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Análise do filme “Pulp Fiction” a partir do conceito de

ação social em Max Weber

Lucas Tunes Barbosa

I. Introdução

Pulp Fiction é um filme longa-metragem escrito e dirigido por Quentin Tarantino. A


estória se divide em um prólogo e três capítulos. Cada uma dessas divisões possui um foco
narrativo próprio e temas distintos, porém, a maior parte dos personagens que participam da
história continuam os mesmos, assumindo funções narrativas distintas. Assim como as funções
narrativas de cada personagem mudam de acordo com a cena, é possível também analisar
sociologicamente, a partir de Weber, como seus papéis sociais mudam ao longo da narrativa,
de acordo com as relações que são estabelecidas com cada um dos outros personagens. É esse
o foco e o objetivo desse trabalho.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que, como obviamente não é possível fazer uma
análise baseada em dados que comprovem a regularidade e extensão das ações sociais
analisadas aqui, ela será feita considerando a ação social de cada personagem dentro da
narrativa como uma representação de uma ação social mais abrangente, ou seja, cada um dos
personagens da estória será tratado como um exemplo que pode representar toda a classe a que
se refere cada um dos papeis sociais que o personagem assume dentro da narrativa. A análise
será centrada em duas duplas de personagens: Jules & Vincent e Butch & Marcellus.

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II. Jules & Vincent

O universo criado por Quentin Tarantino para seus filmes costuma ser considerado
violento e cheio de referências a outros filmes e gêneros cinematográficos, ou seja, é um
universo muito estilizado, porém isso não significa que inexista uma lógica social dentro da
narrativa fílmica. Os primeiros personagens que serão analisados nesse trabalho, Jules
Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta), são justamente dois matadores
a serviço do mafioso Marcellus Wallace (Ving Rhames). Porém, esse não é o único papel social
que esses atores sociais interpretam, cada um deles assume pelo menos mais dois papéis durante
a narrativa.

A princípio, ambos são apresentados assumindo um papel social bastante corriqueiro.


Os dois estão dentro de um carro, conversando sobre assuntos diversos, como a viagem de
Vincent à Europa e o significado sexual do ato de massagear os pés de outra pessoa. Neste
momento eles estão estabelecendo entre si o que Weber chama de relação social, em especial
a que nomearemos aqui como amizade. Jules e Vincent assumem nesse momento da história o
papel de amigos, e, tomando-se a liberdade de considerar que a maior parte dos amigos nessa
sociedade age como esses dois personagens, pode-se dizer que o significado dessa amizade para
eles se caracteriza, principalmente, numa ação social afetiva. Isso pode ser afirmado
observando-se a forma amigável e descontraída com a qual eles se tratam, mesmo quando suas
opiniões divergem. Essa atitude não é a mesma e muda radicalmente quando eles vão se
relacionar, na cena seguinte, com Brett (Frank Whaley), Marvin (Phil LaMarr) e Roger (Burr
Steers), que possuem inimizades com Marcellus.

“Vamos entrar nos nossos papéis” diz Jules a Vincent logo antes de entrar no
apartamento onde estão suas vítimas. A partir desse momento eles abandonam o papel de
amigos e assumem o de matadores contratados por Marcellus para se livrar de seus inimigos e
recuperar uma valiosa maleta. Fica claro então que, apesar dos dois estarem se relacionando
diretamente com os três personagens citados acima, a relação social que define suas ações é a
que eles estabelecem com seu patrão, que pode-se nomear como uma relação de lealdade, onde
eles cumprem as tarefas estipuladas por seu mentor. Embora possa também se caracterizar como
uma ação social racional visando um fim, como um pagamento ou não criar inimizades com
Marcellus, o filme mostra que, para a dupla, as execuções que praticam fazem parte,
principalmente, de uma ação social racional visando valor, visto que eles, a princípio,
consideram que é moralmente correto cumprir com a tarefa que lhes é dada. Com o avanço da

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estória, o papel de matadores vão criar dilemas para ambos os personagens, pois entrará em
conflito com seus outros papéis sociais.

Para Vincent, esse dilema se apresenta em como ele vai cumprir seu papel de empregado
leal, levando a mulher de seu patrão, Mia Wallace (Uma Thurman), para passear, e ao mesmo
tempo evitar que se estabeleça uma relação social com ela que venha a trair seu laço de lealdade
com Marcellus. Durante o passeio, potencialmente começa a se estabelecer uma relação social
de atração sexual entre Mia e Vincent, que poderia desencadear em uma ação social afetiva,
negativa em relação à lealdade, o ato sexual entre eles. Ironicamente, esse dilema se resolve
quando Mia confunde o pacote de heroína, que Vincent leva no bolso do casaco, com cocaína,
e tem uma overdose. Ao salvar Mia com uma injeção de adrenalina diretamente no coração,
Vincent e ela estabelecem uma relação de cumplicidade entre si, e, por meio de uma ação social
racional visando um fim (evitar conflitos com Marcellus), fecham um acordo de manter o
ocorrido em segredo. Mais uma vez, Marcellus é uma peça chave para as decisões que são
tomadas dentro da estória.

Para Jules, o conflito se coloca quando ele decide sair da vida do crime, ao acreditar que
Deus interviu, salvando sua vida de um quarto homem, que esteve escondido no banheiro com
uma arma. Respondendo ao sinal divino, Jules procura então assumir outro papel social, o de
pastor, numa ação social visando um valor religioso. A moral do cumprimento de seu dever
como matador e de seu dever como pastor são inconciliáveis, e ele vive o dilema de ter de optar
por uma das duas. O diálogo final do filme destaca esse conflito e a escolha tomada por Jules,
que opta por não assassinar Ringo (Tim Roth) e abandonar definitivamente o mundo do crime,
assim que finalizar o trabalho de retornar a maleta a seu patrão.

Outros personagens que se relacionam com Vincent e Jules também merecem ser
citados, pois representam papéis sociais interessantes. Como Lance (Eric Stoltz), que representa
o papel de um traficante de drogas, na relação que estabelece com Vincent ao revender-lhe um
pacote da heroína mais potente do mercado, por meio de uma ação social visando um fim de
agradar um cliente e obter lucro. Ou então Jimmie (Quentin Tarantino), que também se encontra
num dilema, entre os papéis de marido e amigo, quando Jules e Vincent chegam a sua casa com
o cadáver sem cabeça de Marvin. Na relação de amizade com Jules, Jimmie pratica uma ação
social afetiva de se tornar cúmplice ao ajudar a encobrir o corpo de Marvin. Já na relação de
matrimônio com sua esposa, Jimmie assume uma postura de evitar que sua esposa descubra
isso, numa ação social racional visando um fim de evitar o divórcio. Ironicamente, nesse caso,
a ação afetiva se dá em relação ao crime, e a ação racional se dá em relação à esposa.
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III. Butch & Marcellus

Dentro do contexto de um submundo do crime de Los Angeles, criado por Tarantino, é


quase obrigatório que se estabeleça a figura de um “chefão do crime”, a pessoa que manda e
desmanda, que está por trás de tudo, e é possível perceber sua grande influência na maior parte
das relações sociais estabelecidas dentro da trama. Nesse filme, essa pessoa é Marcellus
Wallace. Como uma resposta à essa personagem temos Butch Coolidge (Bruce Willis), um
pugilista em fim de carreira, que se apresenta como protagonista do capítulo “The Gold Watch”
dentro do filme. Orgulhoso, Butch é um dos únicos personagens que se atreve a desafiar
abertamente Marcellus.

A princípio, Marcellus e Butch estabelecem entre si uma relação social de contrato,


onde Marcellus compra a derrota de Butch numa luta, por meio de um pagamento em dinheiro
vivo, ou seja, uma clara ação social racional visando um fim de lucrar facilmente, por parte de
ambos, um com o dinheiro das apostas, e outro com o pagamento do contrato. O conflito se dá
quando Butch quebra esse contrato, não só vencendo a luta que ele deveria ter perdido, como
também assassinando seu adversário em pleno ringue. Nesse momento ele assume dois papéis
sociais simultaneamente, um de traidor em relação à Marcellus, e outro de assassino em relação
ao seu oponente. Este último papel só se torna consciente para Butch quando o é informado
pela taxista Esmarelda Villalobos (Angela Jones).

A atitude de vencer a luta (não a acidental de assassinar o oponente) foi motivada pela
possibilidade de ganhar muito mais dinheiro, com o mercado de apostas, do que já havia
ganhado ao fechar o contrato com Marcellus, ou seja, também foi uma ação social racional
visando um fim pecuniário. Já o planejamento de levar aquela com quem possuí uma relação de
namoro, Fabienne (Maria de Medeiros), consigo durante a fuga se caracteriza claramente numa
ação social afetiva. É durante essa fuga que Butch se dá conta que sua namorada esqueceu seu
relógio de ouro (de inestimável valor pessoal) em seu apartamento, e, apesar de seu
temperamento explosivo, os papéis sociais de namorados e a forte relação que eles mantêm,
inclusive com a possível gravidez de Fabienne, impedem que Butch desconte sua fúria nela.

A mais irracional, e impulsiva, das motivações resulta na ação social tradicional de


Butch arriscar a própria vida ao voltar para seu apartamento em busca de seu relógio de ouro.
Surpreendentemente inverossímil no mundo real, Tarantino, a partir da história contada por
Captain Koons (Christopher Walken), tem o mérito de tornar totalmente plausível essa
motivação para o personagem de Bruce Willis, ao estabelecer na família Coolidge a excêntrica

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tradição de preservar consigo essa herança para a próxima geração a todo custo, mesmo que
esse custo seja a morte de seus antigos detentores, respectivamente, o avô e o pai de Butch.

Por conta dessa ação irracional, Butch se depara novamente com Marcellus e, visto que
sua antiga relação de contrato fora quebrada e substituída por uma relação de traição e
inimizade, o pugilista tenta se livrar de seu inimigo o atropelando, o que resulta em um acidente
de carro que fere ambos. Apesar de feridos, Marcellus e Butch continuam sua perseguição até
se encontrarem dentro de uma loja de penhores, onde, inusitadamente, vão conhecer dois novos
atores sociais, Maynard (Duane Whitaker) e Zed (Peter Greene), que representam,
respectivamente, os papéis sociais de dono da loja e policial. Inusitadamente, pois, quando
estabelecem uma relação social específica com Butch e Marcellus, os novos personagens não
fazem uso de seus papéis sociais estabelecidos, ou seja, não agem como se espera que aja um
dono da loja e um policial quando deparados com um assassino e um mafioso.

Inesperadamente, a relação social específica que se estabelece entre esses quatro


personagens é o estupro, na qual Maynard e Zed exercem o papel de estupradores e Butch e
Marcellus o de vítimas. É um choque para o público quando Quentin Tarantino o surpreende
com uma quebra de expectativa tão grande. Mas essa quebra não é novidade para a vertente
teórica que Weber representa, visto que já é esperado que um único ator social possa assumir
diversos papéis sociais diferentes e inclusive incompatíveis, de acordo com o contexto que lhes
julgar pertinente. É óbvio que para aqueles que assumem casualmente o papel de estupradores,
como Maynard e Zed, viram no estado em que Butch e Marcellus se encontravam a situação
propícia para ativarem essa relação hedionda. Ela se concretiza apenas para Marcellus, ao passo
que Butch consegue escapar do porão da loja de penhores a tempo.

É nessa fuga que Butch vê a oportunidade de assumir um papel social inédito para ele,
pelo menos dentro do filme, o justiceiro. Ao invés de abandonar Marcellus como seu inimigo
aos cuidados dos dois violentadores, Butch percebe em Marcellus o papel de vítima que ele
sofre naquele momento, e se arma de uma espada da loja para resgatá-lo, numa ação social
racional visando um valor. A moral de Butch, nesse momento, fala mais alto que a tradição de
preservar o relógio e a inimizade que possuí em relação à Marcellus, ao mesmo tempo que dá
ao público que assiste o filme a vingança imediata em relação ao crime que os dois violadores
cometeram.

“Não existe mais ‘eu e você’, nunca mais” é a resposta que Marcellus dá à Butch quando
este lhe questiona sobre como ficará a relação entre eles dois depois dessa situação pela qual

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passaram. Ao resgatar Marcellus, Butch conquistou o perdão pela traição que cometera,
anulando então a relação que possuía anteriormente com o mafioso. Essa anulação se realiza
enquanto Butch cumprir duas exigências, a de manter em segredo o ocorrido e a de deixar Los
Angeles para nunca mais voltar, ou seja, a “não relação” a qual Marcellus se refere somente se
realiza quando se estabelece entre eles uma última relação social, um novo contrato.

IV. Conclusão

Mesmo que faça referências ao mundo real, como o fato da estória se passar em Los
Angeles, o mundo criado por Tarantino é fictício, e ele não tenta disfarçar isso. Mas o que se
quis demonstrar aqui é que, mesmo dentro dessa ficção, muitos conceitos sociológicos de Max
Weber continuam valendo, principalmente com a presença de Marcellus que exerce o papel de
autoridade dentro da trama (outro conceito caro para Weber, mas que infelizmente não houve
espaço para desenvolvê-lo dentro desse trabalho). Isso ocorre principalmente pois esses
conceitos se baseiam nas motivações pessoais de cada indivíduo dentro da sociedade. As
motivações são a matéria-prima para qualquer bom roteirista como Tarantino. É possível
enxergar que, assim como na sociedade em que vivemos, os personagens de Pulp Fiction
assumem papéis sociais e agem de forma distinta, de acordo com a interpretação que eles fazem
do contexto e das relações em que estão inseridos. Esse filme oferece um objeto rico para que
se faça uma análise nesse aspecto. Mesmo que caricaturais, os personagens Tarantinescos agem
como atores sociais reais agiriam. A surpresa do público ao se deparar com personagens
complexos em situações inusitadas, e que insistem em fugir do clichê que à primeira vista
representam, se deve exatamente ao mesmo aspecto que os aproximam mais do mundo real que
os personagens planos de muitos outros filmes, a multiplicidade contrastante de papéis sociais
que eles exercem ao desenrolar da estória. No fundo, a teoria de Weber pode demonstrar que
cada membro da nossa sociedade tem muito mais em comum com Jules, Vincent e Butch do
que se pode imaginar.

V. Bibliografia e Filmografia

WEBER, Max. Conceitos Sociológicos Fundamentais. Tradução de Artur Mourão. Covilhã:


Lusosofia, 2010. p. 40-53

PULP FICTION: TEMPO DE VIOLÊNCIA (Pulp Fiction, Quentin Tarantino, EUA, 1994)
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