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Revista Critica de Cidncias Sociais n° 15/16/1T Maio 1985 FRANCISCO LOUGA A cVERTIGEM INSURRECCIONAL»: TEORIA E POLITICA DO PCP NA VIRAGEM DE AGOSTO DE 1975 © objecto da discusso que se segue & a politica do PCP no curto periodo que é 0 culminar da crise politica de 1975, que vai dos primeiros dias de Agosto até 5 de Setembro, tal como pode ser esclarecida pelas relagées com as forgas anta- génieas nese momento de viragem entao indefinida da con- Juntura politica. ‘Sendo impossivel estabelecer com todo o rigor as vontades que entio se manifestavam a coberto das acces pontuais, & no entanto possivel, e necessario, realizar um esforgo para delimi- tar a coeréncia das acgées, a légica global de uma situagdo em que a ideologia era mais transparente do que a da politica actual, e as priticas bem mais conclusivas. Porque qualquer investigador deste periodo, ow mesmo a testemunha directa, vive agora sob a influéncia de uma versio consideravelmente ‘burilada e arredondada: a que tem como explicagio central, como «niicleo racional» dos acontecimentos, a tentativa do PCP de tomar o poder nesse Verao quente. Jus- ‘ifieagdo do bloco forjado no momento do PS até ao Patriarcado, passando por pareeiros menos recomendiveis, tornou-se depois a verso oficial, a histéria dos vencedores. Hoje ¢ aceite como um dado definitivo, ‘A substincia merece ser discutida — e pode revelar as- pectos centrais da evolugdo dos antagonismos de classe que escapam a esta verséo simplificada. Mas interessa comecar por sublinhar como a ideologia, neste exemplo que temos em mos, ganhou uma dimenséo propria, uma autonomia indiscutivel, passou de justificagdo conflitiva para verdade estabelecida Esfera propria de accao das forgas sociais e politicas, a ideolo- gia criow construgdes desproporcionadamente importantes, pro- 150 Franeiseo Loucét curando preencher os espagos de fragilidade do regime que justificam. 16 este 0 caso, Um esforco de rigor histérico — e também de discusséo no estrito plano ideolégico, a que o autor destas linhas nao pode nem pretende escapar’— e de andlise de documentos im- portantes e esclarecedores é hoje tanto mais importante quanto pode assim ajudar a desmontar uma das verdades feitas mais dlidas destes 10 anos. A «critica radicaly da sociedade s6 pode beneficiar disso I Antes ou durante 0 perfodo que consideramos, a identi- ficacéo da politica do PCP com um jacobinismo radical que se arriscava a reeditar 0 golpe de Praga de 1948 foi sistematica- mente brandida pelos seus opositores politicos (por exemplo, Medeiros Ferreira, 1983: 98, ou Melo Antunes, 1975). Recente- mente, um observador tao atento como Perry Anderson insistia na mesma ideia: 40 Partido (Comunista) Portugués, nico a rejeltar o euro-comunismo, tentow sem sucesso tomar o poder atra- és de um putsch burocritico, © ao fazé-lo terminou a Revoluedo Portuguesa (...). O PCP tentou em vao repetir a via chocoslovaca de 1948 para 9 poder buroeratieo, e fa Thow inevitavelmente> (Anderson, 1083: 78 © 80) Boaventura de Sousa Santos, num texto acabado de pu- blicar, refere de passagem a mesma afirmagao, sem que Ihe mereca mais esforeo de demonstracdo (Boaventura Sousa San- tos, 1984: 24) O paradoxo é notavel: uma das questdes mais importantes para a compreensao desta situacio, que foi o culminar dos confrontos sociais durante o PREC, facto que tanta unanimi- dade suscita hoje entre eriticos e analistas, nao obrigou nenhum deles a uma demonstracéo rigorosa, Faltarao ainda os teste- munhos conchudentes, é certo; mas abundam factos e escritos, 0 suficiente para hipdteses fundadas. A investigagao histériea ¢ a critica politiea nao podem dispensar esse esforgo. 1 A luta pelo poder politico durante a crise pré-revolucio- naria de 1974-75 pode ser bastante esclarecida por um estudo rigoroso acerca do Estado durante a fase final do marcelismo e Teoria ¢ Politica do PCP 151 apés 0 25 de Abril, investido por lutas sociais intensas. O que, em grande medida, est& por fazer; algumas investigacdes de ambito universitério encaminham-se nesse sentido, e desde 4 alguns ensaios ¢ textos so uma base necessdria para discusséo (sobretudo Boaventura de Sousa Santos, ibid.; mas também recentemente Mario Murteira, 1984 ¢ Ronaldo’ Fonseca, 1983, entre outros). Esse estudo tem um escolho preliminar: a definigao da margem real de autonomia do Estado face a sociedade de classes no decurso de uma situagao de confrontagao generalizada. Neste ‘texto argumenta-se que essa margem aumenta e que tal fot 0 factor decisive na resolugio dos conflitos; textos que vao ser referidos e eritieados vao no sentido inverso. Trata-se, sem da vida, de uma realidade complexa: um aparelho administrativo paralisado mas com uma forte dose de continuidade com 0 do regime anterior (Santos, 1984: 20 e ss.), ¢ um aparelho repres- sivo onde se eristalizava a diferenciacao mais aguda, sob uma pressio importante mas nado determinante das lutas sociais, num contexto de crise de hegemonia. Esta realidade multifacetada impede por certo que se raciocine com uma imaginaria linha mediana que deserevesse as intengdes do aparelho de Estado, para mais preso de um casamento — mesmo que menos dificil do que se poderia supor — entre a estrutura do pessoal que ficou e a emergente classe politica. A hipétese que aqui se sustenta é que, no conjunto do perfodo eritico de 1974-75, este aparelho acentuou a sua distan- ciagio face aos interesses individuais conflitivos imediatos, no- meadamente integrando-os com o prec de contradicées internas acreseidas, e ao fazé-lo assegurou a sua sobrevivéncia ¢ influén- cia determinante em iitima instancia sobre as conjunturas. Por outras palavras, jogou em pleno a caracteristica central de que se reveste o Estado tipico da relacdo capitalista, para absorver as econsequéncias conflituais geradas pela extorsio da mais- -valiay (Wright e Perrono, 1973: 365-390), na realidade as con- sequéncias de um campo multipolarizado por contradigées, como foi o caso desta crise. Este é um elemento de continuidade: a caracteristica particular da formacao econémica e social por- tuguesa era justamente, em correspondéncia com o nivel de desenvolvimento das forcas produtivas como das classes sociaiz, em funcdo da trediedo histérica concreta construida pela derrota operdria dos anos 30, uma grande autonomia e centralizacéo politica no Estado salazarista. Desta realidade sairam duas con- sequéncias de sinal oposto: um vazio de direcedo politica para uma burguesia que viu em Spinola a sua alternativa para 2 crise do marcelismo, vazio que ainda hoje paga com o papel

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