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s210a2019 (© mercado eeilorial brasileiro em tempos ambivalentes — Jomal da USP O mercado editorial brasileiro em tempos ambivalentes Paulo Verano 6 editor @ professor no curso de Editoragao da Escola de Comunicagées e Artes (ECA) da USP Por Redagéo - Editorias: Artigos - URL Curta: jomal.usp.br/?p=229508 Paulo Verano Foto: Cecilia Bastos/USP Imagens rasil e mundo vive momentos repletos de ambivaléncias. O ritmo é tao frenético que quase nao temos condigées de entender o que acontece. Mundo afora (e adentro), saltamos de cenarios progressistas a conservadores num rapido virar de pagina, Bandeiras tremulam defendendo causas radicalmente dispares. E a economia vai, na satide e na doenga, eclipsando a cultura, quando ndo solapando-a, o que nao impede que aqui e acold acontegam surpresas provenientes de uma gama de micropoliticas. O sociélogo polonés Zygmunt Bauman escreveu em um de seus livros que “Alguns dos habitantes do mundo estdo em movimento; para os demais, é 0 mundo que se recusa a ficar parado” [1]. O tecnolégico compete com 0 artesanal, assim como o privado concorre com o puiblico (ou tenta subjugé-lo, levando a uma série de reagGes e contrarreagées). Se construir uma visdo minimamente integral do que ocorre esta mais para a utopia que para a mais reduzida possibilidade, a verdade vem sendo claramente ultrapassada pela versdo. Ou versées. E ha muitas, normalmente conflitantes. Nao seria diferente com o livro. Quem acompanha 0 mercado editorial pelo noticiario fica sabendo que grandes livrarias como a Cultura e a Saraiva estao em delicada situagao financeira, com dividas que, somadas, chegam perto da casa de R$ 1 bilhdo, o que é um valor assombroso em si, mas que também provoca um delicado efeito cascata no mercado, assim como sinaliza outras modificages que vém sendo operadas dentro da cadeia do livro. Se 0 mercado editorial brasileiro — que fatura anualmente por volta de RS 5 bilhdes — convive com largos periodos de estagnacdo, ou com a manutengdo ou ligeira melhora dos seus nimeros gerais, gragas a reajustes de pregos, e se as certezas de compras governamentais (e milionérias) de livros. didéticos e de literatura infantil e juvenil se abalam a cada mudanga de gestao, também ocorrem novidades, ainda embriondrias, em diregao a um novo desenho para o mercado, que 0 coloque em situagao menos dependente dos sabores ou dissabores governamentais. Ha uma pluralidade de editoras surgindo nesse mesmo mercado turbulento, assim como novos espagos hibridos e livrarias de menor porte sendo criadas ou livrarias de médio porte superando seus resultados financeiros. Muitas dessas em outros mercados que nao os mais saturados (como Sao Paulo e Rio de Janeiro), e mesmo nesses mais competitivos as lojas claramente vém regredindo em metragem e impessoalidade e progredindo na ocupagao do espaco puiblico e na procura de um relacionamento mais préximo com os seus leitores. hitps:fomal usp brlarigosto-mercado-edttoral-braslero-em-tempos-ambivalentes! 48 s210a2019 (© mercado eeilorial brasileiro em tempos ambivalentes — Jomal da USP Assistimos a novo deslocamento: se nos anos 1990 fomos em massa das ruas para as grandes lojas de shopping centers, agora voltamos das megastores para as boas e novas livrarias de rua. Nao foi diferente nos Estados Unidos, com a ruina da Borders, em 2011, e da Barnes & Noble, em 2018. Mas, além das pequenas lojas fisicas mais especializadas, que retomam a experiéncia pessoal, também nos deixamos seduzir pelas interfaces virtuais, como a Amazon e seus incomparaveis descontos, grande protagonista dentre diversos outros marketplaces sediados na internet (que incluem, também, as lojas da maioria das préprias editoras) — e uma das grandes responsaveis por tudo o que vimos assistindo. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, concedida em dezembro de 2018, 0 livreiro Evandro Martins Fontes comentaria: ‘Foi ganancia. O negécio do livro é pequeno. E um modelo de negécio que nao cabe nesse mercado’. ‘Ao mesmo tempo, ha uma infinidade de feiras de livros acontecendo anualmente em varias cidades do Pais — como a Festa do Livro da USP, que, com sua diversidade diretamente proporcional a, de novo, seus grandes descontos, faz parte do calendério cultural da cidade, assim como outras com perfis de publicagdes mais voltados ao universo independente, como a Feira Miolo(s), ha cinco edigdes acontecendo na Biblioteca Mario de Andrade, no centro de Sao Paulo, com mais de 150 editoras e ptiblico que também ultrapassa o milhar —, o que evolui tanto quanto os clubes de livros, que, repaginados, dao félego novo as editoras, com vendas certas e em grande volume. ATAG Experiéncias Literdrias, voltada ao pilblico adulto, e o Leiturinha, voltado ao piiblico infantil, tém tiragens que ultrapassam os 20 mil exemplares. Se ja 6 um nlimero expressivo, isso se amplifica ainda mais se pensarmos que somam-se a estes varios outros clubes de assinaturas de livros, que hidratam um mercado que vem, ha algum tempo, cultivando tiragens médias de mil exemplares — ou bem menos, o que a tecnologia da impressdo por demanda (“p.c.d.”, do inglés print on demand) promete rentabilizar. Em meio a tanta pluralidade, duas palavras se colocam em evidéncia, e por motivos diferentes: © crowafunding se soma as possibilidades de viabilizagao de novos livros — é sintomatico que o Catarse crie nesse mesmo periodo recente uma area especifica para publicagdes. Por outro lado, 0 modelo de consignago comega a balangar como caminho Unico na relagdo entre editores ¢ livreiros Diferentemente do que muitos profetas chegaram a anunciar, temos ainda uma predominancia do papel em relagao ao livro digital — 0 que a crise das duas grandes redes permitiu uma vez mais se constatar. Mais que isso, assiste-se, em determinados nichos, é certo, a uma grande valorizagao da materialidade dos livros, com o investimento em formatos, papéis e acabamentos diferentes associado a uma preocupagao com contetidos mais inventivos. O amor pelos livros Em meio & crise das livrarias Cultura e Saraiva, que em novembro de 2018 entraram com pedidos de recuperacdo judicial em fungao de suas vultosas dividas — declaradas, oficialmente, como sendo de R$ 285 milhdes e R$ 675 milhGes, respectivamente —, causou certa comogao junto ao universo do livro uma “Carta de amor aos livros” [2] escrita por Luiz Schwarcz, presidente do Grupo Companhia das Letras. Nela, 0 editor fazia breve relato da derrocada desses grandes empreendimentos e propunha a compra de livros em livrarias, no Natal, como um ato que ultrapassaria 0 simbélico ao representar “uma grande ajuda a continuidade de muitas livrarias e um pequeno ato de amor a quem tanto nos deu, desde cedo: 0 livro”. Ja estaria sendo debatido aquela altura, porém, que 0 amor aos livros seguia, como seguiria, independente do resultado desastroso das duas grandes livrarias. E que o problema de ambas companhias estaria mais ligado a sua gestdo e ao modelo que escolheram ao longo de sua historia mais recente — em 2017, por exemplo, a Cultura fez duas operagées de aquisigao: da rede francesa FNAC (encerrada em 2018) e da plataforma Estante Virtual; pouco antes, em 2014, a Saraiva decidiu hitps:fomal usp brlarigosto-mercado-edttoral-braslero-em-tempos-ambivalentes! 25 s210a2019 (© mercado eeilorial brasileiro em tempos ambivalentes — Jomal da USP vender sua rentavel divisdo editorial para o grupo Somos Educacdo, concentrando-se no ramo de comercializagao de livros e equipamentos tecnolégicos e, para isso, obrigando-se a pesado investimento para tentar concorrer com uma gigante internacional do porte da Amazon. Terminaria 0 ano amplamente deficitaria, desvencilhando-se de seu setor de equipamentos eletrénicos e fechando ao menos 20 lojas fisicas. Ao fim do exercicio de 2018, seriam precisamente as livrarias de médio porte a comemorar seus resultados: 9% de crescimento no caso da Martins Fontes; 15% nos casos da paulistana Livraria da Vila e da carioca Livraria da Travessa [4]. E, apesar dos pesares, 0 proprio varejo como um todo terminou o ano melhor do que se supunha, crescendo 1,32% sobre 2017 segundo 0 Paine! das Vendas de Livros no Brasil, realizado pela Nielsen e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) [5] Seguem, porém, as ambivaléncias. Os prejuizos causados as editoras ultrapassam em muito a casa dos R$ 100 milhdes, quantia que sequer da conta dos montantes devidos pela Saraiva a apenas 11 grupos editoriais: Moderna, Companhia das Letras, Record, Saraiva Educagao, GEN, Intrinseca, Sextante, Panini, Planeta, Grupo A e Rocco [6]. Prejuizos que prosseguem em espiral atingindo fortemente outras tantas médias e pequenas editoras brasileira, E, também, atingindo em cheio 0 modelo de consignagao, pratica que foi incentivada em casos pontuais pelo editor Monteiro Lobato, nos anos 1920, mas que paulatinamente foi-se tornando caminho tinico para a entrada nas grandes redes, j4 nos neoliberais anos 1990. Na consignagao, 0 livreiro repassa 0 pagamento ao editor apenas se o livro ¢ efetivamente vendido, transferindo o principal do risco de cada publicagao ao editor, Nos casos acima, isso tampouco aconteceria dentro da normalidade. Accrise das livrarias Cultura e Saraiva, que em novembro de 2018 entraram com pedidos de recuperaco judicial em fungao de suas vultosas dividas — declaradas, oficialmente, como sendo de R$ 285 milhées e R$ 675 milhdes, respectivamente. Amor ao livro & parte, o certo é que o poder de recuperacao das editoras de grande porte, com mais. caixa, menos numerosas e com maior poder de reivindicacao de direitos, seja maior que o dos Pequenos e médios editores que tenham valores a receber das duas grandes redes, em maior numero no pulverizado mercado brasileiro. Em diversos casos, os resultados nas duas redes compunham mais de 40% do faturamento mensal de muitas editoras, o que pée sinal de alerta sobre © ano de 2019 quanto aos riscos de ampliagao das ja numerosas demissées na cadeia editorial e de encolhimento do mercado. Pequenas empresas, grandes negocios Coincide com nossa crise econémica mais recente, a partir, portanto, da segunda década dos anos 2000, o surgimento de diversas novas editoras no mercado editorial brasileiro, das quais sao exemplos — para ficarmos nas mais midiéticas — a Ubu Editora, fundada em 2016, como reagao ao fechamento da Cosac Naify, no ano anterior, e a Todavia, criada no mesmo ano, com egressos da Companhia das Letras. Criativas, com poder de investimento e amplo know-how, as duas editoras modificaram 0 mercado editorial a partir do momento em que nele entraram, embora de inicio tenham optado por abragar os canais tradicionais para o escoamento de seus titulos. Diferentemente dessas duas editoras, a maioria dessas novas casas editoriais nao conta com investidores. Em comum, a maioria tem estrutura bastante enxuta e, em todos os casos, é possivel perceber que parece estar na inovagao e no coletivismo um caminho para tempos melhores. Comegam a se tornar mais visiveis nomes provenientes de uma cena publicadora independente, os quais vém reinventando o mercado nacional com propostas editoriais que se descolam do convencional, tanto na concepgao, como na comercializagao. Num cenério téo ambivalente, 6 possivel que uma pequena editora como a paulistana Pélen Livros chegue a marca de 10 mil exemplares vendidos de uma obra comercializada pelas brechas, caso de Heroinas negras, da hitps:fomal usp brlarigosto-mercado-edttoral-braslero-em-tempos-ambivalentes! 35

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