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CORPOLINGUAGEM –
ANGÚSTIA: O AFETO QUE NÃO ENGANA. Campinas: Mercado das Letras, 2006, v.1, p.
305-316.
O seminário de Lacan sobre a angústia segue uma estratégia muito diferente das
que encontramos na maior parte de seu ensino. Em geral Lacan trabalha tentando isolar
a lógica de um determinado aspecto da experiência psicanalítica escavando fragmentos.
Encontramos tal procedimento tanto em chave estruturalista, quanto dialética ou
histórica. Trata-se de uma espécie de condição de método, o espírito de mathesis, de
dedução dos efeitos à partir da ordem das relações. É sob esta consideração que o
Seminário da angústia representa uma verdadeira anomalia à regra (como o seminário
sobre a ética o será, mas por outros motivos). Aqui Lacan não segue a procura da ordem
mas o espírito de classificação, a taxinomia. É esta a estratégia que tanto Descartes
quanto Espinoza utilizam em seus Tratados sobre a Paixão. Dividir, separar, distinguir,
opor, tais são as operações privilegiadas pelo texto. No fundo se trata da arte de bem
nomear, ou seja, descrever desfazendo equívocos e criando mapas. Essa é também a arte
do anatomista. Aliás, anatomia é uma palavra que contém este radical tão caro aos
psicanalistas: thomein, cortar, separar, escindir, como em sinthome.
Do ponto de vista dos seus objetivos podemos isolar quatro direções neste
seminário:
(a) a tentativa de mapeamento fenomenológico da angústia diante de outras
transformações dos afetos (a angústia é uma afeto que não mente).
(b) uma revisão da teoria da constituição dos objetos para encontrar a forma objetal
concernente à angústia (a angústia não é sem objeto).
(c ) uma revisão da teoria da constituição do sujeito em suas relações com o Outro de
modo a introduzir a noção de separação (a angústia é quando a falta falta).
(d) uma crítica do manejo clínico da angústia que não a distingue de seus sucedâneos.
DUNKER, C. I. L. - A Angústia e as Paixões da Alma In: Leite, N. (org). CORPOLINGUAGEM –
ANGÚSTIA: O AFETO QUE NÃO ENGANA. Campinas: Mercado das Letras, 2006, v.1, p.
305-316.
Aqui sucede que há formas mais puras ou mais combinadas da angústia, sendo a
angústia neurótica definida pela dispersão e pela multiplicidade de suas origens:
fracasso e causa do recalcamento, transformação da libido insatisfeita, variação na
montagem do fantasma. A análise precisa realizar uma experiência com a angústia na
sua forma mais pura, que não é a do desespero, nem a que se liga ao sintoma ou a que se
associa à inibição. A análise é uma espécie de travessia da angústia, de extração de sua
forma elementar para um dado sujeito. Em outras palavras, a substituição do objeto da
angústia pelo objeto causa de desejo.
Portanto, o espírito classificatório não parece estar a serviço da contemplação
das variações da angústia mas serve a uma finalidade clínica: disntinguir entre a
angústia pura e a angústia impura. Com efeito deste método de partição recursiva, que
se verifica também no progresso do tratamento analítico, a angústia vem a ocupar,
conceitualmente, uma posição intervalar:
a) entre sintoma e inibição
b) entre desejo e gozo
c) entre ansiedade e medo
d) entre a dificuldade e o movimento
e) entre a certeza e o engano
f) entre o juízo e o ato
Esta posição intermediária da angústia poderia ser explicada pelo fato de que o
Seminário X corresponde a um segundo momento teórico das relações de Lacan com o
tema da corporeidade. O primeiro é naturalmente representado pela concepção do
Estádio do Espelho e o terceiro pela teoria da sexuação. A angústia é um fenômeno
impensável sem o corpo, isso é patente em Freud, desde a relação com a motricidade e
com as práticas sexuais até a ameaça real ao corpo e o trauma do nascimento. Mas
Freud conta com o recurso do apoio das pulsões no corpo biológico ou pelo menos no
corpo da autoconservação, Lacan não. Este é um argumento inválido sob suas
premissas. O corpo se torna para ele um obstáculo epistemológico. Aqui salta aos olhos
a astúcia do método lacaniano, em vez de partir de uma teoria da corporeidade pré-
DUNKER, C. I. L. - A Angústia e as Paixões da Alma In: Leite, N. (org). CORPOLINGUAGEM –
ANGÚSTIA: O AFETO QUE NÃO ENGANA. Campinas: Mercado das Letras, 2006, v.1, p.
305-316.
(a) a emoção (émotion): o movimento maior do corpo, o movimento para não saber
(b) a turvação (émoi): o corpo que não sabe o que fazer
(c) o embaraço (imbaricare): o corpo obstaculizado, envergonhado
(d) impedimento (empêchement): fratura no movimento que leva o corpo ao gozo
suposto, trata-se da impotência do corpo
(d) o acting-out: o corpo teatral
(e) a passagem ao ato: o corpo que se evade de si
Podemos agora especificar melhor o que antes chamamos de angústia impura e
que Freud denominava de angústia neurótica. Isso que sobra como efeito entrópico de
distorção da angústia é o gozo. Onde há gozo, no corpo, há uma angústia que não se
realiza como tal. O objetivo do tratamento analítico não é produzir angústia onde ali
antes havia gozo, mas reduzir a angústia à sua forma mais pura, menos combinada, para
que assim se efetive uma verdadeira extração do gozo.
Gostaria de ilustrar esta idéia de que a angústia faz corpo e que, portanto, as
formas diferentes de inscrição da angústia representam modos diferentes de
corporeidade a partir de uma pequena analogia freudiana. Em Mal Estar na Civilização
há um momento em que Freud pretende situar a psicanálise diante do que ele chama de
“técnicas da felicidade”. Ele enumera algumas destas estratégias de vida: associação
entre a conquista da natureza e a comunidade orgânica, refúgio em um mundo próprio,
sentimento de que se usufrui de uma experiência que é acessível para poucos, ilusão de
uma realidade esteticamente orientada, sentimento de ruptura intencional com o “mundo
comum”, e finalmente, a anestesia induzida pela intoxicação. A moral de história é
conhecida, a psicanálise não nos leva a felicidade mas apenas à substituição da miséria
neurótica pelo sofrimento trivial da vida comum. Por analogia, poderíamos dizer que o
trabalho sobre a angústia, no tratamento psicanalítico, visaria reduzir o estado de
angústia dissiminada (o estado neurótico mais comum, como dizia Freud) para o estado
de angústia concentrada ? Será que isso implicaria uma transformação da corporeidade ?
DUNKER, C. I. L. - A Angústia e as Paixões da Alma In: Leite, N. (org). CORPOLINGUAGEM –
ANGÚSTIA: O AFETO QUE NÃO ENGANA. Campinas: Mercado das Letras, 2006, v.1, p.
305-316.
Quero mostrar com isso como a noção de organismo não deve ser confundida
com o corpo biológico fruto da discursividade de nossa época. O organismo dos
estóicos é tão organismo quanto o nosso e como tal um corpo dedutível da angústia. O
corpo cínico é de outra natureza, ele se aproxima do que Lacan chamou de carne:
A carne é o que falta ao corpo para se totalizar e que por definição deve ser não
especularizável, ou seja, não cabe na imagem. Zizek passa por esta idéia ao comentar a
presença do corpo na cinematografia de David Linch:
“Na ordem simbólica, não estamos realmente nus mesmo quando estamos sem
roupas, já que a própria pele funciona como “vestimenta da carne”. Esta
suspensão exclui o real da substância vital, sua palpitação; uma das definições
do real lacaniano é que ele é o corpo esfolado, escalpelado, a palpitação da carne
vermelha, viva.” 1
Carne designa assim tanto esta interioridade exteriorizada, o espaço vazio de
negativização da imagem, quanto esta experiência testemunhada pela mística medieval,
como exterioridade corporal. O êxtase - tal como aparece desde São Bernardo e as
místicas medievais, até Santa Teresa de Ávila e as visionárias do barroco - traz consigo
esta idéia fundamental de uma corporeidade exterior (ao simbólico), mas não externa
(ao imaginário). Lugar de uma experiência dolorosa e gozoza, de estigma e
arrebatamento, mas, sobretudo, de difícil descrição. Por exemplo, como na seguinte
passagem do Livro da Vida de Santa Teresa:
“Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro
julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me
perfurava o coração algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava
parecia que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso
amor de Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva
a suavidade produzida por esta dor imensa que a alma não desejava que tivesse
fim nem se contentava senão com a presença de deus. Não se trata de dor
corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participa, e ás vezes muito. É
um contato tão suave entre a alma e Deus que suplico à Sua bondade que dê esta
experiência a quem pensar que minto.” 2
1
Zizek, S. – A lâmina de Linch, in Para ler o Seminário XI, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, p. 220.
2
In Borges Nunes, A. – Do Recato da Clausura ao Turbilhão do Êxtase – Tese de Doutorado, Instituto
de Psicologia da USP, 2001.
DUNKER, C. I. L. - A Angústia e as Paixões da Alma In: Leite, N. (org). CORPOLINGUAGEM –
ANGÚSTIA: O AFETO QUE NÃO ENGANA. Campinas: Mercado das Letras, 2006, v.1, p.
305-316.
4. Organismo
5. Conclusão