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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA


DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL - DESSO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL - PPGSS

Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Edjane Maria Vale Linhares

Natal/RN
2004.2
2

EDJANE MARIA VALE LINHARES

A violência nossa de cada família:


Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Serviço Social do
Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN como parte dos requisitos
para a obtenção do grau de mestre em
Serviço Social, na área de Sociabilidade
e Relações Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Orlando Pinto de Miranda

Natal/RN
2004.2
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EDJANE MARIA VALE LINHARES

A violência nossa de cada família:


Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Dissertação aprovada pela Banca examinadora como requisito parcial para a

obtenção do grau de mestre em Serviço Social, na área de Sociabilidade e

Relações Sociais.

Aprovada em: 26 /11/2004

Banca examinadora:

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Orlando P. Miranda - UFRN – Orientador

_________________________________________________________________________
Profª. Drª. Loreley Garcia - UFPB

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. João Dantas Pereira - UFRN
4

Às crianças,
Dedico.
5

Agradecimentos

Ao Programa SOS Criança, rico espaço de experiência de vida, trabalho e pesquisa.


Em especial, a Sabino e a Genilda, exemplos de luta e compromisso;

Ao Dept° de Pós-Graduação em Serviço Social, em especial à Célia e à Severina;

A Orlando, orientador e conselheiro, pela paciência, carinho e atenção;

Aos entrevistados, pela porta aberta e pelo tempinho para a conversa sobre ‘coisas
de família’;

Aos amigos Carlinhos, Sueli, Keila, Lorena, Marcos, Manu, Karla e Jane, pela
força;

A Jô, pela gramática;

A Bosco, pelas normas da ABNT;

A Lígia, irmã e amiga, por acreditar;

Aos meus pais, que sempre estiveram do meu lado;

A Haroldo, que acompanhou boa parte deste trabalho;

A Bartolomeu, a quem também dedico, pelo espaço cedido do computador

E a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho:

Eternamente grata
6

- Qual a dor que dói mais:

A do corpo ou a da alma?

- A dor é única,

Corpo e alma é uma coisa só!


7

Resumo

Este estudo é o resultado da pesquisa de mestrado, cuja temática aborda a questão da

violência intrafamiliar contra a criança. Através do programa SOS Criança, localizado no

município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e de campo, com ênfase nas

situações de violência física contra crianças, em especial, o espancamento praticado por

seus pais. O referido trabalho teve como subsídio, uma pesquisa bibliográfica e a própria

experiência da mestranda, educadora social há 10 anos no referido programa. A intenção

deste estudo é compreender como se processa a reprodução do fenômeno da violência

intrafamiliar contra a criança, tendo como parâmetro o contexto social em que se inserem

as famílias estudadas.
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Abstract

This study, done in a master program, evaluated the thematic regarding the domestic
physical violence against children. The data was obtained through the SOS children
program from Natal municipality. The used methodology involved either recorded date as
well as an interview done with a professional who had been working on the SOS program
for more than ten years. The study emphasizes violent situations where children were
involved, in particular, beaten by their parents. Our goal was to understand the domestic
violence phenomena against children, using as parameter the social context where the
families were inserted.
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Sumário

1-INTRODUÇÃO.....................................................................................................10

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE INFÂNCIA


2.1 Infância, família e violência: breve histórico....................................................13
2.2 O conceito de infância na sociedade brasileira.................................................26

3 A VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA A CRIANÇA NA FAMÍLIA


3.1 Considerações conceituais.................................................................................31
3.2 Fatores, mitos e outros discursos......................................................................39
3.3 Violência, cultura e identidade.........................................................................45

4 A POLÍTICA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA


4.1 A trajetória da política de proteção à infância ................................................50
4.2 A criança, sujeito de direitos: a cidadania em rede..........................................55
4.3 A experiência do SOS Criança..........................................................................61

5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO


5.1 O universo da pesquisa.....................................................................................69
5.2 A cidade, a rua, o trabalho................................................................................72
5.3 A casa, a família, a comunidade.......................................................................81
5.4 O lugar dos filhos: espaço de obediência?........................................................87
5.5 Perfil social dos pais..........................................................................................89

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................94

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................98
10

I INTRODUÇÃO
__________________________________________________________________________

Na sociedade ocidental, o século XX é um marco na luta pelos direitos da criança. O

novo paradigma da proteção integral insere a questão da infância e da adolescência no

campo de forças sociais. A criança passa a ser reconhecida plena de direitos, com prioridade

absoluta, por sua condição peculiar em desenvolvimento. Podemos destacar dois fatores que

contribuíram para esse reconhecimento: o avanço da ciência, (em especial, a psicanálise e a

pediatria) e o movimento social pela cidadania, bandeira levantada desde a revolução

francesa, no século XIX. Posteriormente essa mesma bandeira é levantada pelo movimento

feminista e dos direitos humanos e, mais recentemente, pelas entidades de defesa da infância

e da adolescência.

No Brasil, há pouco mais de uma década, o Estatuto da Criança e do Adolescente-

ECA- veio consolidar a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e,

portanto, portadores de cidadania. Apesar dos avanços científicos e jurídicos, a maioria da

população infanto-juvenil convive com várias formas de violência, eliminando, na prática, a

cidadania conquistada por lei.

A violência contra a criança se manifesta através da violência estrutural, visível no

fenômeno “meninos e meninas de rua”, no internamento de crianças e adolescentes, no

trabalho infantil, na exploração sexual, entre outros, como também, através da violência

doméstica ou intrafamiliar, manifestando-se na violência física, sexual, psicológica e na

negligência.
11

Segundo Del Priore (2000, p. 9), as mudanças ocorridas nos últimos tempos fazem das

crianças suas tenras vítimas:

A crescente fragilização dos laços conjugais, a explosão urbana com todos os

problemas decorrentes de viver em grandes cidades, a globalização cultural, a

crise do ensino ante os avanços cibernéticos, tudo isso tem modificado, de forma

radical, as relações entre pais e filhos, entre crianças e adultos.

Em nossa sociedade, a violência doméstica contra a criança é um problema social, de

pouca repercussão e visibilidade. Entidades como a Sociedade Internacional de Prevenção

ao Abuso e Negligência na Infância calculam que 12% das 55,6 milhões de crianças

brasileiras menores de 14 anos são vítimas da violência doméstica. Isso significa que 12

crianças são agredidas por minuto (CUNHA, 2004).

A violência contra a criança no seu próprio lar reflete ‘um estado de coisas’ muito

mais revelador do que muitos tratados gerais sobre a violência. A pioneira Alice Miller

(2004) já alertava sobre as conseqüências desse antigo, lento e massacrante trajeto

civilizatório: o bater nas crianças.

Este trabalho tem como objeto de estudo a violência física contra a criança praticada

por seus pais. Através do atendimento às famílias em situação de violência contra a criança,

no programa SOS Criança, no município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e

de campo. A diversidade de relações familiares e práticas violentas se misturam à exclusão

social e ao discurso da obediência. A violência física contra a criança é apenas uma das

faces da violência que atinge tais famílias.


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Entendemos por violência física contra a criança o abuso da força física sobre a

mesma, causando desde uma leve dor, passando por danos e ferimentos de média gravidade,

até a tentativa ou execução do homicídio (MINAYO, 2002). Freqüentemente, é praticada

pelos próprios pais biológicos de diferentes segmentos sociais, credos e raças. As

justificativas para tal ato vão desde a preocupação dos pais ou responsáveis com a proteção

e educação dos filhos, até a hostilidade intensa e o desejo de morte.

No primeiro capítulo, a intenção é compreender, historicamente, a construção social

do conceito de infância na sociedade ocidental e como este conceito se manifesta no

fenômeno da violência contra a criança na sociedade brasileira.

No segundo capítulo, contextualizaremos a violência física contra a criança no

espaço doméstico, através do discurso acadêmico e científico, como também dos mitos e

outros discursos que envolvem a questão.

No terceiro capítulo, faremos uma breve trajetória sobre a política de proteção à

criança, uma abordagem sobre o novo paradigma da infância e a exposição da experiência

do programa SOS Criança frente à problemática da violência doméstica contra a criança.

Por último, abordaremos algumas histórias de violência contra a criança, subsidiada

pela pesquisa de campo realizada em vários bairros de Natal, que teve como objeto pais que

praticaram violência física contra os filhos.


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2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE INFÂNCIA

__________________________________________________________________________

2.1 Infância, família e violência: breve histórico

O mistério da ciência implica busca pela verdade; A verdade, por sua vez, tem dois

motivos para que não a alcancemos: ou por sua inexistência, ou porque “a verdade dói”,

como nos diz a sabedoria popular. A dinâmica social que envolve a violência contra a

criança exige que ultrapassemos o estudo do ato em si e apreendamos, a princípio, o

sentimento de infância na sociedade ocidental.

É comum relacionar a imagem da criança a uma ‘ausência de fala’, condição

originária da palavra “infância”, cujo teor tem como idéia ‘aquele que não fala’ (in = prefixo

que indica negação, e fante = origem latina fari, que significa falar, dizer). Sem o exercício

da palavra, a infância é vista como o outro, o de fora, o que não tem voz. É o que nos alerta

Lajolo (1997, p.229) “Enquanto objeto de estudo, a infância é sempre um outro em relação

àquele que a nomeia e a estuda. (...) Assim, por não falar, a infância não se fala e, não se

falando, não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam”.

Novos conceitos e modos de ser da infância são construídos no campo das artes e

ciências: pequeno selvagem, adulto em miniatura, ingênua, tábula rasa a ser escrita, força

produtiva, sujeito de direitos. A medicina, psicologia, história, direito e literatura são as

disciplinas que dão mais ênfase à questão da infância.

Desde a antiguidade, a concepção da infância estava fortemente ligada à loucura,

excessos e selvageria. A prática do infanticídio era aceita, cabendo aos pais acolher ou
14

renegar o filho recém-nascido. Segundo Minayo (2002), o descaso contra a condição infantil

é bem expresso em uma passagem da Bíblia, que relata a prática de comer crianças entre o

povo Hebreu, em momentos de escassez de alimentação: “Dá cá teu filho para que hoje o

comamos e amanhã comeremos meu filho” (II Reis 6, 28).

O único meio capaz de transformar o ‘selvagem’ em homem ‘de razão’ seria a

educação, através de severos castigos físicos. Uma lei hebraica do período 1250-1225 a.C.

dizia que, caso os filhos não obedecessem aos conselhos paternos, caberia aos anciões puni-

los, expondo-os ao apedrejamento ou morte (Deuteronômio, 21, 18-21). Essa concepção de

infância era encontrada em várias civilizações, entre elas, o antigo Egito, a Grécia (berço da

civilização ocidental) e na Roma Antiga.

A Bíblia, no Antigo Testamento, reforça até hoje a educação corretiva através dos

provérbios “Quem poupa a vara, não ama seu filho”; “Quem o ama, porém, disciplina-o

prontamente” (Provérbios, 13:14). É também no Evangelho que temos uma nova concepção

sagrada e inocente da infância: “Em verdade, vos digo, que se não mudardes e não vos

tornardes como crianças não entrareis no reino dos céus” e “Deixai vir a mim as crianças e

não as impeçais, porque o reino dos céus é daqueles que são como elas”. (Mateus, 18:3 e

19:14).

A sociedade cristã ocidental, sob o princípio da autoridade, era baseada nos

ensinamentos aristotélicos e teológicos. A autoridade se fundamentava no princípio de

desigualdade existente na natureza: alguns indivíduos nascem para dar ordens e outros para

obedecer. O homem é designado para a tarefa de comandar, a mulher lhe é inferior e a

criança, por natureza, é destinada a obedecer ao adulto. Segundo Badinter (1980), os

princípios da autoridade e desigualdade estão presentes em vários sistemas sociais,


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expressos na seguinte analogia da figura do pai: Deus é a imagem perfeita do pai, o rei a

imagem perfeita do pai na terra e o pai de família a imagem divina e real perante os filhos.

No pensamento ocidental, Rousseau (apud GHIRALDELLI, 2000). vem romper a

visão da criança imersa no pecado e desprovida de razão, por não possuir linguagem (logos).

Ele afirma que o erro, a mentira e a corrupção são frutos da incapacidade de quem não tem

um coração puro e sincero, próprio da condição infantil. Portanto, a inocência e a pureza

seriam necessárias para o acolhimento da verdade e para a participação no que era

moralmente correto.

A partir de Hegel, afirma Ghiraldelli (2000), ‘as coisas do mundo’ começaram a ser

pensadas de um modo diferente. Estas não eram mais vistas como elementos imutáveis,

‘naturais’ (no sentido essencialista do termo), mas como situações historicamente

construídas. No início do século XIX, a infância já aparece como algo obtido por

construção. Ariès (1981) trata a noção de infância como algo que vai sendo montado, criado

a partir das novas formas de falar e sentir dos adultos em relação ao que fazer com as

crianças.

Nos meados do século XVII até a segunda metade do século XVIII, a criança de

camadas populares era tratada como um ser imperfeito e sem valor, vivendo em estado de

abandono quer físico, quer moral. A indiferença social e familiar pelo bem-estar da criança

gerou um alto índice de mortalidade infantil, o que Ariès (1981) denominou de infanticídio

tolerado. A expectativa de vida das crianças portuguesas e de outros povos da Europa, entre

os séculos XIV e XVIII, era de 14 anos, enquanto cerca de metade dos nascidos vivos

morria antes de completar sete anos (RAMOS, 2000).

Segundo Ariès (1981), na Idade Média e início da Moderna, o processo de

socialização da criança se dava no espaço público. A criança de classe mais favorecida, ao


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nascer era criada por nutrizes (amas-de-leite). Após o desmame, por volta dos 07 anos, a

criança participava ativamente dos jogos e brincadeiras dos adultos. Neste período, as

relações de vizinhança, amizade e tradições se misturavam à vida familiar, onde as trocas

afetivas e comunicações sociais faziam parte da vida coletiva, não existindo a distinção entre

idade e condições sociais.

A transição do feudalismo para o capitalismo, a partir do século XVII, fez modificar

o modo de vida das pessoas. A sociabilidade privada ganhou importância, restringindo-se às

relações familiares e de amizade. A família começa a se fechar no núcleo composto por pai,

mãe e filhos. Essa mudança ocorreu mais rápido em determinadas classes sociais

(burguesia) e regiões (cidades). A família, ao passar da forma aberta ao mundo exterior para

o modelo nuclear burguês, contribuiu para uma nova concepção da infância, como também,

para as mudanças ocorridas na cidade e na escola.

O interesse de Ariès em abordar as noções do público e do privado no estudo da

criança e da família consistia em saber como se processava a substituição de uma

sociabilidade anônima (“pública”) – a da rua, do pátio do castelo, da praça, da comunidade,

que existia nos meados da Idade Média até o final do século XVIII – por uma sociabilidade

restrita (“privada”), que se confunde com a família, ou ainda com o próprio indivíduo.

O desenvolvimento da alfabetização, a difusão da leitura e as novas formas religiosas

contribuíram para experiências individuais e sociais mais voltadas para a vida privada. As

transformações ocorridas entre a esfera privada e a pública modificaram a própria função do

Estado. Em caso de violência familiar, há uma maior interferência do mesmo, seja na forma

de lei ou em instituições de defesa. Segundo Ariès, o predomínio da sociabilidade privada

fez da família a grande vitoriosa no advento da sociedade moderna, pois “Toda a evolução

de nossos costumes contemporâneos torna-se incompreensível se desprezamos esse


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prodigioso crescimento do sentimento de família. Não foi o individualismo que triunfou, foi

a família” (ARIÈS, 1981, p.274).

O sentimento de família, enquanto refúgio e lugar de afetividade entre seus

membros, não conseguiu eliminar a sociabilidade anônima da rua. Esta sobrevive sob novas

e velhas formas. As possibilidades múltiplas de sociabilidades, assim como o próprio

entrelaçamento das relações familiares tradicionais com as novas, nos remetem ao conceito

de comunidade e sociedade.

A obra de Tönnies (1995) é fundamentada nos conceitos de comunidade e sociedade.

Tais conceitos, apesar de se excluírem no plano teórico, aparecem combinados

dialeticamente, quando remetidos ao processo histórico. A vida comunitária se refere ao

parentesco, à aldeia, à cidade, às relações de vizinhança e amizade. Caracteriza-se pelo

consenso, costumes, crenças e religião. O espaço societário, por sua vez, é a metrópole, a

nação, o mundo. Tem como base a troca de valores materiais e se caracteriza pelo contrato,

convenção, lei e opinião pública.

A compreensão dos conceitos de comunidade e sociedade fica mais fácil quando nos

remetemos à teoria das vontades humanas, elaborada por Tönnies (1995): A vida

comunitária é a vontade em forma do prazer, hábito e memória, motivadas afetivamente,

enquanto que a vida societária é a vontade em forma de reflexão, conveniência e conceito,

motivada pela ação humana objetiva:

As vontades humanas mantêm entre si múltiplas relações. Cada relação é uma ação

recíproca, exercida por um lado e suportada ou recebida pelo outro. Estas ações

apresentam-se de tal modo que tendem quer à preservação quer à destruição da

vontade ou do ser oposto: são negativas ou positivas. (TÖNNIES, 1995, p. 231)


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O autor afirma que, no curso da história, há uma tensão, um conflito permanente

entre essas relações. Interdependentes, ora prevalecem as relações comunitárias, ora

predominam as relações societárias. A família contemporânea urbana convive com esse

conflito cotidianamente, onde cada vez mais o domínio das relações societárias vai

impregnando todas as esferas da vida social.

O advento da família burguesa e do capitalismo intensificou o processo de

escolarização e a construção do conceito moderno de infância. A valorização da criança,

segundo Ariès (1981), desenvolve-se através dos mais severos métodos de educação. A

família, a Igreja e os moralistas administradores fizeram segregar a criança, retirando-a do

convívio do adulto e da vida pública, enclausurando-a em colégios e fazendo-a conhecer a

vara - o castigo físico.

Segundo Foucault (1977), no decorrer do século XVII e XVIII as disciplinas se

tornaram fórmulas mais gerais de dominação. As disciplinas são métodos que permitem o

controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças

e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. Não se fala apenas em submissão do

corpo, mas absorver o máximo de forças, energia e potência deste corpo - é a disciplina

enquanto anatomia política e mecânica do poder (termos de Foucault) - se a exploração

econômica separa a força e o produto do trabalho, conclui, a coerção disciplinar irá

estabelecer no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação

acentuada.

O autor afirma ter a educação rígida várias funções, entre elas: adestrar corpos

vigorosos (imperativo de saúde); obter indivíduos competentes (imperativo de qualificação);


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formar indivíduos obedientes (imperativo político), e prevenir a devassidão e

homossexualidade (imperativo de moralidade).

As estruturas do poder parental foram baseadas no paterfamilias romano, cuja figura

do pai onipotente e autoritário tinha poder sobre bens e pessoas, sobre vida e morte dos

filhos (HURSTEL, 1999). Em vários períodos históricos, esta autoridade foi construída

através do disciplinamento corporal ao filho e do domínio do seu corpo como propriedade.

O poder parental atua em diversas esferas da sociedade, que ao fazer parte de uma rede de

micropoderes, articula-se em uma complexa rede de interdependências, apresentando-se de

forma assimétrica na relação pais/filhos.

No estudo sobre a puericultura na sociedade ocidental, DeMause (apud GUERRA,

1998) afirma que a partir do século XVIII, houve uma ‘suavização’ da prática corporal

imposta à criança. Formas sutis de violência vão sendo utilizadas – os chamados ‘substitutos

educativos’. Como exemplo, cita a existência de ‘pequenas bastilhas’ em residências dos

séculos XVIII e XIX: uma espécie de quarto escuro, onde os pais trancafiavam os filhos por

horas e até dias, com direito a pão e água, na intenção de corrigir comportamentos

inadequados.

A partir do século XIX, a ‘aliança’ entre médicos e mães, em torno dos cuidados

com a criança, restaura o poder do médico e dá ascensão à mãe no espaço doméstico. Estava

tendo início o movimento higienista. A instauração do médico na família e os conselhos

educativos recebidos pela mãe fizeram com que aos poucos a prática da amamentação

materna fosse valorizada e o uso de enfaixes nos bebês fosse abolida. A mãe é designada

guardiã dos filhos, ficando estes sob a condição de ‘liberação protegida’:


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Em torno da criança a família burguesa traça um cordão sanitário que delimita seu

campo de desenvolvimento: no interior desse perímetro o desenvolvimento de seu

corpo e de seu espírito será encorajado por todas as contribuições da psicopedagogia

postas a seu serviço e controlado por uma vigilância discreta (DONZELOT, 1980,

p. 48).

Se por um lado, a higiene e a educação seduziram facilmente a família burguesa, por

outro lado, os segmentos mais pauperizados da sociedade, por não ‘acompanhar’ o modo de

vida burguês e suas alianças com o Estado, transformaram-se facilmente em instrumento de

repressão e controle. A condição social da família era quem definia as distintas trajetórias

históricas das políticas de atenção à criança.

No decorrer do desenvolvimento do capitalismo se presenciou uma crescente

inserção da criança e da mulher no novo modo de produção. A criança passa a ser valorizada

enquanto mercadoria e mão de obra barata, servindo como alicerce e ‘base invisível’ ao

sistema capitalista. A mortalidade infantil é combatida. A família nuclear burguesa se

configura como único padrão às relações familiares. O casamento de acordo com os

interesses das famílias é substituído pela relação afetiva por livre escolha, tendo como um

dos objetivos, a procriação. Os pais são incentivados a terem mais cuidado com os filhos,

sem excessos corretivos. Várias publicações são dirigidas às mulheres, exaltando o amor

materno (há quem afirme que o mito do amor materno surgiu a partir desse período). Ao

mesmo tempo, há maior igualdade de autoridade na correção aos filhos.

No início do século XX, o educador e médico Korczak (apud GUERRA,1998)

construiu uma concepção da infância a partir de sua própria experiência com crianças órfãs,

em pleno regime fascista. Em vasta obra, enfatiza os direitos da criança sem prefixá-las em
21

categorias analíticas, pensamento tão criticado atualmente nas ciências humanas, já que

representa o “muro que construímos para nos separar das crianças, para poder considerar

como animais os seres humanos que nos são confiados, para não sermos implicados no

diálogo, na relação que se poderia estabelecer com eles”.(TOMKIEWICS,1983,apud

GUERRA,1998).

A obra de Korczac é voltada especificamente à opressão infantil. Sem representar a

criança como alguém inocente e o mundo como vilão, faz-nos entender que a opressão

sofrida pela criança é também a opressão que vivemos. Outro aspecto interessante em sua

obra é quando relaciona o falar e o fazer de uma criança com a nossa reação diante dela. A

maioria dos estudos aborda os problemas da infância relacionados a problemas orgânicos ou

aos pais, professores, profissionais e sociedade, nunca como as pessoas se sentem em

relação a ela, aspecto que Freud chama de “contratransferência” (GUERRA, 1998). Por

outro lado, a criança percebe as contradições dos adultos, quando, às vezes, estes defendem

certas idéias, mas na prática as destroem.

A criança visualizada pelo adulto (em especial, os pais) no pensamento de Korczak,

apresenta-se como um ser fraco, impotente, sem direito ao processo decisório de sua família

e da sociedade como um todo, dependendo economicamente do adulto e que deve ser

modelado conforme os desejos deste mesmo adulto.

A relação de forças existente entre adulto-criança (o que sabe tudo e o que nada

sabe), faz a criança seguir para o único caminho existente, a obediência. Resta a criança

apenas o cumprimento do seu papel destinado pela família e sociedade: “A sociedade lhe

confiou um selvagenzinho para que você o civilize, lhe inculque boas maneiras e o torne

mais manipulável (...) e ela espera. Assim esperam o Estado, a Igreja e o futuro patrão”

(Korczak, 1983). Segundo este autor, a hora da criança ainda não chegou. Para tanto, é
22

preciso “Dar às crianças a possibilidade de um desabrochar harmonioso de todas as suas

faculdades espirituais, liberar a totalidade das formas latentes que contêm, criá-las no

amor do bem, do belo, da liberdade (...)”.

Na segunda metade do século XX, surgiram vários movimentos sociais, destacando-

se no cenário político e cultural, o movimento feminista. A inserção no trabalho remunerado

e a descoberta do anticoncepcional mudaram o papel da mulher na sociedade e na família. A

luta por melhores condições de trabalho, aumento salarial, creche, direito ao aborto e

relações igualitárias entre os sexos, juntava-se aos questionamentos quanto ao papel da

mulher no uso exclusivo da função materna e quanto às relações autoritárias existentes na

família patriarcal. A violência contra a mulher veio unificar a luta feminista (COSTA;

BRUSCHINI, 1992). Mudanças na esfera privada começaram a ocorrer. Apesar da

diversidade de relações familiares, dos métodos modernos de educação, as formas

autoritárias e violentas no trato com a criança permaneceram.

A visão de infância na sociedade ocidental considera a criança como um ser

universal, imaturo, em processo de desenvolvimento bio-psiquico-social com

particularidades socialmente definidas, exercendo papéis e funções conforme idade,

hierarquia familiar e classe social:

(...) Sua participação no processo produtivo, o tempo de escolarização, o processo

de socialização no interior da família e da comunidade, as atividades cotidianas

(das brincadeiras às tarefas assumidas) se diferenciam, segundo a posição da

criança e de sua família na estrutura sócio-econômica (KRAMER apud ARANTES,

1995, p.208).
23

A família extensa é uma constante em camadas de baixa renda. O processo

educativo da criança é compartilhado com o Estado, com os meios de comunicação, outros

familiares e vizinhança. São presenciadas relações de compadrio, a ‘circulação de crianças’

entre parentes e conhecidos e uma rede de mútua ajuda entre familiares para garantirem a

sua sobrevivência.

Para muitas famílias, a luta pela sobrevivência implica entrada precoce da criança no

mundo do trabalho: ou como complemento da renda familiar, ou como único provedor da

família. O espaço de exclusão social em que se encontram, faz com que a criança em

situação de rua e a que está na rua (com vínculos familiares) conviva muito cedo num

cotidiano de violência e exploração, sem tempo para se desenvolverem e crescerem – é a

chamada infância negada (GUARA, 1995). Em alguns casos, a criança passa a ter como

única referência o espaço da rua, por ter sofrido, anteriormente, algum tipo de violência na

família.

Do ponto de vista legal, estão incluídas na fase infantil crianças de 0 a 12 anos

incompletos. Nesse universo são encontrados recém-nascidos ou lactantes, a criança na fase

pré-escolar e escolar. A infância é também fortemente marcada pela diferença de gênero. Os

meninos e as meninas enfrentam obstáculos ou facilidades de acordo com as marcas

culturais que seu gênero conseguiu construir ao longo da história.

A criança, ao nascer, já encontra um contexto cultural determinado: linguagem,

objetos, costumes, leis e signos. O primeiro enigma a desvendar é a presença ou a falta

(FERRARI, 2002). Na medida que cresce, codifica o que está em volta a partir da sua

interação com o meio. Geralmente, o estímulo à participação se dá como objeto manipulável

e não como sujeito. Em nossa sociedade é comum a prática de se relacionar com a criança
24

de forma impositiva e autoritária. A sua condição de criança está associada à situação de

subserviência a uma autoridade adulta.

A visão da criança como centro das atenções na família é mais observada na classe

média - a idéia do pai se sacrificar pelos filhos e reviver sua infância na eterna dialética

reprodução-melhoramento. O excesso de liberdade e autonomia da criança, segundo Guara

(1995), pode ser uma leitura errada das propostas da Escola Nova e teorias psicológicas. A

autora cita Grünspun e sua teoria tirânica da infância:

Nas últimas décadas vem processando um novo fenômeno social - a

criança centraliza o interesse da família e da própria sociedade, de tal

forma que se organizou um filiarcado, substituindo o patriarcado e o

matriarcado fugaz na década de 50, especialmente nos E.U.A.

(GUARA, 1995, p.61).

Ghiraldelli (1999) ao analisar as teorias educacionais modernas e contemporâneas,

afirma que a teoria pós-moderna não tem uma concepção de infância. A noção de infância é

uma noção moderna. Eis a mudança de paradigma proposta pela pós-modernidade: ela não

precisa de uma noção de infância para falar sobre qualquer temática. Ela quer estar atenta às

novas metáforas, inclusive às novas metáforas sobre as crianças, e, com isso, ver se ela

consegue ampliar e inventar direitos democráticos para todas as crianças. Nessa ótica, o

reconhecimento dos direitos da criança não está intimamente ligado aos modelos

ideológicos de criança.

A luta pela garantia dos direitos da criança passa pela supressão de suas

necessidades, enquanto direitos, como também pela discussão da qualidade da oferta. Não
25

basta que todos tenham acesso à escola, mas acesso a escola de qualidade. Se uma das

particularidades da criança é a sua fase de crescimento e desenvolvimento, inclui também

uma aprendizagem qualificada. Ou seja, no processo de educação em geral, são as

instituições (entre elas, família e escola) que “qualificam” a criança, transmitindo

parâmetros valorativos. É nesse processo que se configurará a matriz de identidade e da

construção de “sujeitos de direitos”: na direção de sua emancipação ou na formação de uma

identidade subalterna (GUARA,1995).

Hoje, o discurso formal considera a criança um ser em pleno desenvolvimento

físico, moral e psíquico, portador de cidadania, prioritária de proteção integral pela família,

Estado e sociedade. No Brasil, essa concepção contemporânea de infância é fruto da

organização de forças sociais que atuam em defesa da criança e do adolescente desde a

segunda metade da década de 80.

O desenvolvimento da ciência sempre foi estimulado pela condição social da criança,

assim como pelas necessidades mais gerais da sociedade e principalmente pelo próprio

modelo econômico perverso e excludente, sobre o qual essa sociedade se estrutura. Por sua

vez, os avanços da ciência e da tecnologia não têm melhorado a situação de milhares de

famílias, expostas à exclusão e vulnerabilidade social.

Se por um lado o conceito de infância na sociedade ocidental está relacionado à

exploração e dominação sobre a criança por seus pais e sociedade, p~~or outro, as famílias

violadas de seus direitos e condições dignas de vida refletem as contradições e mazelas de

um determinado contexto societário, cujo modelo econômico alimenta as desigualdades

sociais, fragiliza os vínculos sociais, massifica o modo de vida das pessoas e desumaniza as

relações familiares.
26

A questão está em saber até que ponto o conceito de infância vem suavizando a

maneira da sociedade e da família se relacionar com a criança, ou se é apenas o início do seu

processo de barbárie. Enfim, se estamos caminhando para o reconhecimento de sua nova

condição, a de sujeito de direitos.

2.2 O conceito de infância na sociedade brasileira

As mudanças ocorridas na sociedade moderna - a emergência da vida privada, a

escolarização e a valorização da criança - não surtiram efeitos imediatos no Brasil, país de

origem colonial e de tardia industrialização. A formação da sociedade brasileira está

fortemente relacionada à situação de violência vivenciada pela infância. As crianças

abandonadas nas ‘rodas de expostos’1, as escravas e as exploradas pelo trabalho no campo,

em pequenas indústrias, carvoarias e minas foram bem retratadas no estudo de Del Priore,

intitulado “História da Criança no Brasil” (2000).

O estranhamento primeiro dos nossos colonizadores portugueses à imagem da

criança despida, pendurada por uma tipóia entre os seios da mãe, também despida, fazia

parte do deslumbramento frente à cultura do Novo Mundo. O impacto cultural em relação às

crianças abastadas européias foi grande, já que estas eram afastadas da família, entregue a

amas-de-leite e imobilizadas por enfaixes.

Em 1549, no Brasil Colônia, chegaram os primeiros padres jesuítas da Companhia de

Jesus. A catequização das crianças indígenas no processo de colonização implicou em

1
Instituição filantrópica, surgida na França, Portugal e posteriormente, no Brasil, que recebia os ‘expostos’, na

maioria fruto de adultério.


27

mudanças de costumes e de crenças entre as comunidades indígenas. Relatos de padres de

diferentes províncias constataram que, nas comunidades indígenas, a criança era valorizada

por todos os membros adultos e não sofria maus-tratos dos pais. Esta prática foi presenciada

em tribos que praticavam a antropofagia (costume de comer o inimigo). Porém, alguns

costumes não são aceitos em nossa sociedade, como o infanticídio e rituais de passagens,

presentes em determinadas tribos. Temos como exemplo, o costume de executar recém-

nascidos gêmeos e portadores de deficiência física, sob pena de atraírem má sorte.

No período escravocrata, os filhos dos senhores de engenho aprenderam que, se não

obedecessem aos pais, seriam punidos através de palmatórias, varas de marmelo (com

alfinetes na ponta), cipós, galhos de goiabeira, entre outros (GUERRA, 1998).

Nas senzalas, as péssimas condições de higiene favoreciam a alta taxa de

mortalidade infantil. Era comum a criança escrava desconhecer a procedência paterna. Os

filhos eram vendidos e separados dos pais de acordo com a conveniência do senhor de

escravos (CUNHA, 2004). Os castigos físicos, indispensáveis ao sistema escravista, eram

também dirigidos à criança-escrava a partir dos 7-8 anos, servindo, deste modo, como uma

prática de controle social para manter tal sistema. O personagem mais conhecido neste

período era o ‘leva-pancadas’, menino-escravo, trazido da senzala para servir ao filho do

senhor de escravos, sendo alvo de todo tipo de maus-tratos.

Entre o período do Brasil Colônia e o Império, a prática religiosa do batismo estava

relacionada à purificação e a fidelidade católica, como também a uma forma da criança

entrar nas estruturas familiares e sociais, através das relações de compadrio. A afetividade

dos pais com os filhos, os mimos maternos e as brincadeiras dirigidas aos pequenos não

eram vistos com bons olhos por moralistas (DEL PRIORE, 2000). Os muitos mimos e o
28

amor do pai faziam mal ao filho. Os ensinamentos divinos ensinavam que amar era castigar.

Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequenos, deviam ser combatidos com açoites e

castigos. A introdução da educação formal, a partir do século XVIII, tinha a palmatória

como instrumento obrigatório.

O surgimento do sentimento de infância no Brasil pode ser creditado, em parte, ao

movimento higienista, no início do século XX. Aliadas do Estado e disseminadas em todas

as regiões do país, as idéias dos médicos higienistas tinham como rótulo ‘a arte de cultivar

crianças’ ou puericultura, dirigidas à educação de crianças ricas das famílias burguesas.

Assim como os criadores de animais, as famílias se tornariam ‘puericultores’: cultivadores

de crianças (ARANTES, 1995). De caráter preventivo e em nome da infância, aconselhavam

e solicitavam a seleção de esposos, efetuada através do matrimônio. Enfatizavam a

predominância do fator genético para a saúde da prole e defendiam o casamento eugênico,

cientificamente planejado.

O projeto de normatização da vida social brasileira, através da conversão do universo

familiar à ordem burguesa, tinha como porta-vozes os higienistas. Não era de interesse do

movimento higienista ‘cultivar’ crianças pobres. Para estas famílias eram direcionadas

outras políticas médicas. Estas famílias serviriam de casos-limite de infração higiênica,

assim como os escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, entre outros (COSTA,

1983). Essa diferenciação na política higienista é crucial para a condição da família

brasileira

É quando as famílias pobres passam a ser definidas – por comparação ao modelo

de família burguesa, tomada como norma – como desagregada, desestruturada,

incapaz ou ignorante e as crianças, frutos dessas famílias, como encontrando-se em


29

situação de patologia social ou irregularidade, estando a partir de então,

assujeitadas aos diferentes agentes e instituições que, no campo social, constituem o

complexo tutelar (ARANTES, 1995, p.214).

De acordo com as novas demandas que o novo sistema de produção exigia, as

políticas intervencionistas da sociedade e do Estado em relação à infância iam se delineando

e ganhando características distintas, direcionadas a dois tipos de atendimento: a família de

classe mais favorecida e a de camadas populares.

Em 1922, ano de efervescência cultural, conhecido pela famosa Semana de Arte

Moderna, ocorreu o 1° Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. Uma apresentação nos

chama atenção pela defesa intransigente da prática de castigos em criança. Segundo Guerra

(1998), o texto é enfático em orientar pais a castigarem gradativamente os filhos. Com essa

prática, as más inclinações do filho seriam banidas, como também aprenderiam a distinção

entre o bem (o permitido, o que agrada aos pais) e o mal (o proibido, o que desagrada). As

tendências naturais dos filhos vinham de encontro aos ideais dos pais, por isso a prática do

castigo, que variava desde os castigos corporais (safanões, palmadas e bofetadas) até a

reprovação por gestos, olhares, tom de voz e silêncio.

A infância brasileira teve como primeiro marco legal o Código de Menores, de 1927.

A mesma passa a ser reconhecida através de duas categorias, a criança e o ‘menor’: a

primeira se encontra sob a responsabilidade dos pais e tutores e a segunda em situação de

abandono, orfandade e infração. Enquadrado em ‘situação irregular’, o “menor” necessita de

medidas assistenciais do Estado.

A década de 80 é marcada pela abertura política e o fim da ditadura militar. Os

movimentos sociais se organizam em torno da constituinte e aprovam propostas de interesse


30

de cada categoria. A reformulação da legislação na área da criança (extinção do Código de

Menores e a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, em 1990) fez surgir

um novo conceito de infância: a criança sujeito de direitos, que substitui o conceito de

‘menor’ em ‘situação irregular’.

A universalização dos direitos da criança, preconizada no ECA, ganha validade se

forem consideradas as particularidades e necessidades de cada contexto social em que se

insere a criança. O ajuste neoliberal implantado no país, o alto índice de desemprego e os

cortes sociais, principalmente nas áreas de saúde e educação agravaram o quadro da maioria

da população infanto-juvenil. Portanto, o reconhecimento de sua nova condição, assim como

as suas necessidades saciadas, exige mudanças estruturais e culturais na sociedade.


31

3 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA

__________________________________________________________________________

3.1 Considerações conceituais

Todo processo de conhecimento é doloroso! Assim como na vida, quanto mais

próximo ao objeto amado, mais sensível às suas angústias, apelos e dengos. Ao parar para

refletir sobre a temática da violência contra a criança, depois de longos anos em contato

direto com a problemática, surgiram os seguintes questionamentos:

. Como limitar o estudo da violência contra a criança à família de baixa renda, se o

fenômeno ocorre em todas as classes sociais?

. A problemática é uma questão sócio-cultural, como a comprovação empírica

indica?

. Como entrar no campo “movediço” da subjetividade, da identidade e da própria

racionalidade do mundo contemporâneo de forma coesa?

O fenômeno da violência contra a criança no âmbito doméstico instiga vários

campos da ciência. O caminho árduo para quem deseja estudá-lo desafia qualquer

pesquisador. Considerado um tema “maldito” no campo das ciências humanas, o momento

está mais para desconstruir parâmetros herdados na relação pais/filhos, do que construir uma

teoria sobre esta violência. O estudo do que representa a infância e a família, segue o mesmo

movimento dialético da construção de conceitos sobre o indivíduo e sociedade no mundo

contemporâneo.
32

“–Eu vou matar você!“. Esta frase, proferida pela mãe que não queria ver o filho

atropelado, surpreende o transeunte, que vê a cena e se choca com as ameaças de morte

dirigidas à criança. Esta mãe mendigava com os filhos, no centro da cidade de Natal. A

mendicância faz parte da cena urbana, em aglomerados de cidades de médio e grande porte.

Para ver crianças pedintes, serpenteando entre carros, basta caminhar pelo centro, próximos

aos shoppings ou canteiros de avenidas movimentadas da cidade.

O estranhamento que o outro provoca no transeunte - cenário e linguagem se

misturam à multiplicidade de significados. A princípio, o que se apresenta como inóspito

para quem vê, nada mais é do que os próprios conceitos pré-estabelecidos embaçando nossa

visão.

Neste texto, a intenção é descortinar universos simbólicos que aparentemente se

mostram como uma diversidade gritante – crianças espancadas em famílias de baixa renda.

Na sua essência, respeitando suas particularidades, revelam as relações de poder presentes

em nossa organização e estrutura social, como também as angústias, alegrias, conquistas e

impotência, inerente ao ser humano: a criação dos filhos.

Segundo Magnani (1996), a antropologia vem resgatar as experiências humanas, não

como exóticas, mas constituídas de arranjos diferentes e particulares em torno de temas e

questões mais gerais, comuns a toda a humanidade. Para o mesmo, a antropologia

(...) lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o

caráter relativizador que a presença do ’outro’ possibilita. É esse jogo de espelhos, é

essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de

significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga

o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade (MAGNANI, 1996, p.7).


33

Paradigmas mais recentes sobre o estudo de famílias urbanas na sociedade

contemporânea enfatizam a importância de minimizar esse estranhamento. As críticas são

direcionadas às teorias voltadas para a noção do sujeito universal. Assim como o transeunte,

o observador desatento terá dificuldade em compreender as relações, emoções ou traumas de

indivíduos, sem situá-los solidamente no seu universo simbólico e lugar histórico.

Segundo Mauss e Lambert (apud FONSECA, 2002), as teorias que priorizam a

noção do sujeito universal se revelam etnocêntricas e a-históricas. Estas poderiam ter

alguma validade se fossem aplicadas em uma mesma sociedade e em um mesmo grupo

minoritário, mesmo assim, com reservas. Vejamos o que Mauss, fundador da antropologia

francesa, afirmou em um artigo de 1937 sobre ‘A sociedade e a infância’:

Uma parte da psicologia da criança, por exemplo, aquela que concebe e

pratica o eminente psicólogo e pedagogo, Senhor Professor Piaget de Geneva,

consiste de fato na análise aprofundada da mentalidade de um pequeno grupo

de crianças, em particular, as dele (LAMBERT, 1996 apud FONSECA, 2002,

p.3).

O contato com famílias de baixa renda (ou grupos populares) com determinadas

práticas sociais, neste caso, práticas violentas de pais, confirma a diversidade cultural

existente nas mesmas. Se antes tínhamos um conceito de cultura estanque, extramuro e

folclorizada, voltado para países e sociedades exóticas e distantes, hoje temos uma

diversidade (ou alteridade) cultural entre famílias, gerações, gênero, orientação sexual e

classe. A perspectiva dos autores Mauss e Lambert, compartilhada por Fonseca (2002) é

que, ao se colocar a noção de alteridade dentro da sociedade complexa, a lógica particular de


34

quem mora na esquina pode ser tão exótica (e tão digna de nossos esforços interpretativos),

quanto a dos aborígines que vivem do outro lado do globo.

A multiplicidade de fatores culturais, legais e científicos que envolvem a questão da

violência contra a criança, faz com que a sua conceituação esteja sempre em construção. Em

1626, o médico Zacchia abordou a questão dos maus-tratos na infância do ponto de vista

médico-legal, através de necropsias em corpos de crianças vitimizadas (CUNHA, 2004).

Em 1860, na França, o professor Ambroise Tardieu, presidente da Academia de

Medicina de Paris, observou 32 crianças que apresentavam lesões contraditórias com as

explicações dos pais: 18 delas vieram a falecer. Neste trabalho, o mesmo descreve certas

características do comportamento dos pais e identifica algumas condições sócio-culturais

associadas ao fenômeno (GUERRA, 1998).

O período do estudo de Tardieu foi marcado pelo governo de Napoleão III,

caracterizado por forte censura e controle político sobre a oposição, imprensa e

universidades. Ideólogos do regime, como Frederic Le Play, pregavam a submissão das

mulheres e crianças à autoridade paterna. Este último considerava a infância como “invasão

intestina de pequenos bárbaros capazes de colocar em perigo a civilização” (AZEVEDO,

1995, p.40). Os estudos que revelassem ser a família, em alguns momentos, perigosa para a

criança, não encontrariam apoio, por isso a pouca repercussão do estudo de Tardieu.

No decorrer dos anos, importantes trabalhos foram publicados na área médica,

constatando, através da radiologia, maus-tratos físicos em crianças. Mas apenas no século

XX surgem os primeiros conceitos. Nos EUA, em 1962, os pediatras Kempe e Silverman

(GUERRA, 1998), ao atenderem crianças na rede hospitalar, observaram que várias delas

apresentavam adiantado estado de desnutrição e/ou ferimentos incompatíveis com a idade.

Através de exames radiológicos, foi constatado que a maioria das crianças apresentava
35

lesões em diferentes estágios de cicatrização óssea. Esse quadro foi denominado Síndrome

da Criança Espancada.

Nesta síndrome, observou-se que as crianças provinham de diferentes camadas

sociais, eram espancadas por familiares, não sendo estes, necessariamente, doentes mentais

ou criminosos. As vítimas eram de pouca idade, apresentavam repetidos ferimentos, fraturas

ósseas e queimaduras de natureza duvidosa, com explicações não convincentes dos pais,

sendo diagnosticadas através de exames radiológicos.

No início da década de 70, o médico Fontana (AZEVEDO; GUERRA, 2001)

ampliou a definição do conceito de violência física contra a criança, não a limitando a danos

físicos. Considerou esta violência como a Síndrome do Maltrato, na qual a criança pode se

apresentar sem os sinais óbvios de ter sido espancada, mas com evidências múltiplas e

menores de privação emocional, nutricional, negligência e abuso. A criança espancada é a

última fase do espectro desta síndrome.

A multiplicidade dos aspectos que envolvem a problemática da violência física

contra a criança fez quebrar a hegemonia da medicina e introduzir outras áreas do

conhecimento nesta discussão. O exemplo é o estudo pioneiro do sociólogo americano

David Gil (AZEVEDO; GUERRA, 2001) sobre o abuso físico de crianças. O mesmo se

preocupou em desmistificar o caráter acidental deste abuso, introduzindo o conceito de

intencionalidade. Era importante distinguir o comportamento acidental do intencional. O que

aparentemente é um comportamento acidental, às vezes, vem determinado, em parte, por

elementos intencionais inconscientes.

Alguns autores destacam a questão do dano e intencionalidade, na discussão sobre a

violência física contra a criança. É introduzido o termo violência (e não abuso ou síndrome)

sem relacioná-lo diretamente às lesões corporais. Segundo Gelles


36

A violência física é considerada como um ato executado com intenção, ou intenção

percebida, de causar dano físico a outra pessoa. O dano físico pode ir desde a

imposição de uma leve dor, passando por um tapa até o assassinato. A motivação

para este ato pode ir desde uma preocupação com a segurança da criança (quando

ela é espancada por ter ido para a rua) até uma hostilidade tão intensa que a morte

da criança é desejada. (AZEVEDO; GUERRA, 2001, p.22).

No Brasil, em 1973, foi publicado o primeiro trabalho científico, por professores da

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Os mesmos descreveram um caso de

espancamento de uma criança de aproximadamente um ano e três meses (GUERRA, 1998).

Posteriormente, casos documentados por pediatras, radiologistas e psiquiatras foram

publicados, especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nestes estudos,

prevaleceu a perspectiva clínica, cujo modelo psicopatológico se baseava nas experiências

francesa e americana.

O trabalho pioneiro da assistente social Viviane Guerra, publicado em 1984,

intitulado “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas” é um marco na literatura

brasileira sobre a temática da violência contra a criança. Este estudo extrapola o modelo

psicopatológico e tem como cenário a sociedade e a cultura brasileira.

A violência física contra a criança é uma das modalidades da violência intrafamiliar

ou doméstica. Esta última é considerada como toda ação ou omissão que prejudique o bem-

estar, a integridade física, psicológica, como também, a liberdade e o direito ao pleno

desenvolvimento de outro membro da família. Limita-se ao espaço doméstico, é exercida

entre pessoas com ou sem função parental, incluindo empregados (as), pessoas que

convivem esporadicamente e agregados. A violência intrafamiliar, por sua vez, extrapola o


37

espaço físico, com ênfase nas relações em que se constrói e se efetua a violência, pode ser

cometida por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir a função

parental, ainda que sem laços de consangüinidade (BRASIL, 2001).

Na família em situação de violência doméstica, a resolutividade dos conflitos é

marcada pela violência interpessoal de seus membros, independente do nível social,

econômico, religioso e cultural destes. O que distingue a violência contra a criança, no

contexto da violência na família (adulto/adulto, adulto/adolescente), é a relação assimétrica

de poder adulto/criança, marcada pela diferença de idade e fragilidade física da criança.

As autoras Azevedo e Guerra (1995) conceituam a violência doméstica contra a

criança, abordando tanto os aspectos da intencionalidade e do dano, quanto os aspectos mais

subjetivos desta violência:

É todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças

e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à

vítima - implica de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto

e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que

crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição

peculiar de desenvolvimento (p. 36).

A violência também se manifesta quando as necessidades básicas das crianças não

são satisfeitas, impedindo o seu desenvolvimento e até a sua sobrevivência. O psicólogo

Ochotorena (AZEVEDO e GUERRA, 1995) afirma que, em geral, os momentos iniciais da

existência humana são definidos por três características:

. A incapacidade de sobreviver por seus próprios meios;


38

. A necessidade de estabelecer vínculos sociais com as figuras de apego capazes de

garantir a sobrevivência e;

. Um modo organizado de interação com o ambiente que assimila os objetos ou

dados de conhecimento e se acomoda a eles.

O autor cita algumas necessidades da criança importantes para a sua sobrevivência

que, não saciadas, podem ser consideradas maus-tratos:

. As necessidades físicas - alimentação, abrigo e proteção contra o perigo;

. As necessidades sócio-emocionais - interação, afeto, atenção, estimulação, contato,

aceitação, jogo, entre outros.

A negligência é a maior demanda em órgãos de proteção à criança e refere-se à falta

de cuidados básicos com a criança, como alimentação, afeto, higiene e segurança. Está

freqüentemente vinculada à condição sócio-econômica da família, em situação de risco

social e pessoal. Alguns autores não consideram negligência, quando a própria família não

tem como suprir tais necessidades - é a chamada família negada.

Em relação à violência física, a literatura varia quanto ao ato violento: desde a

palmada no bumbum, a utilização de instrumentos como sandálias, pedaços de ferro e pau,

como também, queimaduras, socos e pontapés, até agressões com armas brancas e de fogo.

As várias expressões, manifestações e explicações sobre a violência física contra a

criança, assim como o grau de tolerância da família e da sociedade, variam de acordo com

os contextos sócio-culturais onde a criança está inserida.

No Brasil, as sanções penais em relação a maus-tratos contra a criança se resumem a

casos de lesão corporal de natureza grave ou morte. O Código Penal brasileiro, no art. 136,

capítulo dos crimes de perigo para a vida e saúde, define maus-tratos como:
39

Expor a perigo a vida ou saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou

vigilância para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a

de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo

ou inadequado, quer abusando dos meios de correção ou disciplina.

A importância do enfoque dado sobre a violência contra a criança está no aspecto

educativo e preventivo, e não apenas punitivo. Entidades de defesa da criança em vários

países, inclusive no Brasil, são contra a palmada como prática pedagógica. O castigo

corporal na criança é uma prática cultural violenta e, por ocorrer de forma gradativa, é

preciso evitar a primeira palmada. A legislação de alguns países proíbe o emprego de

qualquer punição corporal, na relação pais/filhos, entre eles, a Suécia (1979), a Finlândia

(1983), a Noruega (1987), a Áustria (1989).

3.2 Fatores, mitos e outros discursos

A violência contra a criança na família tem nas práticas de castigo um campo fértil

para a sua reprodução. De cunho educativo, tais práticas são reconhecidas pelos pais como

necessárias e até mesmo indispensáveis. Moderadas ou severas, são encontradas em todos os

segmentos sociais. Frases como: “- Ele (filho) apanha em casa, hoje, para não apanhar na

rua, amanhã!" e "-Ele será criado como eu fui, apanhando!" são marcantes no imaginário

dos pais e estão ligadas à crença de que sem castigo, os filhos não lhes obedecem e não

existirá obediência às normas estabelecidas.

Segundo Souza Filho (2001), uma das fontes para a produção de um simbolismo de

aceitação dessa prática é a existência de mitos de castigos. Propiciadores à formação de uma


40

verdadeira cultura do medo, tais mitos nos habituam a aceitar como necessária e legítima a

utilização da violência sobre o corpo, através da imposição de castigos. Esta aceitação está

diretamente relacionada à produção de representações sociais de culto á Ordem como

natural, necessária e inevitável. A justificação social do castigo passa pelos caminhos dos

mitos, do imaginário, da ideologia.

Em nossa sociedade, muitos são os mitos de castigos que nos acompanham desde a

mais tenra idade: fábulas, lendas, relatos bíblicos, histórias em quadrinhos, desenhos e

filmes infantis, brincadeiras de rua, entre outros. A ‘pedagogia negra’ (o bater como

disciplina), de forma lúdica e sutil, cotidianamente, alimenta o imaginário infantil.

Existe uma função socializadora e educativa nos mitos de castigos, através dos

exemplos de castigos. A cultura do medo é construída, geração após geração, manifestada de

diversas maneiras. Para Souza Filho (2001), esta cultura funciona como instrumento

fundamental na socialização dos indivíduos, como mecanismo de controle social ligada à

idéia de poder: sejam humanos e sociais, sejam sobrenaturais e sagrados.

A família, através das funções maternas e paternas, contribui de forma ativa

(consciente ou não) no processo de socialização dos indivíduos. Processo este que se dá no

campo da cultura, entendida como

(...) a soma total, integrada, das características do comportamento aprendido que

são manifestadas e compartilhadas pelos membros de uma sociedade. (...) é

integralmente o resultado de invenção social, e pode ser considerada como herança

social, pois é transmitida por ensinamento a cada nova geração. (...) sua

continuidade é garantida pela punição dos membros da sociedade que se recusam a

seguir os padrões de comportamento que lhes são determinados pela Cultura

(HOEBEL, apud SOUZA FILHO, 2001).


41

A perenidade histórica da violência contra a criança se dá através da socialização

das crianças fundamentada na Pedagogia do Amor Correcional’ (AZEVEDO, 2001). Cada

vez mais aparecem versões modernizadas de velhas crenças que integram a ideologia do

bater. Assim temos como exemplos:

. O mito do pai-patrão - com direito de vida e morte sobre os filhos, porque os

conceberam e/ou são responsáveis por eles;

. O mito da punição preventiva – bater desde pequeno para evitar males maiores e

futuros, como também reforçar o mito da aprendizagem pelo disciplinamento corporal: “- A

criança só aprende apanhando!” ou “ - É de pequeno que se torce o pepino! “;

. O mito da criança má - a merecer punição porque está sempre em erro e/ou pecado,

na tradição da concepção pessimista de infância;

. O mito do próprio bem dos filhos - o bater como princípio limitador, onde a força

física é o último argumento;

. O mito moderno de bater – saber bater é uma arte, com uma boa conversa dá certo.

A condição dos pais nesta problemática envolve a situação de proteção e de risco.

Várias são as funções instituídas aos mesmos, entre elas, proteger e educar os filhos. Ao

ensinar as normas vigentes ao filho, na intenção de protegê-lo do perigo, acaba fazendo uso

da violência física. Nesse ato, os pais transgridem as normas que desejam ensinar, pondo-o

em situação de risco pessoal.

No discurso de alguns pais, ainda são citados versículos do Velho Testamento. Os

mais lembrados se encontram em Provérbios: "- Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem

o ama, castiga-o na hora precisa!" (13:24); "- Não afaste a disciplina de uma criança. Se

você bate-lhe com uma vara, salvará sua vida do inferno!" (23:13-14). Para estes pais, é
42

melhor bater no filho, enquanto pequeno, do que tratá-lo sem castigos. Com isso, o mesmo

não será castigado, rejeitado e nem odiado por familiares e pela sociedade.

Outro aspecto a ser considerado é o sentimento de pertença quando se fala na relação

violenta pai/filho. É comum ouvirmos a frase: "- Só os pais têm o direito de bater nos

filhos!". Ao abusar da autoridade que lhe é devida, os pais têm o poder de maltratar o filho,

porque este lhe pertence, independente de sua ação ter caráter disciplinador ou não.

Segundo Cunha (2004), os fatores geradores de violência física doméstica contra a

criança estão relacionados:

. À crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e

uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado;

. A ver a criança como um objeto de sua propriedade;

. À baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e problemas

pessoais nos filhos e demais dependentes. Como exemplos: desemprego, dívidas,

desentendimento conjugal, etc;

. Ao uso indevido de drogas;

. Ao abuso de álcool;

. A pais que, quando crianças, foram vítimas de violência doméstica e que

reproduzem nos filhos o mesmo quadro vitimizador;

. Ao fanatismo religioso;

. A problemas psicológicos e psiquiátricos.

A preocupação deste trabalho é não limitar a violência contra a criança a fatores

individuais. É preciso extrapolar esta visão e descobrir que mecanismos mais gerais da

sociedade reproduzem e banalizam esta violência no imaginário da população.


43

Os meios de comunicação é um desses mecanismos e entre os mais populares estão a

imprensa e a televisão. O estudo de Guerra (1998) sobre a violência física doméstica contra

a criança, abordada pela imprensa paulista, através de 05 jornais, chegou a algumas

considerações:

. O espaço dedicado à problemática é extremamente restrito;

. Os casos mais graves são veiculados de uma forma sensacionalista;

. Os fatos colocados levam a relacionar a violência com famílias desfavorecidas

socialmente (desemprego, alcoolismo, pobreza, etc.);

. Limitam a violência às ações básicas voltadas para a criminalização do agressor.

Vale salientar que as notícias se encontram nas páginas policiais e é de interesse que se

veicule este tipo de solução;

. Deixa-se de lado as formas de prevenção e proteção para a vítima, como a

importância da notificação da denúncia por qualquer cidadão.

A autora conclui que o discurso da imprensa é superficial, alienante, pasteurizado e

ao mesmo tempo mítico e tranqüilizador. Mantém o manto sagrado da família, associando a

violência a camadas populares.

A forma sensacionalista como a mídia trata a violência só serve para reforçá-la no

interior da percepção humana do mundo, reconhecida, naturalizada e aceita como parte do

nosso cotidiano. Os meios de comunicação, em especial a televisão, através das notícias

policiais, estreitam os laços entre ficção e realidade, como bem retrata o exemplo a seguir.

Há alguns anos atrás, a TV mostrou imagens aterrorizantes de um adulto pisando o

abdômen de uma criança de aproximadamente 02 anos, até a mesma defecar. A repercussão

das imagens mostradas em horário nobre foi tanta, que no dia seguinte, ao meio-dia, a nível

local, houve reprise com direito a comentários da Promotora da Infância e da Juventude. A


44

perplexidade, repugnância e reprovação do ato em si se misturam a exemplos e estímulos,

onde os pais ou qualquer adulto pode muito bem olhar para a criança ao lado e dizer: “- Veja

bem o que posso fazer com você!”.

O ciclo da violência contra a criança na família nos faz questionar até onde a sua

reprodução se dá de forma linear. A constatação de pais agressivos com histórias de maus-

tratos na infância, não implica, necessariamente, que todas as crianças abusadas serão

futuras agressoras.

Alice Miller (2004) vem nos ajudar nessa reflexão. A mesma afirma que o fator

chave desse aspecto é o que denomina 'testemunhas de ajuda'. Alguém que serviu como

protetor ou amigo, mesmo que não tenha solucionado o problema, compreendeu o que a

criança estava passando. Esta testemunha poderia ter sido um parente, um avô, por

exemplo, ou um professor, ou até mesmo um vizinho. Graças a esta experiência boa, as

crianças não são forçadas a repetir o abuso, posteriormente, com seus filhos.

No processo de naturalização e reprodução da violência física sobre a criança,

podemos considerar a história de vida do grupo familiar, os valores internalizados por seus

membros e o meio social. A sociedade, de alguma forma, tolera esta violência em silêncio e

até estimula, legitimando-a através dos costumes e a justificando como ‘tradição’ cultural. A

compreensão desta problemática, passa pela desmistificação da sacralização da família

perfeita, do amor natural e incondicional dos pais, como também, da relação direta da

violência com a precária situação sócio-econômica da família.


45

3.3 Violência, cultura e identidade

Ainda predomina no nosso imaginário coletivo e individual, o significado do termo

etnológico da violência (do latim violentia) como força, vigor, emprego de força física. No

contexto da violência física contra a criança, a idéia original do significado da violência (e

da infância) concretiza-se no uso da força física por parte do adulto, calando a voz e os

desejos da criança.

No entanto, o conceito sobre violência é bem mais amplo e não se limita à força

física. Entende-se imediatamente como uma relação assimétrica de poder com fins de

dominação, exploração e opressão. Como afirma Chauí (1985, apud AZEVEDO, 2001,

p.132)

A conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade na relação entre superior

e inferior. (...)_ a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma

coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo

que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há

violência.

As condições materiais de existência não determinam, necessariamente, se uma

sociedade é mais ou menos violenta. O que também influencia, são as relações de poder

existente entre seus membros, (...) poder esse decorrente da conversão de diferenças de

gênero, geração, etnia, em desigualdade e, portanto, em pretexto de dominação (GUERRA,

1998, p.194).
46

A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de poder/afeto, nas quais estão

presentes relações de subordinação-dominação. Nas relações interpessoais – homem/mulher,

adulto/criança e pais/filhos – as pessoas estão em posições binárias, desempenham papéis

rígidos, com comportamentos e valores específicos a cada grupo familiar.

Marcondes Filho (2001), ao estudar o conceito de "cultura da violência", demonstra

que a normalidade dos relacionamentos em nosso país é violenta. Temos uma violência

fundadora marcada por uma cultura que tolera excessos, cujo arbítrio se protege

mutuamente, em que uns saem ganhando e outros perdendo. É a ideologia totalitária do

‘faço e desfaço’, só se incomodando quando legalmente acionado. Isto tem raízes em nossa

história, mas possui um forte reforço no presente.

O autor aborda alguns conceitos sobre violência em seu texto:

. Violência é tudo aquilo que, vindo do exterior, se opõe ao movimento interior de

uma natureza. Refere-se à coação física, em que alguém é obrigado a fazer aquilo que não

deseja - imposição física de fora contra uma interioridade absoluta e uma vontade livre -

(Aristóteles);

. A violência não é inerente ao homem, seria mais um tipo de relacionamento

perfeitamente superável (Hegel e Marx);

. A violência é algo que pertence ao homem e cada passo do desenvolvimento

humano é um sinal de degenerescência (Nietzsche);

. A violência seria atribuída como algo instintivo da espécie. O instinto de morte era

algo dado, e deveria ser compensado com processos de sublimação e desvio (Freud).
47

A discussão que envolve a violência é inesgotável e polêmica. Deter-se apenas às

características individuais não basta, já que propomos identificar os fatores que contribuem

para a sua reprodução. Partirmos da idéia de que a violência não é inerente ao homem, mas

sim, construída culturalmente. O que é inerente ao homem é a sua capacidade de produzir

cultura. É preciso desmistificar a dicotomia entre natureza e cultura – o homem é a própria

natureza em constante transformação (ao destruir a natureza não estarei me destruindo?).

Segundo Marcondes Filho (2001), haveria uma “cultura da violência” à medida que a

cultura, como habitus, incorpora as práticas de violência no seu cotidiano. Consciente ou

inconscientemente, tais práticas vão sendo cultivadas dentro de um certo grupo e as pessoas

vão sendo "educadas" segundo esse procedimento.

Ao utilizar o conceito de habitus, o autor se refere ao conceito de violência simbólica

elaborada por Pierre Bourdieu (apud MARCONDES FILHO, 2001). Este distingue o

habitus do campo social e do capital simbólico. No primeiro, constitui-se a cultura do

indivíduo, formada pela escola e pelo meio social em que vive; lá se constituem os gostos e

os diferentes estilos de vida. É no campo social que se identifica a presença de "mercados" e

diferentes formas de "capital", como o econômico, o corporal, o cultural, o escolar, o social,

o simbólico. É dentro do capital simbólico que as relações arbitrárias se tornam relações

legitimadas.

A idéia dualista de que a sociedade esteja dividida entre procedimentos de violência

e outros de civilidade ou cordialidade é equivocada. É ilusório pensar a violência praticada

em campos pré-determinados e o nosso cotidiano opostamente pacífico. Mais correto seria

acreditar que as formas amplamente divulgadas da violência são a face pública de uma
48

forma de violência, cuja face privada e microssocial é esse tecido de relações cotidianas em

todos os níveis e situações tidas como "normais" (MARCONDES FILHO, 2001).

Se por um lado afirmamos que não existem fronteiras para a violência, por outro

lado, a própria violência física é uma situação-limite. No conflito com o outro, acaba o

diálogo verbal (quando existe) e surgem outras formas de diálogo, entre elas, a linguagem da

força física. Por ser destruidora, a violência tem como função manter um tipo de poder

legitimado pela dominação (física ou não) e disseminado em diferentes processos sociais.

Vejamos como se manifesta a violência nas relações microssociais, tendo como

referencial a família. Segundo Saffioti (1989), os três princípios estruturadores da sociedade

brasileira são o capitalismo/patriarcalismo/racismo. Enquanto sistemas de dominação-

exploração essa tríade transforma as relações sociais em relações de poder. Caracterizam-se

pelas relações antagônicas e contraditórias existentes entre classes, raças e gênero.

Hierarquicamente, teríamos no topo da escala do poder o macho, branco e rico. Nas

categorias sociais subalternas estariam as mulheres, pobres, negros e crianças e, em último

lugar, estaria a menina negra e pobre.

Nas relações adultocêntricas (poder do adulto sobre a criança), os interesses entre o

adulto e a criança não são antagônicos, pois cabe ao primeiro socializar os instintos da

criança, educá-la e transmitir os padrões de conduta vigentes. O papel disciplinador do

adulto frente às gerações imaturas é de transformar a criança em pessoa capaz de atuar com

o máximo de sociabilidade.

A Síndrome do Pequeno Poder, denominada pela autora, consiste em fazer uso

da escala hierárquica de poder. Ou seja, os homens têm amplas categorias sociais para

usufruir o seu ‘pequeno’ poder: mulheres, crianças, homens ocupando posições subalternas.

A mulher, no entanto, usufrui o seu poder frente às crianças, geralmente de sua família.
49

Considerações à parte, as relações adultocêntricas e a Síndrome do Pequeno Poder

reproduzem a condição inferior da criança na estrutura econômica, social e familiar,

favorecendo o espaço para que a infância seja submetida a várias manifestações de

violência.

Podemos concluir que a violência não é uma ‘degeneração’ do ser humano, mas um

modo específico de afirmação do indivíduo sob a vigência de determinadas formas de

sociabilidade (FRAGA, 2002). Portanto, a sociabilidade privada, em especial a família, é um

espaço privilegiado para o exercício de identidade e auto-afirmação do indivíduo. Vejamos

o que afirma Gentile:

A questão da violência suporta-se na busca de identidade. Quando alguém nos

ofende, isto é, ataca a nossa identidade, tornamo-nos violentos. É isso o que

acontece quando um marginal risca um automóvel, ou exerce a violência

gratuitamente. Não por outro motivo ele é marginal, está à margem, no limite da

identidade. E não há forma mais profunda de estabelecer a identidade de uma vida

do que com o desaparecimento de outra2.

2
GENTILE, S. A Experiência do SOS Criança. Apresentação do coordenador do SOS Criança, Sabino

Gentile, na mostra “Sociedade Viva – Violência e Saúde”, Natal, abril, 2004.


50

4 A POLÍTICA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

4.1 A trajetória da política de proteção à infância

O caráter conflitivo, dinâmico e histórico da condição humana no trajeto civilizatório

faz do indivíduo na sociedade um eterno auto-alimentador de suas ações: embora

determinado por contextos econômico-político-culturais, é ele próprio um ator ativo da

realidade social em constante transformação.

Ao mesmo tempo em que a sociedade, através dos indivíduos e grupos impõe

normas e condutas arbitrárias, ela própria cria mecanismos com intuito de mudar esse

‘estado de coisas’. Isso cabe também para a problemática da violência contra a criança.

Desde a antiguidade até os dias de hoje ocorreram ações isoladas ou coletivas, legais ou não,

com interesses diversos, mas com objetivo primeiro de coibir este fenômeno.

Uma das primeiras sanções imposta contra maus-tratos na infância data dos anos

315-329 d.C. Neste período, em Roma, criou-se uma lei que propunha decepar as mãos dos

pais caso eles praticassem o infanticídio. No ano 830 d.C., a mulher que matasse um recém-

nascido era excomungada, cabendo aos sacerdotes a aplicação da pena. Na Inglaterra, no

século XII, criou-se uma lei que tratava a morte de criança por nutrizes ou professores como

homicídio por parte do adulto (MINAYO, 2002).


51

A concepção da infância e o interesse em mudar a sua condição ao longo da história

se construíram no bojo de grandes revoluções. Muitos projetos e realizações da Revolução

Francesa foram inspirados pelas indicações de Rousseau sobre a educação de crianças,

assim também como os movimentos sócio-políticos na Grã-Bretanha e nos E.U.A.

influenciaram os modelos de educação e de proteção à infância (GUARA, 1995).

No início do século XIX, as agressões corporais se estenderam dos serviçais das

famílias setecentistas aos operários das fábricas. No decorrer do século, esta prática

começou a ser vista como incivilizada. O chicote, utensílio doméstico comum no antigo

regime, foi substituído pela palmatória ou palmato (uma tábua cheia de furos, usada em toda

a Europa meridional e no sul dos Estados Unidos), que servia para bater na palma das mãos

das crianças.

Segundo Sennet (2001), os primeiros protestos ingleses contra as bengaladas

surgiram no século XIX. Os reformistas consideravam esta prática escolar bárbara e

perigosa, já que os ferimentos da criança podiam infeccionar facilmente. O autor chama a

atenção para a teoria de Elias (O Processo Civilizador), onde este afirma que o declínio da

violação física no século XIX não foi um sinal de diminuição da coerção. Foi um sinal de

aparecimento de novos controles, como a ameaça e a vergonha, controles menos palpáveis

do que a dor física, mas idênticos em seu efeito de subjugação.

Em 1970, nos E.U.A. surgiu a necessidade de ações concretas contra maus-tratos

físicos em crianças, de certa forma, a partir do caso da criança Mary Ellen, agredida

fisicamente no lar. Como na época não existia lei que a protegesse de seus agressores,

recorreu-se a Sociedade Protetora dos Animais, sob alegação de que a criança também

pertencia ao reino animal. Após este incidente, foi criada a Sociedade de Prevenção da

Crueldade contra as Crianças.


52

A luta contra a punição corporal em crianças se intensifica nas sociedades pós-

industriais. O estudo realizado nos Estados Unidos por Straus (apud AZEVEDO; GUERRA,

2001), revelou que a punição corporal faz formar adultos que se adaptam melhor a

ocupações nas quais a obediência é priorizada, ao invés da iniciativa e criatividade. O autor

afirma que cada sociedade desenvolve formas de criação de filhos que os preparará para o

preenchimento dos papéis que exercerão na vida adulta. Nas sociedades pós-industriais não

basta o indivíduo ser obediente, é exigido que o mesmo seja independente, criativo e

desenvolva habilidades para cooperar, explicar e negociar.

O autor conclui que a tendência nas sociedades pós-industriais primeiro-mundista é

a diminuição das punições corporais nas crianças, já que estas prejudicam o

desenvolvimento das capacidades competitivas e criativas dos futuros indivíduos,

indispensável ao sistema econômico.

No Brasil, na primeira década do século XVIII, o alto índice de crianças

abandonadas e enjeitadas, chamadas ‘expostos’, preocupavam autoridades, religiosos e

homens públicos. Era comum a criança ser abandonada à noite nas ruas sujas.

Freqüentemente, eram devoradas pelos cães e outros animais que rondavam pelas ruas

(FALEIROS, 1995). A criação da ‘roda dos expostos’ foi uma tentativa de diminuir esse

quadro. A roda, instituição filantrópica, surgida na França, Portugal e posteriormente no

Brasil, recebia os expostos, na maioria, filhos adulterinos. A sua estrutura física facilitava a

não identificação do responsável pela entrega da criança. Um dos objetivos da roda era

salvar recém-nascidos abandonados, para depois encaminhá-los a trabalhos produtivos e

forçados.
53

A lei do ventre livre, criada em 1871, em nosso país, estabelecia que a partir daquela

data, os filhos dos escravos, chamados ‘ingênuos’ nasceriam livres e que até os 12 anos era

proibido separá-los dos pais ou açoitá-los.

A criação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, em 1891, foi o início das

inúmeras tentativas de projetos sociais de combate à pobreza e aos maus-tratos infantis. Ao

longo da história, cada vez mais o caráter de proteção à criança ficava ambíguo: não estava

em jogo apenas o interesse no bem-estar e proteção da criança, mas também a própria

necessidade de defender a sociedade. O aparato jurídico-policial marca a política da

assistência em nosso país, a partir da cisão de duas categorias distintas da infância: a criança

e o menor. Estes últimos eram estigmatizados pela sua condição de pobre, abandonado e

infrator.

Em 1895, no município de São Paulo, foi notificado às autoridades policiais o

primeiro caso de violência física contra a criança. Correspondia às agressões sofridas pela

menina Petra, por parte de sua madrasta, uma espanhola. (AZEVEDO; GUERRA, 1993).

No início do século XX, temos as primeiras medidas contra maus-tratos à criança,

mesmo de forma vaga e difusa. O Código de Menores, vigente em 1927, suspendia o Pátrio

Poder ao pai ou à mãe: “que por abuso de autoridade, negligência, incapacidade e

impossibilidade de exercer o seu poder, faltar habitualmente ao cumprimento dos deveres

paternos” (RIZZINI, 1995, p. 131).

No Brasil, a partir da década de 70, podemos destacar a atuação da Pastoral do

Menor, do Movimento em Defesa do Menor e do Movimento Nacional de Meninos e

Meninas de Rua-MNMMR. Todas as ações destes movimentos se voltavam para a questão

da cidadania, sendo seus membros porta-vozes contra qualquer tipo de violência envolvendo

a população infanto-juvenil, com ênfase na questão da droga, tráfico e extermínio. Em


54

1989, em Brasília, no 2° Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, as crianças e os

adolescentes votaram simbolicamente pela aprovação do Estatuto da Criança e do

Adolescente-ECA, em pleno Congresso Nacional. Recentemente, no mesmo local, houve

um arquivamento simbólico de todas as propostas de emenda constitucional sobre a redução

da idade penal.

Em 1985, quase cem anos após a primeira notificação de maus-tratos, foi criado o

primeiro programa de atenção integral à criança vítima de maus-tratos, o CRAMI-Centro

Regional de Registros e Atenção aos Maus-tratos na Infância, localizado no município de

Campinas, São Paulo, constituído por docentes da PUCCAMP, membros da sociedade civil

e representantes de empresas locais. As entidades participantes do conselho técnico eram o

juizado de menores, a delegacia regional de polícia, o IML (Instituto Médico Legal) e

representantes da área de saúde e das universidades locais. A equipe formada por

multiprofissionais da área de saúde e setor jurídico seguia os principais objetivos do

programa: o fornecimento de dados (da violência), a prevenção (da comunidade), a

promoção (da família) e o atendimento (da criança).

As grandes mobilizações após a ditadura militar se voltaram para as propostas em

torno da Constituinte. Ampliaram-se os questionamentos e denúncias sobre a precária

condição da infância brasileira a nível estrutural, institucional e legal, culminando com uma

nova legislação na área da infância e adolescência.

A década de 90 foi marcada pelo surgimento de várias entidades na área da criança e

do adolescente. Algumas atuam diretamente na problemática da violência contra crianças.

No município de Natal, temos, entre outros, os Conselhos de Direitos e Tutelares, o SOS

Criança, a Delegacia de Defesa da Criança e do Adolescente-DCA, o Projeto Sentinela e a

Nova Infância. Estes últimos, atuando na esfera governamental. A nível das ONGs (órgãos
55

não governamentais), temos a experiência da Casa Renascer, M.N.M.M.R., Canto Jovem,

Engenho de Sonhos, entre outros.

4.2 A criança, sujeito de direitos: a cidadania em rede

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor a mais de uma década, é um

instrumento positivo na luta pela emancipação humana. A infância inserida no campo de

forças sociais e a criança reconhecida enquanto sujeito social e de direitos, quebra dogmas e

tradições no trato com a mesma. O Estatuto criou mecanismos de promoção, defesa e

controle social, através do sistema de garantia de direitos para execução de sua política.

Frente a este aparato legal, temos milhares de crianças submetidas à violência estrutural e

doméstica.

Entre as expressões da violência disseminada na sociedade está a violência

estrutural. A criança que vive em precárias condições na família, na rua ou em instituições,

sujeita à exploração sexual e do trabalho é fruto desta violência. A mesma aparece

‘naturalizada’, como se não tivesse a ação de sujeitos. Quando vem a tona é por meio de

denúncia, geralmente de movimentos sociais. Para Cruz Neto e Moreira (apud MINAYO,

2000, p. 99):

(...) o lócus da violência estrutural é exatamente uma sociedade de democracia

aparente que, apesar de conjugar participação e institucionalização e advogar a

liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a todos o pleno acesso a seus
56

direitos, pois o Estado volta sua atenção para atender aos interesses das classes

privilegiadas.

Podemos dizer que um dos obstáculos para a criança exercer sua cidadania, dentro

do limite permitido pela idade, é a inoperância da sociedade e do Estado em garantir o

acesso aos serviços básicos da população. Temos como exemplo da condição de não

cidadania, a imposição de novas formas de sociabilidade que contribuíram no processo de

colonização, como a proibição da população indígena falar sua língua de origem.

No regime republicano, o país teve oportunidade de investir na infância, através de

políticas públicas, mas se limitou a um complexo sistema de tutela. Com isso,

institucionalizou a divisão entre a infância privilegiada e a marginalizada. Esta última passa

a fazer parte da doutrina de situação irregular e a criança, objeto de tutela do Estado.

Ao estudar a história da legislação para a infância no Brasil, Rizzini (1995), revela

idéias em conflito, entre os juristas, sobre a concepção do que seja criança e qual doutrina

adotar: há os que defendem a restrição do judiciário, definindo a criança como sujeito de

direito, e os que defendem a criança como objeto de lei, ‘judicializando’ o problema sob a

forma de leis penais mais duras.

A sociedade tradicional brasileira tem a violência incorporada nas relações sociais

como um comportamento regular, positivamente valorizado. Os relacionamentos

interpessoais, marcados pela dominação e violência têm sua origem na cultura e instituições

do patriarcalismo, como define Castells (2000, p.4):

O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as

sociedades contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade, imposta


57

institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar. Para que

esta autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda

a organização da sociedade, da produção do consumo à política, à legislação e à

cultura.

Ao longo dos anos, o modelo de família baseado na estrutura patriarcal vem sendo

contestado: - a autoridade paterna como uma função natural - o direito incondicional sobre o

filho – e a desobediência como transgressão desse direito. A reprodução da violência contra

a criança na esfera privada pode estar relacionada à transgressão da criança diante da

legitimidade desse direito.

Matta (1997), ao estudar o conceito de cidadão, chega à conclusão que, no caso

brasileiro, a palavra cidadão é usada sempre em situação de inferioridade, prevalecendo a

lógica do “- Sabe com quem está falando?”. O cidadão é a entidade que está sujeita à lei, é

um sinal de ausência de relações, enquanto que a família e as teias de amizade são entidades

rigorosamente fora da lei, pertencem às redes de relações altamente formalizadas política,

ideológica e socialmente. A articulação entre a ordem pública (a lei universal/cidadão)e os

códigos particulares (costume/tradição) é o que o autor chama de ‘sociedade relacional’.

A violência contra a criança, enquanto prática de castigo, se reveste da convivência

contraditória entre estas duas lógicas (costume/lei), entre o direito costumeiro e o direito

formal. Se hoje temos o ECA e uma maior intervenção do Estado na esfera privada, através

dos órgãos de proteção à criança, por outro lado, existem relações familiares, com seus

códigos próprios, impondo formas autoritárias de convivência.

A ‘publicização’ da violência doméstica, a partir da implementação do Estatuto da

Criança, marca um período de extrema importância na história social da criança. O desafio


58

está em articular de forma orgânica a rede de proteção proferida no sistema de garantias de

direitos, que contribua na diminuição desta violência.

A aprovação da nova Carta Constitucional – fruto de intensa mobilização social e do

esgotamento das condições políticas para a continuidade do período autoritário – inaugurou

para a sociedade brasileira, desde 1988, um novo paradigma legal.

As ações e mobilizações se voltaram para a regulamentação dos artigos

constitucionais aprovados e o reconhecimento efetivo dos novos direitos da criança,

preconizados no artigo 227 da Constituição (1988):

- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,

com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,

à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A articulação em defesa dos direitos da criança teve como principais atores: a

Pastoral da Criança, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e o

Fórum DCA (Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos

Direitos da Criança e do Adolescente), culminando na elaboração do Estatuto da Criança e

do Adolescente-ECA.

Promulgada em 13/07/90, a lei 8.069/90-ECA se constitui objetivamente no elo de

ligação entre a Constituição Federal e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança,

aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1989, ano do 30° aniversário da

Declaração Universal dos Direitos da Criança.


59

No plano simbólico, a aprovação do Estatuto ultrapassa o conceito de

regulamentação formal da Constituição. Faz um resgate do valor da criança e do

adolescente, como ser humano, titular de direitos especiais, em virtude de sua condição

peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Surge um novo paradigma em relação à infância: a doutrina da proteção integral (do

direito), que substitui a doutrina da situação irregular (da necessidade). O atendimento às

necessidades (saúde, educação, moradia e lazer) passa a dar lugar para o atendimento aos

direitos. A criança deixa de ser objeto de tutela. As necessidades não atendidas se

constituem em violação de direitos.

O problema da criança freqüentemente é visto como exclusivo da família, da

paternidade irresponsável e da falta de assistência aos filhos, onde as precárias condições de

saúde, habitação, educação e alimentação ocorrem por comodismo dos pais. Esta visão

reducionista da infância no Brasil deixa de lado questões mais amplas para a compreensão

do empobrecimento das famílias brasileiras, desconsiderando aspectos sociais, econômicos,

políticos e culturais.

No plano mais geral, o Estatuto exige um reordenamento no conjunto da política, da

economia e da organização social, uma revisão de prioridades políticas e de investimento,

como também coloca em questão o modelo excludente e perverso de desenvolvimento e

respectivo projeto de sociedade, que na prática não reconhece a nova condição da criança.

Em um país onde transgredir os direitos da criança é comum, lutar para que estes

sejam respeitados soa ilusório. Mas é preciso acreditar nessa possibilidade. O desafio atual

para os atores sociais que lidam com esta problemática é reconhecer a nova condição social

da criança e suas singularidades. É fazer funcionar a articulação da rede de atenção à


60

criança: a busca na especificidade (com ênfase na interdisciplinaridade), na identidade, na

missão e no papel de cada espaço, de cada instrumento, de cada ator.

A articulação da rede de atenção não se limita a entidades que trabalham diretamente

com a violência contra a criança. É importante a parceria com outras instâncias que atuam

direta ou indiretamente com a infância e a adolescência, seja nos serviços básicos (educação,

saúde, creche), seja em instituições governamentais e não governamentais de promoção e

defesa da criança (promotorias, conselhos, programas e movimentos sociais) ou em eventos

culturais, igrejas e meios de comunicação.

Nos anos 90, o trabalho em rede surgiu como estratégia do governo e sociedade civil

para implementar a nova política na área da infância, prevista no ECA e na Constituição.

Nesse contexto, a noção de redes foi compreendida como um espaço de formação de

parcerias, cooperações e articulações dos sujeitos institucionais, no âmbito público e

privado (LORENCINI, 2002, p.298).

No Brasil, não temos a cultura de participação da sociedade no enfrentamento da

violência intrafamiliar contra a criança. A sua visibilidade é frágil, devido, entre outros

fatores, a ineficácia de um sistema de informação, que sistematize os dados através da

notificação de denúncias. A participação nos Fóruns de Defesa da Criança e do

Adolescente, o fortalecimento do SIPIA-Sistema de Informações para a Infância e

Adolescência e a atuação eficaz dos Conselhos Tutelares e de Direitos da Criança e do

Adolescente são importantes para a articulação, promoção e controle da política de

atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Pela complexidade da problemática, cada caso de violência representa a criação de

uma rede específica de atendimento e exige o conhecimento de programas existentes na

gestão local para o seu enfrentamento. Em qualquer intervenção, é importante ter uma visão
61

interinstitucional, tendo a clareza de que a interrupção da violência é tão importante, quanto

a não exposição desnecessária da criança e da família, exigindo eficiência e conhecimento

dos papéis de cada órgão envolvido no atendimento.

A articulação em rede é o mecanismo mais eficaz para o enfrentamento da violência

contra a criança. Por isso a importância dos serviços essenciais de saúde, educação,

habitação, geração de renda, como também da assistência social, justiça e comunidade

(associações de moradores, grupos de mulheres, religiosos e culturais, entre outros). Para

que os discursos e práticas não caiam no vazio, é preciso que cada ator social, cada entidade

tenha incorporado, na sua prática cotidiana, ações integradas com a comunidade, fóruns de

discussões, pesquisa e capacitação profissional.

4.3 A experiência do SOS Criança

Em 1990, após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a articulação

entre a sociedade civil e amplos setores governamentais, conhecida como Pacto pela

Infância, objetivava a legitimidade social e a efetividade do ECA. Para tanto, era preciso

criar ações e programas de atendimento à criança e adolescente de acordo com a sua

formulação, tendo como essência, a criança enquanto sujeito de direitos. O resultado deste

pacto foi a criação em todos os Estados do Programa SOS Criança.

Em nosso Estado, o Programa foi criado em 1992, com sede no município de Natal,

e é pioneiro na área de proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Inicialmente foi vinculado ao Gabinete Civil do Estado, posteriormente, à FUNDAC

(Fundação Estadual da Criança e do Adolescente), que por sua vez, é vinculada à Secretaria

de Trabalho e Assistência Social-SETAS.


62

O SOS Criança é um programa público estatal, de caráter emergencial, que atende

crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. Tem como suporte jurídico o

art. 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, nos artigos

4°, 5° e 87 incisos III, IV e V e artigo 88 inciso V:

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão,

punindo na forma de lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus

direitos fundamentais (ECA, Art. 5°).

O SOS Criança tem como principais objetivos:

1. Ser um serviço de atendimento emergencial a crianças e adolescentes, violados em

seus direitos;

2. Ser um órgão integrado e articulado com as várias ações e serviços de defesa e

atendimento à criança e adolescente, tanto na esfera do Poder Público como na Sociedade

Civil;

3. Agilizar o encaminhamento de crianças e adolescentes em situações de risco,

evitando internações desnecessárias em abrigos;

4. Resgatar, sempre que possível, o vínculo familiar / comunitário;

5. Funcionar como banco de dados, para pesquisa e meios de comunicação.


63

Anualmente, são registradas cerca de 3.000 notificações, entre elas: negligência,

maus-tratos, espancamento, situação de risco, abuso sexual, abandono, fuga de casa, reaver

filho, desaparecimento, exploração do trabalho infantil na esfera doméstica, a criança fora

da escola ou sem atendimento médico. O acesso à população é facilitado através do sistema

de plantão 24 horas, da ligação gratuita e do anonimato do denunciante. É comum a

participação do Programa em eventos da comunidade em geral, com o objetivo de uma

maior interação e prevenção.

Os autores da violência contra a criança são de vários níveis sociais, econômicos,

religiosos e culturais. O próprio Estado é também autor desta violência, seja pela

inexistência ou pela inacessibilidade de serviços essenciais como saúde e educação. As

famílias mais vulneráveis socialmente, com suas vidas expostas a partir do próprio local de

moradia, estão mais sujeitas à notificação, ao contrário das classes mais favorecidas, por sua

reclusão e privacidade.

As dificuldades enfrentadas pelo programa vão desde à falta de recursos humanos

qualificados e sensibilizados com a problemática, à falta de estímulo salarial, à ineficiência

das políticas básicas, à desarticulação da rede de atendimento à infância, até ao próprio

contexto da sociedade, cujas desigualdades sociais produzem um cenário de extrema miséria

em milhares de famílias.

Atuar na área da violência contra a criança é estar em contato com famílias em

situação de risco pessoal e social, em um quadro de exclusão social. O que esta violência

está querendo dizer? É o que questiona Sabino Gentile, coordenador do SOS Criança, no

município de Natal:

Lembro-me daquela senhora que foi denunciada por ter espancado sua filhinha de seis

anos de um jeito que ela não apresentava mais nenhum pedacinho de pele que não
64

estivesse com marcas de sangue. Apesar disso, apavorada com a idéia de que a mãe

pudesse vir a sofrer algum tipo de castigo, a filhinha se agarrava à saia como a

protegê-la. Soubemos que a mãe vivia a mesma situação de violência no seio de sua

família. Mãe e filha revelavam a mesma dor de abandono e de falta de

perspectiva.(GENTILE, 2002)

O espancamento à criança e ao adolescente está entre as três maiores demandas do

Programa (305 notificações em 2003), depois de maus-tratos-801 e negligência-973. É

quando o programa atua a nível terciário, pós-facto, isto é, intervém quando a violência já

tem ocorrido. Apesar de ser importante esta intervenção, é necessário intensificar a atenção

nos níveis primários e secundários. Compartilho a idéia do LACRI (laboratório de Estudos

da Criança)-USP: “-É preciso chegar antes que uma criança se torne um prontuário

médico, um boletim policial, um processo judicial, um dossiê psicossocial, uma notícia de

jornal ou um corpo no necrotério” (AZEVEDO, 2002, p.135).

No primeiro semestre de 2002, foi realizada uma pesquisa documental no SOS

Criança, tendo como objeto a violência física contra a criança. A pesquisa não se deteve aos

encaminhamentos jurídicos referente aos casos, mas ao teor das notificações e ao contexto

sócio-familiar em que ocorreu o ato agressivo. A mesma poderia ter sido mais rica, se não

fosse a limitação das informações dos dados colhidos nas planilhas.

No universo de 75 notificações de espancamento praticado em criança na faixa etária

de 0 a 11 anos, 30 delas foram constatadas pela equipe do Programa após visita domiciliar.

Seguem algumas observações, a partir das referidas informações:


65

Responsável Pela Criança

Quase 50% das crianças residem com os pais


Mãe 32%
biológicos. Em seguida, com a mãe. Temos

Pais 46% também pai se responsabilizando pelos

filhos. A avó se encontrava com a guarda do

neto quando este foi agredido por seus pais.


Pai 18%
Avó 4%

Quem Bate
Os agressores mais comuns são os pais
Tio 3%
Padrasto biológicos. Estatísticas internacionais indicam
7%

que este índice chega a 70%. Nesta pesquisa,

temos o pai e a mãe, seguida do padrasto e do


Pai 47%
tio. Freqüentemente temos a figura da mãe
Mãe 43%
como a principal agressora, principalmente em

denúncias de negligência e maus-tratos. Entre

alguns fatores, podemos indicar o seu papel como provedora e chefe de família ou a que

mantêm maior permanência com o filho. Neste levantamento, percentualmente, o pai está

agredindo mais. Foi constatado um baixo índice de companheiros (as) dos respectivos pais

no conflito direto com a criança.


66

Em Quem A idade média das crianças agredidas é de 07-08 anos,


Fem prevalecendo o sexo masculino. Constatou-se que a
21%
mãe bate mais no filho de menor idade, enquanto que o

pai bate mais nos de maior faixa etária. Isto pode estar

relacionado ao fato da criança até a pré-escola está

Masc mais em contato com a mãe. Ao crescer e mais exposta


79%
a rua, o conflito se volta para a figura do pai.

Ocupação dos Pais:

Pai

Desemp. 8% A maioria dos pais está inserida no trabalho


T. Formal Aposent. 8%
31% informal, sem estabilidade e com baixa

remuneração. Não se constatou um alto índice de

desemprego e a aposentadoria é devido a distúrbios


T. Informal
53%
mentais.
67

Mãe

T. Formal Desemp. A maioria das mães não exerce atividade


14% 14%

remunerada. Apenas uma se encontra no mercado

formal de trabalho (operária). Duas mães foram


Aposent.
29%

T. Informal
aposentadas por distúrbios mentais.
43%

Batem de Que

Cinto 6%
Apesar de 10 planilhas não especificarem o
S/ Dados 10%

Mangueira instrumento usado contra a criança, constatou-se


1%

que o cinto, o pau e a mão foram os instrumentos


Pau 5%

Fio 2%
mais utilizados.
Mão 4%

Onde

Lábios Face 10% Tórax/om bro


10% 7% Os hematomas caracterizam o espancamento na
Pernas 7%

Braços 10% Dedos 3%


criança. 1/3 não especificou o local da agressão.

Predominou a região do rosto.


Costas 13%

Olhos 7%
S/Dados
33%
68

Por quê Quanto à justificação do ato agressivo, o motivo


S/ Dados 2%

Transtornos mais alegado é a desobediência do filho. O


Mentais 3%

Alcoolism o 2% Desobediência
13%
descontrole emocional, revelado mais pelas mães,

é também citado em um contexto que acumula


Nervosism o
6%
vários fatores, entre eles, o de não conseguir
Acidente 2% Filho
Hiperativo 2%
suprir as necessidades básicas da família.

Quem Notifica
A maioria das notificações é anônima. As
Vizinha;
7% pessoas que denunciam preferem não se
Família;
17% identificar. Nas família predomina as

notificações por parte da mãe, tia e avó. As


Instituição;
10% demandas institucionais provêm de postos de
Anônimo;
66%
saúde e hospital. Neste levantamento, não

existiram notificações de escola ou creche. As

situações mais graves foram encaminhadas à Delegacia e ao Conselho Tutelar.

Observou-se que a criança em situação de violência atendida pelo programa reside,

na maioria, em bairros periféricos de Natal. As relações familiares encontradas foram as

mais diversas: extensa, nuclear, chefiada por mulheres, pais em novos relacionamentos,

entre outros. Encontramos 05 famílias com história de alcoolismo e 03 pais com distúrbios

mentais. A metade das crianças convive com um dos pais (prevalecendo a mãe).

É comum a violência física se estender a mais de um membro da família. O pai pode

estender a agressão à esposa e demais filhos. E a mãe, aos outros filhos. Observou-se que 04

mães foram agredidas pelo cônjuge, após bater no filho. Neste caso, as relações de forças,
69

presentes nas relações familiares violentas, retratam uma idéia de poder em que os sujeitos,

com exceção da criança, se alternam entre receptor e propagador dessa violência.

5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO

5.1 O universo da pesquisa

O interesse pela problemática da violência doméstica contra a criança surgiu a partir

do meu contato direto com crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos, no programa

SOS Criança, no município de Natal. Na minha primeira abordagem sobre esta temática,

tentei identificar alguns mecanismos do Estado e da sociedade na minimização do fenômeno

em foco (LINHARES, 1994).

A diversidade de práticas violentas e de relações familiares encontrada em contextos

idênticos (social, econômico e cultural) é o que torna a temática complexa e polêmica. A

prevalência do quadro de precariedade e de miséria encontrado na maioria das famílias

abordadas pelo SOS Criança, não constrói, necessariamente, o que podemos chamar de

‘perfil da família’ em situação de violência contra a criança.

A dinâmica social que envolve tais famílias é rica em linguagens na busca pela vida

e sobrevida: os biscates, os arranjos e (re) arranjos familiares, o trato com as crianças, o


70

movimento, o lúdico, a violência, o lazer, a angústia muda do apelo, o grito de revolta, o não

limite entre proteção e risco, amor e ódio, o estar vivo.

O acesso ao campo empírico, via SOS Criança, faz com que a problemática se volte

para as famílias de baixa renda, já que estas são mais sujeitas à notificação. O SOS Criança

tem como metodologia de ação, receber denúncias, constatar, orientar e encaminhar crianças

em situação de violência. Em geral, as notificações neste Programa quanto aos maus-tratos e

espancamento são anônimas. Portanto, para maior visibilidade da problemática, este estudo

se volta para a violência física contra a criança, através de espancamentos praticados por

pais e constatados pela equipe do SOS Criança.

Após a pesquisa documental, exposta no capítulo 4, foi realizada uma pesquisa de

campo, dividida em duas fases:

. A primeira fase – Após pesquisa documental, dos quais foram selecionados 30

espancamentos em crianças praticados por seus pais (ver capítulo anterior), 13 pais foram

entrevistados (10 mães e 03 pais). Entre os não selecionados estavam: os que residiam fora

do município de Natal, os que eram só parentes como tio e padrasto, os que eram portadores

de deficiência (como exemplo a situação de uma mãe surda-muda) e os que se mudaram de

endereço no decorrer dos encaminhamentos dados pelo Programa.

O roteiro da entrevista seguiu três momentos: Dados pessoais dos pais;

Família/Educação e temas diversos relacionados com opiniões, atitudes ou valores sobre

diferentes campos da vida social (família, gênero, religião, trabalho, educação, etc.). As

frases elaboradas foram baseadas no estudo de Adorno (1965), com uma variedade de

proposições autoritárias e democráticas, que as quais os pais deveriam concordar ou

discordar.
71

Um dos objetivos da entrevista foi tentar apreender, na dinâmica familiar, até onde a

disciplina imposta ao filho está submetida às condutas e convenções morais herdadas na

família ou a princípios racionalizados e autoritários. Os diversos assuntos abordados tiveram

a intenção de averiguar onde inicia (ou acaba) a tênue linha entre a rigidez disciplinar na

família com outras formas autoritárias de sociabilidade.

As entrevistas foram realizadas no domicílio dos pais, no período de abril a outubro

de 2003. Observou-se uma boa receptividade à entrevista e tema por parte dos pais. Estes

residem, na maioria, em bairros periféricos, próximos a familiares e/ou trabalho, contudo, a

metade deles não se encontrava mais no endereço indicado. Apenas uma mãe se recusou a

dar entrevista.

Ocorreram mudanças no modo de vida das famílias: aumento do desemprego,

separação conjugal e crianças residindo com outros familiares. Verificou-se uma diversidade

de práticas familiares, cuja rigidez na autoridade parental é exercida por um dos pais. É

visível como diferenciam a agressão em si, do castigo físico. O bater para disciplinar não é

considerado violento.

. A segunda fase – Dos 13 pais selecionados, apenas 50% foram localizados nos seus

domicílios. Este alto índice de mudança de endereços pode ser caracterizado como um

possível desenraizamento das famílias em situação de violência. Ao ser realizada nova

pesquisa, constatou-se que no primeiro trimestre de 2004, ocorreram 08 espancamentos

contra crianças, praticados por seus pais: 07 mães e 01 pai. Localizados, posteriormente, nos

seus respectivos endereços, 99% residiam na zona oeste de Natal, área considerada de risco

social e com atuação preventiva de órgãos públicos e ONG’s.

Todas as entrevistas foram realizadas na própria residência dos pais, adaptadas à

dinâmica familiar, cujos imprevistos variavam entre a disponibilidade de tempo dos


72

entrevistados e o espaço físico. Houve dificuldade em encontrar alguns pais em casa, como

também, em descobrir endereços novos em um mesmo bairro.

Nas entrevistas, alguns pais, ao tomarem conhecimento da temática - educação dos

filhos - apresentavam o filho que estava dando mais ‘trabalho’ e pediam que se conversasse

primeiro com ele. Outros faziam questão que as crianças presenciassem a conversa e, em

outros momentos, estas chegavam devagarzinho, prestando atenção. O pouco espaço físico

dos domicílios favoreceu a presença de familiares e revelou a falta de privacidade das

famílias.

Encontramos duas faixas etárias: entrevistadas entre 20 a 30 anos, mães, do lar, com

até dois filhos. A segunda faixa são pais entre 30 a 40 anos, de 4 a 9 filhos, onde a maioria

se relaciona com o cônjuge há mais de 10 anos.

A temática, assim como o seu objeto, campo empírico e metodologia não se deteve a

uma análise quantitativa da problemática. O baixo número de entrevistados elimina a

possibilidade de uma análise representativa no sentido estatístico. A metodologia para a

apresentação dos resultados da pesquisa teve como parâmetros uma abordagem qualitativa,

baseada no trabalho de Sarti (2003) e organizada por tópicos: - cidade – trabalho -

comunidade – família, inserindo a relação pais/filhos em cada um destes universos.

5.2 A cidade, a rua, o trabalho

A cidade de Natal, cantada em verso e prosa, famosa por sua beleza natural e

potencial turístico, cresce assustadoramente sem que a qualidade de vida da maioria da

população acompanhe esse ritmo. Com quase 800.000 habitantes, nos últimos 20 anos a
73

região metropolitana da cidade vem recebendo um fluxo muito grande de habitantes

provindos do interior e de outros Estados.

As desigualdades sociais se tornam mais visíveis quando tomamos conhecimento de

que cerca de 65.000 habitantes vive com renda mensal inferior a R$ 80,00 e 41,62% vive

sem rendimentos (IBGE-2000). A situação, gerada pela má distribuição de renda, é agravada

pelo desemprego, ‘déficit’ de políticas públicas e sistema judiciário ineficaz, quadro geral da

violência estrutural e social que assola o país.

Diferente das cidades pequenas, onde se preservam mais os laços comunitários e

sentimentos que favorecem a solidariedade, na cidade grande o que prevalece é a lógica do

mercado. Como alertava Simmel (1967), o dinheiro regendo a vida das pessoas, numa

rapidez impressionante. É nessa lógica que o espírito individualista suga a vitalidade das

relações humanas. O egoísmo individualista passa a ser sinônimo de esperteza – forma de

ser e viver contemporânea. Tudo tem que ser vivido aqui e agora. A intensificação da vida

nervosa, da velocidade dos impulsos, imagens e informações faz do lema “- Viva o hoje!” o

código da cidade.

Nas famílias de baixa renda, o imediatismo e o ativismo marcam o dia-dia das

pessoas em busca de novas formas de sobrevivência. Em algumas, há uma rede de ajuda

recíproca alicerçada pelas relações familiares. A periferia é o seu lugar na cidade. Cria-se

uma identidade própria através das relações sociais no local de moradia e espaço familiar.

As famílias abordadas em nosso estudo são famílias de baixa renda. Residem em

bairros periféricos, a maioria convive com a família de origem, outras, sem moradia fixa.

Um alto índice de mudança de endereço foi constatado na primeira fase da pesquisa de

campo. Vários são os motivos para a instabilidade de moradia e desenraizamento, entre eles:

dificuldades em arcar com aluguel (geralmente residem em vilas e próximos ao trabalho),


74

desavenças com vizinhos e/ou familiares, não ter vínculos familiares na cidade. Como

também, pais que retornaram ao interior do Estado, onde reside a família de origem.

O estudo de Ramiro (2001) sobre as estratégias de sobrevivência em uma

comunidade de baixa renda revelou a importância do parentesco como rede de auxílio intra e

interdoméstico. Constatou-se o grande número de famílias extensas e ampliadas, regidas por

valores afetivos e racionais, na busca de alternativas para suprirem suas necessidades

básicas.

Neste estudo, a ocupação doméstica, o desemprego e o trabalho informal

caracterizam os pais com história de violência. A baixa escolaridade e qualificação

profissional fazem com que, para a maioria, a inserção no mercado de trabalho se dê através

de ‘bicos’, de biscates, através de serviços autônomos (como mecânico, pedreiro, pintor) ou

de diaristas (faxineiras, lavadeiras e cozinheiras).

Em nosso país, a economia informal é historicamente significativa. A pesquisa do

Dieese realizada na região metropolitana de Natal revela a predominância dessa economia.

É no mercado informal que

a precarização do trabalho toma formas degradantes, revitalizando o

trabalho escravo e o trabalho infantil, ao mesmo tempo em que se

acentua o grau de desigualdade entre ricos e pobres, constituindo um

verdadeiro paradoxo de miséria e riqueza (2002, p.47).

Em Natal, o maior índice de desempregados é constituído por mulheres. É baixa a

sua inserção no mercado formal de trabalho. Sob forte influência cultural, muitas mulheres
75

revelaram que não procuravam emprego porque os maridos ou pais não permitiam que

exercessem atividade profissional contínua, fora de casa (DIEESE, 2002).

Fora do mercado formal de trabalho, ainda predomina o vínculo cultural da mulher

às responsabilidades do ambiente doméstico e à socialização das crianças. Por cuidarem dos

afazeres domésticos, são consideradas nas estatísticas como inativas. Apenas 1/5 das mães

exercem atividades extra-domiciliar como manicure, diarista e auxiliar de secretário. Os pais

exercem a ocupação de padeiro e mecânico ambulante.

I.S., 20 anos, demonstrou determinação quanto a sua inserção no mundo do

trabalho. A mesma afirmou que o seu lugar é em casa com o filho, lavando e passando, e a

obrigação do seu esposo é arranjar trabalho e trazer dinheiro pra casa: “- Eu não trabalho

em casa? Porque ele não pode trabalhar na rua?”.

I. S. foi notificada ao SOS Criança por ter batido de cinturão no filho de 03 anos. Na

época confirmou que bateu no seu filho porque ele estava lhe desobedecendo. Afirmou que

a causa dessa desobediência é a sua avó, que faz todos os gostos do bisneto. Grávida de 08

meses, I. S. foi criada e ainda reside com a avó materna. A família extensa (avó, tio, primos,

esposo e filho,) sobrevive da pensão desta avó. O seu pai biológico é alcoólatra, pedinte e

vive na rua. A mãe mora no interior. Explicou que convive há 05 anos com o seu esposo

que, às vezes, passa vários dias fora de casa, dependendo da ocupação que arranja.

Segundo Sarti (2003), o fato de estar trabalhando e provendo a família, faz com que

o valor do trabalho seja não só pelo rendimento econômico, mas por seu rendimento moral,

sendo um instrumento fundamental na afirmação pessoal e social. O ter saúde e disposição

para trabalhar, dádivas concebidas por Deus, são atributos de dignidade, respeito e

reconhecimento entre seus familiares e vizinhança. É na família e no trabalho que os

mesmos constroem suas identidades sociais positivas.


76

Foi comprovado pela pesquisa do DIEESE que os maiores índices de desemprego se

encontram nas famílias extensas. Também se constatou que alguns desempregados

demonstraram sentimentos de desolação, angústia, abandono e tristeza, que podem estar

relacionados ao não reconhecimento social.

Dos entrevistados em nossa pesquisa, apenas 1/3 tem algum tipo de renda, através do

trabalho informal. O restante recebe ajuda de familiares, da Igreja ou da bolsa-escola dos

filhos. Os 04 entrevistados do sexo masculino têm história de alcoolismo relacionado ä

violência (um dado interessante para ser explorado posteriormente). Destes, dois estão

desempregados e um deles não convive com a família.

A lógica do trabalho na família pobre urbana inclui o padrão cultural da socialização

das crianças e jovens, contribuindo, de alguma forma, no orçamento familiar. Lembro do pai

irritado, comunicando por telefone que iria bater nos filhos (uma de 09 e outro de 11 anos).

Em vez de cuidarem do bar, foram jogar bola e acabaram quebrando o vidro do balcão do

bar, cuja 1ª prestação ainda não tinha sido paga. É comum a criança trabalhar em pequenos

comércios familiares: bares, mercearias, venda de comida, entre outros. Trabalho

freqüentemente conciliado com o horário da escola. A argumentação dos pais geralmente

recai sobre a sua própria experiência (“-Eu fui criado trabalhando!”) e como forma de

evitar os perigos da rua. A violência neste caso é um meio, um instrumento que viabiliza a

socialização da criança pelo trabalho.

Algumas crianças em situação de violência acompanham os pais em suas atividades

profissionais como vendedor de picolé e mecânico ambulante. Algumas ajudam no trabalho

doméstico e nos cuidados com os irmãos menores. Não acompanhar o pai, não ir à escola ou

não cuidar dos irmãos é um dos motivos da criança sofrer agressões na família.
77

Temos o exemplo do pai mecânico que faz ponto na ponte de Igapó. C. M. é enfático

em não querer o filho, de 11 anos, viciado em videogames, mentindo pra isso e andando

com ‘quem não presta’. Quer ver o mesmo lhe acompanhando no seu trabalho, como faz

seu outro filho de 09 anos. Este pai divide as despesas e a criação dos filhos (tem mais a

caçula de 07 anos) com a esposa, que também trabalha (cuida de idosos). Demonstra certa

agressividade em suas palavras. No meio de uma conversa, afirmou reconhecer que tem que

‘maneirar’ com os filhos e esposa porque é a única coisa que tem.

A história de vida de C. M. é marcada pela morte da mãe quando tinha 02 anos de

idade. Ele e seus 07 irmãos foram distribuídos entre parentes e conhecidos. Foi criado por

uma tia, no interior. Com 11 anos foi morar com a irmã mais velha e esposo desta, no Pará.

Afirma que, na verdade, quem lhe criou foi a vida, se teve que apanhar de alguém foi da

vida.

Das crianças em idade escolar, 04 têm bolsa-escola, através do Tributo à Criança

(Programa municipal de incentivo escolar). A situação da criança que recebe alguma renda

para permanecer na escola é delicada. Por um lado, existe a intenção de coibir o trabalho

infantil e evasão escolar, sendo o segundo turno da criança preenchido com o reforço

escolar, esporte e cultura; Por outro lado, quando a bolsa-escola é a única renda da família,

dependendo do contexto familiar, a criança pode não saber lidar com a nova condição: a de

‘provedora’, chegando a ter autoridade sobre os pais e irmãos, invertendo os papéis na

estrutura familiar.

Um dos critérios para a obtenção de bolsa é a pouca, ou ausência, de renda familiar.

Todas as crianças do Tributo têm histórias de fugas de casa. Entre elas está uma menina de

11 anos, cuja mãe, durante nossa conversa, se queixou de que foi obrigada a deixar o

emprego doméstico para ‘vigiar’ a filha que menstruou, não quer estudar, mas só saber de
78

“homens”. Segundo a mãe, a filha não conhece o pai. Foi notificada por ter espancado a

filha. Na época, demonstrou arrependimento pelo ato, reconhecendo não saber lidar com a

rebeldia da filha, que repetia pela 4ª vez a 1ª série.

A princípio, A. C. V. S., 27 anos, se recusou a conversar conosco, alegando falta de

tempo – só tinha uma folga na semana e muita atividade doméstica. Na segunda visita,

concordou com a entrevista. A sua história de vida começa pelo abandono por parte da sua

genitora (esta doou os 06 filhos que teve). Criada por um casal paulista até os 08 anos de

idade (o casal foi embora e não a levou porque não tinha documento), afirma que apanhava

muito dos filhos adolescentes deste casal. Trabalhou em residências de conhecidos do casal

até 03 meses atrás. Não tem escolaridade. Reside com o cônjuge (atualmente

desempregado), o enteado adolescente, a filha e o caçula do casal. Sobrevivem da renda do

Tributo (R$50,00) e da ajuda de familiares.

Vários depoimentos colocam a rua como um fator constante de perigo: por residirem

em favelas, morros ou proximidades, os filhos podem ser influenciados por más companhias

(roubo e droga) e as filhas, aliciadas, seduzidas, podendo ficar grávidas. No caso acima, as

constantes fugas da filha são agravadas pela questão da sua sexualidade aflorada e da

preservação da única renda familiar, a qual só seria possível, freqüentando a escola. Lembro

do pai que chegou no SOS Criança afirmando que não iria mais ‘guardar’ a filha adolescente

e que preferia entregá-la a avó. Este pai tinha espancado a filha na frente de uma pizzaria, na

presença do namorado.

Os pais com história de violência, em sua maioria, acham que não tiveram uma boa

educação porque precisaram trabalhar cedo. Mais de 50% trabalharam na infância: trabalho

doméstico e ambulante, lavagem de carro, jardinagem e agricultura. Os mesmos afirmaram

que os filhos estão tendo uma vida bem melhor do que a deles, já que estão tendo acesso à
79

escola, ao lazer, não trabalham e com um pouco de sorte, ainda ganham dinheiro (bolsa-

escola).

A escola ainda é o meio de garantir uma ascensão social e suprir o próprio desejo dos

pais, que não tiveram essa oportunidade na infância. O nível mais freqüente de escolaridade

destes é o ensino fundamental incompleto. O disciplinamento corporal ao filho, às vezes está

relacionado as queixas recebidas da escola. A maioria dos pais vê o estudo e o respeito

como o mais importante para ensinar o filho, sendo a escola e a família fundamentais nesse

processo.

A violência veiculada pelos meios de comunicação, através dos jornais televisivos,

faz parte do cotidiano dos pais. Apenas duas famílias não têm televisão. Apesar da maioria

não concordar com esse tipo de programação, mais da metade assiste diariamente. Um pai

afirmou que é preciso saber o que está se passando ao nosso redor.

As causas da violência em nossa sociedade, segundo os pais, estão relacionadas à

droga, à miséria, ao governo, ao desemprego e o alto custo de vida; ainda à falta de

educação e de oportunidade; devido à falta de tudo, principalmente de amor (crianças

abandonadas e revoltadas). Em pequeno número, relacionam a violência a fatores

individuais, tais como: a pessoa procura; já nasce ruim ou com uma fraqueza; por ambição e

ignorância, ou por falta de solidariedade e respeito entre as pessoas.

Não foi verificado, entre os pais com história de violência, o predomínio de valores

conservadores e autoritários. São a favor da igualdade entre os sexos, mesmo reconhecendo

que as mulheres têm mais limites que os homens. Quanto à existência de relações

homossexuais, a metade se pronunciou a favor. A maioria não concorda com pena de morte

e nem com um país sem eleições livres.


80

A intervenção na família, onde ocorre a violência intrafamiliar, é delicada pelas

particularidades inerentes a cada situação encontrada. O vínculo entre pais e filhos existe e o

desafio está em distinguir até onde este vínculo está pondo em risco a vida da criança e se,

diante do contexto familiar, é possível torná-lo positivo.

As interferências de órgãos de proteção, como o SOS Criança, em casos de violência

na família, foram aceitas por mais de 50% dos pais. Poucos assumiram que praticaram

violência contra o filho. Como a intenção é discipliná-los, quando exageram é puro

acidente, já que não é uma constância. Vejamos os comentários em relação à intervenção

na família quanto à violência dos pais:

Porque concordam:

Tem pai que gosta de fazer sangue;

O tempo está muito violento;

Tem família que exagera;

Às vezes ultrapassamos os limites;

Tem pais que batem para maltratar.

Quando orienta a família:

Os pais que maltratam os filhos merecem orientações;

A intervenção na família deve existir, desde que oriente todos: pais e filhos;

É importante ser orientada, porque a pessoa às vezes se abre mais, conversa mais, pois a

própria família não lhe compreende;

Não tem nada contra órgãos de proteção, porque com ela foi bom por ter aprendido muito e

por ter sido orientada a saber como lidar com o filho;

Quando passou por um problema, recebeu orientação do SOS. Foi uma aprendizagem.

Porque não concordam:


81

Porque a violência ‘tá’ aí fora, o mundo ‘tá’ perdido, tem que bater;

A mãe quando bate é porque sabe o que o filho apronta;

Porque se os filhos não apanharem em casa, vão apanhar da polícia;

Só concorda com órgãos de proteção quando eles não aumentam os fatos, porque a criança

tem que apanhar, ser exemplada.

As diversas opiniões dos entrevistados revelam a dificuldade em assumir o ato

violento contra o filho como uma violência. O disciplinamento corporal, nesse caso,

significa o melhor tipo de educação a ser dada ao filho. Quando há necessidade de um

esclarecimento, que se estenda também ao filho. Nota-se também que o medo da violência

extrafamiliar, como a polícia, é um forte fator para o bater em casa, na intenção de coibir o

filho de cometer contravenções na sociedade.

5.3 A casa, a família, a comunidade

As famílias em situação de violência contra a criança, contactadas através da nossa

pesquisa, confirmaram uma característica da família moderna: a heterogeneidade das

relações familiares, mesmo em situações sócio-econômicas semelhantes: extensas,

ampliadas, famílias nucleares, chefiadas por mulheres ou pais em novos relacionamentos.

As quatro famílias estruturadas no padrão nuclear (pai, mãe e filhos) residem em casas

alugadas e duas não tem vínculos familiares na cidade. A maioria convive com a família de

origem, ou moram em casas conjugadas, prevalecendo à linhagem materna. No universo de

10 mães e 04 pais, apenas 03 entrevistados foram criados pelos pais biológicos.


82

Na primeira entrevista realizada, tive o primeiro impacto com as mudanças ocorridas

no modelo nuclear da família. Encontrei pai, mãe e filha em um domingo de sol se

arrumando para irem à praia. D.M.S. tem 23 anos, estudante e auxiliar de secretária.

Explicou que a residência onde mora é dos avós do seu esposo. Reside com os mesmos

porque é mais próximo do seu trabalho e colégio. Seu esposo reside com os pais dele em

outra residência e sua filha passa a semana com a avó materna. Pai, mãe e filha se

encontram nos finais de semana.

É essa complexidade interna que faz a família se destacar dos demais grupos sociais.

As novas configurações que o mundo moderno reserva para a família fazem com que o

exemplo acima seja uma das alternativas encontradas para a sua sobrevivência. Alternativa

que, por sua vez, não é característica apenas de camadas sociais mais baixas.

A família, com suas particularidades, linguagem e dinâmica própria, tem na rede

mútua de ajuda dos familiares, o seu código de sobrevivência

A família com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da

qual traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de

negociação e de atuação no mundo social passam pelos caminhos onde é

possível falar essa linguagem” (SARTI, 2002, p.140).

No caso acima relatado, o espaço familiar não se limita a um domicílio. As relações

de conflito existentes na rede se espelham no papel autoritário da mãe em mostrar a quem a

filha pertence. A mãe demonstrou rigidez na educação da filha, afirmando que bate nela pra

mostrar quem é que manda. Não a quer reproduzindo maus hábitos dos primos e colegas de

escola (como por exemplo, chamar palavrão e bater na cara das pessoas).
83

A história desta jovem é marcada pela separação dos pais aos 10 anos, agressões

físicas por parte da mãe, criação em casas de tios e em residências onde trabalhava como

doméstica. Disse que só se encontrou com o pai uma vez, no dia das crianças, quando ele

levou os filhos para passear. Mesmo assim tem boa memória dele. A mãe, segundo a

entrevistada, não foi uma boa referência em sua vida. É esta que atualmente cuida de sua

filha.

Uma das características das jovens mães (mais de 50% dos nossos entrevistados) é

que todas convivem com o seu cônjuge e a maioria cuida da casa e filhos. Afirmam que o

filho tem que obedecer desde pequeno, para que não venha lhe bater depois. Geralmente,

revoltam-se com a interferência da avó materna. É uma relação contraditória – de amor e

ódio – cuja referência não é tida como positiva, mas é quem está presente no seu cotidiano.

Queixam-se de terem apanhado muito quando pequenos e hoje não podem bater no filho.

Uma entrevistada revelou que foi chamada de assassina, por sua mãe, na presença do filho,

por estar ‘exemplando’ o mesmo.

O bater forte no filho, neste caso, não implica apenas na disciplina do ‘não palavrão’,

mas outros fatores envolvendo a história anterior (e atual) da vida dos pais. Entre os

entrevistados, a mãe foi quem mais exerceu a autoridade na família, fazendo uso do castigo

físico (apenas um pai afirmou não ter recebido castigos físicos). Mesmo reconhecendo não

ser positiva a referência da mãe, acabam reproduzindo os maus-tratos que receberam no

próprio filho. Nota-se que a responsabilidade na criação dos irmãos mais novos também

contribui para uma maior rigidez na educação dos filhos. Uma mãe reconheceu que é severa

com o filho, porque teve que tomar conta dos três irmãos ainda criança, para sua mãe

trabalhar.
84

Há também histórias de ameaças e agressões por parte do cônjuge, depressão pós-

parto, internação em hospital psiquiátrico ou reconhecimento de que não nasceu para ser

mãe. Esta última é uma mãe que foi notificada por ter batido de cinto no filho de 02 anos.

Na época da visita, o filho de E.F.L. morava com ela. A mesma reconheceu que estava

perdendo o controle com o filho, por este ser hiperativo. Estava muito nervosa porque

dependia totalmente do cônjuge, que não é o pai do seu filho, para sobreviver. Na nossa

entrevista, a mesma afirmou que o seu filho não está mais morando com ela. Demonstrou

pouco apego ao filho, afirmando que não nasceu para ser mãe. Acha que o filho está muito

bem na companhia de sua tia. E.F.L. tem 23 anos, é manicure, veio com a família para

Natal, há mais de 10 anos, após inundação que destruiu a cidade onde nasceu, São Rafael.

Os pais se separaram após problemas com alcoolismo e agressões por parte do pai. Reside

com a mãe, irmão, cunhada, sobrinhos e o cônjuge.

A maioria das mães afirmou que são nervosas. Acham que este nervosismo tem a ver

com sua relação com a figura materna: alcoolismo por parte da mãe, rejeição, falta de

cuidados básicos e agressões na infância. Algumas afirmaram que o seu nervosismo

aumenta quando não tem um pão para dar aos filhos: “- Imagine feijão?”. Esse quadro

diverge de alguns estudos sobre a violência contra a mulher (MOREIRA, 1992), onde as

suas histórias de vida indicam sempre a figura paterna como violenta e a mãe como sofrida e

resignada.

Temos o exemplo de R.F.S., 37 anos, catadora de lixo, residente no morro de Cidade

Nova, nove filhos, dos quais quatro se encontram abrigados em uma creche, no município

de Macaíba. R.F.S. foi notificada por bater constantemente no filho de 11 anos, que está

passando as férias em sua companhia. Ao conversarmos com a mesma, explicou que seu

filho costuma fugir da creche, onde se encontra abrigado, e vir para a sua companhia. Passa
85

meses nessa situação. Costuma bater nele pra que vá à escola (é do Tributo à Criança).

Nessa hora, as irmãs mais velhas, residentes próximas, interferem, defendendo o irmão.

Esta mãe é do interior (Vale do Açu), provinda de uma família de agricultores,

apanhou muito da mãe de ‘quenga’ de coco. Fugiu aos 10 anos de idade para Natal, para

trabalhar em uma casa de família. Acha que as pancadas recebidas na cabeça deixaram seu

juízo fraco. Já se internou mais de 10 vezes em hospitais psiquiátricos. Está separada do pai

dos seus filhos há três anos. Reside em um barraco no alto do morro, com a filha de 02 anos.

Não tem escolaridade. É protestante. Vai votar pela primeira vez. Recebeu um material de

construção e está construindo sua casa em frente onde mora. Afirma que bate no filho

porque sabe o que ele apronta.

O vínculo comunitário das famílias é verificado através da freqüência dos filhos na

creche e na escola, como também da ida à igreja. Apesar de todos acreditarem em Deus,

apenas 50% dos pais freqüentam a igreja. Destes, a metade se constitui de católicos e a outra

metade de protestantes. Não se chegou a um consenso sobre Deus. Os pais acham que Ele

traça o nosso destino, mas as mães não concordam. A crença em Deus teve como exemplos

as seguintes frases: Deus existe; está presente em tudo; é amigo; é mais do que amigo; é

nosso pai.

É à religiosidade que os pais se apegam nos momentos de dificuldades, na qual a

figura divina aparece em forma de ajuda e programas beneficentes. Vejamos o que afirma

Chauí sobre a religião na cultura popular:

A religião fornece orientação para a conduta da vida, sentimento de

comunidade e saber sobre o mundo, compensando a miséria por um

sistema de ‘graças’: cura, emprego, regresso ao lar do marido ou


86

esposa infiel, do filho delinqüente, da filha prostituída, o fim do

alcoolismo (2001, p. 177).

É na religião e na crença em um Deus que se reforça o sentimento de superioridade

espiritual e ascensão social como uma forma de compensar o sofrimento terreno. No caso

dos pais que não freqüentam igreja, a mesma é fonte de concepções gerais que ultrapassam o

contexto especificamente religioso, fornecendo um arcabouço de idéias que dão forma

significativa a uma parte da sua experiência moral e emocional.

A comunidade está presente no imaginário das famílias como um órgão regulador

dos conflitos: ao mesmo tempo em que denuncia os maus-tratos sofridos pela criança por

parte dos pais, cobra destes mais rigor com o filho quando este pratica alguma desordem.

Como exemplo dessa cobrança, temos a situação da criança que apanhou do pai

porque soltou uma bomba no mercado, fazendo um senhor hipertenso ir parar no hospital. A

princípio, a denúncia chegou ao SOS Criança como sendo a mãe que bateu no filho, mas na

visita foi constatado que foi o pai. Na entrevista, encontramos a mãe sorridente, afirmando

que podíamos conversar com ela, pois era quem resolvia tudo pelo marido (este não se

encontrava). M.D.S. tem 37 anos, convive há 20 anos com o pai de seus 04 filhos. É diarista

e o cônjuge vendedor de picolé. Explicou que seu esposo não bate nos filhos (a criação

destes fica por sua conta), mas nesse dia o mesmo teve que tomar a iniciativa pela gravidade

da situação. Seu filho é do Tributo e foge muito de casa. Divide a casa com outro irmão e

sobrinhos em terreno da família materna.

As experiências socializadoras das crianças, através das brincadeiras infantis, é um

fator determinante para o desenvolvimento de sua personalidade e amadurecimento social. É

através dos jogos que a criança aprende a lidar com situações, com pessoas e com técnicas

análogas àquelas com às quais se defrontará, posteriormente, no mundo social dos adultos. É
87

também nesse espaço que a criança se integra a um fluxo coletivo de existência

(FERNANDES, 2001), podendo constituir uma das primeiras oportunidades de participação

de comportamentos que envolvem, submetem e conduzem o indivíduo. Existe uma

hierarquia e relações autoritárias entre as próprias crianças em suas relações cotidianas, nas

quais prevalece a voz (e a força física) da criança maior. O desafio entre as mesmas de

ultrapassar o seu próprio limite e desafiar as normas vigentes (soltar bomba na banca do

vendedor hipertenso, por exemplo) faz parte do jogo e de tentativas primárias de auto-

afirmação no grupo.

O reconhecimento social do papel desempenhado pelos pais no seu cotidiano, muitas

vezes, se traduz através da violência contra a criança. Ora prevalece o motivo individual e

particular que estimula o ato agressivo, ora prevalece uma coerção social que os leva ao

mesmo ato, seja por pressões da família ou comunidade. Nas duas formas de expressão, a

violência é um modo específico de afirmação do indivíduo sob a vigência de determinadas

formas de sociabilidade.

5.4 O lugar dos filhos: espaço de obediência?

O lugar da criança na hierarquia familiar e nas relações de poder existente entre pais

e filhos depende da própria dinâmica da família. É difícil delimitar um conceito de infância

nas camadas populares. Para Sarti (2003) a criança goza de certa regalia até os 6 - 7 anos,

quando então começa a adquirir condições de repartir as obrigações familiares. O que se

espera do filho é que obedeça. A educação é concebida como o exercício unilateral de

autoridade, através de forte hierarquia entre pais e filhos. A delimitação do ser criança é
88

aquela que pode levar surra (SARTI, 2003, p.74). Ao contrário do filho adolescente, que já

tem condições de reagir às agressões.

A maioria das crianças em situação de violência, constatada em nosso levantamento,

convive com seus pais biológicos. Apenas duas crianças não conheceram o pai.

Encontramos uma criança residindo com a mãe e padrasto e a outra com a mãe e irmãos.

Das três crianças que não convivem com a mãe, duas estão com familiares e uma abrigada

em uma Instituição. Todas se encontram com a mãe nos finais de semana.

As crianças mais sujeitas à situação de violência são os filhos primogênitos, às vezes

da primeira relação conjugal dos pais. A educação recebida por parte da mãe entra em

choque com o comportamento do filho: “- Antes quando os nossos pais falavam, a gente

ficava bem caladinho. Então é preciso que o filho entenda isso. Tem que saber seu lugar,

como por exemplo, não se intrometer na conversa de adultos e não dizer que a mãe está

mentindo!”. Esta mãe reside com esposo e os três filhos e não tem familiares em Natal.

Afirmou que um dia bateu pra valer no filho, porque o mesmo se envolveu em uma

conversa, que deu muita confusão entre familiares do esposo (que moram ao lado) e amigos.

Segundo os pais, os filhos desobedecem porque querem chamar a atenção, são

malcriados, influenciados por outros, ou porque tem gênio ruim. Acham que a falta de

controle dos pais é porque faltou autoridade, diálogo e afetividade entre pais e filhos.

Quando castigam é para disciplinar, proteger e mostrar quem é que manda. Uma mãe

explicou que é preciso que o filho saiba quem é a mãe e quem é amigo, por isso bate.

O ato ‘disciplinar’ – o bater como exercício pleno da autoridade materna/paterna – é

um ato autoritário e revela a própria falta de autoridade diante do filho. O reconhecimento

do ato violento, muitas vezes, está relacionado à impotência de não saber lidar com a

rebeldia do filho.
89

Para estes pais, o filho obedece mais a quem está mais próximo, ou a quem está mais

distante, porque apanha ou porque recebe gritos e ameaças. Um pai afirmou que os filhos

obedecem porque são calmos, não sabem o que é castigo. Uma mãe, pensativa, lembrou que

quando conversa direito com o filho, ele obedece mais.

Em algumas famílias, constata-se uma ‘internalização’ de normas por parte da

criança quando o pai ou a mãe lhe bate, após um ato dito 'fora do padrão'. O bater se torna

uma norma que a própria criança absorve como certa, como se fosse um ato de proteção e de

atenção: “-Eu lhe bato porque ainda me importo com você e me obedecendo você não se

machucará (e nem me dará trabalho!)”.

A criança internaliza tanto o discurso da disciplina corporal que, às vezes, quando

não apanha se sente duplamente culpada: porque errou e porque não apanhou. Quando

apanha e os pais são chamados à atenção por sua causa, o medo que aconteça represálias

contra o pai ou a mãe, às vezes, ultrapassa o próprio medo de ser novamente espancada.

A construção da identidade da criança no universo da violência familiar é fragilizada

pelos valores adquiridos nessa relação. Nem sempre o discurso do bater é naturalizado pela

criança, como revela o estudo de Azevedo (2001) sobre a opinião das crianças quanto à

prática da punição corporal. Em suas falas está implícita a violação de sete valores

fundamentais: a moralidade (é errado bater), justiça (é injusto), beleza (é feio), não

criminalidade (é crime), bondade (é ruim), virtude (é covardia) e eficácia (não resolve).

5.5 Perfil social dos pais

Os pais com história de violência estão inseridos em contextos familiares diversos,

com determinada estrutura e hierarquia familiar. Uma maior flexibilidade das normas
90

apreendidas e reproduzidas pelos membros do grupo familiar, depende da própria dinâmica

da vida social em que se insere este grupo. Entendendo a vida social como uma

pluridimensionalidade de relações permeadas por antagonismos, contradições de várias

ordens que, a cada momento e em cada lugar, ganham uma configuração própria

(CASTRO, 1992, p. 241).

Na maioria das famílias contactadas neste estudo, um dos cônjuges exerce mais a

prática de castigos físicos. Algumas observações abaixo foram construídas e/ou confirmadas

ao longo da minha experiência no SOS CRIANÇA:

x História de violência familiar na infância:

Grande parte dos pais afirma ter apanhado na infância. Reconhecem que foi

uma experiência ruim ou agradecem por não serem criminosos. A maioria reproduz a

violência sofrida nos filhos. Alice Miller (2004) revela que pais com alguma experiência

traumática na infância, com ou sem violência física, tendem a reproduzir atos violentos na

família e na sociedade.

x Pais que batem para proteger os filhos:

Alguns pais batem, trancafiam ou amarram os filhos na intenção extrema dos

mesmos não saírem de casa e não se machucarem. Às vezes, tais atos acompanham a

necessidade da mãe sair para o trabalho ou para se divertir.

x Pais que somatizam dificuldades psicológicas e sócio-econômicas:

Pais que, em situações conflituosas envolvendo questões diversas,

descarregam a sua ‘indignação’, o seu ‘nervosismo’ nos filhos. Na maioria dos casos, o não

reconhecimento social e a baixo-estima aumentam quando não conseguem suprir as


91

necessidades básicas de vida. Às vezes, indivíduos vivendo sem dignidade, eliminam

sentimento valorativo para si e para os demais.

x Perda de autoridade por falta de limites:

A princípio, pais muito permissivos. Criados sem limites, referências e

exemplos, os filhos acham que podem tudo. Na medida em que crescem, não se acostumam

com o “não” que começam a receber dos pais. No conflito da ‘revolta do não’, os pais

perdem sua autoridade (e controle) e começam a bater nos filhos.

x Pais que exigem ascensão social do filho (estudo, comportamento, beleza,

inteligência):

Demonstram superproteção com os filhos. Ficam agressivos quando seus

planos são frustrados e quando os filhos não satisfazem seus desejos.

x Pais cuja presença do filho é uma ameaça para a sua liberdade:

Em constante conflito conjugal ou separados, estes pais acham que a sua

liberdade está sendo prejudicada pela presença do filho e não renunciam a vida anterior em

prol do mesmo. Surge, ainda, a necessidade em demonstrar ao (ex) cônjuge que continua

com a sua liberdade. Às vezes, tal necessidade se volta de forma agressiva para o filho. É

freqüente a criança, neste espaço, ser ‘objeto de revanche’ entre os pais.

x Pais portadores de deficiência mental:

Em menor número, são pais com visíveis transtornos mentais e história de

violência na família, aposentados ou em tratamento especializado. Há também casos de

fanatismo religioso e excesso de purificação (medo do mal) direcionado ao filho, anulando o

seu processo de socialização.


92

x Pais drogaditos:

Sem função definida na hierarquia familiar e sem perspectiva de ascensão

social, alguns pais são agressivos com todos os membros da família. Em alguns casos,

quando o grau da dependência é muito alto, sua figura paterna/materna se torna hilária na

estrutura familiar, reforçando sua agressividade.

x A lei quem faz é ele (a) – com história ou não de violência familiar na

infância:

Pais que criam sua própria lei, cujo modelo de honestidade e obediência é

obtido através de duros castigos disciplinares. São rígidos e obcecados pela idéia de que a lei

é muita falha. Deve-se fazer justiça com as próprias mãos. O filho deve seguir suas regras

sem contestação, porque é assim que deve ser.

x A construção social do gênero masculino/feminino em papéis rígidos, como

também a precocidade sexual explícita:

Pais com superproteção aos filhos, pelo seu aspecto sexual. Não sabem lidar

com a sexualidade dos mesmos. Rejeitam qualquer demonstração de carinho contrário ao

padrão heterossexual. Culturalmente, a repressão sexual se volta para a figura da menina.

x Pais que não tem sensibilidade e/ou conhecimento do processo de

crescimento dos filhos:

Pais que não suportam escutar o choro da criança, ver a mesma se lambuzar

ao comer, cair ou se machucar. Não entendem que estas ações fazem parte do processo de

desenvolvimento da criança.

x Pais com forte sentimento de posse:


93

Pais que exigem completa submissão dos filhos, porque estes lhes pertencem.

Se for o pai, este domínio se estende à esposa. Qualquer discordância é sinal de desrespeito

e motivo de agressão.

x Igualdade como conflito:

Pais e filhos vivenciam uma relação com a mesma idade mental. A igualdade,

nesse caso, se transforma em grande conflito interno. Nenhum dos dois quer ceder espaço.

Um, por ser maior, usa a força física para garantir o domínio do seu espaço. Igualdade que

não elimina a diferença, transformando-a em desigualdade (QUEIROZ, 2002).

x Pais agressivos que rejeitam o filho:

Pais sem vínculos afetivos com o filho. Batem na intenção de machucar, sem

‘motivos’ aparentes. Constata-se que a violência é direcionada a um dos filhos do casal

(CUNHA, 2004), processo conhecido como a ‘vítima sacrificial’ (GIRARD, 1990).

A complexidade da problemática da violência doméstica contra a criança faz com

que essas características se ramifiquem e ganhem novos contornos. Não são estanques e nem

totalmente explícitas, freqüentemente revelam-se em conjunto. Uma maior ou menor

visibilidade depende do próprio universo familiar. No nosso estudo, o quadro de exclusão

social e a precária condição de vida estão presentes nas famílias em situação de violência. A

forma de lutar pela sobrevivência e o grau de resolutividade dos conflitos entre seus

membros variam de acordo com os valores culturais internalizados por estes.


94

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um universo de saltos,
mil interpretações do pulo

Hoje, a disseminação dos meios de informação, através da globalização, influencia

cada vez mais os contextos locais e as experiências individuais e sociais. A família, a classe,

a cidadania e a nacionalidade são dimensões ou posições de subjetividade que se combinam

nos indivíduos e nos grupos sociais de modos diferentes, segundo os contextos e as culturas,

segundo as práticas e as tradições, segundo os objetivos e os obstáculos (LOPES JÜNIOR,

2000).

Segundo Frota e Russo (2003), as relações familiares seguem o movimento de

organização-desorganização-reorganização da sociedade, com suas mazelas e contradições.

Este movimento mantém uma estreita relação com contexto sócio-cultural dos seus

membros, na busca criativa de alternativas para responderem às suas necessidades e

projetos.

Historicamente, a família brasileira é alicerçada por valores provindos da tradição

ocidental cristã e do modelo patriarcal de família, características marcantes no processo de

socialização das crianças. Valores reproduzidos e disseminados por uma rede complexa de

informações, onde prevalece um contexto familiar marcado pela vulnerabilidade e exclusão

social.
95

A maioria dos estudos sobre a problemática da violência contra a criança na família,

enfatiza a urgência na denúncia, os fatores individuais da agressão e os mecanismos que

minimizem esta problemática. O desafio assumido neste estudo é apreender alguns fatores

que contribuem para a reprodução desta violência, tendo nos costumes, mitos e crenças,

determinantes marcantes nesse processo.

As singularidades de situações encontradas em cada família descartam

generalizações sobre a temática. Neste estudo, podemos constatar a existência do vínculo

pais/filhos, mesmo que esta relação tenha como instrumento básico, a violência física e a

rigidez disciplinar, sustentadas por um discurso autoritário que prega a obediência.

Se olharmos mais atentamente, esta problemática está intimamente ligada às

necessidades de sobrevivência do grupo familiar. No universo desta pesquisa temos, por

exemplo, a prática correcional relacionada ao receio do filho perder a única renda estável da

família ou por não estar cuidando dos irmãos menores. Situações que não serão encontradas

em famílias de classe média e alta.

A tênue linha que separa o público e o privado faz despir o ‘manto sagrado’ da

família. O espaço domiciliar da família extensa e de baixa renda se limita a um vão ou

poucos cômodos, em casa conjugada ou vila, ambas com quintal coletivo. São várias

gerações convivendo em um mesmo espaço, anulando, deste modo, a privacidade dos seus

membros.

Os pais que vivem em situações-limite, determinadas por um modelo econômico

excludente, sem acesso a benefícios mínimos, sociais, econômicos e culturais, têm mais

dificuldades em exercer suas funções paternas e maternas de proteção, de pertencimento, de

construção de afetos, de educação e socialização de seus filhos.


96

Será que nas sociabilidades das famílias em situação de violência, predominam as

relações individualistas e societárias? Estariam as relações comunitárias (ou o ‘sentimento’

de família) perdendo terreno? Anunciação (2002), considerando a perspectiva de Tönnies,

afirma que a família pode semear valores comunitários no indivíduo, proporcionando-lhe

um sentimento de pertencimento em tempo e espaço específicos, mesmo envolvida num

sofisticado sistema de comunicação que produz uma crescente sensação de

desenraizamento.

A questão dos direitos sociais da criança, no contexto de exclusão social em que se

encontra grande parcela da infância brasileira, cai no risco de se deter a uma cidadania

minimalista (GUARA, 1995), limitada a suprir as necessidades mínimas de sobrevivência. O

momento está mais para a construção de novos paradigmas que contribuam no processo de

emancipação humana e de uma cultura de paz. Emancipação que implica a criação de um

novo senso comum político (SANTOS, 2000), numa inclusão que leve em conta conceitos

de autonomia, qualidade de vida, desenvolvimento urbano e eqüidade.

A dificuldade em transformar as necessidades básicas em direitos está em não

reconhecer os aspectos subjetivos dessas necessidades, associadas historicamente à ajuda

material aos ‘necessitados’: “(...) ‘A verdadeira necessidade social’ representa a média das

necessidades interiorizadas historicamente a partir de um ‘sistema de necessidades’

vinculado aos costumes, e à moral e em evolução constante” (GUARA, 1995, p.48).

Concordamos com Fraga (2002) ao afirmar que a violência é uma forma de

dilaceramento do ser social. Se o comportamento humano se origina das relações sociais,

que inclui a própria violência como afirmação do indivíduo em determinadas formas de

sociabilidade, o amor materno e paterno também. Construído socialmente, o amor parental


97

se inclui nas necessidades sociais a ser ‘cultuado’ como uma auto-afirmação do indivíduo

em qualquer forma de sociabilidade.

Se hoje temos a necessidade de consumo, alimentando o ‘apartheid social’, que exclui

cada vez mais grupos populacionais do círculo de qualidade de vida, o que irá reverter esse

quadro é a tradução qualitativa dessas necessidades feita pela família, comunidade, escola e

outros.

No entanto, em nossa sociedade é a quantidade de dinheiro que regula e qualifica o

direito. Temos como exemplo, o acesso aos serviços privados de educação e saúde. Se

entendermos a sociedade como a soma dos grupos que se auto-atribuem necessidades

(HELLER, apud GUARA, 1995), a base da eqüidade social se fundamenta na demanda por

justiça apresentada por esta sociedade. A contestação é o que permite a alteração das

instituições e essa possibilidade de mudança é o traço da modernidade.

A diminuição de notificações de espancamento na criança praticado por pais, no

primeiro trimestre de 2003, no programa SOS Criança, não quer dizer que esta violência

esteja diminuindo. Mesmo assim, aos poucos, a base para a sua sustentação está sendo

atingida. Hoje temos pais que batem e indivíduos que serão pais e que, provavelmente, irão

bater nos filhos. A diferença é que há uma maior organização de forças sociais contribuindo

para uma nova cultura: o direito da criança crescer sem violência.

O que é mais sagrado na criança, o riso e a brincadeira, contrasta com a realidade

materializada em números alarmantes como o trabalho infantil, a exploração sexual, o

tráfico de drogas e a violência doméstica. Estar atento às novas formas de relações, que

reconheça a sua presença (e voz) na história da humanidade – o outro em mim – é estar

aberto às mudanças.
98

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NOTA:
Gentile* - A Experiência do SOS Criança. Apresentação do coordenador do SOS Criança,
Sabino Gentile, na mostra “Sociedade Viva – Violência e Saúde”, Natal, abril, 2004.

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