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Natal/RN
2004.2
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Natal/RN
2004.2
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Relações Sociais.
Banca examinadora:
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Orlando P. Miranda - UFRN – Orientador
_________________________________________________________________________
Profª. Drª. Loreley Garcia - UFPB
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. João Dantas Pereira - UFRN
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Às crianças,
Dedico.
5
Agradecimentos
Aos entrevistados, pela porta aberta e pelo tempinho para a conversa sobre ‘coisas
de família’;
Aos amigos Carlinhos, Sueli, Keila, Lorena, Marcos, Manu, Karla e Jane, pela
força;
Eternamente grata
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A do corpo ou a da alma?
- A dor é única,
Resumo
município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e de campo, com ênfase nas
seus pais. O referido trabalho teve como subsídio, uma pesquisa bibliográfica e a própria
intrafamiliar contra a criança, tendo como parâmetro o contexto social em que se inserem
as famílias estudadas.
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Abstract
This study, done in a master program, evaluated the thematic regarding the domestic
physical violence against children. The data was obtained through the SOS children
program from Natal municipality. The used methodology involved either recorded date as
well as an interview done with a professional who had been working on the SOS program
for more than ten years. The study emphasizes violent situations where children were
involved, in particular, beaten by their parents. Our goal was to understand the domestic
violence phenomena against children, using as parameter the social context where the
families were inserted.
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Sumário
1-INTRODUÇÃO.....................................................................................................10
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................94
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................98
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I INTRODUÇÃO
__________________________________________________________________________
campo de forças sociais. A criança passa a ser reconhecida plena de direitos, com prioridade
absoluta, por sua condição peculiar em desenvolvimento. Podemos destacar dois fatores que
francesa, no século XIX. Posteriormente essa mesma bandeira é levantada pelo movimento
feminista e dos direitos humanos e, mais recentemente, pelas entidades de defesa da infância
e da adolescência.
trabalho infantil, na exploração sexual, entre outros, como também, através da violência
negligência.
11
Segundo Del Priore (2000, p. 9), as mudanças ocorridas nos últimos tempos fazem das
crise do ensino ante os avanços cibernéticos, tudo isso tem modificado, de forma
ao Abuso e Negligência na Infância calculam que 12% das 55,6 milhões de crianças
brasileiras menores de 14 anos são vítimas da violência doméstica. Isso significa que 12
A violência contra a criança no seu próprio lar reflete ‘um estado de coisas’ muito
mais revelador do que muitos tratados gerais sobre a violência. A pioneira Alice Miller
Este trabalho tem como objeto de estudo a violência física contra a criança praticada
por seus pais. Através do atendimento às famílias em situação de violência contra a criança,
no programa SOS Criança, no município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e
social e ao discurso da obediência. A violência física contra a criança é apenas uma das
Entendemos por violência física contra a criança o abuso da força física sobre a
mesma, causando desde uma leve dor, passando por danos e ferimentos de média gravidade,
justificativas para tal ato vão desde a preocupação dos pais ou responsáveis com a proteção
espaço doméstico, através do discurso acadêmico e científico, como também dos mitos e
pela pesquisa de campo realizada em vários bairros de Natal, que teve como objeto pais que
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O mistério da ciência implica busca pela verdade; A verdade, por sua vez, tem dois
motivos para que não a alcancemos: ou por sua inexistência, ou porque “a verdade dói”,
como nos diz a sabedoria popular. A dinâmica social que envolve a violência contra a
originária da palavra “infância”, cujo teor tem como idéia ‘aquele que não fala’ (in = prefixo
que indica negação, e fante = origem latina fari, que significa falar, dizer). Sem o exercício
da palavra, a infância é vista como o outro, o de fora, o que não tem voz. É o que nos alerta
Lajolo (1997, p.229) “Enquanto objeto de estudo, a infância é sempre um outro em relação
àquele que a nomeia e a estuda. (...) Assim, por não falar, a infância não se fala e, não se
falando, não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam”.
Novos conceitos e modos de ser da infância são construídos no campo das artes e
ciências: pequeno selvagem, adulto em miniatura, ingênua, tábula rasa a ser escrita, força
excessos e selvageria. A prática do infanticídio era aceita, cabendo aos pais acolher ou
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renegar o filho recém-nascido. Segundo Minayo (2002), o descaso contra a condição infantil
é bem expresso em uma passagem da Bíblia, que relata a prática de comer crianças entre o
povo Hebreu, em momentos de escassez de alimentação: “Dá cá teu filho para que hoje o
educação, através de severos castigos físicos. Uma lei hebraica do período 1250-1225 a.C.
dizia que, caso os filhos não obedecessem aos conselhos paternos, caberia aos anciões puni-
infância era encontrada em várias civilizações, entre elas, o antigo Egito, a Grécia (berço da
A Bíblia, no Antigo Testamento, reforça até hoje a educação corretiva através dos
provérbios “Quem poupa a vara, não ama seu filho”; “Quem o ama, porém, disciplina-o
prontamente” (Provérbios, 13:14). É também no Evangelho que temos uma nova concepção
sagrada e inocente da infância: “Em verdade, vos digo, que se não mudardes e não vos
tornardes como crianças não entrareis no reino dos céus” e “Deixai vir a mim as crianças e
não as impeçais, porque o reino dos céus é daqueles que são como elas”. (Mateus, 18:3 e
19:14).
desigualdade existente na natureza: alguns indivíduos nascem para dar ordens e outros para
expressos na seguinte analogia da figura do pai: Deus é a imagem perfeita do pai, o rei a
imagem perfeita do pai na terra e o pai de família a imagem divina e real perante os filhos.
visão da criança imersa no pecado e desprovida de razão, por não possuir linguagem (logos).
Ele afirma que o erro, a mentira e a corrupção são frutos da incapacidade de quem não tem
moralmente correto.
A partir de Hegel, afirma Ghiraldelli (2000), ‘as coisas do mundo’ começaram a ser
pensadas de um modo diferente. Estas não eram mais vistas como elementos imutáveis,
construídas. No início do século XIX, a infância já aparece como algo obtido por
construção. Ariès (1981) trata a noção de infância como algo que vai sendo montado, criado
a partir das novas formas de falar e sentir dos adultos em relação ao que fazer com as
crianças.
Nos meados do século XVII até a segunda metade do século XVIII, a criança de
camadas populares era tratada como um ser imperfeito e sem valor, vivendo em estado de
abandono quer físico, quer moral. A indiferença social e familiar pelo bem-estar da criança
gerou um alto índice de mortalidade infantil, o que Ariès (1981) denominou de infanticídio
tolerado. A expectativa de vida das crianças portuguesas e de outros povos da Europa, entre
os séculos XIV e XVIII, era de 14 anos, enquanto cerca de metade dos nascidos vivos
nascer era criada por nutrizes (amas-de-leite). Após o desmame, por volta dos 07 anos, a
criança participava ativamente dos jogos e brincadeiras dos adultos. Neste período, as
afetivas e comunicações sociais faziam parte da vida coletiva, não existindo a distinção entre
relações familiares e de amizade. A família começa a se fechar no núcleo composto por pai,
mãe e filhos. Essa mudança ocorreu mais rápido em determinadas classes sociais
(burguesia) e regiões (cidades). A família, ao passar da forma aberta ao mundo exterior para
o modelo nuclear burguês, contribuiu para uma nova concepção da infância, como também,
que existia nos meados da Idade Média até o final do século XVIII – por uma sociabilidade
restrita (“privada”), que se confunde com a família, ou ainda com o próprio indivíduo.
contribuíram para experiências individuais e sociais mais voltadas para a vida privada. As
Estado. Em caso de violência familiar, há uma maior interferência do mesmo, seja na forma
fez da família a grande vitoriosa no advento da sociedade moderna, pois “Toda a evolução
prodigioso crescimento do sentimento de família. Não foi o individualismo que triunfou, foi
membros, não conseguiu eliminar a sociabilidade anônima da rua. Esta sobrevive sob novas
entrelaçamento das relações familiares tradicionais com as novas, nos remetem ao conceito
de comunidade e sociedade.
consenso, costumes, crenças e religião. O espaço societário, por sua vez, é a metrópole, a
nação, o mundo. Tem como base a troca de valores materiais e se caracteriza pelo contrato,
A compreensão dos conceitos de comunidade e sociedade fica mais fácil quando nos
remetemos à teoria das vontades humanas, elaborada por Tönnies (1995): A vida
As vontades humanas mantêm entre si múltiplas relações. Cada relação é uma ação
recíproca, exercida por um lado e suportada ou recebida pelo outro. Estas ações
conflito cotidianamente, onde cada vez mais o domínio das relações societárias vai
segundo Ariès (1981), desenvolve-se através dos mais severos métodos de educação. A
tornaram fórmulas mais gerais de dominação. As disciplinas são métodos que permitem o
controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças
corpo, mas absorver o máximo de forças, energia e potência deste corpo - é a disciplina
estabelecer no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada.
O autor afirma ter a educação rígida várias funções, entre elas: adestrar corpos
do pai onipotente e autoritário tinha poder sobre bens e pessoas, sobre vida e morte dos
filhos (HURSTEL, 1999). Em vários períodos históricos, esta autoridade foi construída
O poder parental atua em diversas esferas da sociedade, que ao fazer parte de uma rede de
1998) afirma que a partir do século XVIII, houve uma ‘suavização’ da prática corporal
imposta à criança. Formas sutis de violência vão sendo utilizadas – os chamados ‘substitutos
séculos XVIII e XIX: uma espécie de quarto escuro, onde os pais trancafiavam os filhos por
horas e até dias, com direito a pão e água, na intenção de corrigir comportamentos
inadequados.
A partir do século XIX, a ‘aliança’ entre médicos e mães, em torno dos cuidados
com a criança, restaura o poder do médico e dá ascensão à mãe no espaço doméstico. Estava
educativos recebidos pela mãe fizeram com que aos poucos a prática da amamentação
materna fosse valorizada e o uso de enfaixes nos bebês fosse abolida. A mãe é designada
Em torno da criança a família burguesa traça um cordão sanitário que delimita seu
postas a seu serviço e controlado por uma vigilância discreta (DONZELOT, 1980,
p. 48).
outro lado, os segmentos mais pauperizados da sociedade, por não ‘acompanhar’ o modo de
repressão e controle. A condição social da família era quem definia as distintas trajetórias
inserção da criança e da mulher no novo modo de produção. A criança passa a ser valorizada
enquanto mercadoria e mão de obra barata, servindo como alicerce e ‘base invisível’ ao
interesses das famílias é substituído pela relação afetiva por livre escolha, tendo como um
dos objetivos, a procriação. Os pais são incentivados a terem mais cuidado com os filhos,
sem excessos corretivos. Várias publicações são dirigidas às mulheres, exaltando o amor
materno (há quem afirme que o mito do amor materno surgiu a partir desse período). Ao
construiu uma concepção da infância a partir de sua própria experiência com crianças órfãs,
em pleno regime fascista. Em vasta obra, enfatiza os direitos da criança sem prefixá-las em
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categorias analíticas, pensamento tão criticado atualmente nas ciências humanas, já que
representa o “muro que construímos para nos separar das crianças, para poder considerar
como animais os seres humanos que nos são confiados, para não sermos implicados no
GUERRA,1998).
criança como alguém inocente e o mundo como vilão, faz-nos entender que a opressão
sofrida pela criança é também a opressão que vivemos. Outro aspecto interessante em sua
obra é quando relaciona o falar e o fazer de uma criança com a nossa reação diante dela. A
relação a ela, aspecto que Freud chama de “contratransferência” (GUERRA, 1998). Por
outro lado, a criança percebe as contradições dos adultos, quando, às vezes, estes defendem
apresenta-se como um ser fraco, impotente, sem direito ao processo decisório de sua família
A relação de forças existente entre adulto-criança (o que sabe tudo e o que nada
sabe), faz a criança seguir para o único caminho existente, a obediência. Resta a criança
apenas o cumprimento do seu papel destinado pela família e sociedade: “A sociedade lhe
confiou um selvagenzinho para que você o civilize, lhe inculque boas maneiras e o torne
mais manipulável (...) e ela espera. Assim esperam o Estado, a Igreja e o futuro patrão”
(Korczak, 1983). Segundo este autor, a hora da criança ainda não chegou. Para tanto, é
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faculdades espirituais, liberar a totalidade das formas latentes que contêm, criá-las no
luta por melhores condições de trabalho, aumento salarial, creche, direito ao aborto e
família patriarcal. A violência contra a mulher veio unificar a luta feminista (COSTA;
1995, p.208).
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entre parentes e conhecidos e uma rede de mútua ajuda entre familiares para garantirem a
sua sobrevivência.
Para muitas famílias, a luta pela sobrevivência implica entrada precoce da criança no
família. O espaço de exclusão social em que se encontram, faz com que a criança em
situação de rua e a que está na rua (com vínculos familiares) conviva muito cedo num
chamada infância negada (GUARA, 1995). Em alguns casos, a criança passa a ter como
única referência o espaço da rua, por ter sofrido, anteriormente, algum tipo de violência na
família.
(FERRARI, 2002). Na medida que cresce, codifica o que está em volta a partir da sua
e não como sujeito. Em nossa sociedade é comum a prática de se relacionar com a criança
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A visão da criança como centro das atenções na família é mais observada na classe
média - a idéia do pai se sacrificar pelos filhos e reviver sua infância na eterna dialética
(1995), pode ser uma leitura errada das propostas da Escola Nova e teorias psicológicas. A
afirma que a teoria pós-moderna não tem uma concepção de infância. A noção de infância é
uma noção moderna. Eis a mudança de paradigma proposta pela pós-modernidade: ela não
precisa de uma noção de infância para falar sobre qualquer temática. Ela quer estar atenta às
novas metáforas, inclusive às novas metáforas sobre as crianças, e, com isso, ver se ela
consegue ampliar e inventar direitos democráticos para todas as crianças. Nessa ótica, o
reconhecimento dos direitos da criança não está intimamente ligado aos modelos
ideológicos de criança.
A luta pela garantia dos direitos da criança passa pela supressão de suas
necessidades, enquanto direitos, como também pela discussão da qualidade da oferta. Não
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basta que todos tenham acesso à escola, mas acesso a escola de qualidade. Se uma das
físico, moral e psíquico, portador de cidadania, prioritária de proteção integral pela família,
assim como pelas necessidades mais gerais da sociedade e principalmente pelo próprio
modelo econômico perverso e excludente, sobre o qual essa sociedade se estrutura. Por sua
exploração e dominação sobre a criança por seus pais e sociedade, p~~or outro, as famílias
sociais, fragiliza os vínculos sociais, massifica o modo de vida das pessoas e desumaniza as
relações familiares.
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A questão está em saber até que ponto o conceito de infância vem suavizando a
em pequenas indústrias, carvoarias e minas foram bem retratadas no estudo de Del Priore,
criança despida, pendurada por uma tipóia entre os seios da mãe, também despida, fazia
crianças abastadas européias foi grande, já que estas eram afastadas da família, entregue a
1
Instituição filantrópica, surgida na França, Portugal e posteriormente, no Brasil, que recebia os ‘expostos’, na
diferentes províncias constataram que, nas comunidades indígenas, a criança era valorizada
por todos os membros adultos e não sofria maus-tratos dos pais. Esta prática foi presenciada
costumes não são aceitos em nossa sociedade, como o infanticídio e rituais de passagens,
obedecessem aos pais, seriam punidos através de palmatórias, varas de marmelo (com
filhos eram vendidos e separados dos pais de acordo com a conveniência do senhor de
também dirigidos à criança-escrava a partir dos 7-8 anos, servindo, deste modo, como uma
prática de controle social para manter tal sistema. O personagem mais conhecido neste
entrar nas estruturas familiares e sociais, através das relações de compadrio. A afetividade
dos pais com os filhos, os mimos maternos e as brincadeiras dirigidas aos pequenos não
eram vistos com bons olhos por moralistas (DEL PRIORE, 2000). Os muitos mimos e o
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amor do pai faziam mal ao filho. Os ensinamentos divinos ensinavam que amar era castigar.
Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequenos, deviam ser combatidos com açoites e
as regiões do país, as idéias dos médicos higienistas tinham como rótulo ‘a arte de cultivar
cientificamente planejado.
familiar à ordem burguesa, tinha como porta-vozes os higienistas. Não era de interesse do
movimento higienista ‘cultivar’ crianças pobres. Para estas famílias eram direcionadas
assim como os escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, entre outros (COSTA,
brasileira
chama atenção pela defesa intransigente da prática de castigos em criança. Segundo Guerra
(1998), o texto é enfático em orientar pais a castigarem gradativamente os filhos. Com essa
prática, as más inclinações do filho seriam banidas, como também aprenderiam a distinção
entre o bem (o permitido, o que agrada aos pais) e o mal (o proibido, o que desagrada). As
tendências naturais dos filhos vinham de encontro aos ideais dos pais, por isso a prática do
castigo, que variava desde os castigos corporais (safanões, palmadas e bofetadas) até a
A infância brasileira teve como primeiro marco legal o Código de Menores, de 1927.
cortes sociais, principalmente nas áreas de saúde e educação agravaram o quadro da maioria
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próximo ao objeto amado, mais sensível às suas angústias, apelos e dengos. Ao parar para
refletir sobre a temática da violência contra a criança, depois de longos anos em contato
indica?
campos da ciência. O caminho árduo para quem deseja estudá-lo desafia qualquer
está mais para desconstruir parâmetros herdados na relação pais/filhos, do que construir uma
teoria sobre esta violência. O estudo do que representa a infância e a família, segue o mesmo
contemporâneo.
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“–Eu vou matar você!“. Esta frase, proferida pela mãe que não queria ver o filho
dirigidas à criança. Esta mãe mendigava com os filhos, no centro da cidade de Natal. A
mendicância faz parte da cena urbana, em aglomerados de cidades de médio e grande porte.
Para ver crianças pedintes, serpenteando entre carros, basta caminhar pelo centro, próximos
para quem vê, nada mais é do que os próprios conceitos pré-estabelecidos embaçando nossa
visão.
mostram como uma diversidade gritante – crianças espancadas em famílias de baixa renda.
direcionadas às teorias voltadas para a noção do sujeito universal. Assim como o transeunte,
minoritário, mesmo assim, com reservas. Vejamos o que Mauss, fundador da antropologia
p.3).
O contato com famílias de baixa renda (ou grupos populares) com determinadas
práticas sociais, neste caso, práticas violentas de pais, confirma a diversidade cultural
folclorizada, voltado para países e sociedades exóticas e distantes, hoje temos uma
diversidade (ou alteridade) cultural entre famílias, gerações, gênero, orientação sexual e
classe. A perspectiva dos autores Mauss e Lambert, compartilhada por Fonseca (2002) é
quem mora na esquina pode ser tão exótica (e tão digna de nossos esforços interpretativos),
violência contra a criança, faz com que a sua conceituação esteja sempre em construção. Em
1626, o médico Zacchia abordou a questão dos maus-tratos na infância do ponto de vista
explicações dos pais: 18 delas vieram a falecer. Neste trabalho, o mesmo descreve certas
mulheres e crianças à autoridade paterna. Este último considerava a infância como “invasão
1995, p.40). Os estudos que revelassem ser a família, em alguns momentos, perigosa para a
criança, não encontrariam apoio, por isso a pouca repercussão do estudo de Tardieu.
(GUERRA, 1998), ao atenderem crianças na rede hospitalar, observaram que várias delas
Através de exames radiológicos, foi constatado que a maioria das crianças apresentava
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lesões em diferentes estágios de cicatrização óssea. Esse quadro foi denominado Síndrome
da Criança Espancada.
sociais, eram espancadas por familiares, não sendo estes, necessariamente, doentes mentais
ósseas e queimaduras de natureza duvidosa, com explicações não convincentes dos pais,
ampliou a definição do conceito de violência física contra a criança, não a limitando a danos
físicos. Considerou esta violência como a Síndrome do Maltrato, na qual a criança pode se
apresentar sem os sinais óbvios de ter sido espancada, mas com evidências múltiplas e
David Gil (AZEVEDO; GUERRA, 2001) sobre o abuso físico de crianças. O mesmo se
violência física contra a criança. É introduzido o termo violência (e não abuso ou síndrome)
percebida, de causar dano físico a outra pessoa. O dano físico pode ir desde a
imposição de uma leve dor, passando por um tapa até o assassinato. A motivação
para este ato pode ir desde uma preocupação com a segurança da criança (quando
ela é espancada por ter ido para a rua) até uma hostilidade tão intensa que a morte
publicados, especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nestes estudos,
francesa e americana.
brasileira sobre a temática da violência contra a criança. Este estudo extrapola o modelo
ou doméstica. Esta última é considerada como toda ação ou omissão que prejudique o bem-
entre pessoas com ou sem função parental, incluindo empregados (as), pessoas que
espaço físico, com ênfase nas relações em que se constrói e se efetua a violência, pode ser
cometida por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir a função
É todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças
e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à
garantir a sobrevivência e;
de cuidados básicos com a criança, como alimentação, afeto, higiene e segurança. Está
social e pessoal. Alguns autores não consideram negligência, quando a própria família não
como também, queimaduras, socos e pontapés, até agressões com armas brancas e de fogo.
criança, assim como o grau de tolerância da família e da sociedade, variam de acordo com
casos de lesão corporal de natureza grave ou morte. O Código Penal brasileiro, no art. 136,
capítulo dos crimes de perigo para a vida e saúde, define maus-tratos como:
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países, inclusive no Brasil, são contra a palmada como prática pedagógica. O castigo
corporal na criança é uma prática cultural violenta e, por ocorrer de forma gradativa, é
qualquer punição corporal, na relação pais/filhos, entre eles, a Suécia (1979), a Finlândia
A violência contra a criança na família tem nas práticas de castigo um campo fértil
para a sua reprodução. De cunho educativo, tais práticas são reconhecidas pelos pais como
segmentos sociais. Frases como: “- Ele (filho) apanha em casa, hoje, para não apanhar na
rua, amanhã!" e "-Ele será criado como eu fui, apanhando!" são marcantes no imaginário
dos pais e estão ligadas à crença de que sem castigo, os filhos não lhes obedecem e não
Segundo Souza Filho (2001), uma das fontes para a produção de um simbolismo de
verdadeira cultura do medo, tais mitos nos habituam a aceitar como necessária e legítima a
utilização da violência sobre o corpo, através da imposição de castigos. Esta aceitação está
natural, necessária e inevitável. A justificação social do castigo passa pelos caminhos dos
Em nossa sociedade, muitos são os mitos de castigos que nos acompanham desde a
mais tenra idade: fábulas, lendas, relatos bíblicos, histórias em quadrinhos, desenhos e
filmes infantis, brincadeiras de rua, entre outros. A ‘pedagogia negra’ (o bater como
Existe uma função socializadora e educativa nos mitos de castigos, através dos
diversas maneiras. Para Souza Filho (2001), esta cultura funciona como instrumento
social, pois é transmitida por ensinamento a cada nova geração. (...) sua
vez mais aparecem versões modernizadas de velhas crenças que integram a ideologia do
. O mito da punição preventiva – bater desde pequeno para evitar males maiores e
. O mito da criança má - a merecer punição porque está sempre em erro e/ou pecado,
. O mito do próprio bem dos filhos - o bater como princípio limitador, onde a força
. O mito moderno de bater – saber bater é uma arte, com uma boa conversa dá certo.
Várias são as funções instituídas aos mesmos, entre elas, proteger e educar os filhos. Ao
ensinar as normas vigentes ao filho, na intenção de protegê-lo do perigo, acaba fazendo uso
da violência física. Nesse ato, os pais transgridem as normas que desejam ensinar, pondo-o
mais lembrados se encontram em Provérbios: "- Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem
o ama, castiga-o na hora precisa!" (13:24); "- Não afaste a disciplina de uma criança. Se
você bate-lhe com uma vara, salvará sua vida do inferno!" (23:13-14). Para estes pais, é
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melhor bater no filho, enquanto pequeno, do que tratá-lo sem castigos. Com isso, o mesmo
não será castigado, rejeitado e nem odiado por familiares e pela sociedade.
violenta pai/filho. É comum ouvirmos a frase: "- Só os pais têm o direito de bater nos
filhos!". Ao abusar da autoridade que lhe é devida, os pais têm o poder de maltratar o filho,
porque este lhe pertence, independente de sua ação ter caráter disciplinador ou não.
. À crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e
. Ao abuso de álcool;
. Ao fanatismo religioso;
individuais. É preciso extrapolar esta visão e descobrir que mecanismos mais gerais da
imprensa e a televisão. O estudo de Guerra (1998) sobre a violência física doméstica contra
considerações:
Vale salientar que as notícias se encontram nas páginas policiais e é de interesse que se
policiais, estreitam os laços entre ficção e realidade, como bem retrata o exemplo a seguir.
das imagens mostradas em horário nobre foi tanta, que no dia seguinte, ao meio-dia, a nível
onde os pais ou qualquer adulto pode muito bem olhar para a criança ao lado e dizer: “- Veja
O ciclo da violência contra a criança na família nos faz questionar até onde a sua
tratos na infância, não implica, necessariamente, que todas as crianças abusadas serão
futuras agressoras.
Alice Miller (2004) vem nos ajudar nessa reflexão. A mesma afirma que o fator
chave desse aspecto é o que denomina 'testemunhas de ajuda'. Alguém que serviu como
protetor ou amigo, mesmo que não tenha solucionado o problema, compreendeu o que a
criança estava passando. Esta testemunha poderia ter sido um parente, um avô, por
crianças não são forçadas a repetir o abuso, posteriormente, com seus filhos.
podemos considerar a história de vida do grupo familiar, os valores internalizados por seus
membros e o meio social. A sociedade, de alguma forma, tolera esta violência em silêncio e
até estimula, legitimando-a através dos costumes e a justificando como ‘tradição’ cultural. A
perfeita, do amor natural e incondicional dos pais, como também, da relação direta da
etnológico da violência (do latim violentia) como força, vigor, emprego de força física. No
da infância) concretiza-se no uso da força física por parte do adulto, calando a voz e os
desejos da criança.
No entanto, o conceito sobre violência é bem mais amplo e não se limita à força
física. Entende-se imediatamente como uma relação assimétrica de poder com fins de
dominação, exploração e opressão. Como afirma Chauí (1985, apud AZEVEDO, 2001,
p.132)
e inferior. (...)_ a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma
coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo
violência.
sociedade é mais ou menos violenta. O que também influencia, são as relações de poder
existente entre seus membros, (...) poder esse decorrente da conversão de diferenças de
1998, p.194).
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que a normalidade dos relacionamentos em nosso país é violenta. Temos uma violência
fundadora marcada por uma cultura que tolera excessos, cujo arbítrio se protege
‘faço e desfaço’, só se incomodando quando legalmente acionado. Isto tem raízes em nossa
uma natureza. Refere-se à coação física, em que alguém é obrigado a fazer aquilo que não
deseja - imposição física de fora contra uma interioridade absoluta e uma vontade livre -
(Aristóteles);
. A violência seria atribuída como algo instintivo da espécie. O instinto de morte era
algo dado, e deveria ser compensado com processos de sublimação e desvio (Freud).
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características individuais não basta, já que propomos identificar os fatores que contribuem
para a sua reprodução. Partirmos da idéia de que a violência não é inerente ao homem, mas
Segundo Marcondes Filho (2001), haveria uma “cultura da violência” à medida que a
inconscientemente, tais práticas vão sendo cultivadas dentro de um certo grupo e as pessoas
elaborada por Pierre Bourdieu (apud MARCONDES FILHO, 2001). Este distingue o
indivíduo, formada pela escola e pelo meio social em que vive; lá se constituem os gostos e
legitimadas.
acreditar que as formas amplamente divulgadas da violência são a face pública de uma
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forma de violência, cuja face privada e microssocial é esse tecido de relações cotidianas em
Se por um lado afirmamos que não existem fronteiras para a violência, por outro
lado, a própria violência física é uma situação-limite. No conflito com o outro, acaba o
diálogo verbal (quando existe) e surgem outras formas de diálogo, entre elas, a linguagem da
força física. Por ser destruidora, a violência tem como função manter um tipo de poder
adulto e a criança não são antagônicos, pois cabe ao primeiro socializar os instintos da
adulto frente às gerações imaturas é de transformar a criança em pessoa capaz de atuar com
o máximo de sociabilidade.
da escala hierárquica de poder. Ou seja, os homens têm amplas categorias sociais para
usufruir o seu ‘pequeno’ poder: mulheres, crianças, homens ocupando posições subalternas.
A mulher, no entanto, usufrui o seu poder frente às crianças, geralmente de sua família.
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violência.
Podemos concluir que a violência não é uma ‘degeneração’ do ser humano, mas um
gratuitamente. Não por outro motivo ele é marginal, está à margem, no limite da
2
GENTILE, S. A Experiência do SOS Criança. Apresentação do coordenador do SOS Criança, Sabino
normas e condutas arbitrárias, ela própria cria mecanismos com intuito de mudar esse
‘estado de coisas’. Isso cabe também para a problemática da violência contra a criança.
Desde a antiguidade até os dias de hoje ocorreram ações isoladas ou coletivas, legais ou não,
com interesses diversos, mas com objetivo primeiro de coibir este fenômeno.
Uma das primeiras sanções imposta contra maus-tratos na infância data dos anos
315-329 d.C. Neste período, em Roma, criou-se uma lei que propunha decepar as mãos dos
pais caso eles praticassem o infanticídio. No ano 830 d.C., a mulher que matasse um recém-
século XII, criou-se uma lei que tratava a morte de criança por nutrizes ou professores como
famílias setecentistas aos operários das fábricas. No decorrer do século, esta prática
começou a ser vista como incivilizada. O chicote, utensílio doméstico comum no antigo
regime, foi substituído pela palmatória ou palmato (uma tábua cheia de furos, usada em toda
a Europa meridional e no sul dos Estados Unidos), que servia para bater na palma das mãos
das crianças.
atenção para a teoria de Elias (O Processo Civilizador), onde este afirma que o declínio da
violação física no século XIX não foi um sinal de diminuição da coerção. Foi um sinal de
físicos em crianças, de certa forma, a partir do caso da criança Mary Ellen, agredida
fisicamente no lar. Como na época não existia lei que a protegesse de seus agressores,
recorreu-se a Sociedade Protetora dos Animais, sob alegação de que a criança também
pertencia ao reino animal. Após este incidente, foi criada a Sociedade de Prevenção da
industriais. O estudo realizado nos Estados Unidos por Straus (apud AZEVEDO; GUERRA,
2001), revelou que a punição corporal faz formar adultos que se adaptam melhor a
afirma que cada sociedade desenvolve formas de criação de filhos que os preparará para o
preenchimento dos papéis que exercerão na vida adulta. Nas sociedades pós-industriais não
basta o indivíduo ser obediente, é exigido que o mesmo seja independente, criativo e
homens públicos. Era comum a criança ser abandonada à noite nas ruas sujas.
Freqüentemente, eram devoradas pelos cães e outros animais que rondavam pelas ruas
(FALEIROS, 1995). A criação da ‘roda dos expostos’ foi uma tentativa de diminuir esse
Brasil, recebia os expostos, na maioria, filhos adulterinos. A sua estrutura física facilitava a
não identificação do responsável pela entrega da criança. Um dos objetivos da roda era
forçados.
53
A lei do ventre livre, criada em 1871, em nosso país, estabelecia que a partir daquela
data, os filhos dos escravos, chamados ‘ingênuos’ nasceriam livres e que até os 12 anos era
longo da história, cada vez mais o caráter de proteção à criança ficava ambíguo: não estava
assistência em nosso país, a partir da cisão de duas categorias distintas da infância: a criança
e o menor. Estes últimos eram estigmatizados pela sua condição de pobre, abandonado e
infrator.
primeiro caso de violência física contra a criança. Correspondia às agressões sofridas pela
menina Petra, por parte de sua madrasta, uma espanhola. (AZEVEDO; GUERRA, 1993).
mesmo de forma vaga e difusa. O Código de Menores, vigente em 1927, suspendia o Pátrio
da cidadania, sendo seus membros porta-vozes contra qualquer tipo de violência envolvendo
da idade penal.
Em 1985, quase cem anos após a primeira notificação de maus-tratos, foi criado o
Campinas, São Paulo, constituído por docentes da PUCCAMP, membros da sociedade civil
condição da infância brasileira a nível estrutural, institucional e legal, culminando com uma
Nova Infância. Estes últimos, atuando na esfera governamental. A nível das ONGs (órgãos
55
forças sociais e a criança reconhecida enquanto sujeito social e de direitos, quebra dogmas e
controle social, através do sistema de garantia de direitos para execução de sua política.
Frente a este aparato legal, temos milhares de crianças submetidas à violência estrutural e
doméstica.
‘naturalizada’, como se não tivesse a ação de sujeitos. Quando vem a tona é por meio de
denúncia, geralmente de movimentos sociais. Para Cruz Neto e Moreira (apud MINAYO,
2000, p. 99):
liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a todos o pleno acesso a seus
56
direitos, pois o Estado volta sua atenção para atender aos interesses das classes
privilegiadas.
Podemos dizer que um dos obstáculos para a criança exercer sua cidadania, dentro
acesso aos serviços básicos da população. Temos como exemplo da condição de não
idéias em conflito, entre os juristas, sobre a concepção do que seja criança e qual doutrina
direito, e os que defendem a criança como objeto de lei, ‘judicializando’ o problema sob a
interpessoais, marcados pela dominação e violência têm sua origem na cultura e instituições
esta autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda
cultura.
Ao longo dos anos, o modelo de família baseado na estrutura patriarcal vem sendo
contestado: - a autoridade paterna como uma função natural - o direito incondicional sobre o
lógica do “- Sabe com quem está falando?”. O cidadão é a entidade que está sujeita à lei, é
um sinal de ausência de relações, enquanto que a família e as teias de amizade são entidades
contraditória entre estas duas lógicas (costume/lei), entre o direito costumeiro e o direito
formal. Se hoje temos o ECA e uma maior intervenção do Estado na esfera privada, através
dos órgãos de proteção à criança, por outro lado, existem relações familiares, com seus
do Adolescente-ECA.
aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1989, ano do 30° aniversário da
adolescente, como ser humano, titular de direitos especiais, em virtude de sua condição
necessidades (saúde, educação, moradia e lazer) passa a dar lugar para o atendimento aos
saúde, habitação, educação e alimentação ocorrem por comodismo dos pais. Esta visão
reducionista da infância no Brasil deixa de lado questões mais amplas para a compreensão
políticos e culturais.
respectivo projeto de sociedade, que na prática não reconhece a nova condição da criança.
Em um país onde transgredir os direitos da criança é comum, lutar para que estes
sejam respeitados soa ilusório. Mas é preciso acreditar nessa possibilidade. O desafio atual
para os atores sociais que lidam com esta problemática é reconhecer a nova condição social
com a violência contra a criança. É importante a parceria com outras instâncias que atuam
direta ou indiretamente com a infância e a adolescência, seja nos serviços básicos (educação,
Nos anos 90, o trabalho em rede surgiu como estratégia do governo e sociedade civil
violência intrafamiliar contra a criança. A sua visibilidade é frágil, devido, entre outros
gestão local para o seu enfrentamento. Em qualquer intervenção, é importante ter uma visão
61
contra a criança. Por isso a importância dos serviços essenciais de saúde, educação,
que os discursos e práticas não caiam no vazio, é preciso que cada ator social, cada entidade
tenha incorporado, na sua prática cotidiana, ações integradas com a comunidade, fóruns de
entre a sociedade civil e amplos setores governamentais, conhecida como Pacto pela
Infância, objetivava a legitimidade social e a efetividade do ECA. Para tanto, era preciso
formulação, tendo como essência, a criança enquanto sujeito de direitos. O resultado deste
Em nosso Estado, o Programa foi criado em 1992, com sede no município de Natal,
(Fundação Estadual da Criança e do Adolescente), que por sua vez, é vinculada à Secretaria
crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. Tem como suporte jurídico o
punindo na forma de lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
seus direitos;
Civil;
maus-tratos, espancamento, situação de risco, abuso sexual, abandono, fuga de casa, reaver
religiosos e culturais. O próprio Estado é também autor desta violência, seja pela
famílias mais vulneráveis socialmente, com suas vidas expostas a partir do próprio local de
moradia, estão mais sujeitas à notificação, ao contrário das classes mais favorecidas, por sua
reclusão e privacidade.
em milhares de famílias.
situação de risco pessoal e social, em um quadro de exclusão social. O que esta violência
está querendo dizer? É o que questiona Sabino Gentile, coordenador do SOS Criança, no
município de Natal:
Lembro-me daquela senhora que foi denunciada por ter espancado sua filhinha de seis
anos de um jeito que ela não apresentava mais nenhum pedacinho de pele que não
64
estivesse com marcas de sangue. Apesar disso, apavorada com a idéia de que a mãe
pudesse vir a sofrer algum tipo de castigo, a filhinha se agarrava à saia como a
protegê-la. Soubemos que a mãe vivia a mesma situação de violência no seio de sua
perspectiva.(GENTILE, 2002)
quando o programa atua a nível terciário, pós-facto, isto é, intervém quando a violência já
tem ocorrido. Apesar de ser importante esta intervenção, é necessário intensificar a atenção
da Criança)-USP: “-É preciso chegar antes que uma criança se torne um prontuário
Criança, tendo como objeto a violência física contra a criança. A pesquisa não se deteve aos
encaminhamentos jurídicos referente aos casos, mas ao teor das notificações e ao contexto
sócio-familiar em que ocorreu o ato agressivo. A mesma poderia ter sido mais rica, se não
de 0 a 11 anos, 30 delas foram constatadas pela equipe do Programa após visita domiciliar.
Quem Bate
Os agressores mais comuns são os pais
Tio 3%
Padrasto biológicos. Estatísticas internacionais indicam
7%
alguns fatores, podemos indicar o seu papel como provedora e chefe de família ou a que
mantêm maior permanência com o filho. Neste levantamento, percentualmente, o pai está
agredindo mais. Foi constatado um baixo índice de companheiros (as) dos respectivos pais
pai bate mais nos de maior faixa etária. Isto pode estar
Pai
Mãe
T. Informal
aposentadas por distúrbios mentais.
43%
Batem de Que
Cinto 6%
Apesar de 10 planilhas não especificarem o
S/ Dados 10%
Fio 2%
mais utilizados.
Mão 4%
Onde
Olhos 7%
S/Dados
33%
68
Alcoolism o 2% Desobediência
13%
descontrole emocional, revelado mais pelas mães,
Quem Notifica
A maioria das notificações é anônima. As
Vizinha;
7% pessoas que denunciam preferem não se
Família;
17% identificar. Nas família predomina as
mais diversas: extensa, nuclear, chefiada por mulheres, pais em novos relacionamentos,
entre outros. Encontramos 05 famílias com história de alcoolismo e 03 pais com distúrbios
mentais. A metade das crianças convive com um dos pais (prevalecendo a mãe).
estender a agressão à esposa e demais filhos. E a mãe, aos outros filhos. Observou-se que 04
mães foram agredidas pelo cônjuge, após bater no filho. Neste caso, as relações de forças,
69
presentes nas relações familiares violentas, retratam uma idéia de poder em que os sujeitos,
SOS Criança, no município de Natal. Na minha primeira abordagem sobre esta temática,
abordadas pelo SOS Criança, não constrói, necessariamente, o que podemos chamar de
A dinâmica social que envolve tais famílias é rica em linguagens na busca pela vida
movimento, o lúdico, a violência, o lazer, a angústia muda do apelo, o grito de revolta, o não
O acesso ao campo empírico, via SOS Criança, faz com que a problemática se volte
para as famílias de baixa renda, já que estas são mais sujeitas à notificação. O SOS Criança
tem como metodologia de ação, receber denúncias, constatar, orientar e encaminhar crianças
espancamento são anônimas. Portanto, para maior visibilidade da problemática, este estudo
se volta para a violência física contra a criança, através de espancamentos praticados por
espancamentos em crianças praticados por seus pais (ver capítulo anterior), 13 pais foram
entrevistados (10 mães e 03 pais). Entre os não selecionados estavam: os que residiam fora
do município de Natal, os que eram só parentes como tio e padrasto, os que eram portadores
diferentes campos da vida social (família, gênero, religião, trabalho, educação, etc.). As
frases elaboradas foram baseadas no estudo de Adorno (1965), com uma variedade de
discordar.
71
Um dos objetivos da entrevista foi tentar apreender, na dinâmica familiar, até onde a
a intenção de averiguar onde inicia (ou acaba) a tênue linha entre a rigidez disciplinar na
de 2003. Observou-se uma boa receptividade à entrevista e tema por parte dos pais. Estes
metade deles não se encontrava mais no endereço indicado. Apenas uma mãe se recusou a
dar entrevista.
separação conjugal e crianças residindo com outros familiares. Verificou-se uma diversidade
de práticas familiares, cuja rigidez na autoridade parental é exercida por um dos pais. É
visível como diferenciam a agressão em si, do castigo físico. O bater para disciplinar não é
considerado violento.
. A segunda fase – Dos 13 pais selecionados, apenas 50% foram localizados nos seus
domicílios. Este alto índice de mudança de endereços pode ser caracterizado como um
contra crianças, praticados por seus pais: 07 mães e 01 pai. Localizados, posteriormente, nos
seus respectivos endereços, 99% residiam na zona oeste de Natal, área considerada de risco
entrevistados e o espaço físico. Houve dificuldade em encontrar alguns pais em casa, como
filhos - apresentavam o filho que estava dando mais ‘trabalho’ e pediam que se conversasse
primeiro com ele. Outros faziam questão que as crianças presenciassem a conversa e, em
outros momentos, estas chegavam devagarzinho, prestando atenção. O pouco espaço físico
famílias.
Encontramos duas faixas etárias: entrevistadas entre 20 a 30 anos, mães, do lar, com
até dois filhos. A segunda faixa são pais entre 30 a 40 anos, de 4 a 9 filhos, onde a maioria
A temática, assim como o seu objeto, campo empírico e metodologia não se deteve a
apresentação dos resultados da pesquisa teve como parâmetros uma abordagem qualitativa,
A cidade de Natal, cantada em verso e prosa, famosa por sua beleza natural e
população acompanhe esse ritmo. Com quase 800.000 habitantes, nos últimos 20 anos a
73
que cerca de 65.000 habitantes vive com renda mensal inferior a R$ 80,00 e 41,62% vive
pelo desemprego, ‘déficit’ de políticas públicas e sistema judiciário ineficaz, quadro geral da
mercado. Como alertava Simmel (1967), o dinheiro regendo a vida das pessoas, numa
rapidez impressionante. É nessa lógica que o espírito individualista suga a vitalidade das
ser e viver contemporânea. Tudo tem que ser vivido aqui e agora. A intensificação da vida
nervosa, da velocidade dos impulsos, imagens e informações faz do lema “- Viva o hoje!” o
código da cidade.
recíproca alicerçada pelas relações familiares. A periferia é o seu lugar na cidade. Cria-se
uma identidade própria através das relações sociais no local de moradia e espaço familiar.
bairros periféricos, a maioria convive com a família de origem, outras, sem moradia fixa.
campo. Vários são os motivos para a instabilidade de moradia e desenraizamento, entre eles:
desavenças com vizinhos e/ou familiares, não ter vínculos familiares na cidade. Como
também, pais que retornaram ao interior do Estado, onde reside a família de origem.
comunidade de baixa renda revelou a importância do parentesco como rede de auxílio intra e
básicas.
profissional fazem com que, para a maioria, a inserção no mercado de trabalho se dê através
sua inserção no mercado formal de trabalho. Sob forte influência cultural, muitas mulheres
75
revelaram que não procuravam emprego porque os maridos ou pais não permitiam que
afazeres domésticos, são consideradas nas estatísticas como inativas. Apenas 1/5 das mães
trabalho. A mesma afirmou que o seu lugar é em casa com o filho, lavando e passando, e a
obrigação do seu esposo é arranjar trabalho e trazer dinheiro pra casa: “- Eu não trabalho
I. S. foi notificada ao SOS Criança por ter batido de cinturão no filho de 03 anos. Na
época confirmou que bateu no seu filho porque ele estava lhe desobedecendo. Afirmou que
a causa dessa desobediência é a sua avó, que faz todos os gostos do bisneto. Grávida de 08
meses, I. S. foi criada e ainda reside com a avó materna. A família extensa (avó, tio, primos,
esposo e filho,) sobrevive da pensão desta avó. O seu pai biológico é alcoólatra, pedinte e
vive na rua. A mãe mora no interior. Explicou que convive há 05 anos com o seu esposo
que, às vezes, passa vários dias fora de casa, dependendo da ocupação que arranja.
Segundo Sarti (2003), o fato de estar trabalhando e provendo a família, faz com que
o valor do trabalho seja não só pelo rendimento econômico, mas por seu rendimento moral,
para trabalhar, dádivas concebidas por Deus, são atributos de dignidade, respeito e
Dos entrevistados em nossa pesquisa, apenas 1/3 tem algum tipo de renda, através do
violência (um dado interessante para ser explorado posteriormente). Destes, dois estão
das crianças e jovens, contribuindo, de alguma forma, no orçamento familiar. Lembro do pai
irritado, comunicando por telefone que iria bater nos filhos (uma de 09 e outro de 11 anos).
Em vez de cuidarem do bar, foram jogar bola e acabaram quebrando o vidro do balcão do
bar, cuja 1ª prestação ainda não tinha sido paga. É comum a criança trabalhar em pequenos
recai sobre a sua própria experiência (“-Eu fui criado trabalhando!”) e como forma de
evitar os perigos da rua. A violência neste caso é um meio, um instrumento que viabiliza a
doméstico e nos cuidados com os irmãos menores. Não acompanhar o pai, não ir à escola ou
não cuidar dos irmãos é um dos motivos da criança sofrer agressões na família.
77
Temos o exemplo do pai mecânico que faz ponto na ponte de Igapó. C. M. é enfático
em não querer o filho, de 11 anos, viciado em videogames, mentindo pra isso e andando
com ‘quem não presta’. Quer ver o mesmo lhe acompanhando no seu trabalho, como faz
seu outro filho de 09 anos. Este pai divide as despesas e a criação dos filhos (tem mais a
caçula de 07 anos) com a esposa, que também trabalha (cuida de idosos). Demonstra certa
agressividade em suas palavras. No meio de uma conversa, afirmou reconhecer que tem que
idade. Ele e seus 07 irmãos foram distribuídos entre parentes e conhecidos. Foi criado por
uma tia, no interior. Com 11 anos foi morar com a irmã mais velha e esposo desta, no Pará.
Afirma que, na verdade, quem lhe criou foi a vida, se teve que apanhar de alguém foi da
vida.
(Programa municipal de incentivo escolar). A situação da criança que recebe alguma renda
para permanecer na escola é delicada. Por um lado, existe a intenção de coibir o trabalho
infantil e evasão escolar, sendo o segundo turno da criança preenchido com o reforço
escolar, esporte e cultura; Por outro lado, quando a bolsa-escola é a única renda da família,
dependendo do contexto familiar, a criança pode não saber lidar com a nova condição: a de
estrutura familiar.
Todas as crianças do Tributo têm histórias de fugas de casa. Entre elas está uma menina de
11 anos, cuja mãe, durante nossa conversa, se queixou de que foi obrigada a deixar o
emprego doméstico para ‘vigiar’ a filha que menstruou, não quer estudar, mas só saber de
78
“homens”. Segundo a mãe, a filha não conhece o pai. Foi notificada por ter espancado a
filha. Na época, demonstrou arrependimento pelo ato, reconhecendo não saber lidar com a
tempo – só tinha uma folga na semana e muita atividade doméstica. Na segunda visita,
concordou com a entrevista. A sua história de vida começa pelo abandono por parte da sua
genitora (esta doou os 06 filhos que teve). Criada por um casal paulista até os 08 anos de
idade (o casal foi embora e não a levou porque não tinha documento), afirma que apanhava
muito dos filhos adolescentes deste casal. Trabalhou em residências de conhecidos do casal
até 03 meses atrás. Não tem escolaridade. Reside com o cônjuge (atualmente
Vários depoimentos colocam a rua como um fator constante de perigo: por residirem
em favelas, morros ou proximidades, os filhos podem ser influenciados por más companhias
(roubo e droga) e as filhas, aliciadas, seduzidas, podendo ficar grávidas. No caso acima, as
constantes fugas da filha são agravadas pela questão da sua sexualidade aflorada e da
preservação da única renda familiar, a qual só seria possível, freqüentando a escola. Lembro
do pai que chegou no SOS Criança afirmando que não iria mais ‘guardar’ a filha adolescente
e que preferia entregá-la a avó. Este pai tinha espancado a filha na frente de uma pizzaria, na
presença do namorado.
Os pais com história de violência, em sua maioria, acham que não tiveram uma boa
educação porque precisaram trabalhar cedo. Mais de 50% trabalharam na infância: trabalho
que os filhos estão tendo uma vida bem melhor do que a deles, já que estão tendo acesso à
79
escola, ao lazer, não trabalham e com um pouco de sorte, ainda ganham dinheiro (bolsa-
escola).
A escola ainda é o meio de garantir uma ascensão social e suprir o próprio desejo dos
pais, que não tiveram essa oportunidade na infância. O nível mais freqüente de escolaridade
como o mais importante para ensinar o filho, sendo a escola e a família fundamentais nesse
processo.
faz parte do cotidiano dos pais. Apenas duas famílias não têm televisão. Apesar da maioria
não concordar com esse tipo de programação, mais da metade assiste diariamente. Um pai
individuais, tais como: a pessoa procura; já nasce ruim ou com uma fraqueza; por ambição e
Não foi verificado, entre os pais com história de violência, o predomínio de valores
que as mulheres têm mais limites que os homens. Quanto à existência de relações
homossexuais, a metade se pronunciou a favor. A maioria não concorda com pena de morte
particularidades inerentes a cada situação encontrada. O vínculo entre pais e filhos existe e o
desafio está em distinguir até onde este vínculo está pondo em risco a vida da criança e se,
na família, foram aceitas por mais de 50% dos pais. Poucos assumiram que praticaram
Porque concordam:
A intervenção na família deve existir, desde que oriente todos: pais e filhos;
É importante ser orientada, porque a pessoa às vezes se abre mais, conversa mais, pois a
Não tem nada contra órgãos de proteção, porque com ela foi bom por ter aprendido muito e
Quando passou por um problema, recebeu orientação do SOS. Foi uma aprendizagem.
Porque a violência ‘tá’ aí fora, o mundo ‘tá’ perdido, tem que bater;
Só concorda com órgãos de proteção quando eles não aumentam os fatos, porque a criança
violento contra o filho como uma violência. O disciplinamento corporal, nesse caso,
esclarecimento, que se estenda também ao filho. Nota-se também que o medo da violência
extrafamiliar, como a polícia, é um forte fator para o bater em casa, na intenção de coibir o
As quatro famílias estruturadas no padrão nuclear (pai, mãe e filhos) residem em casas
alugadas e duas não tem vínculos familiares na cidade. A maioria convive com a família de
arrumando para irem à praia. D.M.S. tem 23 anos, estudante e auxiliar de secretária.
Explicou que a residência onde mora é dos avós do seu esposo. Reside com os mesmos
porque é mais próximo do seu trabalho e colégio. Seu esposo reside com os pais dele em
outra residência e sua filha passa a semana com a avó materna. Pai, mãe e filha se
É essa complexidade interna que faz a família se destacar dos demais grupos sociais.
As novas configurações que o mundo moderno reserva para a família fazem com que o
exemplo acima seja uma das alternativas encontradas para a sua sobrevivência. Alternativa
que, por sua vez, não é característica apenas de camadas sociais mais baixas.
filha pertence. A mãe demonstrou rigidez na educação da filha, afirmando que bate nela pra
mostrar quem é que manda. Não a quer reproduzindo maus hábitos dos primos e colegas de
escola (como por exemplo, chamar palavrão e bater na cara das pessoas).
83
A história desta jovem é marcada pela separação dos pais aos 10 anos, agressões
físicas por parte da mãe, criação em casas de tios e em residências onde trabalhava como
doméstica. Disse que só se encontrou com o pai uma vez, no dia das crianças, quando ele
levou os filhos para passear. Mesmo assim tem boa memória dele. A mãe, segundo a
entrevistada, não foi uma boa referência em sua vida. É esta que atualmente cuida de sua
filha.
Uma das características das jovens mães (mais de 50% dos nossos entrevistados) é
que todas convivem com o seu cônjuge e a maioria cuida da casa e filhos. Afirmam que o
filho tem que obedecer desde pequeno, para que não venha lhe bater depois. Geralmente,
ódio – cuja referência não é tida como positiva, mas é quem está presente no seu cotidiano.
Queixam-se de terem apanhado muito quando pequenos e hoje não podem bater no filho.
Uma entrevistada revelou que foi chamada de assassina, por sua mãe, na presença do filho,
O bater forte no filho, neste caso, não implica apenas na disciplina do ‘não palavrão’,
mas outros fatores envolvendo a história anterior (e atual) da vida dos pais. Entre os
entrevistados, a mãe foi quem mais exerceu a autoridade na família, fazendo uso do castigo
físico (apenas um pai afirmou não ter recebido castigos físicos). Mesmo reconhecendo não
próprio filho. Nota-se que a responsabilidade na criação dos irmãos mais novos também
contribui para uma maior rigidez na educação dos filhos. Uma mãe reconheceu que é severa
com o filho, porque teve que tomar conta dos três irmãos ainda criança, para sua mãe
trabalhar.
84
parto, internação em hospital psiquiátrico ou reconhecimento de que não nasceu para ser
mãe. Esta última é uma mãe que foi notificada por ter batido de cinto no filho de 02 anos.
Na época da visita, o filho de E.F.L. morava com ela. A mesma reconheceu que estava
perdendo o controle com o filho, por este ser hiperativo. Estava muito nervosa porque
dependia totalmente do cônjuge, que não é o pai do seu filho, para sobreviver. Na nossa
entrevista, a mesma afirmou que o seu filho não está mais morando com ela. Demonstrou
pouco apego ao filho, afirmando que não nasceu para ser mãe. Acha que o filho está muito
bem na companhia de sua tia. E.F.L. tem 23 anos, é manicure, veio com a família para
Natal, há mais de 10 anos, após inundação que destruiu a cidade onde nasceu, São Rafael.
Os pais se separaram após problemas com alcoolismo e agressões por parte do pai. Reside
A maioria das mães afirmou que são nervosas. Acham que este nervosismo tem a ver
com sua relação com a figura materna: alcoolismo por parte da mãe, rejeição, falta de
aumenta quando não tem um pão para dar aos filhos: “- Imagine feijão?”. Esse quadro
diverge de alguns estudos sobre a violência contra a mulher (MOREIRA, 1992), onde as
suas histórias de vida indicam sempre a figura paterna como violenta e a mãe como sofrida e
resignada.
Nova, nove filhos, dos quais quatro se encontram abrigados em uma creche, no município
de Macaíba. R.F.S. foi notificada por bater constantemente no filho de 11 anos, que está
passando as férias em sua companhia. Ao conversarmos com a mesma, explicou que seu
filho costuma fugir da creche, onde se encontra abrigado, e vir para a sua companhia. Passa
85
meses nessa situação. Costuma bater nele pra que vá à escola (é do Tributo à Criança).
Nessa hora, as irmãs mais velhas, residentes próximas, interferem, defendendo o irmão.
apanhou muito da mãe de ‘quenga’ de coco. Fugiu aos 10 anos de idade para Natal, para
trabalhar em uma casa de família. Acha que as pancadas recebidas na cabeça deixaram seu
juízo fraco. Já se internou mais de 10 vezes em hospitais psiquiátricos. Está separada do pai
dos seus filhos há três anos. Reside em um barraco no alto do morro, com a filha de 02 anos.
Não tem escolaridade. É protestante. Vai votar pela primeira vez. Recebeu um material de
construção e está construindo sua casa em frente onde mora. Afirma que bate no filho
creche e na escola, como também da ida à igreja. Apesar de todos acreditarem em Deus,
apenas 50% dos pais freqüentam a igreja. Destes, a metade se constitui de católicos e a outra
metade de protestantes. Não se chegou a um consenso sobre Deus. Os pais acham que Ele
traça o nosso destino, mas as mães não concordam. A crença em Deus teve como exemplos
as seguintes frases: Deus existe; está presente em tudo; é amigo; é mais do que amigo; é
nosso pai.
figura divina aparece em forma de ajuda e programas beneficentes. Vejamos o que afirma
espiritual e ascensão social como uma forma de compensar o sofrimento terreno. No caso
dos pais que não freqüentam igreja, a mesma é fonte de concepções gerais que ultrapassam o
dos conflitos: ao mesmo tempo em que denuncia os maus-tratos sofridos pela criança por
parte dos pais, cobra destes mais rigor com o filho quando este pratica alguma desordem.
Como exemplo dessa cobrança, temos a situação da criança que apanhou do pai
porque soltou uma bomba no mercado, fazendo um senhor hipertenso ir parar no hospital. A
princípio, a denúncia chegou ao SOS Criança como sendo a mãe que bateu no filho, mas na
visita foi constatado que foi o pai. Na entrevista, encontramos a mãe sorridente, afirmando
que podíamos conversar com ela, pois era quem resolvia tudo pelo marido (este não se
encontrava). M.D.S. tem 37 anos, convive há 20 anos com o pai de seus 04 filhos. É diarista
e o cônjuge vendedor de picolé. Explicou que seu esposo não bate nos filhos (a criação
destes fica por sua conta), mas nesse dia o mesmo teve que tomar a iniciativa pela gravidade
da situação. Seu filho é do Tributo e foge muito de casa. Divide a casa com outro irmão e
através dos jogos que a criança aprende a lidar com situações, com pessoas e com técnicas
análogas àquelas com às quais se defrontará, posteriormente, no mundo social dos adultos. É
87
hierarquia e relações autoritárias entre as próprias crianças em suas relações cotidianas, nas
quais prevalece a voz (e a força física) da criança maior. O desafio entre as mesmas de
ultrapassar o seu próprio limite e desafiar as normas vigentes (soltar bomba na banca do
vendedor hipertenso, por exemplo) faz parte do jogo e de tentativas primárias de auto-
afirmação no grupo.
vezes, se traduz através da violência contra a criança. Ora prevalece o motivo individual e
particular que estimula o ato agressivo, ora prevalece uma coerção social que os leva ao
mesmo ato, seja por pressões da família ou comunidade. Nas duas formas de expressão, a
formas de sociabilidade.
O lugar da criança na hierarquia familiar e nas relações de poder existente entre pais
nas camadas populares. Para Sarti (2003) a criança goza de certa regalia até os 6 - 7 anos,
autoridade, através de forte hierarquia entre pais e filhos. A delimitação do ser criança é
88
aquela que pode levar surra (SARTI, 2003, p.74). Ao contrário do filho adolescente, que já
convive com seus pais biológicos. Apenas duas crianças não conheceram o pai.
Encontramos uma criança residindo com a mãe e padrasto e a outra com a mãe e irmãos.
Das três crianças que não convivem com a mãe, duas estão com familiares e uma abrigada
da primeira relação conjugal dos pais. A educação recebida por parte da mãe entra em
choque com o comportamento do filho: “- Antes quando os nossos pais falavam, a gente
ficava bem caladinho. Então é preciso que o filho entenda isso. Tem que saber seu lugar,
como por exemplo, não se intrometer na conversa de adultos e não dizer que a mãe está
mentindo!”. Esta mãe reside com esposo e os três filhos e não tem familiares em Natal.
Afirmou que um dia bateu pra valer no filho, porque o mesmo se envolveu em uma
conversa, que deu muita confusão entre familiares do esposo (que moram ao lado) e amigos.
malcriados, influenciados por outros, ou porque tem gênio ruim. Acham que a falta de
controle dos pais é porque faltou autoridade, diálogo e afetividade entre pais e filhos.
Quando castigam é para disciplinar, proteger e mostrar quem é que manda. Uma mãe
explicou que é preciso que o filho saiba quem é a mãe e quem é amigo, por isso bate.
do ato violento, muitas vezes, está relacionado à impotência de não saber lidar com a
rebeldia do filho.
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Para estes pais, o filho obedece mais a quem está mais próximo, ou a quem está mais
distante, porque apanha ou porque recebe gritos e ameaças. Um pai afirmou que os filhos
obedecem porque são calmos, não sabem o que é castigo. Uma mãe, pensativa, lembrou que
criança quando o pai ou a mãe lhe bate, após um ato dito 'fora do padrão'. O bater se torna
uma norma que a própria criança absorve como certa, como se fosse um ato de proteção e de
atenção: “-Eu lhe bato porque ainda me importo com você e me obedecendo você não se
não apanha se sente duplamente culpada: porque errou e porque não apanhou. Quando
apanha e os pais são chamados à atenção por sua causa, o medo que aconteça represálias
contra o pai ou a mãe, às vezes, ultrapassa o próprio medo de ser novamente espancada.
pelos valores adquiridos nessa relação. Nem sempre o discurso do bater é naturalizado pela
criança, como revela o estudo de Azevedo (2001) sobre a opinião das crianças quanto à
prática da punição corporal. Em suas falas está implícita a violação de sete valores
com determinada estrutura e hierarquia familiar. Uma maior flexibilidade das normas
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da vida social em que se insere este grupo. Entendendo a vida social como uma
ordens que, a cada momento e em cada lugar, ganham uma configuração própria
Na maioria das famílias contactadas neste estudo, um dos cônjuges exerce mais a
prática de castigos físicos. Algumas observações abaixo foram construídas e/ou confirmadas
Grande parte dos pais afirma ter apanhado na infância. Reconhecem que foi
uma experiência ruim ou agradecem por não serem criminosos. A maioria reproduz a
violência sofrida nos filhos. Alice Miller (2004) revela que pais com alguma experiência
traumática na infância, com ou sem violência física, tendem a reproduzir atos violentos na
família e na sociedade.
mesmos não saírem de casa e não se machucarem. Às vezes, tais atos acompanham a
descarregam a sua ‘indignação’, o seu ‘nervosismo’ nos filhos. Na maioria dos casos, o não
exemplos, os filhos acham que podem tudo. Na medida em que crescem, não se acostumam
com o “não” que começam a receber dos pais. No conflito da ‘revolta do não’, os pais
inteligência):
liberdade está sendo prejudicada pela presença do filho e não renunciam a vida anterior em
prol do mesmo. Surge, ainda, a necessidade em demonstrar ao (ex) cônjuge que continua
com a sua liberdade. Às vezes, tal necessidade se volta de forma agressiva para o filho. É
x Pais drogaditos:
social, alguns pais são agressivos com todos os membros da família. Em alguns casos,
quando o grau da dependência é muito alto, sua figura paterna/materna se torna hilária na
x A lei quem faz é ele (a) – com história ou não de violência familiar na
infância:
Pais que criam sua própria lei, cujo modelo de honestidade e obediência é
obtido através de duros castigos disciplinares. São rígidos e obcecados pela idéia de que a lei
é muita falha. Deve-se fazer justiça com as próprias mãos. O filho deve seguir suas regras
Pais com superproteção aos filhos, pelo seu aspecto sexual. Não sabem lidar
Pais que não suportam escutar o choro da criança, ver a mesma se lambuzar
ao comer, cair ou se machucar. Não entendem que estas ações fazem parte do processo de
desenvolvimento da criança.
Pais que exigem completa submissão dos filhos, porque estes lhes pertencem.
Se for o pai, este domínio se estende à esposa. Qualquer discordância é sinal de desrespeito
e motivo de agressão.
Pais e filhos vivenciam uma relação com a mesma idade mental. A igualdade,
nesse caso, se transforma em grande conflito interno. Nenhum dos dois quer ceder espaço.
Um, por ser maior, usa a força física para garantir o domínio do seu espaço. Igualdade que
Pais sem vínculos afetivos com o filho. Batem na intenção de machucar, sem
que essas características se ramifiquem e ganhem novos contornos. Não são estanques e nem
social e a precária condição de vida estão presentes nas famílias em situação de violência. A
forma de lutar pela sobrevivência e o grau de resolutividade dos conflitos entre seus
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um universo de saltos,
mil interpretações do pulo
cada vez mais os contextos locais e as experiências individuais e sociais. A família, a classe,
nos indivíduos e nos grupos sociais de modos diferentes, segundo os contextos e as culturas,
2000).
Este movimento mantém uma estreita relação com contexto sócio-cultural dos seus
projetos.
socialização das crianças. Valores reproduzidos e disseminados por uma rede complexa de
social.
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minimizem esta problemática. O desafio assumido neste estudo é apreender alguns fatores
que contribuem para a reprodução desta violência, tendo nos costumes, mitos e crenças,
pais/filhos, mesmo que esta relação tenha como instrumento básico, a violência física e a
exemplo, a prática correcional relacionada ao receio do filho perder a única renda estável da
família ou por não estar cuidando dos irmãos menores. Situações que não serão encontradas
A tênue linha que separa o público e o privado faz despir o ‘manto sagrado’ da
poucos cômodos, em casa conjugada ou vila, ambas com quintal coletivo. São várias
gerações convivendo em um mesmo espaço, anulando, deste modo, a privacidade dos seus
membros.
excludente, sem acesso a benefícios mínimos, sociais, econômicos e culturais, têm mais
desenraizamento.
encontra grande parcela da infância brasileira, cai no risco de se deter a uma cidadania
momento está mais para a construção de novos paradigmas que contribuam no processo de
novo senso comum político (SANTOS, 2000), numa inclusão que leve em conta conceitos
material aos ‘necessitados’: “(...) ‘A verdadeira necessidade social’ representa a média das
se inclui nas necessidades sociais a ser ‘cultuado’ como uma auto-afirmação do indivíduo
cada vez mais grupos populacionais do círculo de qualidade de vida, o que irá reverter esse
quadro é a tradução qualitativa dessas necessidades feita pela família, comunidade, escola e
outros.
direito. Temos como exemplo, o acesso aos serviços privados de educação e saúde. Se
(HELLER, apud GUARA, 1995), a base da eqüidade social se fundamenta na demanda por
justiça apresentada por esta sociedade. A contestação é o que permite a alteração das
primeiro trimestre de 2003, no programa SOS Criança, não quer dizer que esta violência
esteja diminuindo. Mesmo assim, aos poucos, a base para a sua sustentação está sendo
atingida. Hoje temos pais que batem e indivíduos que serão pais e que, provavelmente, irão
bater nos filhos. A diferença é que há uma maior organização de forças sociais contribuindo
tráfico de drogas e a violência doméstica. Estar atento às novas formas de relações, que
aberto às mudanças.
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NOTA:
Gentile* - A Experiência do SOS Criança. Apresentação do coordenador do SOS Criança,
Sabino Gentile, na mostra “Sociedade Viva – Violência e Saúde”, Natal, abril, 2004.