes de praticar atos da vida civil, tendo em vista sua inferioridade intelectual.
Quando se casava, a sua incapacidade era suprida pelo marido, que se tornava seu
representante legal. Tal legislação era totalmente misógina, principalmente na seara
criminal, por permitir que mulheres fossem castigadas, ou feridas com pau ou pedra,
isentando quem o fizesse de forma moderada.
Somente com o Código Criminal de 1830, após 350 anos de vigência das Ordenações
Filipinas, é que se obteve um freio em relação a algumas dessas normas, como é o caso
do adultério. Foi proibido matar e castigar mulheres adúlteras, substituída pela pena de
prisão. No entanto, presente ainda a desigualdade de gênero (mesmo após a Constituição
de 1824 prever igualdade formal), o Código considerava que o adultério cometido pela
mulher seria crime em qualquer circunstância. Todavia, no caso do homem, somente seria
crime se o relacionamento fora do casamento tivesse estabilidade e publicidade. Ou seja,
ao homem era permitido “trair sem compromisso”, enquanto a mulher era altamente
reprovada, independentemente do grau de envolvimento.
O advento do Código Civil de 1916 significou um retrocesso aos avanços da luta
feminina, pois mantinha a hierarquização dos sexos em seus artigos, ao instituir a
incapacidade da mulher e o pátrio poder, atribuindo as decisões sobre a família, e sobre a
própria mulher na mão dos homens. Pode-se atentar como um fator positivo, a
possibilidade da separação conjugal se houvesse tentativa de assassinato ou maus-tratos.
No entanto, prezava-se pelo matrimônio, fazendo com que fossem relevados atos de
abusos não tão danosos.
Com a vigência do Código Criminal de 1890 e 1940, duas figuras jurídicas foram criadas
pela defesa dos uxoricidas (noivos, namorados, maridos e amantes que matavam suas
companheiras): os crimes de paixão ou passionais, e a legítima defesa da honra. Os
argumentos da defesa iam de encontro à previsão do Código Criminal de que não
considerava criminosos aqueles que estivessem em estado de completa privação de
sentido e de inteligência. Defendiam que o crime era “provocado por uma paixão
eminentemente social, produzida pela ofensa à honra e à dignidade familiar”. Enquanto a
acusação denunciava que esse tipo de criminoso era antissocial.
A discussão foi tão grande que o Código de 1940 definiu que a emoção ou a paixão não
afastavam a responsabilidade penal. Mas isto, é claro, não impediu que uxoricidas
continuassem sendo absolvidos, a partir da figura da legítima defesa da honra, onde a
liberdade era possível se demonstrasse a infidelidade da mulher e a mancha à honra do
réu. Em 1991, essa figura jurídica foi afastada definitivamente por decisão do STJ, tendo
em vista o entendimento do tribunal no sentido de que a honra ferida seria a da mulher,
por ter praticado conduta reprovável, e não a do companheiro que poderia recorrer ao
divórcio ou separação.
Segundo Enunciado nº 26 (008/2015), da Comissão Permanente de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher (COPEVID): “Argumentos relacionados à defesa da honra em
contexto de violência de gênero afrontam o princípio da dignidade da pessoa humana, o
disposto no art. 226, §8º, da Constituição Federal e o disposto na Convenção CEDAW da
ONU e na Convenção de Belém do Pará”.
As justificativas de tratamento desigual no âmbito jurídico vão sendo desmanteladas ao
longo do tempo, a partir da luta feminina contra o machismo sofrido, principalmente
incorporado às instituições. Os movimentos nascidos da sociedade civil, como o
feminismo, incorporam o combate à violência a partir da segunda metade do século XX,
e aos poucos, a relevância do conceito da violência contra a mulher no ideário brasileiro
começa a ser moldado a partir de 1970.
O movimento de mulheres começa a demandar reformas legais, obtendo várias
conquistas, como o afastamento do crime de adultério pela Lei nº 11.106 de 2005. Na
área cível, as advogadas Romy Martins e Orminda Bastos, ao questionarem o papel
inferior da mulher na família, conseguiram elevar a condição da mulher na família à
colaboradora do homem por meio da Lei nº 4.121/62. Um avanço também foi a Lei do
Divórcio (Lei nº6.515/77) que permitiu o dever da manutenção dos filhos por ambos os
cônjuges e nova possibilidade de separação.
A ascensão da Constituição de 1988 foi essencial para selar o passado ditatorial vivido
pela sociedade brasileiro, a partir da redemocratização, e galgar ainda mais espaço e
garantia a minorias, como as mulheres. A Carta Magna de 88 foi um grande marco para
o direito das mulheres, pois teve forte reivindicação de pautas feministas na constituinte,
que ficou conhecido como Lobby do Batom. Alguns dispositivos importantes: art. 5º, I;
art. 226, §§5º e 8º. Este último como o mais chamativo, pois definiu que o Estado teria
obrigação de intervir nas relações familiares para coibir a violência doméstica.
O Código Penal de 1940 estabelecia como circunstância agravante o cometimento do
crime prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, mas
ignorando a aplicação aos casos de violência contra as mulheres.
A Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, acabou se tornando uma forma de
impunidade aos crimes de violência contra a mulher. A partir do momento que o Juizado
Especial Criminal poderia julgar infrações de menor potencial ofensivo, isto é, penas de
até um ano, podendo ser alterada para dois, cumulada ou não com multa, e as queixas das
mulheres, comumente, referiam-se a delitos que as penas se encaixavam nessa definição
(lesão corporal, ameaça, injúria, difamação), o agressor era condenado a pagar cestas
básicas, prestação de serviço comunitário ou pagamento de multa. Ou seja, pondo a vida
das mulheres ainda mais em risco, banalizando a violência. Essa situação levou as
mulheres lutarem por uma lei específica.
A Lei nº 10.778/03 trouxe um importante avanço para a luta da violência contra a mulher,
em razão de ter considerado esta como uma situação de notificação compulsória, de
caráter sigiloso, pelos serviços de saúde públicos e privados. A Lei acabou também
definindo a violência contra a mulher, incorporando à legislação brasileira o conceito da
violência contra a mulher como violência de gênero, em conformidade com a Convenção
de Belém do Pará.
Em 2004, alterações foram feitas no delito de lesão corporal pela Lei Maria da Penha (Lei
nº 10.886 de 2004), criando o tipo de especial de violência doméstica. As reformas
anteriores à essa lei na esfera penal não produziram o efeito esperado na responsabilização
dos agressores, quanto na prevenção e assistência às mulheres. Pode-se perceber que
muitos anos depois do artigo que trata da violência nas relações familiares, no texto
constitucional, que surgiram leis específicas contra a violência que atinge as mulheres
somente pelo seu gênero: a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio (nº 13.104/15).
A Lei Maria da Penha levou em conta, em seu processo de elaboração, todo esse arcabouço teórico
de quase trinta anos de estudos desses conceitos que surgiram no âmbito acadêmico e nas
normativas internacionais; além disso, teve por “pano de fundo” as Convenções CEDAW, Belém
do Pará e a previsão constitucional relativa à obrigação de o Estado criar mecanismos para coibir
a violência nas relações familiares (art. 226, §8º).
MÓDULO II – O NOVO PARADIGMA DA LEI MARIA DA PENHA
Unidade 1 – Histórico da Lei.
A atuação dos movimentos de mulheres e feministas, por meio de práticas de advocacy (defesa e
argumentação em favor de uma causa com objetivo de influir na formulação e implementação de
políticas públicas), promovem mudanças na legislação, na elaboração ou aperfeiçoamento de
convenções ou leis nacionais, com a finalidade de remover obstáculos ao pleno acesso das
mulheres aos seus direitos, dentre eles o de viver sem violência.
Os primeiros estudos visando a construção de um marco legal para os crimes de violência
doméstica contra as mulheres tiveram lugar na ONG CEPIA, em 2002, contando com
representantes de outras organizações: CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI, CLADEM/BR e
THEMIS. Esse grupo passou a ser conhecido como Consórcio de ONGs, com objetivo de
apresentar ao Congresso Nacional uma proposta de adequação legislativa, com base na CRFB,
art. 226, §8º, e Convenção de Belém do Pará.
A metodologia do trabalho consistiu em analisar os efeitos da Lei dos Juizados Especiais sobre
os casos de violência doméstica; analisar projetos já em tramitação no Congresso e fazer o estudo
comparado de leis especiais sobre violência doméstica, já existentes nos países latino-americanos.
“No balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 sobre as mulheres, diversos grupos
feministas e instituições que atuavam no atendimento a vítimas de violência doméstica
constataram uma impunidade que favorecia os agressores. Cerca de 70% dos casos que
chegavam aos juizados especiais tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica.
Além disso, 90% desses casos terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação sem
que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos
poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era geralmente condenado a entregar
uma cesta básica a alguma instituição filantrópica.”
“Os juizados especiais, no que pese sua grande contribuição para a agilização de processos
criminais, incluíam no mesmo bojo rixas entre motoristas ou vizinhos, discussões sobre cercas
ou animais e lesões corporais em mulheres por parte dos companheiros ou maridos. Com exceção
do homicídio, do abuso sexual e das lesões corporais mais graves, todas as demais formas de
violência contra a mulher, obrigatoriamente, eram julgadas nos juizados especiais, onde, devido
a seu peculiar ritmo de julgamento, não utilizavam o contraditório, a conversa com a vítima e
não ouviam suas necessidades imediatas ou não.”
Assim, a Lei dos Juizados se mostra incompetente para resolver a situação das mulheres vítimas
de violência, sendo incompatível com a ideia exposta na Convenção de Belém do Pará, de que a
violência contra a mulher se configura em uma violação aos direitos humanos.
Havia propostas de alteração de leis no órgão legislativo, mas se tratavam de reformas pontuais.
Isto é, mudavam algo meramente penal, mas não contemplavam de fato a prevenção e proteção
das mulheres. Verificou-se que na maioria dos países latino-americanos, havia o cumprimento do
que aconselhava o Comitê CEDAW, a ONU, e a OEA, quanto à criação de uma legislação
específica para essas situações. O Brasil foi o 18º país latino-americano a elaborar uma lei
integral e específica para regular a aplicação dos delitos cometidos contra as mulheres.
A Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil desde 1995, já falava a respeito dessa
reforma legislativa, se necessário, para proteger as mulheres e combater a violência, em seu artigo
7º. Dois anos de estudos e debates que contaram com a participação de juízes dos JECrims, foi
elaborada uma minuta de anteprojeto, que, segundo suas propositoras, era apenas o início.
O anteprojeto elaborado pelas representantes do Consórcio ONGs contou com as seguintes
propostas:
a) conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém
do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral;
b) criação de uma Política Nacional de combate;
c) medidas de proteção e prevenção às vítimas;
d) medidas cautelares referentes aos agressores;
e) criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar;
f) assistência jurídica gratuita para as mulheres;
g) criação de um Juízo Único com competência cível e criminal através de Varas
Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e outros
relacionados;
h) afastamento da Lei 9.099/95 aos casos de violência contra a mulher.
Em 11 de novembro de 2003, a proposta do Consórcio de ONGs foi apresentada à Bancada
Feminina no seminário promovido para debater a violência doméstica contra as mulheres na
Câmara dos Deputados.
No início de 2004, o Consórcio de ONGs entregou o anteprojeto de lei à então Ministra da
Secretaria Especial de Políticas para as mulheres (SPM), que instituiu um Grupo de Trabalho pelo
Decreto nº 5.030/04, para “elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para
coibir a violência doméstica contra a mulher”. Cumprindo o compromisso arcado durante uma
sessão do Comitê da CEDAW em dar apoio aos grupos da sociedade civil que estavam elaborando
a proposta.
O objetivo do Grupo de Trabalho foi trazer à tona debates para a criação da lei específica, tendo
por base a minuta do projeto criada pelo Consórcio de ONGs. O Grupo de Trabalho foi composto
por representantes de vários Ministérios e Secretarias vinculados ao poder executivo, mas aberto
à participação de ONGs e outros órgãos ou entidades públicas.
O projeto elaborado pelo grupo interministerial contemplou grande parte das propostas do
Consórcio de ONGS, mantendo, entretanto, o julgamento dos casos no âmbito da Lei dos
Juizados. O Consórcio de ONGs previa a criação de um juizado único e específico com
competência cível e criminal, mas o projeto do Executivo mantinha a apreciação desses casos em
órgãos separados, inclusive, com previsão de criação de Varas especializadas cíveis e criminais.
A imbricação das áreas cível e criminal nas demandas de urgência trazidas pelas mulheres
(proibição de contato e aproximação – medidas penais e afastamento do lar e regulamentação de
visitas – medidas cíveis), a criação do Juizado Especial de Violência Doméstica contra a Mulher
e a determinação de competência mista para agilizar a apreciação e decisão dessas demandas era
imprescindível.
A Câmara dos Deputados recebeu o Projeto de Lei em novembro de 2004, no dia (25) em que a
ONU declarou como “Dia Internacional da Não Violência contra a mulher”. Passando pelas
Comissões, o projeto recebeu diversas inovações, como o afastamento da Lei dos Juizados,
criação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Aprovado no Senado, o
projeto foi encaminhado à sanção, tornando-se a Lei nº 11.340 de 2006, denominada Lei Maria
da Penha.
Unidade 2 – Mudanças, avanços e desafios da Lei Maria da Penha.
• Ruptura com o modelo da Lei nº 9.009/95.
Antes da Lei Maria da Penha, grande parte dos crimes cometidos em situação de violência
doméstica e familiar contra a mulher era reconhecida como crime de menor potencial ofensivo,
contando com institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, como a conciliação, transação
penal e suspensão condicional do processo. A LMP inaugurou um novo paradigma de
identificação do elevado potencial ofensivo desses tipos de ilícito, com medidas para sua
prevenção, proteção e penalização.
• Definição de violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero (art. 5º).
A LMP, além de ter definido a mulher como sujeito de proteção no ambiente doméstico e familiar,
assegura à mulher proteção contra outras formas de violência baseada no gênero. O termo gênero
foi introduzido no universo acadêmico brasileiro no final da década de 90.
• Definição de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral, entre outras (art. 7º).
Os diferentes tipos de violência passaram a ser caracterizados pela LMP, o que significou o
reconhecimento dos diferentes tipos de abusos sofridos pelas mulheres. Contudo, a LMP teve o
cuidado de não exaurir as hipóteses, enumerando algumas situações, apenas a título de
exemplificação.
• Criação dos Juizados ou Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com
competência cível e criminal (art. 14).
Antes da LMP, os crimes neste âmbito eram considerados de menor potencial ofensivo, por isso
eram julgados nos Juizados Especiais Criminais. Se fossem crimes cuja pena excedia a 2 anos,
eram julgados nas Varas Criminais comuns e os crimes dolosos contra a vida eram julgados pelo
Tribunal do Júri. Atualmente, devem ser criados Juizados Especiais de Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher (JEVDF) para processamento e julgamento de todos esses tipos de
crime, com exceção dos crimes dolosos contra a vida. Tais Juizados possuem competência mista
ou híbrida, isto é, podem julgar questões criminais, cíveis e de família, desde que estejam
relacionadas com a situação de violência doméstica.
Essa competência híbrida tem sido ignorada por quase todos os tribunais do país, de forma que
os JEVDF têm funcionado como verdadeiras varas criminais. Nos municípios em que não forem
instalados esses Juizados, a LMP estabelece a competência das Varas Criminais, com
competência cível e criminal, para esses delitos.
• Atendimento multidisciplinar (art. 29 a 32).
Um dos grandes avanços da LMP foi contemplar a importância das equipes multidisciplinares nas
intervenções judiciais e extrajudiciais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher.
Essas intervenções, realizadas pelas equipes multidisciplinares de acompanhamento psicossocial,
jurídico e de saúde, têm função de subsidiar a atuação dos juízes, promotores de justiça,
advogados e defensores, muitas vezes problematizando as relações hierárquicas de gênero.
• Acompanhamento da mulher em situação de violência por advogada/o (art. 27).
Com a LMP, tornou-se obrigatória a assistência jurídica à mulher em todas as fases processuais,
o que busca garantir às mulheres maior informação acerca dos acontecimentos, o direito de se
manifestar no processo e nas audiências com acompanhamento técnico, podendo fazer perguntas
e recorrer das decisões. A ressalva diz respeito às medidas protetivas de urgência que dispensam
essa assistência (art. 19).
• A violência doméstica contra mulher independe da orientação sexual (art. 5º, parágrafo
único).
Não apenas nas relações interpessoais heterossexuais ocorre a violência, mas perpassa a
pluralidade das relações familiares, incluindo as relações homoafetivas. O TJSP e o TJSMS já
decidiram pela aplicação da LMP a mulheres transexuais que sofreram violência nas relações
doméstico-familiares ou afetivas.
• Abertura de inquérito policial composto por depoimentos da vítima, do agressor e de
provas documentais e periciais (art. 12).
Antes da LMP, os crimes submetidos à Lei dos Juizados, ao serem registrados na delegacia, eram
submetidos a um modelo simplificado de inquérito, chamado Termo Circunstanciado (TC). O TC
costuma ser muito simples e é apenas uma notícia ao judiciário daquele crime. Era comum ser
arquivado nos Juizados Especiais Criminais em razão da desistência da ofendida.
Com a LMP, independentemente do tipo de crime cometido ou contravenção penal, em situação
de violência doméstica, é feito o registro policial do episódio, tornando-se obrigatória a abertura
do inquérito, a coleta de provas documentais, periciais, a realização do exame de corpo de delito
(quando houver lesões na vítima), bem como a coleta de depoimento da ofendida, agressor e
eventuais testemunhas. Esse inquérito, mais completo, irá auxiliar o processo judicial, sobretudo,
a sua instrução (produção e análise de provas).
Com a obrigatoriedade da instauração do inquérito, a atuação policial, nos casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher, se tornou mais relevante que antes. Além do inquérito, é
dever da polícia oferecer uma atendimento humanizado à mulher em situação de violência,
encaminhar para o IML, para a Casa-abrigo, Centro de Referência Especializado de Assistência
Social – CREAS ou para um atendimento de saúde, registrar a ocorrência, oferecer a ela as
possibilidades de medida protetiva, requerer ao Judiciário o deferimento de medidas protetivas e
de prisão preventiva, efetuar as prisões em flagrante e oferecer subsídios ao MP, quando
necessário. Ou seja, atuar como um integrante de uma rede que buscar o encaminhamento
adequado do caso concreto de violência, e assim, contribuir para a redução dos riscos à segurança
das mulheres e da impunidade desses casos.
• Prisão em flagrante e preventiva (art. 20).
Ampliaram-se também as possibilidades de prisão em flagrante e preventiva, de maneira que o
descumprimento da medida protetiva, por exemplo, já é suficiente para que o juiz decrete, por
iniciativa própria, por requerimento do MP ou por representação da autoridade policial, a prisão
cautelar do autor da violência.
• Medidas protetivas de urgência (arts. 22 a 24).
As medidas protetivas de urgência (MPUs) são consideradas medidas cautelares, diversas da
prisão, voltadas à proteção da mulher em situação de violência. Algumas medidas comumente
concedidas contra o ofensor são: proibição de contato com e aproximação da ofendida e de
testemunhas, afastamento do lar e suspensão do porte de arma. As mulheres também podem ser
submetidas a medidas protetivas, visando a assistência e proteção contra a violência, como
encaminhamento à equipe multidisciplinar, inclusão no cadastro de programas assistenciais do
governo federal, estadual e municipal, acesso prioritário a remoção, quando servidora pública,
manutenção do vínculo trabalhista quando necessário o afastamento do local de trabalho. No
entanto, para as ofendidas, não existe o caráter compulsório que existe para os ofensores. Estes,
se não cumprirem as MPUs a eles impostas, estão sujeitos à prisão preventiva.
• Possibilidade de condução do agressor a programas de reeducação e reestruturação (arts.
45 a art. 152 da Lei de Execuções Penais).
Após a condenação do autor da violência, este poderá ser submetido a programas específicos para
refletir e se reeducar sobre o tema, objetivando, com isso, diminuir a reincidência e as violências
cometidas.
• Retratação da representação em audiência (art. 16).
Inovação que visa garantir maior segurança na continuidade dos atos processuais e na proteção
das mulheres. Se, antes, sendo disponível a ação penal à vontade da ofendida, bastava ela se
manifestar pela desistência do processo (retratação) para o seu arquivamento. É o popular “dar
queixa” e “retirar a queixa”. Atualmente, só poderá desistir do processo em audiência específica
para esse fim (art. 16). Ressalta-se, entretanto, que se trata de direito subjetivo da mulher em
situação de violência. Por isso, somente ela poderá requerer a audiência. Nem mesmo o/a juíza
poderá marcar de ofício audiência para a manifestação da mulher em continuar o processo.
Nessa audiência, deverá ser avaliada a situação de risco que ela vive por magistrados/as e MP
para acatamento ou não do pedido de arquivamento. É importante ressaltar que apenas alguns
tipos de violência que dependem de representação possibilitam a aplicação do art. 16, a exemplo
do crime de ameaça.
• A lesão corporal leve é submetida à ação penal pública incondicionada.
Como a Lei 9.009/95 foi completamente afastada dos casos envolvendo violência doméstica e
familiar (art. 41), a previsão de que as lesões corporais leves dependeriam de representação das
mulheres também foi afastada pela LMP, de forma que a regra penal foi reestabelecida, sendo,
portanto, desnecessária a representação (a anuência) da mulher em situação de violência para o
processamento e prosseguimento da ação penal.
Essa questão tornou-se uniformizada após a decisão do STF na ADI 4424, que consolidou o
entendimento que não se aplica a Lei dos Juizados aos crimes da LMP e que nos crimes de lesão
corporal praticados contra a mulher no ambiente doméstico, mesmo de caráter leve, atua-se
mediante ação penal pública incondicionada.
• Proibição de pagamento de cestas básicas, multas ou quaisquer outras penas pecuniárias,
penas vazias em seu conteúdo, que leva a crer que a agressão foi barata (art. 17).
Sob a Lei dos Juizados, a violência contra as mulheres era tida como crime banal de menor
importância. Comumente, os casos de violência levados aos Juizados resultavam em pagamento
de cestas básicas, prestação de serviço comunitário ou outras formas alternativas que banalizavam
o conflito e menosprezavam os reflexos na saúde mental e física das mulheres.
Fase preliminar (inicia na Delegacia) > MP oferece a denúncia e envia ao magistrado >
Magistrado recebe ou não a denúncia > Recebida a denúncia, tem início o processo criminal.
Antes de se tornar propriamente uma ação penal, a notícia de violência demanda uma fase
preliminar, que geralmente inicia na Polícia. Após a fase preliminar, havendo elementos
suficientes, o MP oferece denúncia, que poderá ser recebida ou não pelo juiz. Se recebida, dá-se
início à ação penal conforme o rito previsto no CPP.
Alguns crimes, como injúria (art. 140, CPP) ou difamação (art. 139, CPP) dependem da iniciativa
das/os defensoras da mulher em situação de violência para serem devidamente processados. A
mulher deve ser informada de todos os atos, e deverá estar sempre acompanhada de advogada/o,
ressalvado o pedido de medidas protetivas de urgência que poderá ser feito a qualquer tempo sem
a presença de advogado (art. 27 c/c 19).
Dentro das relações afetivas, conjugais e familiares, notam-se algumas dimensões que sustentam
situações violentas:
- Intensidade e ambiguidade afetiva; ciclo de violência com intensidades diversas; dificuldade de
reflexão e de identificação da violência; dificuldade de rompimento do ciclo; silêncio e segredo;
medo; adesão rígida a papéis de gênero; culpa/disciplina como elementos justificadores; negação
da experiência violenta e necessidade de preservação da família.
Unidade 3 – A prevenção e a proteção social às mulheres em situação de violência.
A violência contra as mulheres começou a sair da invisibilidade e se tornar parte da agenda pública
no país na década de 80. Uma das primeiras estratégias de abordagem do problema foi a criação
do SOS mulher, pelos movimentos de mulheres e feminista, na cidade de SP, Campinas, BH,
Recifes e outras capitais, de caráter voluntário e solidário. Nesses locais era ofertado acolhimento,
orientação jurídica e psicológica às mulheres que chegavam em busca de apoio. A proposta atraiu
um contingente enorme de mulheres, o que levou a constatação da magnitude do problema,
crescendo a noção de que o Estado era responsável por criar políticas públicas de prevenção e
proteção.
Pode-se citar também a criação dos conselhos dos direitos das mulheres e das DEAMs. A primeira
DEAM foi criada pelo governo de SP em 1985, denominada como Delegacia de Defesa da Mulher
(DDM – foi a única com esse nome, as demais foram DEAMs). Entre 1985 e 86 foram criadas 19
delegacias especiais de atendimento à mulher. Entre as décadas de 90 a 2000, já existiam 125. A
partir a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, cresceram os números de
DEAMs e de Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher nas delegacias comuns. Em 2011, eram
359 delegacias especiais e 111 postos. O IPEA de 2015 registra o total de 506 unidades, 381
delegacias e 125 postos.
A expansão das delegacias no território nacional se deu de forma desigual, sendo a maioria delas
concentradas na região Sudeste, com 217 unidades. A região Sul conta com 95 unidades;
Nordeste, 80; Centro-Oeste, 67 e Norte, 47. Os municípios que apresentaram os maiores números
de DEAMs foram SP, RJ e Teresina. Este tipo de serviço está presente em apenas 7,9% dos
municípios brasileiros.
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/nota_tecnica/150302_nt_diest_13
Apesar do crescimento das DEAMs, verificou-se que elas não eram suficientes para resolver o
problema, tendo em vista que esbarravam em um poder judiciário conservador; esbarravam na
falta de uma legislação específica para a violência de gênero; na falta de capacitação de pessoal
para tratar do tema e na ausência de mecanismos para garantir a segurança e a vida das mulheres
que apresentavam as queixas, pois após os registros das ocorrências tinham que retornar para suas
casas portando intimações aos seus agressores.
A Declaração de Viena (1993) e a Convenção de Belém do Pará (1994) reforçam a
responsabilidade do Estado na prevenção e proteção das mulheres em situação de violência, pois
tanto a ação quanto a omissão, passam a ser consideradas violação de direitos humanos. Isso
contribuiu para um incremento nas políticas públicas na década de 90, mediante a criação de
outros serviços, além das DEAMs e serviços de apoio feminista. Surgiram os centros de referência
para as mulheres, vinculados ao Ministério da Justiça, Casas-Abrigo, Defensorias Públicas
especializadas, serviços universitários que incorporavam novas modalidades de acolhimento e
escuta, bem como atendimento psicológico, públicos e privados, além das diversas modalidades
de atendimento prestadas pela sociedade civil. É interessante observar o avanço lento e gradativo
de políticas voltadas às mulheres, face à ausência de uma lei específica que garantisse a prevenção
e proteção.
***
A mulher passa por uma rota crítica, que significa o caminho percorrido pela mesma, a partir de
um conjunto de decisões e ações para lidar com a situação de violência. O atendimento
fragmentado dos diversos serviços, o ciclo de violência e também os mitos acerca da violência
influenciam a qualidade do atendimento e a rota crítica percorrida pelas mulheres.
O que vem a ser o ciclo de violência?
De acordo com a psicologia de Lenore Walker, os episódios de violência são cíclicos e passam
por três fases:
1ª) Período de tensão, no qual os conflitos se exacerbam e ofensas verbais são proferidas;
2ª) Corresponde àquela em que a tensão se torna aguda, chegando a agressões físicas,
sexuais, abusos, acusações etc;
3ª) Fase da lua de mel, do arrependimento e das promessas de mudanças e de não
repetição das práticas violentas.
Conforme o ciclo venha a se repetir, os episódios podem ser cada vez mais grave, com durações
variáveis de cada fase.
O que vem a ser os mitos sociais?
São mitos que permeiam o imaginário social e que são, muitas vezes, responsáveis por sustentar
ideias equivocadas que legitimam ou que justificam a violência contra as mulheres. Eles limitam
e perpetuam o ciclo de violência.
1) A família é o local mais seguro que existe, o perigo está mesmo é nas ruas.
- 50,3% dos assassinatos das mulheres brasileiros são cometidos por um familiar direto
da mulher (7 por dia), de acordo com o Mapa da Violência de 2015. Violências são
cometidas por pessoas do círculo familiar, afetivo e dentro da própria casa.
2) Violência contra a mulher é reflexo da cultura da pobreza.
- A violência doméstica e familiar perpassa todos os grupos sociais, independente de
renda, cor, religião, orientação sexual e idade, pois é decorrente das desigualdades de
gênero e não necessariamente de classe.
3) O álcool e as drogas são a maior causa da violência.
- O álcool e as drogas são fatores de risco associados à violência, são desinibidores,
agravantes para a situação, mas não figuram condições para o surgimento da violência.
Pessoas que não bebem podem ser violentas e pessoas que bebem não necessariamente o
são.
4) Mulher gosta de apanhar.
- Mito de banalização da violência, sobretudo quando a mulher permanece no
relacionamento após um ou vários episódios de violência. Essa atitude se explica a partir
da análise do contexto de violência e muitos fatores podem contribuir para que ela
permaneça em um relacionamento abusivo, entre eles porque está inserida no ciclo de
violência, com crenças anestésicas, sob ameaça e dentro de um contexto oscilante.
5) Mulher espancada é masoquista.
- Culpar a mulher é uma estratégia banalizadora, fruto da estrutura machista
patriarcal. Ninguém deseja ou gosta de sofrer/apanhar.
6) Dito popular: “Se você não sabe por que bateu na sua esposa, não se preocupe, ela sabe”.
- A ideia de disciplina, de correção é muito utilizada para se justificar inadequadamente
a violência, que nunca possui justificativas reais. Perpetua-se a crença de que se a mulher
fez algo errado, é merecedora do abuso.
7) Homem que bate em mulher é louco.
- Há um pequeno percentual de agressores que apresentam verdadeiramente problemas
mentais ou patologias psíquicas. A violência é caracterizada por um ato consciente, com
a finalidade de obter controle e poder na relação.
8) Tapinha de amor não dói.
- Pesquisas mostram que mulheres em situação de violência passam grande parte do seu
dia/convivência, negociando a não violência.
9) Mulheres costumam mentir que foram estupradas.
- Mulheres não costumam mentir, tendem a ocultar por vergonha, medo, impunidade do
agressor. Essa crença fortalece também a tendência em se culpar e responsabilizar as
mulheres pelo abuso sofrido.
10) Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.
- Falta a internalização social da ideia de que todas e todos, inclusive e principalmente o
Estado, são responsáveis pela prevenção e erradicação da violência contra a mulher.
11) Violência contra a mulher é fenômeno raro.
- A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, registrou, de janeiro a outubro de
2015, 31.432 relatos de violência física (49,82%), 19.182 relatos de psicológica (30,40%),
4.627 de violência moral entre outras.
A Lei, portanto, tomou por base a experiência dos atendimentos das mulheres que revelavam
situações em que as mulheres permaneciam em suas casas, sob risco de novas agressões, por medo
de perder seus direitos. As medidas acima visam resguardar esses direitos, mas para a integral
proteção podem ser necessárias outras medidas, cumuladas com aquelas.
As medidas abaixo têm por objeto a proteção do patrimônio comum ou particular da mulher em
situação de violência; importante observar que para resguardar a integridade física e psicológica
das mulheres, pode ser também necessária a cumulação de medidas. No caso das medidas
previstas nos incisos "b" e "c", o juiz/a oficiará ao cartório competente para as providências.
a) Restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
b) Proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
c) Suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
d) Prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos
materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
No caso da medida prevista no item “a”, o afastamento é, em geral, fixado em metros, assim a
mulher que sofreu a violência preserva os espaços cotidianos de convivência. Em relação a
medida relativa às visitas dos filhos, por ser mais drástica, uma vez que atinge também os direitos
dos filhos à convivência familiar, foi prevista a manifestação da equipe de atendimento
multidisciplinar.
A medida constante do inciso V é importante para impor limites ao poder econômico do autor da
violência na família; pode ocorrer de a mulher, preocupada com o sustento dos filhos e as ameaças
de abandono material (relativas ao sustento do lar), persista na situação de violência e não
denuncie a agressão; assim a medida visa resguardar essas e outras situações assemelhadas. A
medida de proibição de contato é uma das mais comuns e pode ser requerida em conjunto com a
de proibição de afastamento. Diz respeito a qualquer forma de comunicação inclusive pelas redes
de relacionamento.
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As medidas de proteção às mulheres não se esgotam nas imediatas e urgentes. A LMP prevê
providências relativas ao acesso a serviços de contracepção de emergência, profilaxia de Doenças
Sexualmente Transmissivas (DST) e AIDS, inclusão da vítima em programa assistencial,
remoção da servidora pública, manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses.