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Do Querer ao Dever

A Construção da Autonomia sob o Ponto de Vista da Psicanálise

Christian Ingo Lenz Dunker

“Quando se quer individualizar o adulto


sadio, normal e cumpridor da lei, deve-se sempre
indagar quanto de criança existe nele, que loucura
secreta o habita.” (Foucault, M. – Vigiar e Punir)

1. A autonomia resume ao mesmo tempo uma tarefa prática e uma dificuldade


teórica. Uma tarefa prática que torna a educação, de certa maneira, uma tarefa
auto-contraditória. Queremos que eles nos obedeçam, mas também que eles não
nos obedeçam. Esperamos que nossos filhos tornem-se autônomos ... inclusive
em relação à nós mesmos. Lutamos por cada centímetro de autonomia que eles
conquistam e nos sentimos realizados através deles quando isso se dá.
a. Observemos que estamos falando daquilo que é mais central no desejo
que temos por nossas crianças, talvez nosso bem mais precioso.
Desejamos que eles “cresçam” e que sejam “felizes”. Desejamos que eles
sejam capazes de “cuidar de si” e que eles se “auto-realizem”.
Desejamos que eles sejam “livres” e que sejam pessoas “iguais ou
melhores” do que nós mesmos fomos capazes de ser.
b. É em nome deste desejo de que eles venham a ser, que nós introduzimos
uma série de limitações, restrições e proibições.
2. ... mas olhando mais de perto há um conflito nesta situação. Estou dizendo que a
autonomia das nossas crianças é de certa forma uma extensão da realização da
nossa própria autonomia. Logo, nosso desejo de que elas cresçam e se tornem
autônomas está condicionado pela nossa própria relação de autonomia.
a. Este é o conceito psicanalítico de narcicismo. O personagem de Narciso,
está fascinado por sua imagem. Imagem que ele encontra refletida na
água, mas não sabe ser sua. Não sabe se reconhecer nesta imagem senão
através de uma fascinação misteriosa. Ora, os pais são esta imagem para
os filhos, mas os filhos também são esta imagem para seus pais.
3. Então o primeiro passo rumo à autonomia é separar-se desta imagem.
Curiosamente separar-se é reconhecer nela. Na família aprendemos o sentimento
de que o outro é insubstituível. Uma boa imagem deste processo é:
a. A criança engatinha ao redor da mãe, explora o ambiente, chega ao
perímetro e olha para a mãe. O sinal recebido deste olhar indicará: ir em
frente ou retroceder. Ela chora vigorosamente ao ser deixada na escola,
para em seguida, lançar-se na brincadeira com os amigos. Volta a chorar
quando reencontra a mãe.
b. A criança faz birra. Só porque a mãe quer, ela não quer. A birra, é parte
do negativismo normal (no qual se incluem as recusas). Ele é parte da
luta pelo reconhecimento. Ela não come, não dorme, não obedece em
casa e parece outra pessoa na escola.
c. A criança tem medo de dormir com a luz apagada. Quer a presença dos
pais. Exige sua presença e não tolera a distância. Ela
i. A arte materna é a arte de regular a distância, a presença e a
ausência, a oferta e a recusa, no tempo.
ii. Trata-se apesar de tudo do “querer caprichoso” (da criança e dos
pais), a “lei do coração”. Ela é uma negação circunstancial da
autonomia dos pais (que passam a funcionar no tempo e
querência do filho). Sua majestade o bebê. Mas também o
opressivo ideal de pais: a obsessão materna de ser sem falta, para
produzir esta perfeição em seu filho.
iii. As duas fases:
1. Orientação para a punição e obediência (medo). O
correlato do lado dos pais: o que é mais insuportável, o
não domínio das circunstâncias da educação ou a
impotência diante de um ideal (a culpa). [a loucura
materna e a obsessão com a perfeição]
2. Orientação para si. O correlato do lado dos pais:
orientação ao outro (social). Como saber ? Como criar
idealmente o filho ideal ?
a. Conclusão: no interior do espaço mais privado que
é a relação familiar, base dos laços de cuidado,
confiança e amor. Relação que nos permite, em
tese, uma liberdade “sem limite”, aparece a
obscena figura do Outro público, do nosso Dever
abstrato de como criar um filho (o superego
materno é infinito).
4. Separar-se desta imagem inicial conclui-se com a descoberta de que a lei do seu
desejo e a lei do desejo da mãe estão ambas submetidas a uma dever maior, a lei
do pai. Não porque o pai seja mais poderoso ou mais forte, mas porque a função
do pai é dada por esta exterioridade ao universo privado da relação mãe-bebê.
a. A criança interessa-se pela relação entre os pais. Ela “instrumentaliza”
afetos como o ciúme e a inveja. Ela explora as experiências de
estranhamento.
b. Ela constrói versões de sua própria autonomia (identificações com super-
heróis), devaneios sobre a origem de sua família (adotado?),
c. A criança é capaz de ficar sozinha. Descobre que os adultos mentem ou
omitem (especialmente em matérias cruciais como: sexualidade, morte,
dinheiro, violência e diferenças sociais). Ela cria espaços de intimidade
(praticando a exclusão e a escolha preferencial de parceiros de
brincadeiras).
i. A arte paterna é a arte de separar a mãe da criança [interromper a
loucura materna] e de separar a criança da mãe, em outras
palavras, interromper este modo de funcionamento baseado na lei
caprichosa.
ii. Trata-se do “dever” pessoal, associado ao pai, como introdução de
uma nova forma de autoridade, cujo fundamento é colocado em
questão. [a fase dos porquês]
iii. As duas fases:
1. Orientação para o ideal de bom menino (ou mau menino).
O correlato do lado do pai é a recusa da obediência por
imitação. Ele introduz aqui uma nova contradição: entre a
autenticidade de sua autoridade e a submissão moral que
ele impõe ao filho. [Porque sim ! Por que eu sou seu pai
!]
2. Orientação para a preservação da autoridade pela
autoridade (ou pela destruição da autoridade). Cujo
correlato paterno é a remissão de sua autoridade a outra
fonte. A escola e as demais instituições entram aqui como
representantes desta limitação das leis da família (materna
e paterna). Ambos estão agora submetidos à lei impessoal.
Ou seja, o próprio pai é limitado.
a. Conclusão: no interior da família, quando se
examinam suas relações constitutivas
(matrimônio, aliança e filiação) encontra-se a
dimensão moral que ultrapassa aquela família em
particular. Ao trabalho de auto-realização (como
amor de si como unidade ao outro), sobrepõe-se o
trabalho de reconhecimento. A criança realiza um
triplo esforço de reconhecimento que ao final
caracteriza a dimensão simbólica da autonomia:
i. Reconhece o laço intersubjetivo que se dá
entre os pais, como diferente do que ele
pode ter com cada qual isoladamente.
ii. Reconhece o reconhecimento que o pais
estabelecem por instâncias impessoais às
quais estes se submetem (trabalho, escola,
Estado).
iii. Reconhece o reconhecimento deste
reconhecimento como a lei geral que
preside as relações humanas.

5. A relação entre o querer particular (do bebê) e o dever particular (destes pais)
engendra um novo complexo de questões que organizam a construção da
autonomia daqui para frente. A criança descobre que o verdadeiro
reconhecimento se dá fora da família, entra em guerra com as formas normativas
pelas quais sua autonomia está delimitada.
a. A criança descobre a diferença entre público e privado dividindo-a em
três dimensões: a lei jurídica, a lei moral e a lei ética.
b. Ela descobre a forma impessoal e universal da lei: “Aja como se a
máxima que rege sua ação pudesse ser elevada em lei universal” (Kant)
c. Os sentimentos sociais: nojo, vergonha e culpa.
i. Duas fases:
1. Orientação legalista-contratual. O valor moral da
“desobediência”.
2. Orientação por princípios (pós-convencional).
a. Conclusão: ela descobre que a auto-realização, o
reconhecimento intersubjetivo e a formação são
um sistema de contradições. O interesse jurídico, a
vontade moral e o desejo ético são as vertentes da
construção de sua autonomia, que como tal só será
se for de todos. A liberação (moral e jurídica)
fornece um modelo negativo de liberdade, a ele
deve se acrescentar o modelo positivo
representado pela capacidade de afirmar a
singularidade de seu desejo. De se fazer
reconhecer através dele.

6. Agora podemos voltar ao nosso ponto de partida: Desejamos que eles “cresçam”
e que sejam “felizes”. Desejamos que eles sejam capazes de “cuidar de si” e que
eles se “auto-realizem”. Desejamos que eles sejam “livres” e que sejam pessoas
“iguais ou melhores” do que nós mesmos fomos capazes de ser.

(a) A autonomia não é a independência: a luta contra a dependência jamais termina.


Ela só pode ser reduzida, mas será perdida de qualquer forma (somos
dependentes de nosso corpo, de nossas vontades). Não se trata de conquistar
sozinho um destino que se planejou. A imagem da pessoa que é capaz de
“cuidar de si” é condição necessária mas não suficiente para a autonomia.
(b) A autonomia não é o autocontrole: neste caso se trata do ideal de indiferença,
que é pacientemente construído pela disciplina. O autocontrole é no fundo uma
tática para exercer poder sobre o outro ou para se defender do poder que este nos
impinge. Saber obedecer, para saber mandar. Ab-negação e como expressão de
si mesmo (auto-realização)
(c) A autonomia não é a diferenciação pela produção de uma personalidade
incomum. Medicina, direito e pesquisa científica (as atividades percebidas pelos
europeus como de “pessoas autônomas”). O artista (figuras percebidas pelos
americanos como autônomas). Autonomia não é um atributo do indivíduo que
possui “estilo”, “caráter”ou “personalidade” que o torna incomum.
(d) A autonomia é a crença (prática) da liberdade, que presume que só pode ser
alcançada coletivamente. Quando a lei que a determina é uma lei que pode ser
universalizada socialmente.

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