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Título: O Casamento de Ana

Autora: CONCÓRDIA MERREL


Dados da Edição: COMPANHIA EDITORA NACIONAL, SÃO PAULO, 1959, 5ª Edição.
Colecção: "BIBLIOTECA DAS MOÇAS", VOLUME 9
Título Original Inglês: THE MARRIAGE OF ANNE
Género: Romance.
Digitalização: Dores cunha.
Correcção: Miriam Tavares.
Estado da obra: corrigida.
Numeração de Página: Cabeçalho.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas
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distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Tradução: AZEVEDO AMARAL


5ª edição
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
SÃO PAULO
Título Do Original Inglês: THE MARRIAGE OF ANNE
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639 - São Paulo
que se reserva a propriedade desta tradução.
Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

Capítulo I
- As mulheres são certamente adoráveis, dizia Jacky Hanshaw, falando como quem conhece a
fundo o assunto, mas quanto a casamento, meus amigos, devemos encará-lo como o último
recurso para os coxos, estropiados e cegos.
Com entusiasmo e apreciando o efeito das suas palavras, o rapaz falava como quem está
acostumado a ser ouvido com atenção e interesse. E, de fato, era escutado desse modo pelo
pequeno grupo de amigos que se haviam reunido no bar, para regozijar-se por não ter ainda a
Inglaterra aderido à lei seca.
A oportunidade fora proporcionada pelo baile a fantasia que se realizava na noite do Ano Novo no
Upper Norton Tennis Club, como de costume. Jacky, muito alto, muito elegante, de monóculo no
olho direito e com uma brilhante fantasia escarlate, encostava-se à prateleira do fogão, enrolando
displicentemente ao braço a cauda pontuda de Mefistófeles e repousando o diabólico pé de cabra
sobre a borda da grade da lareira. A noite fria e o nevoeiro nas ruas faziam com que se tornasse
ainda mais confortável aquele ambiente, estimulando a loquacidade. E Jacky não era homem de
perder ensejo de ser loquaz, quando circunstâncias favoráveis coincidiam com a presença de um
auditório disposto a ouvi-lo. As mulheres, em abstrato e com maiúsculo, eram tema que sem
justificação podia ser abordado em uma reunião de dois ou três homens, desde que o orador
dispusesse de algum brilho e de temperamento inclinado ao sarcasmo. Jacky, com os seus 27
anos, tinha talento e teoricamente pelo menos encarava o mundo de
um ponto de vista displicente e desapaixonadamente pessimista.
Prosseguindo nos seus comentários sobre o casamento, o rapaz sustentou que a instituição era
útil para duas classes de pessoas: os que se achavam na extrema velhice e os que ainda mal
haviam entrado na mocidade. Fez uma pausa e relanceou o olhar pelo grupo, à espera da
interpelação que os ouvintes intrigados certamente lhe fariam, para que explicasse aquela
surpreendente tese. A expectativa de Jacky não foi desapontada e os seus amigos não tardaram
em reclamar esclarecimentos.
- Os que já são muito velhos pouco têm a perder e os muito moços encontram diante de si tempo
bastante para ressarcir-se dos prejuízos, respondeu o rapaz, provocando uma risada alegre do
grupo e os apoiados calorosos de um moço com a fantasia de Príncipe Igor.
Um cavaleiro muito medíocre, um arlequim completo com máscara, lantejoulas e bastão, um
possante toureador e um pierrô de cara caiada secundaram os aplausos.
- Entretanto, observou Jacky retomando a palavra, há por aí tantos homens de meia idade que se
precipitam no casamento. Como explicam vocês isso? E o rapaz, endireitando o monóculo,
passou em revista a roda de amigos, fixando afinal o arlequim em tom interrogativo.
- Acho que é porque o impulso para atirar-se loucamente ao perigo não desapareceu ainda do
homem, respondeu o arlequim.
- Porque ainda há homens de coragem, acrescentou o pierrô, sentindo dirigido sobre a sua face
caiada o olhar inquisitivo de Jacky.
- A meu ver a razão é a impossibilidade que sentem muitos homens de resistir à fascinação do
jogo, afirmou o Príncipe Igor.

O cavaleiro ficou em silêncio e Jacky, depois de alguns momentos de pausa, em que esteve a
observar a fantasia mal arrumada do companheiro, passou adiante e fitou o toureador.
- Porque desde o princípio do mundo o homem não tem sido mais que um ridículo boneco, com
que as mulheres se têm divertido, explicou o toureador que sofria secretamente as conseqüências
de supor-se possuidor de uma beleza fatal. Falara em tom melancólico e com certa amargura em
que transparecia o desejo de justificar a sua opinião contando dois ou três casos, se, porventura,
alguém o contestasse.
- Não se contente com essa explicação que lhe satisfaz a vaidade, retrucou Jacky em tom
caracteristicamente mefistofélico. O verdadeiro motivo é mais simples e menos pitoresco. Os
homens solteiros não sabem avaliar os encantos da sua situação privilegiada. Eis tudo.
A tirada foi acolhida com aplauso geral e a proposta de que se fosse beber à saúde de Jacky no
bufete próximo teve unânime aceitação. A cerimônia foi interrompida por uma voz que partia da
porta da sala:
- Muito bem. Estou precisando mesmo tirar da garganta o gosto intolerável deste nevoeiro que já
está negro como caldo de feijão.
O grupo voltou-se e, reconhecendo o recém-chegado, fez-lhe entusiástica recepção.
- Venha cá, Scotty, onde andou você metido?
- Oh, que elegância! Mas que diabo de fantasia é essa?
- Monsieur Beaucaire?
- tom Jones?
- Dick Turpin em traje a rigor?
- Que será?
Scott Kentish, satisfeito com o acolhimento dos amigos, aproximou-se para que melhor lhe
observassem à fantasia

de Beaucaire em cetim branco. O casaco estava sobrecarregado de bordados a ouro e em sedas


de cores vivas. O traje havia sido admiràvelmente bem talhado e por certo não era uma fantasia
de aluguel. A cabeleira empoada e atada com uma fita preta, os punhos e a gola de renda
adaptavam-se admiràvelmente, dando ao rapaz um aspecto elegante, sem prejudicar a
masculinidade dos traços da fisionomia, nem o aspecto atlético das formas.
- Como estão vendo, aqui está um tipo perfeito de beleza, disse Scott, movendo-se afetadamente,
como se quisesse ser melhor apreciado. Jacky armou o monóculo e inspecionou atentamente a
fantasia de Scott com estudado desdém.
- Bonito, bonito, murmurou afinal, você está realmente um príncipe encantador e irresistível.
Scott avançou em passo cadenciado e deu um soco no peito de Jacky com a força que poderia ter
a patada de um novilho. Gemendo, o elegante Mefistófeles curvou-se e recuou tanto, que quase
foi cair sobre a lareira.
- Era um bom lugar para você sentar-se com essa fantasia! exclamou Scott, juntando o riso à
gargalhada com que o grupo saudava o contratempo ocorrido com Jacky. Dirigindo-se ao grupo,
acrescentou: Vamos beber. Preciso engolir alguma coisa, porque estou ainda engasgado com o
maldito nevoeiro.
Os copos foram rapidamente enchidos e o Beaucaire escapou à asfixia.
- Teria sido realmente o nevoeiro a causa do seu atraso? Estávamos todos intrigados com a sua
demora, disse o cavaleiro.
- Foi sim; a cerração caiu como um lençol e o táxi em que vinha teve de arrastar-se
vagarosamente.
O toureador acercou-se da janela, afastando a pesada cortina. 9
- Hum! Está mesmo positivamente preto. Mas isso felizmente não nos causa incômodo, porque já
estamos todos aqui e pouco se nos dá o que pode acontecer aos que estão lá fora.
- E que tal vai a festa? Quem está por aqui? perguntou Scott.
- Quase todo o pessoal do costume, respondeu Jacky. As Ellison vieram com o irmão, que há
muito não aparecia, e trouxeram dois primos que são uns rapagões sacudidos. Dizem que as
Cameron trouxeram uma novidade. Mais um rapaz que lhes faz a corte.
- Um outro? Para quê? perguntou Scott curioso.
- Quem sabe se não é um rapaz, mas uma moça, retrucou Jacky.
- Isso me parece mais provável.
- Quem sabe mesmo se elas trazem uma nova família...
- Acho, Jacky, que você não está bem informado do caso.
- Não estou mesmo.
- Acha possível que as Cameron tragam alguma coisa de novo?
- Sim, tive a notícia de fonte direta, porque vi esta manhã o jovem Cameron quando comprava
dois bilhetes na estação e ele me deu a notícia ao correr, para apanhar um lugar no último carro.
- As Cameron já chegaram? - Ainda não as vi.
- Então ainda temos que esperar pela novidade.
- É bem possível que o nevoeiro as tenha retardado, como aconteceu com você.
- A culpa foi sua, Scott, de sair tão tarde de casa. Quando aqui chegamos havia apenas uma
ligeira neblina, observou o pierrô.
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- Quando decidi vir já era tarde. Tive muito que fazer.
- com certeza ganhou hoje mais umas mil ou duas mil libras, disse o cavaleiro.
- Você tem mesmo muita sorte. Quanto já está pagando de sobretaxa do imposto de renda?
perguntou Jacky. A pergunta era demasiado impertinente mas Scott já estava acostumado a tais
indiscrições para tomá-las a sério.
Aliás Scott, que tinha apenas vinte e cinco anos, já desfrutava uma renda que muitos homens bem
mais velhos que ele teriam razão para invejar. Assim, a brincadeira não era destituída de
fundamento. Entre os rapazes que trabalhavam com a conceituada firma de corretores Kale &
Dives, cujos suntuosos escritórios estavam situados por ali, entre a catedral de São Paulo e
Threadneedle Street, Scott era considerado um dos mais ativos e um daqueles a quem se
delineava maior futuro. Kale & Dives não queriam como empregados moços que não tivessem
aquelas qualidades. Ao cabo de algumas semanas de experiência, os que não eram reconhecidos
como capazes de fazer uma carreira brilhante na Bolsa, recebiam sumariamente a sua demissão.
Muito moço e sem contar com parentes que o auxiliassem, Scott tivera de abrir caminho na vida
pelo próprio esforço. Em cinco anos de trabalho com Kale & Dives, o rapaz conquistara uma
posição de que agora se podia orgulhar e envolvia justificada esperança de sucesso muito maior.
Inteligente e tendo-se assenhoreado bem dos segredos da sua profissão, Scott era um esplêndido
trabalhador, desses que procuram sempre fazer um pouco mais que o seu dever e nunca menos
do que lhes é pedido. Além disso, possuía um verdadeiro gênio da sorte. Em tudo que se metia,
as circunstâncias se combinavam para favorecê-lo. A boa estrela de Scott tornara-se mesmo
proverbial na sua
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roda de colegas e amigos. Como complemento dessa sorte feliz, Scott dispunha de atraente
beleza física, sedução de maneiras, generosidade atingindo quase as raias da prodigalidade e
finalmente a ponta de espírito de aventura, que é uma condição essencial de êxito nos que se
lançam a tentar fortuna no mar tormentoso das finanças da City.
- Scott tem muita sorte, mas agora está correndo perigo, disse o toureador.
- Que perigo? interrogou o rapaz em cujo tom transpareceu um vislumbre de ansiedade.
- Está arriscado a tornar-se muito desejável para fazer o conforto de alguém.
- Posso bem suportar esse fardo, replicou Scott sorrindo.
- O homem elegível para o casamento acha-se sempre em posição muito vulnerável, retrucou o
toureador, porque é assediado por todas as solteironas dos arredores e alvejado também pelas
respectivas mamães. Quando menos espera, vê-se envolvido na embrulhada do casamento.
- Qual! interveio Jacky. Scott sabe defender-se e conseguirá escapar à rede do casamento.
Alguém, porventura, já o viu fazer uma asneira?
Realmente ninguém sabia de um passo em falso dado por Scott. O seu sucesso social era grande
e é claro que isso implicava em gozar das simpatias das mulheres. Mas o rapaz se movia nos
círculos mundanos agradando todas as mulheres, sem se comprometer com qualquer delas em
particular. Para namoro, Scott nunca achava tempo. É possível que os seus afazeres realmente o
absorvessem, mas não é também improvável que no seu caso se exemplificasse a atitude do
rapaz moderno, que já não considera o casamento coisa necessária, como pensava o seu avô.
Não é também impossível que o seu instinto calculista o induzisse a procurar garantias nos
grandes números e
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preferisse assim interessar-se por todas as mulheres de um modo geral. Entretanto, na sociedade,
as mulheres o distinguiam como um homem entre os homens. Aliás, Scott era antes e acima de
tudo um homem moderno. Suas idéias eram modernas e suas inclinações não tinham traço de
passadismo. Podia-se acusá-lo de um gosto um pouco exagerado pela vida mundana. Mas era
preciso não esquecer que nisso se manifestava uma reação natural em quem, como ele, passara
a meninice e os primeiros anos da mocidade na luta pela vida.
Além disso o destino o encaminhou para a mundanidade. Fora trabalhar no meio financeiro da
City e os primeiros homens com quem se pusera em contacto e lhe haviam dado a mão eram
mundanos, como em geral o são os que lidam com dinheiro e fazem fortuna. Assim, nada havia
de extraordinário em que Scott adotasse como filosofia da vida ganhar dinheiro e obter os
prazeres e coisas agradáveis que ele proporciona.
Entretanto, Scott ainda não aprendera que o fato de alcançar um grande êxito em um dos
aspectos da vida, não implica de modo algum garantia de sucesso em outras direções. Nunca
Scott entreteve o pensamento de casar-se, sem encarar a questão de um ponto de vista
suntuário. Tinha profundo desprezo por esses rapazes que, com um ordenado de duzentos e
cinqüenta libras por ano, casavam com moças pobres, para passarem uma vida de privações e
pretendiam ser muito felizes no seu amor. Para Scott à idéia do casamento associava-se a de um
magnífico apartamento em um quarteirão elegante, um belo automóvel, roupas feitas nos
melhores alfaiates, conferências com diretores de empresas importantes, festas de alta
sociedade, jantares com gente importante, danças na roda brilhante, viagens ao estrangeiro,
estada nos melhores hotéis e, é claro que todas essas considerações eram acompanhadas pela
idéia de uma mulher elegantíssima.
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Só viria a casar-se com uma moça, que compartilhasse dos seus gostos e das suas opiniões
sobre a vida. Queria uma mulher capaz de receber a alta sociedade, vestir-se com requintado
apuro, ser, enfim, a companheira e a aliada que o auxiliasse a tirar partido da sua inteligência e a
realizar as suas ambições. Esse era o sonho do casamento, que Scott estava disposto a
transformar em realidade, se algum dia se resolvesse a casar.
- Mas para que quer Scott uma esposa? perguntou o pierrô.
- Para que precisa um homem casar-se? Ninguém tem necessidade disso e quase todos se
casam, interveio o toureador.
- E que adianta a um homem ter uma sogra? observou o cavaleiro, cujas contribuições para a
palestra pareciam sempre ecoar as idéias dos outros.
- Entretanto, a maioria dos homens acaba sempre arranjando mulher e sogra.
- Um homem casa-se e leva a mulher a Paris. Isto me parece o mesmo que trazer um sanduíche
de presunto para um banquete. E eu não conheço coisa mais enjoada que sanduíche de presunto,
disse o arlequim, que possuía especial habilidade para dizer coisas velhas como se fossem
novas.
- O que mais me preocupa no casamento, ponderou Jacky com ar muito sério, é a perspectiva da
mulher aos quarenta anos. Que há de fazer então o homem com a esposa? Deveria haver, uma
lei permitindo que se pudesse trocá-la por duas de vinte.
Uma risada geral aplaudiu a tirada de Jacky.
- É uma esplêndida idéia esta, comentou um dos do grupo.
- Precisamos escrever ao deputado por Upper Norton para que ele apresente ao Parlamento um
projeto nesse sentido, disse um outro.
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- Este Jacky tem mesmo o cérebro sempre em alvoroço, acrescentou um terceiro.
- Mas não tenho receio a respeito de Scott, sentenciou Jacky. Ele não corre perigo, algum. É um
dos homens que melhor apreciam quanto vale não ter ainda recebido as bênçãos nupciais.
Considero-o mesmo o tipo perfeito do solteirão. E agora, irmãos, permiti que diante deste grande
exemplo eu vos diga alguma coisa sobre os méritos e os hábitos do perfeito solteirão.
- "Copyright" da Associação de Imprensa Telegráfica Réu ter! exclamou Scott jovialmente.
Voltando-se para Hanshaw disse-lhe em tom afetadamente comovido: Jacky, esta propaganda
espontânea da minha perfeição faz-me vir as lágrimas aos olhos.
Satisfeito com a oportunidade para uma nova preleção, Jacky volveu o olhar superiormente pelo
grupo que se dispusera em semicírculo para ouvi-lo melhor. Entretanto, como o orador parecesse
relutar em impingir mais um discurso ao seu auditório, o grupo por entre risadas encaminhou-se
para o salão de dança. Jacky e Scott vinham atrás e o primeiro perguntou ao outro quem era o
seu par fixo para a noite.
- Ninguém. Vim sem compromissos e pronto a enfrentar as aventuras que se me depararem. É, às
vezes, o mais divertido.
- Se você não tiver cuidado, observou Jacky, ficará às moscas. Temos esta noite aqui um excesso
de homens.
- Eu sei como me defender, respondeu Scott tranqüilamente.
No corredor, que se dirigia do bufête para o salão de dança, encontraram muita gente, em grande
parte conhecidos, de modo que a marcha foi feita vagarosamente.
- Ali está o jovem Cameron, disse Jacky apontando para um rapaz que se movia abrindo caminho
por entre 15
a multidão de convivas que conversavam e riam alegremente. Suponho que a novidade anunciada
anda solta por aí. Tenho ultimamente dançado muito com Madeleine, a irmã de Cameron, e vou
procurá-la. Até já, Scott.
Mal se despedira do amigo, Scott penetrou no salão e a primeira coisa sobre a qual se fixou o seu
olhar foi uma moça. É claro que estavam ali muitas raparigas, mas Scott apenas viu aquela. O fato
envolvia um sintoma perigoso, principalmente em se tratando de um solteirão. Scott, porém, não
analisou os seus sentimentos e unicamente murmurou monologando: "Que moça interessante..."
Encostado ao portal, deixou-se ficar a contemplar aquela figura que, sem ele o sentir, lhe parecia
ser a única pessoa que se encontrava na sala.
A moça achava-se no lado oposto da sala e perto dela seis ou sete homens formavam cauda.
Evidentemente todos pleiteavam a honra de tirá-la para dançar, mas ela, com gestos amáveis, ia
habilmente despachando os pretendentes. Observando-a cada vez mais atentamente, Scott
admirava agora o tato e a técnica de salão daquela encantadora criatura que instantaneamente o
atraíra. Os pretendentes tinham partido, naturalmente desapontados. A moça, em uma atitude de
equilíbrio e de elegante displicência, parecia estar convencida de que toda aquela gente ali se
reunia apenas para a servir e homenagear.
O rapaz prosseguia na sua observação cada vez mais empolgado. A fantasia da desconhecida
não podia ser bem definida na posição em que ela se achava. Era de uma cor viva de fogo e
parecia ser feita de um tecido de crepe. Este último detalhe, Scott era demasiadamente masculino
para poder apreciar. Notou, porém, que a moça tinha sobre si muito pouca roupa. Um decote
interessante e original deixava-lhe os ombros e as costas à mostra e o vestido, muito colado ao
corpo, descia apenas um pouco abaixo dos joelhos, onde terminava em plumas de avestruz
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tintas em cores que variavam do ouro velho a um forte alaranjado, formando uma espécie de
graciosa cortina em torno de lindas pernas, cuja forma as meias de seda realçavam.
À cabeça, uma espécie de diadema de plumas formava em torno da cabeleira castanho-dourada
um círculo tão gracioso, como o outro que circundava os joelhos. A face não era o que um artista
chamaria bela, mas sem dúvida formidàvelmente fascinante e cheia de vivacidade. A pele era
muito branca e ligeiramente rosada, o que formava um impressionante contraste com a cor dos
cabelos e com o fulgor berrante do vestuário. O nariz bem talhado terminava em arrebito quase
impertinente. Os lábios fortes, as sobrancelhas, arqueadas e finas, tinham uma tonalidade mais
escura que o cabelo. Os olhos, quando sobre eles se fixou a atenção de Scott, o detiveram
provocando um sobressalto e o espontâneo comentário de que tinham tanto fogo, como a vistosa
fantasia da fascinante mulher.
A confusão provocada no espírito do rapaz pelos olhos da desconhecida não durou muito, mas a
impressão por eles deixada fixou-se indelével na sua memória. Um encontro de olhos não passa
de um contacto ligeiro de impressões fugitivas. Mas os raios que se trocam despertam por vezes
em dois cérebros uma série de emoções, cujos resultados vêm a ser decisivos sobre a vida futura
dos que o destino caprichosamente aproximou.
Naquele caso os olhares haviam sido tão rápidos que não provocaram sequer idéias que Scott ou
a moça pudessem - apreciar conscientemente. Quando, porém, o rapaz fitou de novo a
desconhecida, seu olhar foi acompanhado por um sorriso. Scott era um desses moços que têm
consciência clara dos seus atrativos e quando sorria a uma mulher exprimia involuntariamente a
convicção que formava dos seus próprios atributos. Agora ele sorrira de modo que a rapariga, do
outro lado da sala, pôde perceber o interesse
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que nele despertava e talvez ainda uma espécie de afirmação tácita de que aquele homem já
verificara que ela também o estava notando.
Fosse como fosse, a troca de olhares teve conseqüências. Se a rapariga apenas tivesse baixado
os olhos e corado um pouco, mostrando ter compreendido estar sendo observada por um homem,
talvez um audacioso conquistador, Scott não teria ligado maior importância ao caso e contentar-
se-ia com a satisfação de haver causado uma impressão qualquer em uma mulher interessante.
Mas a moça não baixou os olhos nem corou. Assumiu uma atitude displicente e fria que
interessou vivamente a Scott, convencido agora de tratar-se de uma rapariga perfeitamente
moderna, tão moderna quanto ele e correspondendo assim a uma das características do seu ideal
feminino. E ainda mais picante foi a maneira como a moça exprimiu o seu desdém pelo
desconhecido que por ela se interessava. Não teve um movimento de ombros, que seria um
pouco rude. Contentou-se em manifestar na fisionomia a indiferença, sem ao menos traduzir
nervosidade em um simples movimento das pálpebras. O seu olhar não irradiava mais chispas.
Tinha uma frieza glacial e encarava o Beaucaire com a sua vistosa fantasia de ouro e prata, como
se- aquela figura encostada ao portal fronteiro fosse apenas um banal elemento decorativo de
qualquer salão de dança.
Scott estava furioso. Nunca se sentira encolerizado assim diante de outra mulher. Que fizera para
justificar aquela atitude? Um sorriso seria coisa tão hedionda? Sobretudo em um baile a fantasia
onde, conforme as praxes, as convenções eram um pouco afrouxadas, um sorriso era coisa mais
que desculpável. Entretanto, aquela moça o fitava com frieza implacável, como se ele a tivesse
insultado.
Contendo-se com dificuldade, o rapaz sentia ímpeto de atravessar a sala e ir fitar de perto aquela
mulher estranha.
18 cuja frieza tanto o irritava. E já estava a pique de executar o seu propósito, quando a idéia de
que iria fazer um papel ridículo o conteve imóvel junto ao portal. Dali viu a rapariga dividir o seu
programa de dança pelos rapazes que dela se acercavam e depois sair nos braços de um
majestoso rajá, cuja fantasia se combinava admiràvelmente com a cor de fogo do vistoso vestido
da moça.
Scott acompanhou por algum tempo as evoluções do par, seguindo como que fascinado a
ondulação das plumas que o irritava, como se fossem um gesto irônico dirigido pessoalmente a
ele. Mas o rapaz era sadio e possuía um desses temperamentos que reagem como molas, não se
deixando deprimir. Viera para divertir-se e não consentiria que ninguém lhe estragasse a noite.
Junto a Scott vozes vieram mostrar-lhe que não era o único homem vivamente interessado por
aquela mulher. Em um grupo comentava-se de modo caloroso os atrativos da moça, que
continuava a girar pela sala conduzida pelo imponente rajá.
- Quem é ela?
- Não sei, é a primeira vez que a vejo aqui.
- É uma jovem esplêndida.
- Preciso arranjar meio de dançar com ela.
Uma voz feminina, um pouco irritada, chamou o seu desatencioso par, perguntando-lhe se queria
começar a dançar quando a música parasse. Jacky Hanshaw emergiu então do corredor dando o
braço a Madeleine Cameron e dando uma cotovelada em Scott murmurou-lhe:
- Então você também está encantado com a moça que dança com o príncipe indiano? Maddie
acaba de dizer-me que ela está tendo um tremendo sucesso aqui.
Fitando Scott com os seus olhinhos azuis, miss Cameron exclamou rindo:
- Eu bem disse a mamãe que aquela pequena ia fazer com que todas as moças ficassem
enciumadas. 19
madeleine falava cheia de alegria, porque, sendo um desses temperamentos inacessíveis ao
ciúme e à inveja, divertia-se muitíssimo com o efeito produzido no baile pela amiga. Prosseguindo,
disse a Scott: Trazendo-a a esta festa, lançamos uma bomba no salão.
Refere-se àquela rapariga com vestido de plumas?
perguntou Scott tranqüilamente.
-. Venha, Scott, é ela mesma. Junte-se ao grupo de adoradores. Receio que para muita gente a
noite se torne amarga por causa dela.
- Vamos dançar, disse Jacky puxando Madeleine pelo braço.
- Madeleine, também quero dançar com você, observou Scott.
- com muito prazer. Mas você não quer dançar com Ana? perguntou apontando para a moça cuja
fantasia avermelhada se destacava no meio do salão.
- Ana? repetiu maquinalmente Scott, cujos olhos acompanhavam fixamente os movimentos da
moça que continuava a dançar com o rajá. com muito prazer dançarei com ela, se mais tarde lhe
faltar par.
O movimento dos pares impeliu nesse momento o rajá e Ana para perto do corredor. Scott, que
percebera a aproximação dos dois, propositadamente não se afastou para dar passagem e ficou
fitando aqueles olhos frios. Assim, Ana roçou pela face do rapaz as plumas que lhe ornavam a
cabeça. Scott teve a impressão de que cada uma delas o tocara, despertando-lhe uma sensação
estranha. Parecia-lhe que aquela rapariga ensaiara o movimento, como se quisesse produzir
sobre ele um efeito todo particular.
Observando o esbarrão, Madeleine deu uma risada e a moça, voltando-se rapidamente, pediu
desculpas e foi-se, deixando Scott visivelmente embaraçado. A sensação produzida pelas plumas
ao roçar-lhe pela face, intensificara
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vivamente a impressão do olhar e dos gestos frios que então apreciara bem mais de perto. A
irritação de Scott recrudescia. Estava disposto a jogar a partida com aquela rapariga que parecia
provocá-lo. O Tennis Club oferecia-lhe esta noite uma oportunidade nova. E Scott estava resolvido
a tirar dela todo o partido.
A voz de Madeleine despertou Scott dos seus pensamentos
- Não me parece, Scott, que Ana vá ter muita dificuldade em achar pares. Estava com vontade de
arranjar isso para você mas o vejo tão frio, que acho preferível deixar que você resolva o caso por
si mesmo. E partiu com Jacky, juntando-se aos pares que dançavam.
- Está muito bem, respondeu o rapaz rindo. vou eu mesmo arranjar o negócio.
Saindo da sala, Scott caminhou pelo corredor formando os seus planos de ação. Dançaria com
aquela moça, mas não iria apressar-se. Não havia mulher no mundo atrás da qual fosse capaz de
correr, mas também não tolerava que uma rapariga, fosse ela quem fosse, o repelisse com ares
superiores. Dançaria naquela noite com Ana, porém só o faria mais tarde, para que ela
compreendesse que ele apenas fazia as coisas quando queria e quando lhe convinha.
Os membros da comissão de diversões do Upper Norton Tennis Club eram de opinião que os
programas de dança tinham grande utilidade, facilitando muito a boa ordem e a alegria nas festas
e lamentavam sempre que estivessem caindo em desuso. Lembrando-se disso, Scott teve uma
idéia que lhe causou um sobressalto de prazer. Tomou do seu programa e escreveu, no espaço
reservado à ceia, as palavras: "A moça flamejante".
Depois de passear por algum tempo certo de que não lhe faltaria desta vez a boa estrela, que
sempre o protegia, e que em tudo lhe assegurava sucesso, o rapaz foi dançar, 21
escolhendo os seus pares deliberadamente entre as moças mais elegantes do seu conhecimento.
Dançou três vezes com pares diferentes. Dir-se-ia que queria assim mostrar a Ana que também
tinha prestígio capaz de entrar em concorrência com o seu. Sem dúvida, Scott não formulou
claramente esse pensamento, mas era muito humano que a idéia lhe tivesse ocorrido.
No decorrer da dança, Scott freqüentemente passava perto de Ana, sempre em alegre palestra
com o seu par e invariavelmente indiferente aos olhares de desafio que o rapaz lhe lançava. Scott
ia cada vez mais se convencendo de que ela percebia perfeitamente a atenção que ele lhe
prestava e assim acreditava pouco a pouco que entre ele e a fascinante rapariga se iam
estabelecendo vínculos imperceptíveis, mas nem por isso menos fortes.
Entretanto, Ana pôs Scott fora de concorrência, em matéria de pares. Se este dançou três vezes
com três moças diferentes, ela tinha três pretendentes para cada dança. O sucesso de Ana estava
realmente ferindo as susceptibilidades femininas, como o previra Madeleine. A irmã de Jacky
Hanshaw, considerada a mais bonita das moças que freqüentavam o Upper Norton Tennis Club,
dançava com Scott e, percebendo as olhadelas do seu par sempre que Ana passava por perto,
observou-lhe em tom sarcástico:
- Não sei por que os homens gostam tanto de fazer papel de idiotas. Você, Scott, confesse, às
vezes não gosta também de fazer parte deste grupo?
- Sim, às vezes, respondeu o rapaz um tanto enfiado. Mas por que me faz essa pergunta?
- A maneira como vocês estão todos caídos por essa Miss Maitland faria crer que nunca apareceu
em Upper Norton uma moça sofrivelmente bonita.
E Nancy Hanshaw sacudiu graciosamente a cabeleira empoada, que completava a sua bela
fantasia de du Barry com a saia de balão e toda ornamentada de rosas. 22
murmurava-se no baile que Nancy Hanshaw escolhera aquela fantasia por saber que Scott viria
vestido de Beaucaire. Aliás, a maledicência era inteiramente destituída de fundamento, porque o
rapaz escolhera a sua fantasia sem ter a mínima idéia de que a irmã do amigo apareceria ali como
du Barry.
- Mas quem é a moça a quem se refere? perguntou Scott ansioso por obter algumas informações
sobre Ana.
- Ana Maitland. Aquela moça com vestido de plumas que está dançando com Dick Turpin.
Reforçando a explicação, Nancy Hanshaw aludiu às plumas como pedacinhos de penas. E nessas
palavras traduzia-se bem claramente o desdém que disfarçava um sentimento mais profundo de
despeito.
- Ana Maitland, repetiu Scott. Ela parece estar tendo um grande sucesso. Naturalmente porque é
a primeira vez que aparece por aqui.
- Os homens são sempre assim, continuou Nancy; basta verem uma coisa nova para se
entusiasmarem e correrem atrás como loucos.
- Nancy, você não parece estar muito inclinada a admirar esta noite, o sexo forte.
- Como é possível admirar os homens, quando os vemos proceder como imbecis?
- Mas que acha você demais em que façam a corte àquela moça? Ela me parece bem
interessante, disse Scott, dando às suas palavras um tom de indiferença evidentemente destinado
a despistar Nancy.
- Não contesto que ela seja interessante, mas não vejo nada de extraordinário que justifique o
entusiasmo por ela provocado.
- Talvez você tenha razão. Ela dança bem.
- Não, não é isso. Antes de ela ter dançado, já todos andavam a rodeá-la. A explicação foi a que
você
23
deu. É a novidade. Ainda bem, Scott, que você não se Lprestou ao ridículo de ir arrastar a asa
como os outros. - Tinha motivos para não perder a cabeça por causa da idéia, disse Scott olhando
para o seu par galanteadoramente. - Que há de verdade no que está dizendo? retrucou Nancy
encarando Scott e acentuando tendenciosamente as suas palavras.
- Hum! resmungou Scott imperceptivelmente, percebendo nas palavras de Nancy um sinal de
perigo. Levantando a voz respondeu: Nestas ocasiões quem sabe até que Iponto se está dizendo
a verdade?
O rapaz dissera estas palavras com um sorriso um tanto displicente, que evidentemente
desagradou a Nancy. Esta sempre fazia em vão os maiores esforços para penetrar nos
pensamentos de Scott, mas não conseguia dele senão frases amáveis e, quando muito,
expressões de amizade dedicada que ficavam muito aquém dos desejos da moça. Realmente,
seria preciso muita falta de experiência do jogo mundano entre homens e mulheres para iludir-se
com as galanterias que Scott freqüentemente fazia à irmã do seu amigo Jacky. Muito bonita e
tendo sido educada com excessivo carinho, Nancy era caprichosa e comprazia-se em manter em
relação a Scott uma atitude que envolvia um sentimento de propriedade. O rapaz, muito masculino
para ser dominado por uma mulher, não se preocupava, como em geral o fazem os homens do
seu tipo, em reagir contra as pretensões dominadoras da rapariga, que de resto até o divertiam.
Nancy e Scott dançavam muito, passeavam e iam aos teatros juntos. Ele, porém, não via nela
mais que uma companheira interessante, com quem passava o tempo agradàvelmente.
A camaradagem dos dois era tão natural que ninguém que os observasse entretinha dúvidas
sobre a verdadeira situação. Nancy era a única pessoa que se iludia. E, por isso, naquela noite
encontrava motivos de sobra para 24
enfurecer-se. A primeira queixa consistia em Scott não tê-la acompanhado ao baile, dando-lhe
assim uma posição privilegiada. Este fato poderia não lhe ter causado maiores dissabores se, ao
chegar ao clube, não houvesse encontrado Ana Maitland a provocar tão estrondoso sucesso,
ameaçando assim a sua posição de rainha de Upper Norton.
É claro que Nancy não admitia a possibilidade de ser destronada. A simples ameaça à sua
realeza mundana causava-lhe uma irritação prejudicial aos seus encantos. Realmente, dançando
com ela naquela noite, Scott a achara muito menos interessante que de costume. O tom da voz e
um certo tremor da mão fizeram com que Scott julgasse a situação pouco tranqüilizadora. Assim,
durante o resto da dança, limitou-se a dizer uma ou outra banalidade ocasional e o mais depressa
que pôde transferiu Nancy a outro rapaz que a esperava para dançar. O mais significativo ainda
da desagradável impressão que Nancy lhe causara, foi o fato de não lhe ter pedido para reservar-
lhe outra dança. E esta omissão veio intensificar o tumulto de sentimentos de vaidade e de
despeito que fervilhavam em Nancy.
Entretanto, Scott, passeando vagarosamente, encaminhou-se para o salão de entrada que se
achava transformado em local de palestra, onde os convidados fumavam e tomavam café.
Quando ia entrar no grande salão, sentiu apertar-lhe o braço a mão ossuda e dura de Jacky
Hanshaw.
- Pode conceder-me um momento, Scott? Quero pedir-lhe um obséquio.
- Estou às suas ordens, respondeu Scott que no entanto lançou ao amigo um olhar desconfiado.
- Você se livrou da dama abandonada da noite e quer forçar-me a dançar com ela, disse Jacky
afetando um ar queixoso e apertando mais fortemente o braço do amigo, que o encarou
surpreendido e perplexo.
- Sim, não é bem isso, concordou Jacky, mas. afinal de contas é mais ou menos a mesma coisa.
25
- Que posso eu fazer?
- Tenha coração, Scott, e faça o que lhe vou pedir.
- Sim, tenho coração, mas não costumo deixá-lo jogar as cristas com o meu bom senso.
- Scott, quero dançar agora com Maddie...
- Muito bem, pois vá dançar com ela. Não estou fazendo nada para impedi-lo disso.
- Ela é que não quer dançar comigo.
- Vocês brigaram?
- Nada disso, Maddie, porém, tem o coração muito sensível...
- Oh! Então o meu amigo pôs de parte a sua filosofia cínica e já está vendo sentimentalismo nos
outros? Pois fique sabendo que até eu, que não sou cínico, não ignoro que nestes tempos não há
mais gente sentimental, sobretudo moças.
- Pois Maddie é sentimental e está dizendo que não lhe fica bem monopolizar toda a noite um
excelente par.
- Um excelente par, você? exclamou Scott procurando dar jovialmente às suas palavras um tom
pouco amável.
- Fique sabendo, afirmou Jacky com energia, que ela me disse que sentia escrúpulos em estar
monopolizando um par como eu, enquanto a sua amiga Miss Maitland está encostada à parede a
brincar com os dedos, sem ter um só nome escrito no seu programa de danças.
- Que? Miss Maitland? Você está louco. Ela tem para cada dança pelo menos três candidatos
muito melhores que você.
- Não, não, não estou falando de Ana Maitland. Refiro-me à irmã mais velha, que tem duas vezes
o tamanho dela.
- Não sabia que Ana Maitland tinha uma irmã.
- Tem, tem irmã e, digo-lhe mais, tem mãe e ainda por cima um irmão que é o filhote dos Maitland.
26 - Então Maddie quer que você vá dançar com a irmã de Ana?
- Exatamente. E vim pedir-lhe o obséquio de você ir dançar com ela, porque nesse caso Maddie
não terá dúvida em dançar comigo.
- Por esta vez, Jacky, a sua infernal impudência vai ser imerecidamente atendida. Apresente-me a
Miss Maitland.
Jacky foi levando o amigo para o salão de entrada, onde se reuniam os elementos indiferentes à
dança ou ostracisados pelos dançarinos. Dois rapazes de tipo intelectual tomavam café e
pareciam entretidos em uma palestra completamente alheia ao que se passava no baile a
fantasia. Junto à lareira um par conversava. Eram provavelmente namorados, que preferiam
aquele recanto para um colóquio sentimental. Duas ou três mamães conversavam em grupo
disposto também junto ao fogo. Ao transpor o limiar, Scott instintivamente descobriu Miss Maitland
sentada ao lado de uma das mamães.
Jacky não fora exagerado no esboço impressionista com que lhe dera idéia da irmã de Ana. A
natureza falhara na formação daquela criatura. Não que lhe faltasse volume, mas a fealdade tinha
nela um dos seus espécimes mais autênticos. Era feia de cara e feia de corpo. Mal conformada,
Miss Maitland tinha o aspecto desagradável das mulheres cuja plástica fere as suceptibilidades
estéticas de todas as pessoas normais. Em um rápido golpe de vista Scott pôde calcular que a
enorme rapariga deveria ter quase dois metros de altura. A largura estava em proporção e
automaticamente o rapaz procurou avaliar a distância que separava os dois ombros avantajados e
proeminentes.
Percebendo a impressão causada sobre o amigo e receando um recuo deste no momento
decisivo, Jacky apertou mais fortemente o braço de Scott dizendo-lhe em voz alta para que todos
ouvissem e a fuga se tornasse impossível: 27
- Venha, Scott, quero apresentá-lo a Miss Maitland.
Scott, porém, não tinha a mínima idéia de escapar. Razões ponderosas o induziam, pelo contrário,
a regozijar-se com aquele ensejo de conhecer logo a família Maitland. Disposto a enfrentar os
azares de uma dança com aquele par de plástica tão estranha, deixou-se guiar por Jacky até ao
aparador, junto ao qual se achavam Mrs. Maitland e a filha.
- Meu amigo Kentish deseja ser apresentado, Mrs. e Miss Maitland.
Scott, com um sorriso extremamente amável, cumprimentou-as, enquanto Jacky perguntava a
Miss Maitland se no seu programa ainda havia um lugar vago para o seu amigo. Este, fazendo
mentalmente o propósito de tirar mais tarde vingança de Jacky daquela prebenda em que o
metera, dirigiu-se a Miss Maitland com gestos de grande estilo, que aliás condiziam bem com a
sua fantasia do século XVIII.
- O meu programa não está completo, declarou a moça com uma sinceridade que Scott não pôde
deixar de achar encantadora. A voz dela era forte e cheia de alegre sonoridade. E quando sorriu,
magníficos dentes muito brancos apareceram e sua fisionomia ficou sensivelmente menos feia.
Dois pontos ficaram logo bem claros no espírito de Scott. Um, era que uma mulher com dentes tão
bonitos não podia ser irremediavelmente feia. O outro, que a Miss Maitland mais velha lhe causara
uma impressão agradável.
- A minha outra filha e o meu rapaz são na família os que gostam de festas, disse Mrs. Maitland
dirigindo-se a Scott, que muito atenciosamente se voltou para ouvi-la. Era também uma mulher de
grandes proporções, com uma fisionomia que denotava um espírito prático e positivo. Os seus
olhos refletiam experiência da vida e também muitas desilusões. Bastava um momento de
observação para
28
que se visse que aquela senhora nunca tivera sonhos, nem ocupara o seu tempo fazendo
castelos no ar. Entretanto, essa conclusão não correspondia à realidade. Mas de fato Mrs.
Maitland não se permitia mais devaneios e fantasias na vida.
Jacky Hanshaw despediu-se e foi rápido em busca de Madeleine Cameron, que agora sem
escrúpulos poderia dançar com ele. Ao encontrá-la foi logo anunciando que Kathie Maitland
conseguira conquistar para seu par o homem mais bonito do baile.
Scott ficou conversando e com grande satisfação verificou que, tanto a mãe como a filha eram
pessoas com quem "e podia palestrar agradàvelmente. Um pouco abruptas talvez no modo de
falar, não tinham contudo a mínima afetação e discorriam fluentemente sobre os temas habituais.
Assim, comentaram o nevoeiro, a música e o aspecto geral do baile. Falaram também de Ana e
do grande sucesso que estava tendo naquela noite.
- Ana é sempre a mesma. Em todas as festas a que vai diverte-se tremendamente. Sr. Kentish,
ainda não dançou com ela?
- Ainda não, minha senhora, mas espero poder fazê-lo mais tarde.
- Mas com certeza já reparou nela?
- Quem, minha senhora, não a admirou esta noite?
- Ana, em todas as festas, parece dirigir o baile. Mudamo-nos anteontem para Upper Norton.
Estamos morando naquela casa em Larchmore Road, bem perto do Crescent. Sabe onde é?
- Sim, conheço. É uma bela vivenda antiga.
- E com uma chácara também, como hoje é difícil encontrar. Os Gameron, que são muito amigos
nossos, tiveram a amabilidade de hospedar-nos por alguns dias, enquanto se acaba de arranjar a
casa. Em poucos dias 29
estaremos instalados. Então o senhor verá como Ana manda em tudo. Ela governa as festas,
organiza os casamentos, enfim, dirige tudo. É o seu temperamento.
- E o que é curioso, observou Kathie, é que as outras moças, passado o primeiro momento em
que naturalmente ficam um pouco chocadas, começam a gostar muito dela e fazem tudo que ela
quer.
Afinal Scott interrompeu a palestra, convidando Miss Maitland para dançar.
- O senhor vai arrepender-se de dançar comigo.
O rapaz respondeu com um galanteio e os dois sairam da sala de palestra para o grande salão de
baile. Ao entrarem ali, encontraram-se com Ana que vinha pelo braço de um Pele Vermelha e que,
ao ver a irmã ao lado do elegante Beaucaire, não pôde conter uma expressão de espontâneo
assombro.
- Que é isto, Kathie?
Nesse momento os olhos da moça encontraram-se com os de Scott, que a fitou como que
dizendo:
- Veja como cada vez mais me aproximo de si.
Os olhos de Ana pareceram a Scott ter perdido subitamente a frieza, para brilharem com uma luz
estranha em que se diria traduzir-se a perturbação que tudo aquilo lhe causava.
O cérebro de Scott trabalhava intensamente. As idéias se entrechocavam em esboços de planos
de ação. Ser apresentado a Ana por Kathie foi coisa que logo pôs de parte. Não podia esquecer
facilmente a maneira ríspida com que ela o encarara, quando lhe sorrira depois de se terem
encontrado os seus olhares. Scott não gostava de sofrer desfeitas e nem para as mulheres abria
exceção nessa matéria. Ana o tratara de modo que ele julgava injustificável. Teria de pagar com
juro a desfeita que lhe fizera. Demoraria portanto o momento de ser-lhe apresentado, a fim de que
30 31
ela verificasse que ele não estava muito apressado. Continuou a dançar muitas vezes com Kathie
e depois foi de novo prestar homenagens a Mrs. Maitland. Travou em seguida conhecimento com
o jovem Maitland que era um rapaz ainda longe dos vinte anos, tipo acabado de rapazinho
estragado pelos mimos domésticos. Finalmente, tendo oferecido à família os lugares para a ceia,
bateu ao ombro do meninote dizendo-lhe em tom quase paternal:
- Agora você me leve à sua irmã Ana.
CAPÍTULO II
Confiante em que mais uma vez a fortuna lhe sorria, Scott abriu caminho por entre os
retardatários que no corredor procuravam apanhar a retaguarda da coluna dos que avançavam
para obter lugar à mesa da ceia. Cruzou com o inevitável "Jazz" de negros, que discutiam se a
noite lhes correria bem no tocante a bebidas, e riram alegremente para Scott quando por ele
passaram. E também a sorte, que já lhe sorria, começou a tornar-se cada vez mais propícia.
Ao penetrar no salão de palestra deu subitamente com Ana que caminhava em direção oposta.
Agora trazia ao braço um grande xale espanhol que se harmonizava bem com o caráter vistoso e
exuberante da sua "toilette". Os dois quase que esbarraram. Tendo recuado, ficaram a fitar-se em
silêncio por alguns momentos. Chegara enfim a oportunidade de Scott. O duelo de olhares travou-
se por algum tempo.
- Afinal de contas perdemos esta noite um tempo precioso, disse o rapaz encarando-a com um
sorriso que tinha alguma coisa de desafio.
- Perdemos tempo? Como? respondeu Ana recuando um pouco e evidentemente perturbada com
a audácia do adversário. Mas a moça instantaneamente recuperou o domínio de si mesma,
retomando a atitude calma e fria.
- Quis tanto dançar com a senhorita, mas não pude encontrá-la livre uma só vez.
- Então é a isso que o senhor chama ter perdido tempo? respondeu Ana com a admirável presteza
do seu imperturbável sangue frio.
- E estou certo também de que a senhorita quis dançar comigo e não o conseguiu, retrucou Scott
fitando fixamente a rapariga com um olhar petulante, à espera da resposta.
Ana ficou silenciosa. Talvez tivesse a consciência de ter provocado aquele ataque, que
certamente a surpreendia um pouco. Não é também impossível que a moça sentisse estar
dominando a situação. Observara durante a noite as atenções dispensadas por Scott à sua mãe e
à sua irmã e não podia mais entreter dúvidas de que o rapaz estava sob o seu domínio. Scott,
entretanto, não introduzira nos seus cálculos esse elemento, que agora vinha embaraçar o êxito
do golpe lançado no seu ataque decisivo. Por esse motivo ficou um tanto encabulado com a
atitude serena com que Ana recebera a investida. As coisas não corriam precisamente de acordo
com as previsões de Scott. E a moça, dominando a situação, refletia no seu olhar a consciência
da vitória obtida.
De pé no limiar da porta, com a sua vistosa "toilette" e as plumas suavemente agitadas pela
corrente de ar, Ana tinha bem o aspecto de um símbolo da mulher moderna. Realmente, era uma
das figuras mais representativas da feminilidade contemporânea. Não pertencia a essa minoria de
moças trôpegas que, exagerando os traços da mulher dos nossos dias, não passam em última
análise de expressões caricaturais do tipo que pretendem representar. Esbelta
32 de formas, Ana era contudo uma mulher de corpo forte sadio e mesmo atlético. com todas as
subtilezas da psicologia complexa da mulher contemporânea, ela refletia no olhar límpido uma
alma leal e pura. Pintada e servida por todos os recursos da cosmética, tinha entretanto por sob a
maquelagem uma pele excelente, como melhor não existia no mundo civilizado e que bem
dispensaria todos aqueles auxílios do embelezamento artificial. com as mãos cuidadosamente
tratadas pela manicura e os pés atentamente zelados pelo pedicuro, tonificada regularmente pelos
banhos de sais aromáticos, com a ondulação permanente dos cabelos, meias de seda e roupa
cobrindo o menos possível o corpo, gloriosamente jovem e emanando um perfume sutil ela era
sem dúvida uma mulher tremendamente fascinante' Consciente da impressão que produzia sobre
os outros adquirira uma confiança em si mesma e tinha ilimitada esperança no que a vida lhe
prometia.
Assim, estava Ana de pé no limiar da porta encarando Scott com olhos maliciosos em que se
traduzia a muda comunicação de que ele não devia esperar resolver as questões a seu modo
quando ela estivesse em jôgo Entretanto, o rapaz não estava disposto a capitular e por seu turno
refletia no olhar a combatividade e o desejo firme de sustentar a posição em que se colocara.
Afinal de contas tudo aquilo para Scott não tinha importância era um episódio como tantos outros
que lhe ocorriam na vida mundana e com o seu sorriso imperturbável continuaria a sua vida
vitoriosa de homem protegido por uma boa sorte.
- Pois é isso, Miss Maitland. Por sua culpa perdeu tantas horas. Não é verdade?
Somente mais tarde a pergunta de Scott teria uma resposta. 33
- E o senhor, por que perdeu também o seu tempo? retrucou a moça em tom evasivo.
- Ora esta, quando se nota que em certo' caso a temperatura está abaixo de zero, um homem
bem educado espera que chegue o momento do degelo.
- Ah! então era assim?
- Sem dúvida. E a senhorita não queira contestar aquilo que sabe muito bem ser a verdade.
Ambos riram e por entre a risada Scott perguntou: - Que fiz eu para merecer a geada? Alguma
coisa muito difícil de perdoar-se?
- Não coisa de extrema gravidade, respondeu Ana sacudindo a cabeça.
- Foi o meu sorriso que a pôs louca de raiva contra mim?
- Eu não sabia que estava louca de raiva.
- O seu procedimento fazia pensar isso. Diga-me o que houve.
Ana fitou Scott por alguns momentos, depois voltou-se para um lado e para o outro, como se
estivesse a coordenar pensamentos e a refrear emoções. Por alguns instantes parecia que a
rapariga ia dar uma resposta de grande alcance para ambos. Scott esperava ansioso, quando
Ana, entreabrindo os lábios, ia começar a falar. Mas a resposta foi subitamente interrompida e a
moça continuou no seu silêncio, tão significativo quanto enigmático. Não estava nos desígnios do
destino que Scott obtivesse ali, naquele momento, a resposta que provocara e que tão
ardentemente o intrigava. Algumas horas teriam de passar-se, antes de ouvir as palavras que já
emergiam dos lábios de Ana, quando subitamente foram recalcadas pelo efeito das contradições
que naquele momento perturbavam Miss Maitland. Ana desdobrou o xale que trazia ao braço e ia
começar a pô-lo sobre os ombros, quando Scott, pressuroso, se incumbiu de fazê-lo. A moça deu-
lhe as costas
34 e nesse momento as plumas que lhe ornavam a cabeça roçaram de novo pela face do rapaz,
que rindo recuou dizendo:
- É a segunda vez, Miss Maitland, que a senhorita me faz cócegas no rosto com as suas
magníficas plumas.
- Desculpe-me, respondeu Ana com absoluta calma. Então foi no senhor que dei aquele esbarrão
no salão de dança?
- Confesse, está me parecendo que a senhorita o fez de propósito.
Se Scott desejava ver os olhos de Ana irradiarem centelhas, atingiu com estas palavras o seu
objetivo.
- Não, respondeu abruptamente a moça, cujos olhos refletiam indignação e ao mesmo tempo
desdém. Por
quem me está tomando o senhor?
- Pelo que acabei de dizer-lhe, a senhorita deve compreender que já a considerei a rainha das
plumas.
- O senhor se referiu a mim desse modo?
- De fato, a verdade é que fui realmente banal e mesmo indelicado.
A confissão podia ter aliviado a consciência de Scott, mas certamente não melhorou a sua
situação com Miss Maitland, que lhe respondeu em tom pouco amistoso:
- Então, porque o senhor foi banal e pouco delicado, acha que eu seria capaz de proceder do
mesmo modo? - Não, certamente não. Mas não poderia a senhorita agora tornar-se menos
severa?
- Em certos casos a severidade é muito útil.
- Ah! então a senhorita acha que sua severidade é que me fez pedir desculpas?
- Não suponho coisa alguma, retrucou Ana com uma frieza que parecia ainda mais glacial que a
temperatura daquela noite de geada. 35
- Julgava que o gelo já estivesse derretendo, disse Scott, encarando a moça com um olhar súplice
e persuasivo.
Mas Ana não parecia inclinada a ceder e o rapaz, tomando o xale com as mãos juntas, disse-lhe
em atitude de positiva súplica:
- Olhe bem para mim. Veja o meu arrependimento e não continue a alfinetar-me. Peço-lhe perdão,
Miss Maitland. Dê-me a sua absolvição.
Scott falava em tom de gracejo, mas em sua voz havia uma nota profunda de emoção sincera que
não passou despercebida à sagacidade de Ana. O rapaz, evidentemente, não conseguia disfarçar
os seus sentimentos com tanta habilidade como julgava. A moça fitou-o por alguns momentos e
deu uma risada.
- O senhor não acha que estamos fazendo papel de tolos?
- Tem toda a razão e agora o melhor é irmos para a ceia. Já perdemos um tempo precioso, disse
Scott que, animado pela atitude agora jovial da rapariga, retomara o seu feitio habitual de elegante
displicência.
- Suponha que eu não pensasse assim.
- Nesse caso iríamos cear do mesmo modo.
- Mas suponha que eu tenha um compromisso para cear com outra pessoa.
- Isso seria uma razão a mais para a senhorita ir cear comigo. Acabo de verificar que tem uma boa
capacidade para esquecer.
Com toda a calma Scott pegou do programa, abriu-o e apontou com o lápis as palavras que
escrevera no espaço da ceia: "A moça flamejante".
Ana leu e quando os seus olhos se fixaram de novo sobre o rapaz, tinham outra vez as
fulgurações da cólera,
36 a que se misturava a expressão de um outro sentimento indefinível.
- Mas quem disse ao senhor que podia escrever isso? interrogou com uma voz em que vibrava a
indignação.
- Foi a senhorita quem me autorizou, respondeu Scott em um tom cuja insolência ecoava a cólera
da rapariga.
- Quando?
Os dois se olharam fixamente e pareciam trocar interrogações que ficavam sem resposta.
- Logo que a senhorita me olhou pela primeira vez autorizou-me a convidá-la para cear comigo.
Estas palavras escaparam espontaneamente dos lábios do rapaz, que ficou surpreendido e
mesmo um pouco assustado ao dar conta do que acabava de dizer. Ana não opôs a réplica
contraditória com que Scott contava. O movimento quase violento, mal iniciado pela moça, foi
sustido. Nos seus olhos operou-se uma transformação. Os fulgores da cólera dissiparam-se e
uma suavidade em que apareciam vislumbres, mesmo de ternura, causou em Scott uma
inesperada e forte emoção. Sentiu instantaneamente que alguma coisa nova entrara em sua vida.
Aquele duelo sustentado entre ele e Miss Maitland acabava de ser interrompido de súbito, pelo
que subconscientemente ele apreendia como uma revelação. Tomando o braço de Ana, o rapaz
disse-lhe com uma voz entrecortada pelas profundas emoções que o agitavam:
- Não negue. A senhorita já se divertiu muito hoje à minha custa. Seja leal e sincera para comigo.
Vamos.
Por seu turno Ana sentia que em poucos minutos entre ela e aquele homem, até então
completamente desconhecido, se haviam estabelecido vínculos que os tinham feito passar
vertiginosamente da formalidade da apresentação para uma 37
intimidade que já ia eliminando as barreiras convencionais. Retirando o braço, que Scott prendia
ao seu, a moça recuou alguns passos e, fixando-o de modo estranho, disse-lhe:
- Mas será seguro confiar e ser leal?
- Seguro ou não, a senhorita terá de fazê-lo, respondeu Scott em tom positivo.
- Está muito bem, disse Ana à maneira de quem se dispõe a afrontar todos os riscos, confiarei e
vou dar-lhe a prova.
Tirando de entre as plumas que lhe ornavam os punhos o programa, abriu-o e mostrou-o a Scott,
tal qual ele o fizera com o seu. O rapaz curvou-se e, lendo, verificou que Miss Maitland, a partir do
intervalo da ceia, só reservara danças para duas pessoas. Uma mulher, e sobretudo uma mulher
sagaz como Ana, teria imediatamente compreendido tudo. Mas Scott, como homem, era
naturalmente mais obtuso nessas coisas e precisou de explicações.
- Devo concluir então que a senhorita contava comigo para a ceia? Previa já que eu viria buscá-
la?
Ana respondeu sacudindo a cabeça em Sinal de assentimento.
Uma situação, de todo imprevista, deparava-se a Scott. Viera ter com Ana na esperança de tirar
uma desforra da maneira fria e severa com que ela o tratara no princípio da festa. Entrara em
combate com a moça, procurando forçá-la a respeitá-lo diante da demonstração da sua força de
ágil palestrador que sabe pôr em xeque o adversário. Do duelo resultara, entretanto, coisa muito
diferente do que Scott esperava. E, agora, sentia-se perturbado diante do que se esboçava,
abrindo-lhe perspectivas que não sabia até onde poderiam levá-lo.
Um curioso estado de pânico punha o rapaz em sobressalto. O seu íntimo desejo seria correr dali
como um
38 homem que se sente em perigo de vida. Entretanto, tinha a consciência profunda de que nem
todas as forças deste mundo seriam capazes de livrá-lo da influência magnética daquela rapariga,
cujos olhos, que pareciam dardejar raios dourados, o fascinavam e que agora o colocara
positivamente à disposição do seu capricho. A situação tornara-se um pouco forte demais para a
capacidade de resistência de Scott. Teria sido difícil prever o desfecho do episódio, se Ana não
tivesse tomado a iniciativa de trazer de novo o rapaz ao seu equilíbrio normal. Fê-lo chamando-lhe
a atenção para o fato de que o seu xale continuava nas mãos de Scott e ela à espera de que o
pusesse sobre os ombros. O rapaz colocou o xale evitando afetadamente tocar a pele branca de
Ana que, tomando graciosamente com as pontas dos dedos o braço que Scott lhe oferecia, seguiu
em sua companhia para a mesa da ceia. A conversa entre os dois tornara-se forçada. No começo
da ceia houve um silêncio prolongado, a que se seguiu uma palestra sobre assuntos gerais e que
ambos pareciam entreter com a preocupação de evitar a recrudescência do penoso silêncio. Mas
logo que se levantaram da mesa e foram dançar, a situação modificou-se sensivelmente. Sem que
dessem por isso, Ana e Scott voltaram ao tema pessoal do diálogo vibrante, que assinalara o seu
primeiro encontro naquela noite. Absorvidos pelo mútuo interesse que a questão lhes
apresentava, os dois dançavam ligeiramente em movimentos subtis, como se o assoalho não
existisse e apenas duas almas volteassem pelo salão, estabelecendo entre si vínculos que
insensivelmente se iam multiplicando e robustecendo.
- vou fazer-lhe a observação mais vaidosa que é permitida a um dançarino.
- Sim, os nossos passos harmonizam-se admiràvelmente, interpôs Ana, adivinhando o que Scott
pretendia dizer-lhe. 39
Realmente, o corpo esbelto e ágil de Miss Maitland movia-se guiado com admirável destreza por
Scott, que era por certo um exímio coreógrafo.
A maneira como a moça se adiantara, antecipando a sua observação, desconcertou o rapaz que
não encontrou melhor saída para a dificuldade se não perguntar-lhe se não o achava um perfeito
asno.
- Por que?
- Não sei, mas o que é certo é que esta noite me sinto completamente idiota.
Ana, com a sua sagacidade feminina, pressentiu que, estavam chegando a um ponto crítico no
terreno pessoal, que haviam tão cuidadosamente evitado durante a ceia.
- O que o senhor diz não é muito lisonjeiro para mim,
- Nunca me senti tão pouco inclinado à lisonja como esta noite em relação à senhorita.
- Mas que fiz eu para produzir esse efeito sobre o senhor?
- Eu é que lhe pergunto o que fizemos ambos para que eu ficasse nesse estado de espírito.
- Pois olhe, pelo meu lado devo dizer-lhe que não me sinto idiota.
- Sim, creio bem no que diz. Estou certo, porém, que também a senhorita se está sentindo um
pouco diferente esta noite. Não é verdade?
Ana ficou silenciosa e Scott quis forçá-la a dizer alguma coisa, insistindo na pergunta.
- Confesse que tenho razão. Prometeu-me que seria sincera e leal.
A moça levantou os olhos e esteve alguns momentos a fixá-los sobre o seu par. Sentia que a
questão pessoal entre os dois não podia ser posta de parte e é bem provável
40
também que ela não o desejasse fazer de todo. Entretanto, respondeu vagamente:
- É possível...
- Mas a senhorita sentirá essa diferença por minha causa ou pela sua, ou antes, por causa de nós
ambos? Não precisa responder-me, porque agora já sei que é devido a nós dois. Devo
acrescentar que o compreendi, desde o primeiro momento em que os nossos olhos se
encontraram nesta sala.
Miss Maitland apenas respondeu com um ligeiro gesto afirmativo.
- Então, se é assim, - por que nos fez perder tanto tempo evitando-me?
A rapariga esquivou-se a uma resposta e Scott voltou à carga insistindo:
- Vejo que está voltando a fazer o mesmo jogo comigo. Pois devo dizer-lhe que pelo meu lado não
perdi completamente o meu tempo.
- Conte-me então o que fez.
- Estive fazendo serviço de investigador. Procurei saber tudo que pude a seu respeito.
- E o que descobriu? perguntou Ana sorrindo.
- Muita coisa.
- Não tivesse eu a consciência tão límpida como a de uma criança e deveria estar aterrorizada
com o seu inquérito.
- Pergunte-me o que quiser saber.
- Mas, que hei de querer saber?
- Ora, aquilo que descobri a seu respeito.
- Ah, sim, disse ela rindo, é natural que eu deseje saber. Qualquer pessoa teria o mesmo desejo.
- Nesse caso formule as suas perguntas, insistiu Scott.
- Bem, então, sr. Kentish, queira ter a bondade de dizer-me exatamente o que apurou a meu
respeito. 41
Scott sorriu e os dois se achavam tão próximos que os sorrisos pareciam misturar-se. Entretanto,
o rapaz ainda se aproximou um pouco mais.
- Quem é a senhorita, a moça flamejante? Ou melhor, o que imagina ser com todas essas plumas
que a adornam?
Sem dar sinal de impressionar-se com a pergunta que o rapaz lhe dirigira à queima-roupa,
murmurando-lhe quase ao ouvido, Miss Maitland respondeu com um sorriso despreocupado:
- Sou apenas uma rapariga moderna. Não gosto de tipos célebres de mulheres antigas.
Cleópatras, Joanas d'Arq, Bierretes e outras coisas de tempos idos não me interessam. Preocupa-
me apenas ter eficiência para produzir sobre os outros as impressões que desejo causar-lhes.
Pouco se me dá do resto.
- Pois então fique satisfeita, porque a sua fantasia, sem se moldar em nenhuma das fantasias
clássicas, é a mais impressionante que aqui se vê esta noite.
- Muito obrigada. Devo retribuir-lhe o cumprimento ou seria demasiado banal fazê-lo?
- Estou com uma fantasia do século XVIII. Não posso, portanto, corresponder ao seu ideal
ultramoderno.
- Não; seja qual for o motivo, acho-o com aparência perfeitamente moderna. Talvez seja porque o
seu traje combina perfeitamente com o seu tipo.
- Penso que quando alguém se fantasia, deve procurar colocar-se ao nível do tipo que pretende
personificar. Não acha?
- com certeza. E penso que não é só com as fantasias, mas em tudo na vida, devemos fazer o
mesmo. Não concorda comigo?
- Sem dúvida, respondeu Scott rindo. Devo acrescentar que foi isso a primeira coisa que descobri
a seu respeito. Já sei que faz bem tudo em que se mete.
42 - Foi Kathie quem lhe disse isso. Ela tem uma transbordante admiração pelas minhas
habilidades.
- Realmente, nela encontrei uma excelente fonte de informações. Quer perguntar-me mais alguma
coisa? Não acha melhor conversarmos agora sentados?
- Tem razão. A sala está muito cheia e palestraremos melhor fora deste turbilhão.
Ao entrarem no corredor encontraram Nancy Hanshaw que, afastando-se do rapaz que lhe dava o
braço, se aproximou e murmurou a Scott:
- Reservo-lhe a décima terceira dança.
- Está muito bem, respondeu o rapaz olhando para Ana que se voltara rindo.
- Ainda há quem diga que o 13 é um número infeliz... disse Miss Maitland olhando para Scott com
ar de motêjo.
No salão de palestra Scott avistou Mrs. Maitland e Kathie. Não entrava nos seus planos formar ali
um círculo de família. Esperara quase toda a noite para poder conversar com Ana e não iria
agora, sacrificar o objetivo já atingido.
- Há umas cadeiras e mesas no patamar, disse puxando Miss Maitland pelo braço. Se quiser,
poderemos ir tomar café e lá conversaremos à vontade.
Sem responder, a moça deixou-se conduzir até o lugar proposto por Scott. Ali, dois ou três pares
sentavam-se junto a pequenas mesas, mas nenhum deles estava tão próximo que pudesse
embaraçar o curso da aventura em que os. dois se iam lançando naquela noite.
Logo que se sentaram, Ana tomou a direção da palestra.
- Conte-me agora tudo que apurou a meu respeito. Já sei que lhe disseram que faço bem tudo
que me proponho a fazer. E que mais lhe contaram? 43
- Não, isso não foi a primeira coisa que descobri. Antes de Kathie me falar das suas habilidades,
sua mãe já me havia contado que a senhorita tem um temperamento incorrigivelmente autoritário
e mesmo despótico.
- Sim... e o que mais?
- É verdade, disse-me Mrs. Maitland que a senhorita em muito pouco tempo estaria dominando
Upper Norton.
- Que flagelo estou destinada a ser. observou Ana sorrindo.
- Não, pelo contrário. Sua mãe evidentemente se orgulha do seu temperamento dominador.
- E o senhor acha que sou dominadora e autoritária?
- Ah, tenho toda a certeza de que é! respondeu Scott sem hesitar. Ana o interrompeu com um
sorriso, mas Scott não a deixou falar e prosseguiu: peço-lhe que não tente aplicar-me os seus
métodos de autoritarismo.
- Então o senhor também é autoritário?
- com toda certeza já ouviu dizer isso de mim.
- Pelo que vejo, acha que eu também estive fazendo uma investigação a seu respeito.
- Sei que o fez:
Scott compreendeu que as suas últimas palavras envolviam um desafio a uma rapariga com a
índole e o espírito de Ana. Julgou mesmo ter ultrapassado um pouco a meta e esperava uma
reação violenta por parte dela. Miss Maitland não reagiu, porém. com um sorriso vago, disse
simplesmente:
- O senhor começou, continue agora.
- Pois vou continuar, respondeu Scott contando os dedos. A senhorita tem temperamento
despótico, sai-se bem em tudo que se mete, é portanto muito eficiente; é secretária do diretor-
gerente de uma grande firma que negocia em couros na City...
44 - Isso foi Maddie Cameron quem lhe disse, interrompeu Ana.
- Não me interrompa tanto, peço-lhe. Desse modo perturba o meu pensamento. Já lhe disse três
coisas, vou agora dizer-lhe mais uma. Sei que é uma secretária muitíssimo eficiente que, percebe
vencimentos tão grandes que precisa transportá-los todas as sextas-feiras em caminhão. Estou
também informado de que seu patrão não quereria perdê-la, nem para receber uma indenização
de um milhão de libras. Enfim, já sei que a senhorita é uma moça que já conquistou na vida o
mais brilhante sucesso. Agora, diga-me se não dei conta do meu trabalho de investigador
satisfatoriamente. E estou ainda no começo.
- Ora, isso tudo nada significa. Inclui-se apenas no meu programa de fazer bem tudo quanto tenho
a fazer, observou Ana displicentemente. Diga-me coisas mais interessantes, para que eu verifique
se realmente sabe fazer uma investigação. Dando o desconto aos exageros, o que disse até
agora está certo. Mas o que mais sabe?
- Então a senhorita agora está tão interessada em ouvir o meu relatório?
- Depois o senhor ouvirá o que lhe tenho a dizer, respondeu Miss Maitland maliciosamente.
- Agora tenho alguns fatos, que aliás são evidentes, disse Scott fazendo uma pausa.
- Ah! sim?
- São coisas de caráter ainda mais pessoal.
- Tanto melhor.
- Os homens interessam-se muito pela senhorita e ao seu redor andam dúzias de pretendentes.

- O seu inquérito parece ter sido feito muito a fundo.


- Quanto a essa parte -da minha informação, obtive-a diretamente. Bastaria observar como todos
os homens neste baile procuravam acercar-se da senhorita. 45
- Ora, isso foi apenas por ter eu aparecido aqui hoje pela primeira vez, disse Ana sacudindo os
ombros e com ar de indiferença.
- Foi exatamente o que me disse uma das moças com quem dancei, retrucou Scott.
Com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, Ana fitava o rapaz com um sorriso enigmático.
Perturbado pela insistência do seu olhar, Scott perguntou-lhe o motivo daquele estranho sorriso.
- Estava procurando adivinhar qual dos seus pares teria feito essa observação.
- Não se preocupe com a pessoa que disse o que lhe repeti. Ela fez ainda muitas ponderações
sensatas.
- E um tanto pérfidas também, sugeriu Ana completando rapidamente a frase de Scott.
Os dois olharam-se de novo. Tinham estado a rir, mas agora apenas sorriam e o próprio sorriso se
foi apagando em uma expressão indefinida, em que transpareciam traços de ternura. Scott
involuntária e mesmo insensivelmente se aproximou mais dela.
- Não me olhe deste modo! exclamou ele subitamente ao perceber em Ana uma estranha
expressão de melancolia.
Sem dar resposta, a jovem voltou a face para o ombro e após alguns momentos de silêncio pediu
um cigarro ao rapaz. Quando este enfiou a mão no bolso para tirar a cigarreira, Ana observou que
a mão lhe tremia nervosamente.
Fumaram, passando a conversar sobre assuntos banais, pelos quais nenhum dos dois se
interessava. Depois dirigiram-se ao salão, onde dançaram quase sempre em silêncio. Afinal
quebraram esse silêncio com uma conversa em voz baixa. Os temas abordados eram as eternas
verdades da vida e do amor. Scott e Ana desenvolviam as suas idéias filosóficas sobre tais
assuntos, mas não discorriam como
46 filósofos. Falavam como duas criaturas moças, em cujas palavras se refletiam conclusões a
que a experiência os tinha levado e que, em última análise, os satisfaziam amplamente. Foi Ana
quem rompeu o silêncio perguntando:
- Quer ouvir agora a minha parte?
- com certeza e com muito prazer. Ainda mesmo que haja nisso muita coisa desagradável para
mim.
- Não é tão mau assim. A minha investigação autoriza-me a dizer-lhe que é um bom detetive.
Além disso, é um homem que tem tido sucesso na vida e muito êxito na sua profissão. É também
um namorador incorrigível e pouco escrupuloso. Faz a corte a todas as moças, sem ter outro
intuito senão o de divertir-se.
- Oh, esta sua informação está toda errada. Sou um homem muito ocupado para ter tempo para
namorar.
- Pois olhe, sei que o seu caminho está juncado de corações dilacerados.
- Se a senhorita me mostrar um só, darei as mãos à palmatória.
- Sei ainda que é um homem cujo espírito se caracteriza por um elegante cinismo e as mulheres
são coisa que para o senhor apenas representa um passatempo.
Por alguns segundos Scott ficou em silêncio, exclamando em seguida:
- Isso também é inexato. É preciso que se lembre de que sou um homem de vinte e cinco anos
apenas.
Ficaram em silêncio e assim fizeram a volta do salão. Ana mais uma vez tomou a iniciativa de
falar.
- Disseram-me também que o senhor é um homem que não tem compromissos nem ligações. A
rapariga lançara a questão de um modo vago, como se quisesse deixar a Scott a liberdade de não
lhe dar resposta. Mas o rapaz prontamente replicou:
- É verdade. Sou na vida um homem inteiramente livre. Vivo só e não tenho família. 47
- Tenho pena do senhor. Deve ser triste não ter família. Vivo muito bem e sou muito feliz com os
meus, disse Ana imprimindo à voz um tom carinhoso.
- As recordações que tenho de meu pai, retrucou Scott, não são realmente muito agradáveis.
Quanto à minha mãe, era uma excelente senhora.
A nova geração não é expansiva na expressão dos seus sentimentos. Mas apesar da maneira fria
como Scott falara de sua mãe, Ana percebeu que aquele rapaz de vinte e cinco anos, mergulhado
em uma vida ativa de trabalho e de mundanidade, devia muitas vezes sentir saudades daquela a
quem se referia de um modo tão indiferente. Assim, a moça, propositadamente, deixou que o
silêncio se prolongasse, até que Scott quisesse falar.
- Realmente não tenho coração, porque nada possuo para ocupar os meus sentimentos. Aliás foi
a senhorita mesma que me acaba de dar essa informação a meu respeito. Entretanto, também
não parece ter muito coração. De outro modo, como explicar a repulsa de tantos candidatos
fascinantes que se lhe têm apresentado?
- Se fossem tão fascinantes, acredita que eu os rejeitasse?
- O fato também me causou surpresa, mas me disseram que é devido à circunstância de a
senhorita não ter ainda coração.
- A explicação me parece um pouco precipitada...
- Talvez; entretanto outros atribuem a sua atitude exatamente ao seu coração. E confesso que
essas explicações contraditórias me embaraçam em seguir a pista.
- O senhor chegou a alguma conclusão?
- Penso que os candidatos devem ter tido alguma culpa da repulsa que sofreram de sua parte.
- Bem vejo que tem faro. É uma verdadeira vocação para detetive. E, depois de uma pausa, Ana
prosseguiu: Não tem inclinação para o casamento?
48 - Não, não tenho. Pelo menos não encaro com simpatia o casamento, se o considerarmos pela
forma como é usualmente encarado.
Sem dar resposta, Miss Maitland voltou-se, como se estivesse passando em revista a multidão
que dançava no salão. Ao cabo de algum tempo disse:
- Não é realmente horrível pensar no número de casamentos estúpidos que se realizam?
- Estúpidos realmente. A sua expressão é a verdadeira para o caso.
- Creio que a minha reputação de mundanidade decorre das minhas idéias sobre o casamento.
- Quais são as suas opiniões sobre esse assunto?
- Não casar, enquanto não se pode casar bem, respondeu Ana com firmeza e resumindo nessa
sentença toda a sua teoria do casamento.
- Bravo, camarada! As suas idéias sobre casamento coincidem rigorosamente com as minhas.
Entretanto, quando as exponho, os meus amigos dizem que sou um frio calculista, um homem
sem coração. Há pessimistas e cínicos que, ao ouvirem o que digo, me declaram só haver um
meio de não casar mal e esse é não casar nunca. A maior parte das pessoas não compreende
como se deve organizar a vida. Daí os equívocos e as desgraças.
- É verdade. E devo acrescentar que a grande maioria não se preocupa em pensar na maneira de
organizar a vida. Vive à mercê das circunstâncias, sem nunca fazer um esforço para subordinar os
acontecimentos a um plano pré-estabelecido.
- E não é loucura viver assim? Há muita gente que, se conduzisse os seus negócios como dirige a
vida, estaria bem depressa na falência.
- Essa gente não compreende que a vida é afinal de contas apenas um negócio, afirmou Ana.
Ninguém no uso da razão se lança em um negócio sem grande probabilidade 49
de levá-lo a termo com êxito. Por que não fazer o mesmo na vida? A única salvaguarda para
evitar o desastre é o meu princípio de só fazer aquilo que se pode fazer bem.
- Sem dúvida, tem toda a razão. A vida é um negócio como qualquer outro. O único meio de
acertar consiste em última análise na observância da sua regra.
- Então o senhor acha que em certas condições o casamento é viável?
- com certeza, desde que as partes interessadas nesse negócio o abordem em uma atitude de
bom-senso, análoga àquela em que se tratam todos os outros negócios. E após alguns segundos
de silêncio, em que foram caminhando pelo salão, Scott concluiu as suas ponderações,
perguntando abruptamente a Ana: E a senhorita acredita em amor e nessas outras caraminholas?
- Como não acreditar em uma coisa de que se está tendo o exemplo por toda a parte? disse ela
olhando-o fixamente.
- Bem, eu também acredito, mas.
- Não consente que isso pese demasiadamente na sua vida, não é verdade? disse Miss Maitland,
encarregando-se de concluir a frase de Scott. O que não admite, compreendo bem, é fazer do
amor uma causa de sofrimento e a origem de uma vida monótona e medíocre. Não é isso?
Scott ia responder, mas a música, parando repentinamente, cortou-lhe o fio do pensamento.
Tomando Ana pelo braço, o rapaz convidou-a a seguir depressa, a fim de que alguém não
ocupasse o lugar no "hall" do patamar, onde podiam conversar tão à vontade. Correram como
duas crianças, mas chegaram tarde. A mesinha estava ocupada e resolveram ir conversar na sala
da ceia.
Enquanto tomavam sorvetes, Scott reabriu a discussão do tema interrompido no salão de dança.
- O que é que a senhorita quer dizer quando fala em casar bem?
50 Ana esteve algum tempo pensativa, a mexer o sorvete com a colherinha. Depois voltou-se
vagarosamente para ele.
- A sua pergunta envolve uma série de questões. Uma pessoa que corresponda às nossas
aspirações, bastante dinheiro e outras coisas que bem pode imaginar.
- Qual a condição mais importante e que deve ter precedência? Será o dinheiro?
- Não, respondeu Ana com firmeza. A pessoa é a primeira coisa a considerar-se, e com um sorriso
concluiu: o dinheiro vem depois.
- Perfeitamente, compreendo, mas a senhorita não se casaria com um homem pobre.
- Certamente que não, respondeu ela sem vacilar. Tenho visto as conseqüências dos casamentos
pobres.
- Tem toda a razão, disse Scott sacudindo a cabeça. É realmente doloroso o espetáculo dos
loucos, que se casam na pobreza para agravar ainda mais a sua situação.
- Loucos? exclamou Ana. A expressão é demasiado suave para caracterizar esses indivíduos.
Conheço inúmeros casos de moças que trabalhavam, ocupando excelentes lugares, com ótimos
vencimentos, dispondo de dinheiro para passar bem, vestir-se elegantemente e até com certo
luxo, divertir-se, gozar férias em viagens, freqüentar bailes, concertos, teatros, ter enfim uma vida
completa, alegre e sadia e que se foram arruinar, apaixonando-se por miseráveis que ganhavam
meia dúzia de patacas e com os quais se casaram, vendo no inferno desses casamentos pobres
desfazer-se como fumo tudo que tinham na vida.
- Compreendo sua indignação. Eu também me enfureço com esses homens pobres que vão fazer
a infelicidade de outras criaturas. A senhorita tem razão, não são apenas loucos, são também
criminosos. 51
- Sim, criminosos. E as pobres moças, vítimas desses malvados, são levadas à loucura de
casamentos ruinosos pelas idéias romanescas que lhes entram no cérebro. Casam-se como
alucinadas e quando despertam à realidade, estão obrigadas a contar os vinténs para manter um
lar miserável e têm as mãos estragada's pela cozinha e pelo resto do serviço doméstico. No fim
de um ano estão a carregar uma criança ao braço e com a outra mão a limpar o fogão...
A veemência de Ana fez com que Scott a encarasse rindo. Percebendo o pensamento do rapaz, a
moça riu também.
- É isso mesmo, observou Scott. Quando as infelizes compreendem que o romance se
transformou em uma condenação perpétua, já é tarde para escapar ao flagelo do casamento
pobre.
- O que me admira é que moças que conheceram um pouco o mundo, como tantas que o senhor
deve ver no meio dos negócios, possam ter tanta falta de senso comum, que se deixem levar à
ruína e à desgraça por uma paixão.
- Entretanto os homens fazem o mesmo, disse Scott sorrindo.
- É verdade. Em matéria de amor os homens são tão idiotas como as mulheres, observou Ana.
- É sempre a mesma história. Homens solteiros e mulheres solteiras felizes, independentes e
vivendo confortàvelmente, casam-se sem pensar que os seus recursos são insuficientes para
manter a situação que torna feliz a vida de família. Trocam uma vida tranqüila e alegre pelo
inferno de um lar pobre. As mulheres reclamando o que não podem obter, as crianças sofrendo
privações, os fornecedores pedindo o pagamento de contas que não podem ser satisfeitas. Enfim,
uma vida de perpétuo constrangimento e angústia, de mediocridade e de tédio.
52 - Tudo isso porque dois idiotas não compreenderam que ninguém se deve casar sem ter
primeiro adquirido uma situação econômica indispensável à formação da família.
- É estranho, concluiu Scott pausadamente, como nós dois pensamos do mesmo modo.
- Não acho nada estranho. É muito natural. Somos duas pessoas que temos vivido com os olhos
abertos e assim temos podido observar o que se passa em torno de nós.
- Sim, insistiu Scott, mas por isso não é menos verdade que pensamos do mesmo modo.
Ana respondeu apenas com um movimento afirmativo de cabeça. Scott, aproximando-se mais
dela, disse-lhe de súbito:
- Mas por que, moça flamejante, perdemos tanto tempo sem nos aproximar um do outro?
- E por que o senhor o fez? A culpa foi principalmente sua.
- Não falemos nisso, retrucou Scott. A senhorita repeliu-me todas as vezes que procurei
aproximar-me.
A música que parando já interrompera uma vez o rapaz, cortou-lhe agora o curso da palestra. O
som do saxofone violentamente fez com que Scott e Ana tivessem um sobressalto. A rapariga
levantou-se dizendo:
- Agora é o seu afortunado 13.
Scott olhou para Ana sem perceber o sentido das suas palavras. Esquecera-se por completo de
Nancy Hanshaw e da dança que ela lhe reservara.
- Dança n. ? 13. Não se lembra? disse Miss Maitland com um sorriso malicioso.
Scott murmurou a meia voz uma interjeição e falando alto disse:
- Voltarei logo que puder ver-me livre. Peço-lhe que me espere. Sim?
Ana prometeu com os olhos. 53
CAPITULO iii
A estrela de Scott, que invariavelmente o protegia tanto nos negócios como na vida mundana,
parecia tê-lo agora abandonado. Não pudera evitar o compromisso que lhe impusera Nancy
Hanshaw ao informá-lo de que lhe reservara a dança n. ? 13. Contava poder entretanto escapar-
se logo que se houvesse desobrigado daquele dever de cortesia, mas Nancy estava disposta a
executar um plano, a fim de conservar o rapaz em sua companhia o mais longo tempo possível.
Assim, Scott, colocado sob as injunções do decálogo que regula os deveres sociais do homem
para com a mulher, não se podia furtar à obediência ao mandamento que preceitua ao homem o
dever de ser sempre atencioso para com uma senhora, ainda que lhe resultem dissabores e
inconvenientes.
Esse código foi, aliás, estabelecido pelo próprio homem nos tempos da cavalaria, quando o ideal
feminino o exaltava. Cabe-lhe pois a culpa por ter assim imprudentemente dado à mulher um
poder subtil, mas nem por isso menos temível e do qual durante muitos séculos ela tem sabido
tirar partido, para exercer de fato na sociedade um predomínio que as instituições e as leis
aparentemente atribuem ao outro sexo. Há, sem dúvida, casos excepcionais de mulheres que não
abusam das prerrogativas que lhes são conferidas pelo código da cortesia. Nancy Hanshaw,
porém, não era uma dessas exceções. Pertencia à classe em que se incorpora a esmagadora
maioria do seu sexo.
Espicaçada nos seus sentimentos de vaidade e no seu instinto de mulher pelo sucesso de uma
rival e irritada sobretudo por ver aquela influência exercer-se sobre um homem que já considerava
propriedade sua, Nancy formara o firme propósito de reter aquele homem ao seu lado, de
54 modo a impedir tanto quanto pudesse a sua aproximação da outra que a enciumava e enchia
de inveja. Como em geral acontece com a imensa maioria das mulheres quando estão sob a
influência do ciúme, Nancy Hanshaw achava-se em um estado mental histérico. Todas as
considerações de conveniência eram obliteradas no seu espírito pela idéia fixa de defender-se da
concorrência da rival. O instinto do sexo, puro e simples, atuava nela, afirmando-se por sob o
verniz da civilização e da cultura.
Achava que Scott era um homem que lhe devia pertencer e não podia conformar-se com a idéia
de que outra mulher, e sobretudo uma mulher cujo sucesso lhe causava inveja, pudesse
arrebatar-lhe a presa cobiçada. Pouco se importava Nancy com a impressão que as suas atitudes
viessem a causar em outrem. Que Scott fizesse um mau juizo dela e percebesse bem os seus
intuitos, era coisa que não a preocupava naquela ocasião. Queria a todo transe impedir que Scott
conversasse com Ana e, para atingir o seu objetivo, não media conseqüências, nem ligava
importância aos riscos de comprometer a sua própria situação com o rapaz. Como ocorre com
muitas mulheres ciumentas, Nancy naquele momento tinha muito menos desejo de aproximar
Scott de si, que de afastá-lo de Ana.
Durante a dança, Nancy mostrava-se muito alegre e Scott, absorvido pelos seus pensamentos,
sentia-se contente em ver que ela voltara à calma, não dando mais sinais da irritação que
anteriormente patenteara, sob a influência do sucesso mundano de Ana. Depois da dança
seguiram para o salão de palestra onde, sentados no sofá, estiveram a conversar longamente. O
bom humor da moça punha agora Scott à vontade e o deixava expandir-se sem reservas e sem
receios. Aos primeiros acordes da música anunciando uma nova dança, o salão esvaziou-se, à
medida que os pares foram saindo para dançar. Afinal, Scott e Nancy ficaram a sós. O rapaz
esperava que alguém viesse tirar Miss Hanshaw 55
mas o par não apareceu e os dois continuaram a palestrar. Por fim, desejando pôr termo à
conversa, Scott, observou:
- Parece que ambos fomos esquecidos pelos' nossos pares. Levantando-se despediu-se
acrescentando: vou procurar a minha dama.
- Você não está dizendo isso a sério.
- Sem dúvida, muito seriamente. Tenho de procurar a moça que me concedeu esta dança. Quem
será o felizardo que vai dançar com você?
- Se ele não me pode encontrar porque eu estou aqui com você, é evidente que você mesmo terá
de ser o felizardo.
Ouvindo o que Nancy lhe dizia e percebendo a mão dela passar-lhe pelo punho e apertar-lhe os
dedos por entre as rendas da sua manga, Scott sentiu uma certa irritação. Havia no tom em que a
rapariga lhe falara o indício de uma intenção bem definida. O rapaz queria ir quanto antes
encontrar Ana e entretanto não desejava que Nancy percebesse o seu pensamento. Isso ainda
mais o contrariava, fazendo-o olhar com uma certa rispidez para o elegante par cujo propósito em
forçá-lo a dançar mais uma vez não podia ser assunto de dúvida. Disfarçando o mau humor com
um riso artificial, Scott pôs Nancy de pé e disse-lhe:
- Vamos para o salão. Ali encontraremos o seu par. Quem é ele, Nancy?
Miss Hanshaw fixou sobre o rapaz os seus olhos escuros, com uma expressão de ternura, cujo
poder de fascinação ela bem conhecia.
- O meu par? Certamente que é você. Pois então havia de mandá-lo embora depois de uma só
dança? Reservei três para você.
- No entanto, minha cara amiga, disse Scott encarando-a com ar visivelmente contrariado, como
eu não 56 sabia que me havia reservado três danças, comprometi-me com outras moças.
- Mas como você não previu isso? Não é nosso costume dançarmos juntos muitas vezes em todas
as festas?
Scott não podia negar o que Nancy acabava de dizer, porque realmente eram pares constantes
em todos os bailes em que se encontravam.
- Não é fato já estabelecido entre nós dançarmos sempre de cada vez três e quatro danças
seguidas? continuou Nancy que também não podia ser nesse ponto contestada pelo rapaz, que
aliás teria tido o direito de alegar não ter sido ele quem lhe pedira para dançar, mas que fora ela
quem lhe designara a décima terceira dança. Qualquer outra moça teria resolvido o caso, dando a
Scott imediata liberdade para ir procurar o par com quem se comprometera, fosse ele quem fosse.
Nancy, porém, não tinha temperamento para resolver dificuldades sacrificando-se. Voltando-se
para Scott, disse-lhe em tom de imperativa interpelação:
- Então que quer fazer?
O rapaz, colocando-se à altura do grande estilo da época a que pertencia a sua fantasia, curvou-
se em profunda cortesia dizendo:
- Minha senhora, não é a mim que cabe decidir, e com uma risada acrescentou: Assim se fazia no
grande século.
Scott esperava que a brincadeira lhe abrisse caminho para livrar-se daquela situação
embaraçosa, mas Nancy estava decidida a ganhar a partida a todo transe; segurando o braço
dele, disse-lhe:
- Então o caso está resolvido, vamos dançar.
Scott ficou furioso. Não havia combinado dançar com Ana, mas estava certo de que ela o
esperava e ele também desejava imensamente ir encontrá-la quanto antes. 57
Deixara em branco o seu programa a partir da ceia e Ana fizera mais ou menos o mesmo. Entre
os dois se estabelecera um entendimento. Aquela aventura, apenas iniciada, fascinava o rapaz,
que nunca se interessara tanto por uma mulher como por aquela rapariga original e fascinante.
Fosse como fosse, iria ter com ela.
- Sinto muito Nancy, mas estou comprometido para esta dança. Dançarei com você mais tarde.
- com quem está comprometido? perguntou a moça, interrompendo-o de súbito.
Observando Scott com um olhar ciumento, Nancy julgou ver seus lábios moverem-se para
pronunciar um nome, mas o rapaz se conteve, a fim de não provocar a repetição das expressões
de hostilidade com que Nancy anteriormente se referira a Ana. A maior parte dos homens recorre
a todos os meios para evitar essas cenas, e Scott estava resolvido a enfrentar as perguntas subtis
a que o sujeitaria a investigação inquisitorial de Nancy. Esta, porém, em vez de insistir no
interrogatório perguntou-lhe abruptamente:
- Você está então disposto a deixar-me aqui?
Sem dúvida Scott estava resolvido a fazê-lo, mas não achava fácil dizê-lo. Assim, o rapaz se via
em uma situação. verdadeiramente embaraçosa, sem encontrar meio de livrarse de uma rapariga
ciumenta, a cuja impertinência nada podia opor, a não ser um gesto positivamente brutal. Para
inibi-lo de apelar para esse recurso extremo, Scott tinha atrás de si toda a força atávica que regula
as relações dos homens com as mulheres e que chegou até nós, de geração em geração,
consolidada por uma corrente tradicional que emana da corte do rei Artur. As mulheres ignoram
quanto o seu poder sobre os homens corre por conta da influência hereditária dos códigos da
cavalaria.
Mas Ana não compreendia isso e enquanto na sala do pavimento superior esperava sentada por
Scott, ia 58 ficando magoada pela sua demora. Entretanto, a moça ainda acreditava que ele tinha
por certo um motivo forte para retardar-se. Roddy Gameron, que andava à procura dela, entrou
nesse momento e levou-a para dançar. Iam os dois pelo corredor do salão de baile, quando
cruzaram com Scott e Nancy, tendo Ana podido ouvir o rapaz dizer:
- É uma maçada essa combinação, mas ela está à minha espera para dançar.
- Mas eu também reservei esta dança para você. Voltando-se com ar de surpresa ao ver Ana,
prosseguiu exclamando: Oh, lá vai a Miss Maitland com as suas plumas dançar mais uma vez
com Roddy. Os dois têm estado juntos quase toda a noite. Não sei o que haverá entre eles.
Scott não ouviu o que Nancy dissera e desenvincilhando a sua mão do braço dela correu para o
limiar do salão, procurando com o olhar Ana, que se perdera em companhia de Roddy no meio
dos pares que dançavam.
- Que diabo! murmurou Scott entre dentes, ela bem poderia ter-me esperado. Deveria
compreender que eu iria buscá-la.
Quando o rapaz visivelmente contrariado, voltou para junto de Nancy, esta não podia disfarçar a
satisfação que transparecia no olhar triunfante e na alegria que lhe iluminava a face. com um ar de
domínio, que nada tinha de amável, disse simplesmente a Scott:
- Vamos então dançar agora.
Quando Scott lhe deu o braço para levá-la ao salão, o sorriso de Nancy refletia bem a crueldade
dos sentimentos que a empolgavam, porque ela compreendia perfeitamente o que se passava
naquele momento no espírito do seu par. De fato, Nancy, observava a alma do rapaz como se a
tivesse nas mãos e pudesse analisá-la minuciosamente. Entretanto, a moça dominava-se
exercendo um absoluto controle sobre 59
as suas emoções, que precisava realmente recalcar com energia, porque o ciúme e o despeito lhe
ferviam no cérebro com tal violência que qualquer descuido poderia levá-la a desmascarar
desastrosamente todo o seu jogo.
Durante a dança, a única preocupação de Scott era trocar um olhar com Ana. Afinal cruzou com
ela e pôde verificar que a moça lhe sorrira ligeira, mas significativamente. Scott teve uma
sensação de alívio. Ana evidentemente compreendera toda a situação. Na próxima dança tudo
seria posto em ordem com uma explicação satisfatória. O rapaz só tinha uma queixa de Ana. Não
justificava não ter ela esperado por ele mais alguns momentos. E esse sentimento Scott procurou
exprimir no sorriso com que respondeu ao sinal, quase imperceptível, da rapariga. Estava
resolvido a não consentir que obstáculo algum o impedisse de ir para junto de Ana logo após
aquela dança, que para ele se estava tornando cada vez mais intolerável.
Entretanto, Scott mais uma vez fazia os seus cálculos sem levar em conta o fator, representado
pelos temíveis recursos de Nancy. Esta, antes de acabar a dança, puxou o rapaz para o corredor
dizendo-lhe entre risadas:
- Daqui a pouco estarei com o meu vestido em frangalhos, tantos são os encontrões que estou
levando. Há gente demais nesta sala. Vamos acabar a nossa dança em um lugar mais
desafogado?
- Pois não, disse Scott que depois de ter percebido o sorriso de Ana se julgava capaz de resistir a
todas as manobras de Nancy.
Os dois seguiram dançando pelo corredor, fazendo duas ou três voltas até a porta do salão.
Depois Nancy, sem que o seu par percebesse o que se passava, o foi encaminhando para junto
da porta da sala da ceia. Quando ali chegaram, a moça parou subitamente. Empurrando
60 Scoth para dentro da sala, disse-lhe abruptamente e em tom comovido:
- Scott, que lhe fiz eu? Você tem alguma queixa de mim?
- Não, absolutamente nenhuma.
- Você não está sendo sincero, Scott. Sinto que não é mais o mesmo que costumava ser para
comigo. Então não somos mais bons camaradas?
- Meu Deus, não compreendo o que quer dizer. Certamente, somos excelentes camaradas como
sempre temos sido.
- História! exclamou Nancy, que subitamente perdera o controle dos seus nervos; agitada agora
por uma explosão quase histérica de sentimentos que se sintetizavam no desespero, agarrava-se
febrilmente a Scott.
Mecanicamente os dois recomeçaram a dança valsando de modo automático, e Scott,
reconstituindo mais tarde a cena, a consideraria extremamente imbecil.
- Scott, fomos sempre tão bons camaradas. Passamos juntos momentos tão agradáveis, não é
verdade? Você quer agora acabar com tudo isso e romper comigo?
- Você deve estar perturbada esta noite. Eu não disse nada (que justificasse da sua parte a
suspeita da mudança dos meus sentimentos para consigo.
Scott começava a ficar alarmado. O procedimento de Nancy naquela noite era realmente estranho
e suas atitudes, surpreendentes. O rapaz não sabia de que modo acabaria o que começava a
tornar-se para ele uma "aventura arriscada. Nunca vira Nancy naquele estado e não podia
encontrar explicação para o seu estranho procedimento. Na verdade, a moça parecia estar-se
descontrolando por completo. Dançando, punha-lhe a mão quase ao pescoço e aproximava a sua
face da dele, quase a tocar-lhe. Evidentemente 61 Nancy, pondo de parte todas as outras
considerações, empregava desassombradamente os seus recursos de fascinação para obrigar
Scott a dizer-lhe afinal aquilo que ela nunca conseguira arrancar dele.
- Sinto-me infeliz, Scott, muito infeliz mesmo.
E o rapaz, quase assombrado e positivamente alarmado, viu que Nancy chorava e as lágrimas já
lhe corriam pela face, abrindo pitorescos sulcos na sua "maquillage".
- Pelo amor de Deus, Nancy, não chore assim. Não há motivos para que você esteja triste. Tudo
está correndo tão bem neste baile, há tanta alegria. Se fiz qualquer coisa que a ofendesse,
asseguro-lhe que foi involuntariamente. Mas ainda assim, peço-lhe perdão. Vamos, não chore.
Scott dizia estas coisas apressadamente e só tinha um desejo: ver-se livre daquela situação o
mais depressa possível. Logo que a música parou, o rapaz procurou desembaraçar-se de Nancy,
antes de o corredor ser invadido pelos que vinham do salão, mas a rapariga agarrava, disposta a
levar por diante aquela cena ridícula, não tendo outra preocupação além de satisfazer o seu
despótico capricho.
Entre os primeiros pares que saíram do salão para o corredor, estavam Roddy Cameron e Ana.
Cameron, que vinha rindo alegremente, não prestava a mínima atenção às outras pessoas. Ana,
porém, evidentemente pouco interessada com a jovialidade do seu par, estava atenta e logo ao
entrar no corredor percebeu Nancy e Scott. Este estava inclinado sobre a cabeleira da moça, que
se aproximara muito dele, ao ponto de que a sua saia de vistosos babados se encostava às
pernas do rapaz, a quem Nancy agarrava, pondo-lhe uma das mãos ao pescoço. Desde o
momento em que divisou ao longe o par, Ana identificou logo o alto e elegante Beaucaire e a
pequena e graciosa du Barry. Durante um segundo Ana estacou, mas sem se deter continuou a
caminhar com Roddy e, ao passar por Scott e
62 Nancy, suas faces se coloriram com uma onda de rubor, ao mesmo tempo que em seus lábios
se esboçava um enigmático sorriso.
Era aquele, o homem a quem ela em um momento de inexplicável leviandade mostrara o seu
programa de danças em branco, fazendo-lhe assim uma imprudente confissão. Ana sentia a
vergonha que sempre se manifesta quando pomos de parte convenções e conveniências por
causa de alguma coisa que afinal verificamos não ter tido senão importância passageira para nós.
Esperara durante a metade da décima quarta dança, convencendo-se de que Scott tinha
realmente motivo que justificasse a sua demora. Pensando assim, resolvera mesmo reservar-lhe a
décima quinta, mas agora, diante do que vira no corredor, é claro que semelhante projeto estava
abandonado. Olhando para o seu programa em branco, Ana sentia-se humilhada. Mas não havia
para ela dificuldade em encontrar pares. Sentia que todos os homens estavam desejosos de tirá-
la para dançar.
Dando conta da presença de Ana, quando esta passava pelo corredor, Scott voltou-se de repente
e teve ainda tempo de vê-la subir a escada em companhia do jovem Cameron. A impressão foi
bastante forte para neutralizar todas as influências dos atavismos cavalheirescos.
Desenvincilhando-se quase com rudeza das mãos de Nancy, Scott precipitou-se pelo corredor e
foi galgando os degraus, ansioso por encontrar Ana o mais depressa possível. Roddy e a moça
ainda estavam no meio da escada. A mão de Ana deslisava pelo corrimão. Scott alcançou-a e de
surpresa a segurou. Ana voltou-se e olhou-o de alto abaixo. Scott tinha a fisionomia um pouco
congestionada e o seu aspecto era de inequívoca perturbação. A rapariga, cujos lábios se
afinavam em uma expressão de frieza, fitava-o com olhar hostil. Não podendo conter a emoção,
Scott procurava desajeitadamente encontrar uma fórmula de desculpa. No 63
entanto suas idéias pareciam estar baralhadas e as únicas palavras que pôde pronunciar foram:
- Moça flamejante. escute-me.
Sem lhe dar resposta, Ana voltou-se de novo e continuou a subir a escada em aparente
indiferença. Entretanto, quem a observasse melhor teria notado que sua mão se agarrava mais
nervosamente ao corrimão. Scott, desconcertado, não pôde mais aproximar-se de Ana, já então
assediada por vários homens que lhe pediam para dançar e a quem ela ia distribuindo as danças,
marcando-lhes com iniciais os nomes no seu programa.
Quando afinal Scott conseguiu aproximar-se, Ana já se achava na sala de palestra, sentada no
seu lugar predileto e cercada por um grande grupo de rapazes que a cortejavam, cada um
evidentemente interessado em captarlhe a atenção. Impetuosamente e de modo pouco
cerimonioso, Scott abriu caminho até enfrentar Ana, que o encarou com os lábios cerrados e o
olhar colérico.
- Então, e a minha dança? perguntou-lhe o rapaz disposto a precipitar uma explicação.
Um pouco antes Ana lhe mostrara o seu programa que tinha a metade das danças em branco.
Agora, apresentava-lhe o pequeno "carnet" cheio de iniciais, contentando-se em responder-lhe:
- Sinto muito. Não tenho mais uma só dança livre. Voltou-se abrupta e mesmo quase
insultuosamente, dizendo a Roddy qualquer coisa que o fez rir, enquanto as plumas tremiam na
sua cabeça altiva e dominadora.
Scott não podia compreender a atitude de Ana. Depois da longa palestra que tinham entretido,
estabelecendo relações tão cordiais e entendendo-se mutuamente como pessoas emancipadas
dos preconceitos convencionais, parecia-lhe absurdo ver aquela moça, que o impressionara pela
originalidade e independência de espírito, ligar tão excessiva
64 importância ao que se passara entre ele e Nancy Hanshaw. Não, Ana não tinha o direito de
proceder assim. Deveria ter compreendido tudo e para isto lhe bastava a inteligência que revelara
em conversa com ele. O seu modo de agir era injusto, brutalmente injusto.
Uma violenta emoção dominava o rapaz que, para evitar que os seus sentimentos explodissem
em manifestações inconvenientes e ridículas, teve de fechar fortemente os punhos em um esforço
para dominar os nervos. Entretanto, Scott era incapaz de definir a natureza dessa emoção, nem
podia dizer que forma teria tomado a crise explosiva, por ele em tempo contida com a ação
vigorosa da vontade. Profundamente perturbado e sem dar conta dos sentimentos que o
empolgavam, desceu a escada, mergulhou na multidão que enchia o corredor, embarafustou pela
sala da ceia e, sem ter uma noção clara do que fazia, foi ter a uma porta encostada que abriu com
um pontapé. com esse movimento de violência, Scott entrara de modo pouco cerimonioso pelo
apartamento do administrador do clube, em cuja saleta se encontrou de repente.
Ali estava o sr. Ephraim Pottle que, temporariamente desonerado do seu trabalho de
administração, saboreava a ceia em que figuravam os melhores pratos do "menu" da noite. Um
homenzinho baixo e gordo, com a calva reluzente, o sr. Pottle marcava com o talher o compasso
da música distante, no momento em que Scott invadiu violentamente a sua sala de jantar.
Surpreendido, o administrador fixou sobre o intruso os seus olhinhos pequenos e vivos.
- Pottle, pelo amor de Deus, dê-me aí uma dose dobrada de qualquer bebida. Estou precisando
disso com urgência.
Pottle, movendo a cabeça em um gesto de assentimento, levantou-se e caminhou pesadamente
até o aparador 65
encostado à parede. Dali trouxe uma garrafa de uísque e um sifão, que depôs muito
cuidadosamente sobre a mesa.
- Essa história de "ginger-ale" e de "ice-cream" é tudo muito bom para nos tornar virtuosos, mas
nos deixa como um balão furado, exclamou Scott ainda visivelmente agitado.
- Sirva-se à vontade, disse risonho o sr. Pottle.
- Esta festa está insuportável. Não posso mais aturar este baile, resmungou Scott, enquanto mal-
humorado ia preparando uísque e soda. Faça-me o favor, Pottle, de arranjar-me um táxi.
O administrador encaminhou-se para os fundos da casa e, ou porque estivesse no escuro ou
devido ao que já bebera durante a noite, teve alguma dificuldade em encontrar a porta da cozinha
que lhe era tão familiar. Afinal conseguiu fazê-lo e por ali foi até a rua. Ao cabo de alguns minutos
estava de volta.
- O táxi está à sua espera, sr. Scott. Tive alguma dificuldade em encontrá-lo. O nevoeiro parece
que assustou os motoristas.
- Vou-me embora já. Este baile foi uma verdadeira, fraude. Se o clube continua a dar festas como
esta, dentro em pouco entrará em liquidação. E Scott foi engolindo apressadamente uma segunda
dose de uísque e soda, enquanto o administrador, provavelmente animado pelo exemplo, enchia
mais uma vez o seu copo dizendo:
- vou também beber mais um golezinho e à sua saúde, sr. Scott, para que o Ano Novo lhe corra
próspero e feliz. com estas palavras, o sr. Pottle, que já estava prestes a atingir o ponto de
saturação, caiu pesadamente na cadeira.
Scott bebeu de um trago o seu copo e voltando-se com ar de poucos amigos para o
administrador, observou-lhe:
66 - Tenha cuidado em não cambalear demais, Pottle. Lembre-se de que sou membro da
comissão administrativa.
- Que diz o senhor? retrucou o administrador com a língua um pouco arrastada. Não tenho bebido
quase nada; só tomei um golezinho desde...
- Está bem, está bem, respondeu Scott impacientado, vou-me embora. Muito obrigado pela bóia
de salvação que me atirou. Hei de lembrar-me de você no meu testamento.
Ao sair da sala murmurou algumas palavras, exprimindo o descontentamento pela vida diante do
desagradável incidente que lhe estragara a noite.
Mal-humorado e pessimista, seguiu para o vestiário em procura da sua capa. Ir-se embora quanto
antes, era o melhor que tinha a fazer. Danças eram afinal de contas uma coisa muito aborrecida
mas, enquanto atravessava as salas e corredores, a sua resolução de partir foi arrefecendo. Scott
começou a formular razões para que ficasse no baile. Sair precipitadamente importaria em uma
confissão de derrota. Ana teria a satisfação de ver que o pusera fora da festa e Scott não se
conformava com a idéia de passar por covarde. Seus instintos combativos o impeliam agora a
permanecer firme no terreno da luta.
Exatamente quando o rapaz firmava a decisão de ficar, encontrou Mrs. Maitland e a outra filha, a
volumosa Miss Kathie. Ambas já vinham enroladas em capas e com as cabeças cobertas com
xales dispostos de uma forma bem pouco artística. Dirigiram-se a Scott com sorrisos amáveis,
manifestando-lhe a alegria de o verem ainda uma vez antes de se retirarem do baile. Mrs.
Maitland explicou que em uma fria noite de nevoeiro como aquela à saúde de Kathie tornava
imprudente uma demorada permanência fora de casa. Assim ia levá-la. Tanto a mãe como a filha
se pronunciaram entusiàsticamente sobre a festa, declarando que haviam passado uma noite
agradabilíssima. 67
- Devemos sobretudo ao senhor ter podido apreciar tanto esta festa, observou Miss Kathie com
um sorriso franco. Foi realmente muito amável de sua parte ter tomado conta de nós, que éramos
aqui pessoas estranhas, e proporcionar-nos uma noite tão agradável.
- Eu é que lhes devo agradecer. Tudo que fiz foi apenas por egoísmo, porque nada me poderia
proporcionar mais prazer que uma companhia tão amável.
Enquanto conversavam, iam-se encaminhando para o vestíbulo. Scott estava ansioso por saber
alguma coisa acerca de Ana, Iria ela também com a família? Mas, polidamente, retardou a
pergunta e foi procurando dizer coisas amáveis à sra. Maitland e a Kathie.
- Sinto tanto vê-las partir tão cedo.
A pergunta que Scott desejava fazer tornou-se supérflua diante da réplica de Kathie à amável
lamentação pela partida prematura.
- Vamos, mas deixamos aqui a família representada por Ana e Guy.
- Ana não sairá daqui senão depois que a orquestra executar a última nota. Ela e Guy só irão para
casa pouco antes do primeiro almoço, acrescentou rindo a sra. Maitland.
Nesse momento o grupo chegava à entrada do salão de dança e Kathie procurava descobrir Ana
no meio da multidão. Ao vê-la acenou alegremente com a mão, exclamando
- Vamo-nos embora, até logo.
Scott observou que Ana, depois de haver dado uma explicação ao rapaz com quem dançava,
abriu caminho por entre os pares na direção do corredor com o intuito evidente de vir falar à mãe
e à irmã. Agora a resolução de permanecer na festa consolidara-se definitivamente no espírito de
Scott. Toda sua combatividade se concentrava
68 na preocupação de enfrentar aquela moça que o fascinava e cuja cabeça altiva e enfeitada de
plumas parecia desafiá-lo. Dirigindo-se à sra. Maitland prontificou-se a ir arranjar um táxi e
correndo foi chamar o automóvel que Pottle tomara para ele. Ao cabo de poucos minutos estava
de volta, comunicando que o táxi se achava junto à porta principal.
Agradecendo, a sra. Maitland e os outros seguiram para a porta. No saguão, despedindo-se de
Ana, recomendoulhe ainda que não chegasse até a rua, para não se expor ao frio e ao nevoeiro.
Cumprimentando Scott, que polidamente abria a porta, a sra. Maitland disse-lhe sorrindo:
- Faça o favor, sr. Kentish, de tomar cuidado para que Ana não faça nenhuma loucura. Em um
baile, ela é capaz de chegar ao suicídio.
Scott lançou um rápido olhar sobre a moça que, corando, mordeu nervosamente o lábio. Ana
estava em um desses estados de alma, em que as mulheres sentem que a emoção pode levá-las
a fazer qualquer tolice. Scott ficou satisfeito ao perceber que a rapariga se achava assim
desconcertada. Era justo que ela sofresse, porque praticara uma grande injustiça para com ele. E
estava decidido a dar-lhe ainda algumas alfinetadas.
- Pode ir descansada, disse voltando-se para a sra. Maitland. Tomarei todo o cuidado com ela.
- Nesse caso nós a entregamos ao senhor para o resto da noite, acrescentou Kathie com o seu
desajeitado humorismo.
- Pois serei um guarda terrível, respondeu Scott dirigindo o olhar a Kathie, mas endereçando
deliberadamente as palavras a Ana.
Por entre sorrisos e amabilidades, a sra. Maitland e Kathie partiram. Ana tomou parte nas
despedidas com uma alegria afetada, mas evitando com habilidade dirigir 69
diretamente a palavra a Scott. Este foi levar as duas senhoras ao táxi e voltou ao saguão, onde
Ana o esperava. Os dois enfrentaram-se em silêncio. A moça procurava imprimir frieza ao seu
olhar, mas a cólera que a dominava irradiava em centelhas que desmentiam e inutilizavam aquele
esforço para manter uma atitude artificial. A emoção que se apoderava de Ana era tão forte que,
com as mãos caídas aos flancos, ela quase cambaleava, enquanto todo seu corpo tremia
nervosamente.
- Se o senhor acha prazer em proceder desse modo, continue; mas devo dizer-lhe que não acho
graça nisso. E, dando-lhe as costas, avançou resolutamente na direção da escada.
O gesto de Ana teve sobre Scott o efeito de uma ducha fria. O seu ar de triunfador dissipou-se
instantaneamente. Muito perturbado, o rapaz correu e, segurando a moça pelo braço, deteve-a.
Quando se defrontaram de novo, Ana também já não tinha o mesmo aspecto. Imediatamente
observara a profunda modificação que se operara em Scott. Sua voz já não tinha o tom petulante.
Era baixa e trêmula. Seus olhos, em vez de faiscarem em" uma afirmação de triunfo, refletiam
depressão e cooperavam humildemente no apelo que ele lhe dirigia.
- A senhorita não está sendo justa para comigo. Está zangada, porque supôs ter visto alguma
coisa que não devia ver. Mas foi muito injusta não me deixando dar-lhe as explicações que seriam
mais que suficientes para esclarecer o meu procedimento.
Scott falava em tom súplice. Ana compreendia-o bem, mas o seu orgulho a levava a crer que
sofrera uma humilhação maior do que podia suportar. O rapaz, por seu lado, entrevia os
sentimentos de Ana, mas apenas os compreendia parcialmente. Assim, não percebia que a cólera
da moça era muito menos devida ao fato de haver surpreendido a cena entre ele e Nancy
Hanshaw, que a
70 vergonha íntima que lhe causava ter tido para com ele uma condescendência em desarmonia
com o seu modo habitual de proceder.
- Nada tenho com o que o senhor faz, mas a mim exclusivamente cabe escolher os meus amigos.
- Há uma hora mais ou menos, a senhorita escolheume para seu amigo e o fez de um modo muito
claro.
Scott mal compreendia que as suas últimas palavras, longe de melhorarem a situação, vinham
agravar ainda mais a irritação de Ana.
- Pois bem, se o fiz então, já mudei de idéia. Faça o obséquio de não me pegar pelo braço.
- Se não significo coisa alguma para a senhorita, replicou Scott apertando mais fortemente o braço
de Ana, deve ser-lhe indiferente o fato de pegar-lhe no braço. As palavras do rapaz refletiam, no
tom em que eram pronunciadas, a dor pungente causada pela repentina interrupção da amizade
mal iniciada entre os dois.
- O que o senhor está fazendo é absolutamente indesculpável, disse Ana em voz baixa e dando
às palavras uma agressividade que bem traduzia a sua cólera.
- E não é absolutamente indesculpável que me condene por uma coisa que imagina ter visto?
- Imaginei? exclamou Ana abruptamente, simulando espanto. Explique-me o que o senhor quer
dizer com isso.
- Muito facilmente.
Mas a explicação, que Scott julgara tão simples, tornou-se dificílima. Realmente não é fácil
explicar como uma rapariga, com os nervos superexcitados, se atira ao pescoço de um homem,
enquanto este se acha em atitude de profunda e decisiva resistência a essa. estranha
demonstração de afeto. Assim, Scott não pôde prosseguir nos esclarecimentos com que esperava
poder modificar a atitude 71
de Ana, que com um movimento ríspido e um olhar desdenhoso e zangado se desenvincilhou
afinal da mão do rapaz.
- Como já lhe disse, nada tenho a ver com o que o senhor faz, mas me reservo o direito de
escolher os meus amigos, exclamou a moça em tom enérgico. Levantando a cabeça dirigiu-se
para o salão de baile.
Por algum tempo Scott permaneceu em grande agitação, dominado por intensa raiva. Pouco a
pouco acalmou-se, até recobrar suficiente domínio de si mesmo. Então, como querendo
sugestionar-se, disse a meia voz que tudo aquilo não tinha importância e que o incidente era um
episódio insignificante em sua vida.
Uma voz meiga o chamou então do patamar da escada. Voltando-se, deu com Nancy Hanshaw
que lhe acenava para que viesse ter com ela. No primeiro momento, Scott teve vontade de dizer a
Nancy que se fosse embora mas, logo em seguida, sacudiu os ombros como se estivesse
conformado com o inevitável e subiu a escada a correr, saltando os degraus de dois em dois.
Quando Scott chegou ao tope da escada, Nancy agarrou-lhe as mãos pressurosamente, fitando-o
com olhos que pareciam dois escuros amores-perfeitos cobertos de orvalho. A rapariga assistira à
cena que se desenrolara entre ele e Ana. Não pudera ouvir o diálogo, mas percebera
perfeitamente a natureza do que se passara. Agora Nancy ia tirar todo o partido possível daquela
nova situação, porque bem sabia que os homens nunca são tão fáceis de ser manejados como
quando o seu coração acaba de ser ferido por outra mulher.
- Scott, peço-lhe desculpas. Esta noite devo estar sendo muito desagradável. É que estou com os
nervos irritados, tive um grande aborrecimento em casa hoje.
Estas últimas palavras de Nancy não tinham o mínimo fundamento de verdade e apenas
representavam uma 72 história inteiramente inventada. Prosseguindo, a moça insistiu nas
desculpas sobre o seu movimento de violenta expansão, dizendo que por um segundo cedera ao
impulso das suas emoções. Tudo porém já tinha passado.
- Não pense nisso, minha cara Nancy; compreendi logo que se tratava de um desses estados
passageiros. O caso está liquidado.
Evidentemente Miss Hanshaw não ficou de modo algum satisfeita com a resposta de Scott, que
lhe revelava sentimentos bem diferentes dos que ela procurava despertar no rapaz. Recalcando a
emoção que a empolgava, a moça perguntou-lhe ainda:
- Então as coisas entre nós continuam como dantes?
- Certamente, respondeu Scott depois de um movimento imperceptível de agitação. Como você
sabe, às vezes nós temos todos uns momentos de irritação nervosa em que tudo nos incomoda.
Não é assim?
- Exatamente, retrucou Nancy; isso acontece com todos nós.
- Este maldito salão de dança superlotado é uma atmosfera irritante e que nos põe de mau humor,
observou o rapaz.
- Realmente, dançar em tais circunstâncias é maçante.
Scott concordou, acrescentando que achava a festa tão aborrecida que chegara a desejar ir-se
embora, o que não o fizera receando que o seu procedimento causasse estranheza aos amigos
que ali se achavam.
- Eu também desejaria ir-me embora, mas ninguém quer dar aos outros o desgosto de partir cedo
de um baile, não é verdade?
Nancy procurava imprimir às suas palavras o tom mais sedutor possível. Scott, entretanto,
permanecia em uma atitude de descontentamento e de irresolução, que a moça 73
bem percebia nas linhas da sua face, com o queixo trêmulo e os lábios na atitude característica de
quem se acha em grande perplexidade.
- Quer dançar? perguntou o rapaz abruptamente. Nancy, como se não tivesse sido ela mesma a
provocadora daquele convite, respondeu displicentemente:
- Se você está com vontade, Scott, vamos dançar um pouco.
Começaram a dançar e assim ficaram por muito tempo até a madrugada. Nancy gozava a
execução do seu plano de afastar Scott de Ana, mas o prazer da vitória era amargurado pelos
constantes sinais que observava na atitude do seu par em relação à outra moça. De fato, Scott
preocupava-se menos em atender ao seu par, que em procurar com o olhar ansioso a figura
esbelta da rapariga flamejante que dançava na sua original e impressionante fantasia. Para Nancy
a situação constituía verdadeira tortura e por vezes se lhe tornou tão intolerável que esteve a
pique de ter uma crise nervosa, prorrompendo em impropérios. A única compensação que Nancy
encontrava àquele suplício em que tanto sofria o seu orgulho feminino, era a circunstância de Ana
ter dançado toda a noite com Roddy Caineron e parecer estar se divertindo muitíssimo.
O martírio de Nancy continuou até a hora em que começou a arrefecer o entusiasmo dos mais
ardentes dançarinos do Upper Norton Club. Pouco a pouco os pares foram debandando e na sala
apenas restava um pequeno número de bailarinos irredutíveis. Ana desaparecera e desde então
Scott, ainda mais agitado, já não prestava atenção alguma a Nancy que persistia em dançar,
receiosa de que ainda aparecesse Ana para inutilizar-lhe o plano no fim da festa.
Scott imaginava, irritado, que Ana deveria estar naquele momento sentada no divã da sala de
palestra a
74 conversar com aquele meninote idiota, a que ela se apegara desde o incidente do corredor.
Entretanto, Nancy continuava a desenvolver mentalmente o seu plano de ação. Não somente
impediria qualquer outro contacto de Scott com Ana, mas forçaria o rapaz a acompanhá-la à casa.
No táxi, por entre o silêncio da madrugada e sob a influência da fadiga, talvez Scott se
desaprumasse afinal e lhe dissesse aquilo que a rapariga se obstinava em arrancar-lhe dos lábios.
Mas, acontecesse o que acontecesse, faria com que Scott a acompanhasse até à sua casa.
Ana desaparecera. Os últimos convidados estavam partindo. Jacky Hanshaw e Maddie Cameron
saíram juntos. Quando passavam, Nancy ouviu Jacky perguntar por Ana, ao que Miss Cameron
respondeu, dizendo que Roddy tomara conta dela e que já haviam partido há uma meia hora.
Scott e Nancy eram os últimos que restavam no salão, onde os músicos do "jazz", sonolentos e
fatigados, faziam votos para se verem livres daqueles dois retardatários. Enquanto Scott ia ao
vestiário dos homens buscar a sua capa, Nancy passava pelo "toilette" das senhoras e, depois de
ter posto pó de arroz, correu tão depressa quanto lhe permitiam os atavios da sua fantasia do
século XVIII, para encontrar o rapaz que já estava a sua espera no saguão.
- Vamos cada um de nós levar o outro à casa? exclamou Nancy afetando uma jovialidade que não
correspondia ao seu verdadeiro estado de espírito.
- Parece que sim, disse Scott em um tom de pouco entusiasmo e que agravou ainda mais o mal-
estar da moça. Esta recebeu choque mais forte, quando o rapaz displicentemente acrescentou
uma pergunta: - Onde estará Miss Maitland, a mais moça?
Nancy sentiu um aperto na garganta, que lhe embargou por alguns momentos a voz. Afinal
conseguiu falar 75
e pausadamente, com o intuito de produzir todo o efeito que esperava das suas palavras,
respondeu:
- Ora, foi-se há mais de meia hora com Roddy.
A alusão ao jovem Cameron feriu em cheio Scott, que sentiu reviver todo o seu mau humor contra
o rapazinho, que monopolizara no fim as atenções de Ana, enquanto ele se via rispidamente
repelido pela moça flamejante. Sem saber bem o que dizia, Scott perguntou a Nãncy se vira
realmente Ana partir em companhia de Roddy Cameron.
- Sim, vi os dois saírem juntos, afirmou Miss Hanshaw, calculando bem a impressão que as suas
palavras estavam produzindo em Scott. Aliás, não era uma mentira completa, porque de fato ela
ouvira Maddie Cameron dizer a seu irmão que Ana partira meia hora antes em companhia de
Roddy.
Scott saiu à rua para chamar um táxi e Nancy o acompanhou com os olhos cheios de lágrimas.
Seu desejo era encontrar um canto escuro, onde se escondesse e pudesse desabafar o seu
coração em soluços. Contendo-se, porém, murmurou resolutamente: "Não hei de chorar". Nesse
momento, a rapariga verificou que se esquecera do seu xale no "toilette" e gritou para Scott que
acabava de transpor a porta que a esperasse um minuto. O rapaz respondeu com um "está bem",
que traduzia o seu mal disfarçado aborrecimento.
Nancy subiu ao "toilette". Estava agora tranqüila. Agarrara Scott para acompanhá-la até sua casa.
Ana não estava mais ali e ela agradecia a Roddy Cameron ter afastado a rival, cuja presença
seria para ela gravíssimo perigo. Ao chegar à porta do "toilette", porém, Miss Hanshaw quase teve
uma síncope. A porta estava entreaberta e deixava-lhe ver Ana sentada em uma cadeira. Tanto
quanto pôde depreender da posição em que ela se achava, Miss Maitland devia estar vendo
qualquer coisa no seu pé
76 ou endireitando a meia. Isto porém não interessava Nancy. Bastava-lhe o fato terrível da
presença de Ana no clube, exatamente no momento em que essa presença lhe podia ser mais
prejudicial. Era realmente a perspectiva do fracasso do seu plano em conseqüência daquela
desconcertante surpresa.
Ana ainda não saíra do clube. Às idéias despertadas por este fato juntou-se no cérebro de Nancy
outro pensamento. Lembrava-se de que dissera a. Scott ter visto Miss Maitland sair em
companhia de Roddy Cameron. Fizera-o de acordo com o seu projeto, um longo passeio de táxi
que lhe proporcionaria ensejo para levar por diante, até a vitória final, o seu propósito de arrancar
uma declaração do rapaz. Sem dúvida, Scott e Ana tinham brigado. Ela, do alto da escada,
testemunhara a cena inequívoca que se passara entre os dois no saguão, mas, apesar disso,
Scott certamente não deixaria Ana ir sozinha para casa àquela hora.
Assim, delineava-se no espírito de Nancy a perspectiva da substituição do passeio a dois por uma
penosa viagem de três. A visão de semelhante desfecho enfureceu Miss Hanshaw e depertou
nela uma violenta crise de ciúme. Empolgada por um sentimento verdadeiramente bravio, já não
media conseqüência e queria apenas evitar o fracasso do plano em que depositara tantas
esperanças. Não, não consentiria que ninguém se interpusesse entre ela e a sua vontade.
Deliberara ir para casa em companhia de Scott e não permitiria agora que quem quer que fosse
lhe viesse estragar a sua vitória. E Nancy pôs em execução o que acabava de resolver com tanta
firmeza.
Sob o ímpeto de um impulso de verdadeira loucura, Nancy puxou a porta e fechou-a. A chave
estava na fechadura. Em um movimento rápido, a moça trancou a porta e retirou a chave. Tudo se
passara em poucos segundos. Tendo obedecido ao impulso que a dominara. 77
Nancy voltou de súbito à Consciência e ficou apavorada diante do que acabara de praticar. Seu
primeiro pensamento foi de terror diante da possibilidade de vir a ser descoberto ter sido ela quem
fechara Ana no "toilette". Logo em seguida, olhando para a chave que agarrava nervosamente,
teve um sobressalto de atroz perplexidade em relação ao que devia fazer com aquele elemento de
um comprometedor corpo de delito. Nancy não era sem dúvida um tipo de bondade. Caprichosa e
voluntariosa, era capaz de deixar-se levar a atos estranhos sob a influência das paixões violentas
que por vezes a dominavam. Mas, certamente, não tinha a alma e o temperamento de uma Lady
Macbeth. Acabara de cometer um ato indigno e não se sentia capaz de arcar com as
conseqüências morais do que praticara.
Aquela comprometedora chave a perturbava de modo a tirar-lhe a lucidez do raciocínio e a
capacidade de ação. Compreendia vagamente que a primeira coisa que tinha a fazer era
desenvincilhar-se daquilo, mas não sabia para onde lançar a chave que continuava a apertar
nervosamente na mão. Súbito, observou que uma das janelas do patamar da escada estava
aberta. Agindo de novo sob um impulso, dirigiu-se maquinalmente naquela direção, curvou-se
sobre o peitoril da janela e atirou a chave para fora. Imediatamente ocorreu-lhe a idéia de que, ao
cair, a chave faria barulho. Mas esta tombou, provavelmente, em um gramado ou em terra fofa,
porque não houve nenhum ruído. Como sempre acontecia com ela, Nancy teve uma nova reação
no sentido da calma. Recompôs-se rapidamente e desceu depressa a escada, para ir encontrar-
se com Scott.
Este a esperava e a rapariga, tomando-o nervosamente pelo braço, impeliu-o na direção da porta.
Tendo recuperado a presença de espírito, Nancy queria agora sair do clube -o mais depressa
possível. Receava a todo momento ouvir a voz de Ana, presa por ela no "toilette". Entretanto,
78 Miss Maitland ou não dera conta do seu aprisionamento ou, por qualquer motivo, se abstinha
de pedir socorro. Descendo os degraus, Nancy e Scott atravessaram o caminho que pelo jardim ia
ter ao portão. O táxi estava encostado à calçada e Nancy teve um movimento de alívio quando
entrou no veículo. A sua tranqüilidade, entretanto, só foi completa ao ver Scott sentar-se ao seu
lado e dar ordem ao motorista para partir.
CAPÍTULO IV
- O nevoeiro se está dissipando, observou Nancy que não encontrara melhor tema para quebrar o
silêncio em que se mantinha Scott, encolhido num canto do táxi.
- Parece que sim, foi a resposta breve e seca do rapaz, que não se mostrava muito disposto à
sociabilidade.
- Afinal de contas conseguimos passar uma noite agradável, continuou Nancy, agora
encaminhando a conversa mais diretamente para o ponto por ela desejado. Divertimo-nos juntos e
dançamos muito, não é verdade, Scott?
- É verdade, resmungou o rapaz em tom tão amuado e pouco amável, que as lágrimas
umedeceram os olhos de Nancy, profundamente humilhada por aquela indiferença glacial do
homem de quem por todos os meios procurava obter uma declaração comprometedora.
Entretanto, miss Hanshaw ainda não se resignara a perder a batalha, recorrendo a todos os
meios, inclusive a expedientes que a sua consciência- condenava como moralmente
injustificáveis. Scott continuava ocupando no táxi o menor espaço que podia. Nancy não
conseguia obter dele uma palavra, nem sequer um olhar. 79
Firme no seu propósito de não se dar por vencida, a moça recorreu a tudo que se lhe afigurava
meio possível de envolver e captar o homem, que permanecia indiferente ao seu lado. Nancy pôs
mesmo de parte os sentimentos que naquelas circunstâncias a deviam inclinar a uma atitude de
reserva. Aplicando os seus elementos de fascinação feminina, procurando depois impressionar o
rapaz pelo apelo ao'lado afetivo, miss Hanshaw vibrava todas as notas, sem que contudo
encontrasse um eco no seu impassível e silencioso companheiro de táxi. Se alguma vez Nancy
exercera influência sobre Scott, ela era. agora obrigada a reconhecer bem a contragosto que o
seu prestígio se desvanecera.
Pouco a pouco a rapariga se ia enfurecendo com o insucesso do seu plano. Pacientemente
desenvolvera as sucessivas etapas daquele projeto, levado com êxito até o ponto decisivo. Mas
agora que! conseguira ter Scott a seu lado em condições particularmente propícias para forçá-lo a
definir-se, era obrigada a! reconhecer que nada conseguira e, pior ainda, comprometera talvez a
possibilidade de êxito em futura ocasião. Lembrava-se de que Ana ficara prisioneira na sala do
"toilette" e começava de novo a aterrorizar-se com a perspectiva de vir a saber-se ter sido ela a
autora daquele ato, que certamente provocaria as mais ásperas censuras. O nevoeiro começava
realmente a dissiparse e o motorista aumentava a velocidade do táxi. A distância do Upper Norton
Club à casa dos Hanshaw não era muito grande e agora se tornava cada vez menor.
Os incidentes daquela noite haviam convergido no sentido de exasperar os nervos de Nancy, até
levá-la a um estado de franco nervosismo. Emoções violentas provocavam-lhe de vez em quando
sobressaltos, impulsos irreprimíveis para dizer coisas extravagantes e comprometedoras, de que
ela se teria envergonhado em qualquer outra situação, sucediam-se e eram apenas contidos pela
ação do que ainda restava de vontade àquela moça, vítima das 80 conseqüências do plano
elaborado pelo seu espírito caprichoso e egoísta. Scott continuava indiferente. Não observava a
agitação da sua companheira, cuja fisionomia" se contraía em tiques caricaturais. É possível
mesmo que o rapaz absorto como estava em outros pensamentos, se tivesse esquecido de que
ao seu lado se sentava Nancy Hanshaw. Tal era a atitude de indiferença de Scott, que a rapariga
perguntava a si mesma essas coisas, sentindo ainda mais fundo na alma a dor pungente daquela
suprema humilhação.
Quando o táxi dobrou a esquina na rua em que moravam os Hanshaw, Nancy quase atingiu a um
paroxismo histérico. com os dedos crispados agarrava a capa em um derradeiro esforço da sua
consciência e da sua vontade, para resistir ao ímpeto de cometer qualquer ato positivamente
insensato. Entretanto, uma reação veio, como de costume, substituir temporariamente aquêlei
estado de extrema superexcitação nervosa. Vencida a tempestade que a agitava, Nancy em um
momento de calma sentiu-se invadida por uma orgulhosa apreciação do episódio em que se
achava envolvida. Em vez de considerar-se o que de fato era, uma rapariga de nervos
desequilibrados e doentiamente caprichosa, bastante vulgar nos seus sentimentos e sem grandes
escrúpulos na realização dos seus desejos, Nancy Hanshaw julgou-se uma heroína, cujos nobres
sentimentos haviam sido vilipendiados e que com admirável força de ânimo enfrentava o
infortúnio.
Afinal o táxi parou à porta da casa e Scott saltou, oferecendo em seguida a mão a Nancy para
ajudá-la a descer do automóvel. Fingindo-se em estado de extrema fadiga, a moça apertou a mão
do rapaz e inclinando para trás a sua cabeleira à Pompadour, ficou em atitude de quem parecia
esperar que a carregassem. Scott, porém, lhe disse em tom impaciente:
- Vamos, Nancy, salte daí. 81
Ela, entretanto, já começava a formular mentalmente outro projeto.
- Não seria uma boa idéia, Scott, continuarmos o passeio, fazendo uma pequena corrida pelo
campo?
- Passearmos? com estas fantasias?
- Que importa o vestuário? Nunca pensei, Scott, que você fosse tão tímido. Já tem idade para ser
mais homem. E Scott, à luz de uma das lâmpadas da rua, pôde observar que a fisionomia de
Nancy se tornara irritantemente artificial e que o seu sorriso lhe era francamente desagradável.
- Já devíamos estar dormindo há muito tempo, disse Scott em tom impaciente. Sinto-me fatigado e
você também está com cara de quem se acha extenuada.
As palavras do rapaz encheram a medida da capacidade de resistência moral de Nancy. Ela bem
compreendia que depois de uma noite de violentas emoções contraditórias, de agitação, de
desapontamentos e finalmente de medo, sua fisionomia devia refletir forte tempestade sentimental
em traços comprometedores para a sua beleza. Scott cometera o crime que uma mulher nunca
perdoa. Fizera-lhe sentir que os seus atrativos físicos não o impressionavam naquele momento.
Com um movimento rápido, a moça saltou do automóvel, atravessou a calçada e abriu a cancela
do jardim. Este era grande, separando da rua a casa, uma velha e sólida construção da época
vitoriana. Scott deu ordem ao motorista para que o esperasse e foi no encalço de Nancy, que já se
achava a uma boa distância pelo jardim a dentro.
- Que pressa é essa, Nancy? exclamou o rapaz quando conseguiu aproximar-se dela.
Nancy parou e voltou-se encarando Scott, que ficou surpreendido com a súbita transformação que
a desfigurava, 82 a ponto de quase não reconhecer naquela mulher de olhos esgazeados, boca
entreaberta e fisionomia com traços duros que lhe dissipavam a beleza, a sua habitual
companheira de festas e de passeios. Tinha a impressão de estar diante de uma pessoa estranha,
que saíra da terra no lugar em que esperava encontrar Nancy.
- Scott, temos sido muito bons camaradas, disse Nancy com voz pausada e entrecortada pela
emoção. Há três anos que aparecemos juntos por toda a parte. Não me tenho incomodado com
os comentários que a nossa camaradagem provoca. Esta noite fiz tudo que era humanamente
possível para agradar-lhe.
O rapaz ouvia quase estupefato aquele intróito ao que certamente seria um libelo articulado contra
ele e perguntava a si mesmo que diabo tinha Nancy naquela noite para estar tão estranha e
nervosa. Mas, logo que começou a apreender o pensamento da moça, ficou indignado até ao
enfurecimento, diante da injustiça daquela atitude.
- Mas, Nancy, que lhe fiz eu?
- Você passou a noite inteira preocupado exclusivamente com aquela jovem Maitland.
Miss Hanshaw caiu logo em si, percebendo que se desmascarara imediatamente. Mas não era
mais possível recuar e agora achava melhor dizer tudo que sentia. E o fez em uma atitude de
descomedida raiva.
- Você passou toda a noite a olhar para ela e dela não tirava o seu pensamento um só instante,
apesar de tudo que eu fiz para arrancá-lo à influência daquela criatura. Você pensa que não notei
isso. Os homens são assim mesmo... E Nancy prorrompeu em uma risada nervosa.
- Mas que série de tolices está você dizendo, exclamou Scott perdendo a paciência em um acesso
de fúria, como nunca antes o arrebatara diante de uma mulher. 83
- Tolices, não! gritou Nancy batendo os pés frenèticamente. Você julga que sou cega ou imbecil?
Não agrave a sua situação procurando mentir. Vejo bem que está de asa caída por aquela moça,
que nem sequer é bonita e tem uma pele rugosa como pescoço de peru. Você é um idiota como
Roddy Cameron e os outros bobos que andaram a correr atrás de uma criatura tão
desinteressante como aquela. Nancy falava agitadamente, apertando os pulsos com os dedos
nervosos. Sua aparência era cada vez mais estranha, tornando Scott receoso do epílogo daquela
cena.
- Peço-lhe que se contenha. Você não compreende o que está dizendo. Acabe com isto que não
lhe fica bem e que só lhe causará, mais tarde, arrependimento, replicou Scott energicamente e
disposto a pôr termo àquela desagradável situação.
- Estou a dizer-lhe a verdade, prosseguiu Nancy que, de momento a momento, mais se deixava
empolgar pela violenta crise passional em que se debatia. Você não compreende que fomos
sempre bons camaradas, excelentes e inseparáveis amigos.
- E o que tem tudo isso que ver com a exaltação de que você está possuída neste momento?
- Ora, então não percebe a razão da minha indignação? A nossa intimidade, a nossa presença
juntos por toda a parte, não podiam deixar de despertar atenção e todos tinham como certo que
mais tarde ou mais cedo o nosso noivado seria anunciado às pessoas das nossas relações.
- Não creio nisso, respondeu friamente Scott que recobrara a calma, fitando agora Nancy com
olhar sereno e uma expressão em que transparecia traços de ironia.
- Você diz isso, balbuciou Nancy Hanshaw quase soluçando, porque viu esta noite aquela maldita
pequena de
84 pele encaroçada e se está dando ao ridículo de uma paixão fulminante por semelhante idiota.

- Não admito que você coloque a questão nesses termos. Não tenho necessidade de -arranjar
escapatórias para compromissos que não contraí. O fato de termos sido sempre muito bons
camaradas, de estarmos juntos freqüentemente, não se podia prestar às graves interpretações
que você diz que os outros deram à nossa amizade. Quantos rapazes e moças entretêm na
sociedade relações igualmente íntimas? Seu irmão Jacky não anda sempre com Maddie e Roddy
com...
- Roddy será certamente agora o inseparável companheiro da sua querida Maitland, interrompeu
Nancy sarcàsticamente, com evidente intuito de ferir Scott.
- Faça o favor de não meter Miss Maitland nessa história, observou o rapaz, zangado.
Diante das últimas palavras de Scott, Nancy só tinha agora o pensamento de ofendê-lo, de
provocá-lo e de torturá-lo, se fosse possível. Quaisquer considerações de prudência e de recato
não atuavam mais sobre ela. A consciência da derrota que envolvia o desmoronamento das suas
melhores esperanças, complicava-se com a pungente ferida que Scott acabava de infligir ao seu
orgulho de mulher. Se, porventura, entretivera a ilusão sobre os sentimentos de Scott, não podia
mais ter dúvida de que ele agora a abandonava sob a influência da fascinação exercida por Ana.
Não tendo mais peias à explosão da sua cólera, Nancy exclamou enraivecida:
- Sim, você está furioso porque a tal Miss Maitland brigou consigo. Ela lhe viu passar os braços
pela minha cintura e ficou enciumada, achando que não valia a pena ocupar-se consigo. Mandou-
o embora, e você está inconsolável por isso. 85
Scott não estava menos encolerizado que Nancy, mas, enquanto esta atravessava evidentemente
uma crise histérica, o rapaz no meio da raiva não perdia a calma.
- Sim, sim, você arranjou aquela cena do corredor de propósito, para que fôssemos observados
por Miss Maitland, não é verdade?
- É verdade, fiz aquilo de propósito e seria capaz de fazê-lo outra vez. Você merece muito mais,
como castigo pela maneira como me tratou. Pensa então que pode jogar o pega-pega comigo e
sair ileso da brincadeira? Ao dizer estas palavras, Nancy já falava com voz estrídula que bem
patenteava o auge da crise nervosa.
- É falso. Nunca joguei o pega-pega com você, nem com qualquer outra moça. A insinuação de
que eu seja capaz de divertir-me, comprometendo uma rapariga que me distingue com a sua
amizade, é uma calúnia. E, para fazer tal insinuação, você deve ter enlouquecido.
- Pode ser que tenha enlouquecido, mas o que é certo é que estraguei o seu negociozinho com a
tal Miss Maitland, disse Nancy em tom maldoso.
- Se isso lhe dá prazer, pode ficar satisfeita porque conseguiu o seu objetivo. Estragou-me a noite
e talvez tenha também estragado a minha vida. Agora, o melhor que tem a fazer é ir dormir. Você
esteve aí a falar em termos sido muito bons amigos e acaba tratando-me por esta forma. Hei de
aproveitar esta lição. Não quero mais amizades com você, nem com qualquer outra moça. Peço-
lhe que não se aproxime mais de mim, porque nunca mais lhe dirigirei a palavra.
E sem outra forma de despedida, Scott partiu na direção do portão. Quando o rapaz desapareceu
na escuridão do jardim, Nancy sentiu a gravidade da situação em que se achava. Nunca ouvira
Scott falar daquele modo. O tom das suas palavras tinha uma firmeza e revelava a repulsa que ele
sentia por ela. Não se tratava evidentemente
86 de uma zanga passageira. Nancy compreendia que perdera Scott para sempre. Veio-lhe então
ao espírito a lembrança de Ana fechada por ela no "toilette" do Upper Norton Club. com
verdadeiro terror, a moça esboçou mentalmente o quadro da sua situação, quando aquele
episódio se esclarecesse e Scott e Ana, ligando os fatos, chegassem à conclusão de ter sido ela a
autora de um ato tão feio e tão covarde.
Em estado de positivo alarma Nancy chamou por Scott em alta voz e não tendo tido resposta
repetiu o apelo que, se foi ouvido pelo rapaz, não lhe mereceu atenção alguma. Vendo que não
era atendida, Nancy pôs-se a correr tão depressa quanto lhe permitiam os complicados atavios da
sua fantasia e a fraqueza das pernas que tremiam nervosamente. Afinal alcançou Scott, quando
ele já se achava perto do portão. Agarrou-o pelo braço e disse-lhe angustiosamente:
- Ouça o que lhe vou dizer, é a respeito de Ana.
- Não quero ouvir coisa alguma de você. Deixe-me, respondeu o rapaz rispidamente, procurando
desvincilhar-se da moça.
- Não, Scott, você não pode partir sem ouvir o que lhe quero dizer sobre Ana.
- Já lhe disse que não quero ouvir nada. E Scott, quase violentamente, procurou soltar o braço
que Nancy agarrava.
- Não, Scott, você não pode ir-se embora sem me ouvir. É muito sério o que lhe vou dizer. Ana
não saiu do clube em companhia de Roddy Cameron.
- Que está dizendo? Ana não saiu com Roddy? Mas foi você mesma quem me disse que os tinha
visto partirem juntos.
- Sim, disse, porque ouvira Jacky e Maddie falarem sobre isso e, como desejava vir para casa
sozinha com você, 87
afirmei-lhe que vira os dois partirem juntos. Mas Ana não saiu com Roddy, ela ainda está no
clube.
- Você enlouqueceu, Nancy? Que história é essa? Então Ana há-de -estar ainda no clube, quando
não há mais ninguém lá?
- Está, afirmou Nancy, começando a soluçar nervosamente. Está e de lá não pode sair, por um
motivo que só eu sei.
- Ora, isto já me está enjoando, murmurou Scott, fazendo novo esforço para desembaraçar-se da
moça, que julgava estar recorrendo a um novo estratagema para detê-lo.
Nancy, porém, em estado de superexcitação, agarrou-se a ele, implorando que não partisse sem
ouvi-la. A fisionomia da rapariga tinha uma tal expressão de terror, que Scott teve um sobressalto.
Pelo espírito passou-lhe então a idéia de que poderia haver realmente alguma coisa grave em
tudo aquilo.
- Escute-me, Scott, você precisa saber o que lhe vou dizer. É muito sério. Ana está presa no clube
e foi eu quem a prendeu.
O rapaz horrorizado, sentia-se perturbado por um turbilhão de idéias que lhe surgiam do cérebro e
tinha agora desejo de saber, quanto antes, o que significavam as palavras de Nancy. Esta,
sempre a soluçar, lhe contou que, quando fora buscar no "toilette" o xale, vira pela porta
entreaberta que Ana ali se achava. Receando que Scott, sabedor da presença de Miss Maitland
no clube, a quisesse acompanhar também à casa, estragando assim o seu plano da corrida em
automóvel unicamente em companhia dele, fechara a porta e dera volta à chave.
Scott ficou perplexo. A história era sem dúvida verossímil, mas já tinha bons motivos para duvidar
da veracidade de Nancy. Assim, interrogou-a desconfiado;
88 - Mas você me disse que Ana saíra com Roddy. Confessou depois que essa informação era
inverídica e que não vira os dois saírem juntos. Agora vem contar-me essa história. Como posso
acreditar mais no que diz? Aliás, se você fechou Ana no "toilette", Pottle há de encontrá-la e
arranjará um táxi para levá-la a casa.
- Não, Scott. Ninguém pode fazer Ana sair do "toilette", porque eu retirei a chave e a lancei pela
janela. Não será possível encontrá-la agora.
Scott compreendeu então que Nancy estava dizendo a verdade e sentiu tal indignação que não
pôde deixar de exprimir a sua cólera em uma frase áspera, como ele nunca antes dirigira a uma
mulher.
- Realmente, vocês, mulheres, procedem umas contra as outras como grandessíssimos patifes!
- E vocês, homens, não são menos patifes para com as mulheres.
Sem se despedir, Scott correu para o portão. Nancy perguntou-lhe em voz alta para onde ia e o
rapaz respondeu secamente:
- Para o clube, a fim de buscar Ana.
- Não diga a ela, nem conte a ninguém que fui eu quem fez semelhante coisa! exclamou a moça
gritando desesperadamente.
Sem lhe dar resposta, Scott transpôs o portão, murmurando palavras ininteligíveis. Uma vez na
rua, saltou para o táxi, bradando imperiosamente ao motorista:
- Para o clube e corra como uma flecha.
Quando o táxi parou junto ao portão do clube, Scott precipitou-se pelo pequeno jardim e foi bater à
porta principal, que aliás estava fechada, como ele previra. Bateu sem ser atendido e foi
aumentando a violência das pancadas à medida de que o tempo se passava. Convencido de 89
que ninguém o ouvia, começou a fazer a volta do prédio, a fim de procurar outra porta. O clube
funcionava em uma casa que, além do pavimento térreo, só tinha um andar. Scott fez o circuito
completo, batendo em todas as portas e procurando ao mesmo tempo descobrir algum quarto
onde ainda houvesse luz. Começou então a desconfiar de que Nancy Hanshaw lhe tivesse
pregado uma peça porque se Ana estivesse realmente presa no "toilette", não se compreendia
como não percebesse luz através das cortinas, nem podia mesmo entender como a moça não
desse conta do tremendo barulho por ele feito ao bater nas portas do pavimento térreo.
Tendo chegado à porta da copa do sr. Pottle, Scott, depois de bater frenèticamente, ficou a
escutar, tendo percebido que o administrador do clube dormia, roncando sonoramente. Continuou
a bater, mas Pottle parecia estar mergulhado no sono da morte. O homenzinho estava aliás bem
vivo, mas o álcool que ingerira durante a noite o reduzira a uma situação que para os objetivos
visados por Scott colocava o administrador em condições análogas às de um morto.
Sempre inclinado ao copo, Pottle, depois de haver fechado a porta principal do clube, voltara ao
seu apartamento, não querendo abrir mão da dose de uisque e soda com que regularmente se
preparava para dormir. Naquela noite o gole sacramental era mais que supérfluo, diante das
libações anteriores. Assim se explicava o sono profundo, que tornava o administrador do clube
insensível aos murros desfechados por Scott contra a porta da copa.
O rapaz já tinha as mãos em fogo de tanto bater quando, interrompendo a tentativa baldada de
acordar Pottle e amaldiçoando Nancy, de quem continuava a desconfiar de ter-lhe pregado uma
peça para divertir-se à sua custa, lançou o olhar para o pavimento superior da casa. com um
sobressalto observou que através de uma das 90 janelas se coava uma luz mortiça. Seria ali o
"toilette" em que Ana estava presa? A história de Nancy tomava agora um aspecto de maior
probabilidade. Aquela luz interceptada pela cortina e que no meio do nevoeiro Scott não vira à
primeira inspeção, justificava a suspeita de que alguém ali estivesse. A idéia de que Ana podia
achar-se naquele lugar despertou em Scott uma porção de pensamentos contraditórios. Em
primeiro lugar horrorizava-se diante da angústia que. devia dominar a moça, enclausurada em
uma casa estranha, onde além dela naquele momento só estava o administrador, embriagado, a
ressonar inconsciente. Scott sentia-se sensibilizado ao imaginar que Ana estivesse sofrendo, mas
ao mesmo tempo lhe era agradável pensar que ele a iria socorrer e que ela ficaria devendo ao seu
esforço o libertar-se daquelas desagradáveis condições.
Com esses pensamentos começou a atirar pedrinhas à janela, que não estava a grande altura,
esperando assim chamar a atenção de Ana. Não tardou que o seu objetivo fosse realizado. A
cortina foi corrida e através da vidraça Scott percebeu o clarão amarelo de uma lâmpada elétrica.
Pouco depois a janela se abria e no peitoril desenhou-se o perfil esbelto da rapariga, que tão
profunda impressão exercera em Scott.
- Pequena flamejante! exclamou o rapaz, procurando dar à sua voz o tom mais carinhoso que lhe
era possível. Nada receie, sou eu. Aqui vim buscá-la.
- Ah, é o senhor? Estou perfeitamente. Improvisei um sofá com duas cadeiras e estou disposta a
dormir confortàvelmente.
Tudo que o rapaz imaginara sobre a angústia de Ana, quando se visse prisioneira, se dissipava
agora diante da calma e do bom humor com que a moça encarara aquele incidente insólito. Scott
estava um pouco desconcertado diante da atitude da rapariga, que esperara encontrar em 91
pranto e verificava estar fazendo pilhéria com a sua aventura.
- Vim em seu socorro com um táxi, acrescentou com uma risada um pouco forçada.
- Então eu preciso ser socorrida pelo senhor?
Scott sentiu que se reabria a discussão do caso pessoal entre ele e Ana, mas, fosse como fosse,
ele a tinha encontrado de novo e pressentia que este encontro teria grande significação. Por entre
o nevoeiro vinha raiando a alvorada de um dia de inverno e até a hora do primeiro almoço, que já
não estava muito distante, o rapaz contava pôr em ordem a sua situação com Miss Maitland.
No tom da voz de Ana, Scott podia observar uma certa doçura que indicava ter-se dissipado, pelo
menos em parte, a cólera que ela horas antes manifestara contra ele. Provavelmente a moça
tivera tempo de pensar com mais calma e assim, certamente, verificara terem sido injustas as
elações precipitadas que tirara do incidente, que tão lastimàvelmente interrompera a
camaradagem, entre eles apenas começada.
- Ah, pequena flamejante, bem vê que precisa do
meu socorro.
- Pelo que vejo, o senhor deixou-me aqui para ser socorrida, não foi assim?
- Fui-me embora, porque me asseguraram que havia seguido para casa em companhia de Roddy
Cameron. Se tivesse advinhado que ainda estava aqui, nem cavalos fogosos me arrastariam do
clube, embora a senhorita tivesse sido muito injusta para comigo.
- Fui injusta para consigo?
- Parece-me que não precisa fazer esta pergunta, pois que a sua consciência pode dar-lhe
resposta.
92 - Mas, seja como for, responda-me. Fui injusta para consigo?
Após alguns momentos de silêncio, Scott respondeu com firmeza:
- Não posso agora dar-lhe uma explicação. Quer aceitar a minha afirmativa singela de que foi
injusta?
- Sim, aceito. Na voz de Ana transparecia um pouco de dúvida, aliás quase imperceptível.
- Então reconhece que foi injusta. Esta é a verdade.
Realmente, Ana, revendo anteriormente os episódios da noite, já suspeitara ter sido injusta para
com Scott. Agora essa suspeita se transformava quase em uma convicção.
- Mas como soube que eu estava aqui?
- Verifiquei que não tinha partido com Roddy e voltei para procurá-la, respondeu o rapaz que se
sentia embaraçado em entrar em mais completas explicações. E por que ficou no clube? Não
pode sair daí?
- Creio que algum idiota, respondeu Ana dando uma risada, me fechou aqui no "toilette". Acho que
deve ter sido aquele homenzinho gordo que tomava conta do bufête.
Scott ficou satisfeito ao ver que Ana não suspeitava da pessoa que realmente era responsável
pelo seu aprisionamento. Assim, afastava-se um aspecto delicado do caso, porque o rapaz não
desejava que a moça soubesse do papel representado por Nancy, preferindo que o incidente
permanecesse envolto em dúvidas. Deste modo, prosseguiu, dando o cunho de probabilidade à
explicação sugerida por Ana, a quem lembrou que Pottle, tendo o hábito de fechar as portas, bem
poderia ter sido o causador daquele contratempo, principalmente levando-se em conta o abuso
que fizera de bebidas durante a noite. 93
- Como a senhorita desapareceu por muito tempo, julguei que tivesse ido embora com Roddy.
- Fui vítima de um desastrado acidente. Torci o tornozelo por causa do maldito salto alto. Durante
a parte final do baile não pude mais dançar e fui para o banheiro molhar o meu pé em água fria.
Cena romântica, não acha?
- Que me diz? Torcer um tornozelo pode ser coisa séria. Estou realmente preocupado com o que
me acaba de dizer.
- Estou melhor agora, mas ainda não posso calçar o sapato, sem me sentir mal.
- Se eu tivesse sabido disso... Naturalmente não me disse nada, por causa do nosso
desentendimento absurdo, não foi?
- Naquele momento parecia que o senhor estava muito ocupado. Imaginava que eu estivesse em
companhia de Roddy Cameron, mas eu sabia perfeitamente que o senhor estava com Miss
Hanshaw.
- Não me fale nisso. Fiz o mais triste papel de idiota que alguém pode representar no mundo.
- Eu também fiz um pouco esse papel, disse Ana dando uma risada.
Não havia mais nenhum traço de aspereza na voz dela, que parecia agora completamente
mudada em relação a Scott. A atitude da moça e, mais, a certeza de que ela não estivera em
longa palestra a sós com Roddy Cameron produziam a melhor das impressões em Scott.
- Somos amigos outra vez, não é verdade que o somos? perguntou ele com um júbilo que parecia
transformá-lo em uma criança alegre.
- Mas vamos ver se o senhor me socorre, disse Ana com o intuito de não dar resposta ao que
Scott lhe perguntava. 94 Já que veio para libertar-me desta prisão, não encontra meio de vir abrir
a porta do ridículo cárcere em que me vejo cativa?
- Não. Já procurei por todos os meios acordar Pottle, mas o homem dorme como um porco,
roncando terrivelmente, e não acordou apesar de todo o barulho que lhe fiz à janela e batendo à
porta. Só vejo um meio de sair daí. É pela janela. Terá coragem para isso?
- Experimente e verá.
Scott tirou o sobretudo e a túnica da sua fantasia de Beaucaire que colocou sobre a grade da
varanda. Ana, da janela, pôde então observar que Scott, reduzido ao simples vestuário dos
calções de cetim e de uma camisa fina com rendas em babados, tinha um aspecto realmente
magnífico. Alto, com perfil esbelto, mas evidentemente de constituição robusta, o rapaz era- um
belo tipo de homem forte, elegante e ágil. Seus ombros largos e robustos delineavam-se
nitidamente e Ana pensou que não teria nenhum medo de descer da janela ao jardim sobre
aqueles ombros atléticos.
O rapaz depois de um momento de observação, trepou, pelas hastes de ferro da varanda e galgou
o telhado que se inclinava até o pavimento superior da casa. Quando o viu engatinhar por ali, Ana
perguntou-lhe sorrindo:
- O senhor acha que esse telhado é capaz de suportar o nosso peso?
- Estou exatamente experimentando, respondeu Scott que se foi arrastando até debaixo da janela.
Após um exame do telhado, Scott se certificou de que não havia dúvidas quanto à solidez da sua
estrutura, mas receava sempre que as telhas não fossem bastante resistentes.
- Não tenha medo de que a faça descer, sem estar previamente seguro de que não há nenhum
risco. 95
- Veja bem se esse telhado agüenta o peso de nós dois, observou Ana sorrindo, mas não sem
uma ligeira inquietação.
O rapaz foi-se arrastando e ao chegar junto à parede do pavimento superior agarrou-se a uma
trepadeira que a cobria, até à altura da cimalha. Nesse momento, Ana, debruçando-se sobre o
peitoril da janela, deu-lhe a mão e ajudou-o a pôr-se de pé sobre a goleira que terminava o
telhado da varanda. com uma das mãos Scott ficou agarrado à janela, enquanto oferecia a outra à
jovem.
- Tire a sua capa e passe-a para mim.
Ana seguiu as instruções do rapaz, que, tomando a capa, a atirou ao jardim, tendo o cuidado de
lançá-la de modo a cair sobre a relva. Em seguida, fez o mesmo com a bolsa, o leque de plumas e
o sapato que Ana não podia calçar, devido à dor no tornozelo. Scott procedia com uma calma e
um método, que fizeram com que Ana pensasse ter ele passado toda sua vida a socorrer moças
abandonadas em condições semelhantes àquelas em que ela se achava.
- Agora levante a vidraça o mais alto que puder. Depois sente-se no peitoril da janela, pondo as
suas pernas para fora.
Ana cumpriu às instruções o melhor que pôde, tendo o cuidado de cobrir o mais possível os
joelhos com a saia ao sentar-se no peitoril e virar as pernas para fora. Nesta ocasião, Scott
abaixou-se e carinhosamente lhe perguntou:
- Então é este o pèzinho machucado, não é?
- É, mas agora ele não está tão mal assim. Diga-me o que devo fazer mais?
- Afirme as mãos sobre os meus ombros.
A moça obedeceu.
96 - Apoie o pé esquerdo contra a parede, no lugar em que está o meu.
Ana curvou-se para ver e seguiu a ordem do rapaz.
- Agora, firme bem o pé direito na borda do telhado, no lugar em que está o meu pé.
Mais uma vez ela cumpriu as instruções.
- Agora, agarre-se com uma das mãos ao peitoril da janela e não se mexa.
Ana tirou a mão direita do ombro do rapaz e segurou-se ao peitoril como ele lhe mandara fazer.
- Vai tudo bem?
- Sim, respondeu a moça.
- Fique bem quieta, que agora vou tomar outra posição.
- Isso parece uma lição de tango, observou ela com uma risadinha.
- Não se mexa, ordenou rapaz que foi deslizando até à borda do telhado.
Aí agarrou-se com as pernas à haste de ferro da varanda, dizendo a Ana que lhe desse a mão
que tinha livre. Depois de agarrar com a mão direita a que a moça lhe estendia, ordenou-lhe que,
cuidadosamente, soltasse a outra do peitoril da janela e fizesse o mesmo segurando-lhe a mão
esquerda. Scott sentiu as duas mãos delicadas' da moça, que apertou com firmeza.
- Solte o pé da parede e o apoie na borda do telhado.
Ana cumpriu a nova ordem, procurando equilibrar-se. Enfim, o rapaz a fez escorregar o outro pé e
sentar-se à borda do telhado da varanda. Quando atingiu esta etapa 97
da operação, Scott teve um suspiro de alívio, vendo que o telhado resistira ao peso.
- O pior está vencido. O que resta a fazer é coisa simples. Ponha agora as suas mãos firmes
sobre o meu ombro esquerdo e deixe-me agarrá-la.
Ana, sem vacilar, obedeceu, enquanto Scott lhe passava o braço pela cintura e a atirava sobre o
outro ombro, como se estivesse a carregar um saco de farinha. Em seguida agarrou-se à haste de
ferro e deslizou com o seu precioso fardo. Alguns segundos depois Scott e Ana estavam no
jardim. Estiveram assim os dois bem unidos. Encarando o rapaz com ar risonho e satisfeito, ela
lhe disse:
- Dou-lhe os meus parabéns. O senhor organizou esta descida de um modo verdadeiramente
brilhante.
Depois permaneceram alguns momentos em silêncio, quebrado por Scott que lembrou ser tempo
de apanhar o que havia sido lançado ao jardim e prepararem-se para a partida. Enquanto o rapaz
ia buscar o capote, o leque e o sapato atirados ao gramado, Ana permanecia junto à grade da
varanda, apoiando o pé machucado. Depois de ajudá-la a pôr a capa e de ter também vestido o
colete, a túnica de Beaucaire e o sobretudo, o rapaz perguntou a Ana se o seu pé já suportaria o
sapato. Embora a inchação houvesse diminuído bastante, Ana verificou que lhe era doloroso
calçar-se.
- Prefiro ir só de meia. - Não, eu a carregarei.
E erguendo-a, Scott colocou-a sobre o ombro. Assim foram até à rua, onde o táxi continuava à
espera.
98
CAPÍTULO IV O automóvel estava encostado ao meio-fio e o chofer dormia profundamente com
as mãos apoiadas no volante. Scott abriu a portinhola e colocou Ana o mais confortàvelmente que
pôde, armando o assento da frente para que nele repousasse o pé machucado. Foi, em seguida,
despertar o motorista que extremunhado voltou a si, murmurando entre dentes uma praga.
Quando acordou de todo, ficou visivelmente amuado ao dar-lhe Scott o endereço dos Cameron,
ordenando-lhe que para lá se dirigisse. A casa era situada no extremo oposto de Upper Norton e o
motorista, que evidentemente zelava muito a reputação do seu veículo, sentia má vontade em
transportar com o dia já a clarear aqueles fregueses fantasiados e com ares de quem vinha de
uma grande farra.
Scott, compreendendo a situação, resolveu o problema insinuando que a paga seria boa. O
argumento produziu efeito imediato e sem mais murmúrios o chofer pôs em movimento o
automóvel.
Ana e Scott ficaram em silêncio por algum tempo. Estavam ambos fatigados e as emoções da
noite aumentavam o cansaço da vigilância. Foi a moça quem quebrou o silêncio.
- Pode-se muitas vezes presenciar um fato sem compreender-lhe a verdadeira significação. Devo,
portanto, pedir-lhe desculpas, sr. Kentish.
Não era necessário ao rapaz pedir explicações sobre o sentido destas palavras. Ana obviamente
aludia à cena que observara, no corredor do clube, entre ele e Nancy Hanshaw. A fúria de Scott
contra esta última não tinha limites, mas ele por muitos motivos não queria contar a Miss Maitland
o que se passara entre ele e a ciumenta 99
rapariga. Contentou-se portanto em dizer-lhe que não precisava apresentar desculpas, ficando ele
perfeitamente satisfeito por ver que ela agora compreendia a situação. Realmente, Scott não tinha
mais dúvidas de que Ana pensara mais calmamente no incidente e chegara à conclusão de haver
sido precipitada nas suas primeiras ilações.
- Compreendo, sim. E compreendo mesmo melhor que a sua modéstia o pode levar a crer,
interpôs Ana, lançando um olhar malicioso sobre o rapaz. Devo mesmo dizer-lhe que compreendi
desde o primeiro momento, mas queria fazer o pior juízo possível do senhor.
- Que diz? Então queria fazer o pior juízo possível de mim? Isso era maldade.
- Não foi propriamente maldade. Foi antes uma tolice. E o senhor há de achar-me muito
imprudente e muito desacatadora das convenções, e eu lhe disse que.
Ana ficou hesitante.
- Conclua. Quer dizer que gostou de mim? A moça sorriu e lhe disse:
- Muito obrigada por ter dito o que me era mais difícil dizer.
- Mas fui eu quem gostou primeiro, retrucou Scott.
- Não é a mesma coisa, não é verdade?
- Não é a mesma coisa, por que?
- Não é a mesma coisa, porque um homem não fica preso nas mãos de uma moça por gostar
dela, enquanto que uma mulher se compromete com um homem, desde que gosta dele. Pode ser
que isso seja uma injustiça, mas incontestàvelmente é a realidade.
- Mas isso ainda acontecerá em nossos dias?
- Sem dúvida, hoje como no passado e o mesmo sucederá no futuro. Não creia que esses
aspectos essenciais da posição do homem e da mulher na sociedade se
100 tenham alterado, pelo fato de os dois sexos estarem hoje muito mais associados e
desfrutarem uma liberdade mútua, outrora desconhecida.
- Mas isso será assim mesmo ainda?
- com toda a certeza.
- E isso acontecerá também no nosso caso?
- Não sabe como um homem costuma julgar uma moça que lhe mostra mais afeto do que ele
reclama dela?
- No entanto a mesma coisa ocorre com as moças a quem os homens manifestam sentimentos
que elas dispensam. Encaram isso apenas como mais uma demonstração do seu poder de
fascinação, mais uma conquista.
- Talvez; há, porém, uma diferença profunda entre os dois casos. Um homem pode insistir durante
anos em procurar namorar uma rapariga que não faça nenhum caso dele, sem que daí lhe resulte
mal algum. O mais que se dirá dele é que é um admirador persistente. Mas se uma moça dá um
sinal de afeto por um homem que não gosta dela, todas as solteironas maldizentes espalharão
imediatamente que a pobre coitada está fazendo um papel ridículo.
- Vamos dizer a verdade. Todos nós na sociedade estamos sujeitos à língua devastadora das
maldizentes, que nem todas são solteironas. Disse há pouco que uma moça, quando mostra
gostar de um homem, se entrega toda nas suas mãos.
- De fato, assim acontece, se ela encontra da parte do homem correspondência à amizade que
oferece.
- Creio entretanto que mostrei bem claramente que correspondia...
- Até certo ponto, sem dúvida. Mas depois observei aquilo que o senhor sabe e pensei que me
podia ter enganado consigo.
- Julgou então que eu era um bom canalha?
101
- Sim, e esse pensamento me trouxe algum conforto.
- Trouxe-lhe conforto?
- Sim, porque tendo eu mostrado em relação ao se' nhor certos sentimentos, que eu.
- Estava gostando de mim, não é verdade?
- Sim. Estava sentindo o que nunca sentira antes e por este motivo, quando assisti àquela cena
que o senhor sabe, fiquei mais contente em pensar que o senhor era um vilão, do que me julgar
uma tola.
Ana, que até então falava com voz calma, como" quem entretém uma palestra sem maior
significação, pronunciou as últimas palavras em tom baixo e com um tremor nos lábios. Scott
percebeu o que se passava no espírito da rapariga e inclinando-se para ela disse:
- Pequena flamejante, pode então julgar que eu tomava levianamente a amizade e os sentimentos
que manifestava para comigo? Não, não creio nisso.
- No íntimo do meu coração talvez não julgasse isso, mas as aparências me levavam a crer que o
senhor, a quem eu mostrara sentimentos diferentes, merecia figurar ao lado daqueles vários
idiotas com quem dancei e que levaram a noite toda a perseguir-me com as suas atenções. A voz
de Ana tornara-se mais ríspida e positiva. Scott instintivamente se afastou dela.
- Sua explicação não me satisfaz. Não havia motivo para julgar-me assim.
- Também me haviam dito que o senhor era um namorador inveterado, que procurava fascinar as
moças para deixá-las, logo em" seguida, no meio do caminho.
- Por que me julgou pelo que os outros disseram de mim, em vez de formar a sua opinião pelo que
eu lhe disse e pelo que nós ambos dissemos?
102 - Não guarde ressentimento. Já procurei desculparme, falando com uma franqueza que bem
deve compreender quanto significa.
Ana falava com doçura e suas palavras eram entrecortadas por visível emoção. Aproximara-se
mais de Scott, que por seu turno se achegara também a ela. Os dois tinham as faces quase a
tocar-se. Subitamente, ambos tiveram a consciência daquela aproximação em que se iam unindo.
A moça corou e os dois, como que em um absurdo movimento combinado, se afastaram um do
outro.
- Também lhe peço desculpas.
- É interessante como nos parecemos, disse Ana rindo. Scott aproximou-se de novo da moça e
com voz vibrante de alegria exclamou: - Pequena flamejante, por que perdeu tanto tempo em
descobrir isso?
Ficaram uns dez segundos em silêncio. Ana mais uma vez tomou a iniciativa de falar.
- Quer que lhe diga por que?
- Sim, pediu Scott com ansiosa curiosidade.
- Porque eu tinha medo do senhor, murmurou Ana em tom quase imperceptível.
- Ana! exclamou apaixonadamente o rapaz, quase surpreendido pela onda sentimental que de
súbito o empolgara.
- Ninguém deveria entrar assim na vida dos outros, para causar transformações tão profundas e
tão repentinas, disse ela no mesmo tom em que pouco antes falara.
- Então eu causei semelhante transformação em você? retrucou nervosamente Scott, que se
aproximara ainda mais da moça e lhe apertava agora a mão. Diga-me se a impressão que lhe
causei no primeiro momento foi tão forte, como aquela que você produziu sobre mim desde que a
avistei.
103
- Então eu lhe causei uma impressão assim? murmurou ela.
- Sim e você bem o sabe. Desde o momento em que a vi no salão, fiquei meio amalucado,
sentindo o que nunca sentira diante de mulher alguma.
Fazendo repentinamente uma curva, o táxi precipitou Scott para um lado, lançando Ana na
mesma direção. Antes que a moça desse conta do que se passava, o rapaz a agarrava, enquanto
a cabeça dela repousava sobre o seu peito. E por sobre as plumas que a enfeitavam, Scott foi
murmurando repetidas vezes:
- Ana, Ana, meu amor!
Ana procurou por alguns momentos desenvincilhar-se do homem que a abraçava, mas depois
aquietou-se e ficou encostada ao peito de Scott. Este afinal a afastou e endireitando-se muito
fixou-a em silêncio. Ana também o olhava desassombradamente. Na semi-obscuridade do táxi,
naquela manhã nevoenta de inverno, o rapaz via brilharem os olhos francos de Ana. Assim
ficaram muitos e muitos segundos, até que Scott exclamou:
- Meu Deus, não há mais dúvida que nos amamos apaixonadamente.
Os dois permaneceram em silêncio por algum tempo, sentados no fundo do automóvel, cada um
para o seu lado. Em seguida, voltaram-se e os olhos de Ana e de Scott trocaram mensagens
mudas, que exprimiam, mais eloqüentemente que palavras, tudo que os dois sentiam.
- Estamos apaixonados um pelo outro, disse de novo o rapaz e pouco depois repetia as mesmas
palavras, como que absorto em um monólogo que exprimia a alegria em que parecia compartilhar
todo o seu ser.
Foi ainda sob o impulso dessa alegria espontânea, que Scott se inclinou para Ana e passou-lhe o
braço pela cintura, procurando trazê-la para junto de si.
104 - Era por isto que eu tinha medo de você, disse ela com um ar que procurava tornar severo,
mas cuja artificialidade um espontâneo sorriso demonstrava.
- Diga-me, teve medo de mim desde o primeiro momento em que me viu? perguntou rindo Scott,
que fazia agora um esforço maior para abraçar Ana, cuja resistência, entretanto, se tornava mais
enérgica. Sem obter resposta da rapariga, prosseguiu cheio de entusiasmo: - Não tenha medo, o
amor é glorioso, torna felizes e enche de alegria aqueles que o aceitam sem relutância.
Cada vez mais arrebatado, o rapaz, que conseguira apertar Ana ao seu peito, procurou beijá-la na
boca, mas a moça, colocando rapidamente a mão nos lábios dele, deteve-o dizendo:
- Ainda não. Não faça coisas precipitadas para arrepender-se depois. Passamos uma noite cheia
de incidentes emocionantes e de episódios estranhos. Estamos ambos fatigados e não podemos
pensar com calma e lucidez.
- Tem então medo de arrepender-se?
- Não. Receio porém que, mais calmo, você modifique seus sentimentos.
- Por que entretém ainda essa desconfiança a meu respeito?
- Não me disse há pouco que passara toda a noite em um estado quase de delírio? Depois das
crises de loucura, as pessoas se arrependem do que fizeram durante esse estado.
- E você também não teria sentido esta noite um toque da mesma loucura que se apoderou de
mim?
Ana sacudiu a cabeça afirmativamente, dizendo:
- E é por isso que também acho que devemos esperar antes de ir mais longe.
A fisionomia de Scott tornou-se séria e, embora continuasse a passar o braço pela cintura da
moça, que já não 105
oferecia resistência, não fez mais nenhuma tentativa de beijá-la.
- Precisamos agir com calma, lembrando-nos de que há poucas horas ainda éramos
completamente estranhos um ao outro, disse a moça com calma.
- Não, nunca fomos estranhos. Quando a vi pela primeira vez no salão do clube, tive a impressão
de que a conhecia há muito tempo, de que sempre a conhecera. Diga-me agora, você não teve a
mesma impressão de mim?
Ana, lealmente, confessou que Scott lhe causara a impressão de um velho conhecido, ao que o
rapaz insistiu, para que ela não considerasse uma onda passageira de sentimento sem
profundeza o que a ambos empolgara de forma tão significativa.
- Você bem compreende, Ana, que o sentimento que irrompeu em nós não pode ser efêmero.
Uma criatura equilibrada e inteligente como você não é sujeita a essas crises, de capricho
sentimental. Pelo meu lado, também não o sou. Todos os meus companheiros me dizem que sou
um frio calculista, incapaz de sentimentalismo. Aliás, já lhe devem ter dito isso, não é verdade?
Com um sinal de cabeça, ela respondeu afirmativamente e continuou em silêncio. Scott,
curvando-se, pegou a mão delicada da moça e cobriu de beijos as pontas dos dedos.
- Sinto que se passou esta noite comigo alguma coisa estranha ao meu modo habitual de ser,
observou a moça, quando o rapaz voltou a acalmar-se um pouco.
- E foi por isto que teve medo, não foi?
- É bem possível, respondeu Ana. Um sentimento novo causa-nos sempre inquietação.
- Comigo também se deu o mesmo, mas tenho confiança tanto no meu sentimento, como no seu.
Poderá acreditar, Ana, que depois desta convergência espontânea
106 das nossas almas sob o impulso de um sentimento irresistível, qualquer de nós volte a ser o
que era antes?
- Não, tanto para mim como para você começou uma vida nova. É bem possível que você tenha
razão.
- Sim, tenho razão. O que nos empolgou a ambos não foi um acesso de loucura, mas sim uma
crise sadia de supersanidade, em que das profundezas do nosso espírito emergiram as forças que
nos atraíram um para o outro. Isso nada tem de comum com a loucura. É mesmo o antípoda da
loucura; é o que ocorre nos momentos excepcionais da vida, em que a nossa alma se ilumina com
uma fulgurante luz interior.
- Não duvido de nada disso. Creio, e sobretudo quero crer, que seja a realidade o que me está
dizendo. Mas não precipitemos os acontecimentos. Se dentro de vinte e quatro horas você estiver
com as mesmas idéias, não hesitarei. disse Ana sorrindo e olhando brejeiramente para Scott que,
com a face quase encostada à sua, se preparava para tentar de novo beijá-la.
- Pois bem, marquemos um encontro para amanhã de manhã.
- Está combinado, afirmou Ana com um sorriso alegre. Acho, porém, que a experiência deve ser
mais prolongada. Três dias, uma semana ou duas, não é prazo demasiado longo para se poder
pôr à prova a consistência do seu sentimento.
- Mas por que sujeitar à experiência o que já é evidente? Nós nos amamos um ao outro, nada
pode separar-nos e é absurdo imaginar que o sentimento que nos une venha a desaparecer.
Scott estreitava mais fortemente a jovem que, sob a influência da fadiga ou do estado de nervos
causado pelas emoções, parecia não ter mais força para resistir. O rapaz sentiu que dominava
enfim aquela mulher, sua face quase
107
tocava a dela. Um instante após roçava os lábios pelo rosto de Ana. Esta recuou e colocando
mais uma vez a mão sobre a boca de Scott afastou-se quanto pôde. O rapaz, entretanto,
conseguiu tirar a mão de Ana dos seus lábios e abraçando-a estava quase a beijá-la na boca,
quando uma pequena derrapagem, devida provavelmente a algum cochilo do motorista cheio de
sono, fez com que os dois fossem precipitados repentinamente primeiro para diante e depois para
o fundo do automóvel.
Esta inesperada ocorrência livrou das mãos de Scott Ana que, recuperando instantaneamente a
calma e a energia que a caracterizavam, disse em tom positivo:
- Não devemos fazer loucuras. Esperemos para agir como pessoas de bom-senso.
Nesse momento o táxi parava à porta dos Cameron. Scott prontificou-se a carregar Ana, que não
protestou e deixou-se carregar pelo rapaz que a levou até a calçada. Ali, quando a viu de pé,
apoiada ao seu ombro e mal se equilibrando, Scott teve uma visão nova da moça flamejante que o
fascinara. Já não era uma mulher forte, inteligente e original que se impunha e dominava. Era uma
moça abatida e fraca, cujos olhos exprimiam a profunda transformação interior que nela se
operara. No meio do nevoeiro quase dissipado daquela madrugada de inverno, Ana aparecia a
Scott como uma criatura débil, que encarava cheia de temor e de inquietação um mundo " novo
de mistério e de sonho, cujo limiar transpusera naquela noite de Ano bom.
Ao vê-la assim, Scott sentiu irromper de dentro de si os sentimentos mais delicados da sua alma,
sentimentos de que nunca se havia tornado consciente como agora. Dar a Ana toda a proteção
que lhe fosse possível, defendê-la de todos os perigos, afastar do seu caminho tudo que pudesse
embaraçá-la, constituía para o rapaz naquele momento o sentido do seu afeto por aquela mulher.
Tomou-a
108 nos braços, com um pontapé abriu o portão e carregou-a como se fosse uma criança.
Realmente, os sentimentos que uma criança inspira podiam comparar-se ao afeto sublimado de
Scott, quando, carinhosamente, ao chegar quase à porta da casa, murmurou junto à face da sua
amada:
- Criança flamejante, como eu a adoro!
Do jardim percebeu, através dos reposteiros da janela, que havia luz no "hall" e na sala da frente.
Evidentemente, estavam à espera de Ana e antes de ter completado o caminho do portão à casa,
Scott viu escancarar-se a porta e no "hall" profusamente iluminado distinguia-se o perfil de Mrs.
Maitland, que ao ver Ana, carregada pelo rapaz, teve um movimento de sobressalto. Mas a
expressão que Scott tinha na fisionomia tranqüilizou-a logo, fazendo-lhe ver que nada de sério
havia ocorrido.
- Estava ansiosa por vê-la voltar, minha filha, e imaginava o que a poderia ter feito demorar tanto.
Que houve?
- Nada de importante, mamãe. Apenas este meu maldito tornozelo que entortou causando-me um
sério contratempo, disse a rapariga, enquanto Scott a sentava cuidadosamente em um dos divãs
do "hall".
- Roddy me disse que você vinha com Maddie, mas quando ela chegou com Jacky fiquei
assustada por verificar que você não viera com eles.
- Pensei que você viesse com Maddie! exclamou Roddy da sala contígua.
- Eu também, interveio Scott, julguei que Miss Maitland tivesse partido com Roddy e fui levar
Nancy a casa. Depois verifiquei que.
Um pouco atrapalhado, Scott titubeava, quando Ana veio em seu socorro, esclarecendo a
situação.
109
- Não imaginam o que me aconteceu. Fiquei fechada no clube.
- Fechada no clube? exclamaram em coro Mrs. Mai. tland, Roddy. Maddie e Jacky Hanshaw.
Por entre risadas Ana contou como ficara fechada no "toilette" e como depois fora socorrida por
Scott.
- Mr. Kentish subiu à janela e guiou-me do quarto para o jardim. Mostrou eficiência e agilidade que
fariam inveja a um bombeiro veterano.
Mrs. Maitland convidou todos a tomarem chocolate e depois Maddie insistiu para que Scott
repousasse algumas horas, afirmando poder pôr à sua disposição uma confortável cama de
emergência. Mas o rapaz declinou do convite, dizendo que precisava ir quanto antes para casa a
fim de preparar-se para ir ao escritório que dentro em poucas horas estaria aberto.
Permaneceram todos em viva palestra por algum tempo, mas Scott falava maquinalmente e o seu
pensamento convergia exclusivamente para Ana, que Mrs. Maitland acomodara no divã e que se
mantinha silenciosa. O coração do rapaz batia fortemente e ele imaginava que o de Ana pulsasse
do mesmo modo, parecendo-lhe estranho que ninguém desse conta daquele dueto de
palpitações. Scott desejava ardentemente conversar a sós com a moça durante alguns momentos.
Queria afirmar-lhe mais uma vez que não era um indivíduo animalizado, que se tivesse deixado
arrebatar por uma onda passageira de paixão. Sentira o impulso de beijá-la e de obrigá-la pela
força a ceder ao seu desejo, mas os seus sentimentos para com ela não se limitavam a isso. Toda
a sua alma se agitava em uma espécie de culto idealizado, que tornava Ana de ora em diante a
razão de ser da sua existência.
Mas não era possível abordar a moça no colóquio que Scott desejava. Assim teve ele de partir. Ao
despedir-se
110 de Ana, disse-lhe que no dia seguinte à tarde telefonaria para saber como ia indo o pé
machucado. Maddie o interrompeu sugerindo que, em vez de telefonar, seria melhor vir vê-los,
que estariam todos em casa. Mrs. Maitland já havia convidado o rapaz para que os viesse visitar
logo que a família se instalasse na sua nova casa.
Por entre cumprimentos Scott partiu e já no táxi, a caminho do seu apartamento, começou a
pensar sobre os acontecimentos daquela noite e sobretudo acerca do que se passara naquelas
duas horas. O automóvel avançava pelas ruas, que começavam a encher-se de gente e de
veículos, e o ruido compassado do motor sincronizando com o atrito dos pneus sobre o asfalto
úmido ressoava aos ouvidos de Scott, dando-lhe a impressão de estar escutando duas palavras
apenas: Ana. Amor. Ana. Amor.
O táxi parou à porta da casa onde residia Scott, que gratificou o motorista com tanta
generosidade, que o homem não encontrou melhor fórmula de agradecimento senão dizer-lhe: "O
senhor pode ser um noctívago farrista, mas é certamente um cavalheiro". Na escada, o rapaz
encontrou a dona da casa, Mrs. O'Gorman, que há uns três anos dispensava ao seu inquilino
cuidados verdadeiramente maternais. Como de costume, Mrs. O'Gorman já se achava
impecàvelmente vestida com o seu casaquinho de lã, sobre o qual assentava corretamente o
avental. Cumprimentando Scott, a boa senhora exprimiu em um sorriso malicioso o seu
comentário sobre aquela entrada matinal.
- Que horas são, Mrs. O'Gorman?
- Já deram seis e não sei como o senhor hoje vai apanhar o seu trem das nove e dois minutos.
- Tenho de apanhá-lo de qualquer modo. vou meter-me na cama e às oito horas em ponto a
senhora irá acordar-me. Traga-me um café com pão torrado, um café
bem forte, o mais forte que a senhora já preparou na sua carreira de envenenadora de solteirões.
Farei a barba,
111
tomarei banho e vestir-me-ei às carreiras, mas custe o que custar apanharei o trem das nove.
- Café cem pão? Mas isso é lá pequeno almoço para um rapaz forte e que vai trabalhar como o
senhor? Não, hei de levar-lhe o almoço completo.
- Não, não se incomode comigo. Quero apenas café com torradas. Mais tarde, ao almoço, comerei
bem. E com estas palavras, Scott subiu pela escada a correr deixando Mrs. O'Gorman a limpar as
hastes de bronze que prendiam o tapete aos degraus. Quando o rapaz já se achava no alto, a
mulher exclamou galhofeira:
- Mas que foi isto, sr. Kentish? Champanha demais? Ou estará o senhor apaixonado?
Sem responder, Scott encaminhou-se para os seus aposentos. A boa Mrs. O'Gorman tinha de fato
a sagacidade feminina em assuntos de coração. O rapaz continuava a ouvir a música misteriosa
que lhe ressoava aos ouvidos dizendo: Ana. Amor. Ana. Amor...
Chegando ao quarto de dormir, desembaraçou-se às pressas da fantasia de Beaucaire, pôs o
pijama e meteu-se na cama. Começou logo a adormecer. Os quadros da noite perpassavam-lhe
céleres pelo espírito. O beijo que quisera dar em Ana trouxe-lhe aos lábios uma sensação de
calor. Plumas roçavam-lhe pelo rosto, mas tudo isso se foi tornando indeciso e dissipou-se afinal
no vácuo de um sono profundo.
CAPITULO VI
Ana tinha liberdade de repousar, sem as preocupações que haviam forçado Scott a contentar-se
com duas horas de sono, para não faltar ao escritório. Miss Maitland arranjara que as suas férias
fossem dadas para o Natal, de modo que coincidissem com a mudança e com o período de
arranjo da nova casa. Assim, não pensava em trabalho.
112 nem cogitava do seu chefe. Podia dormir o sono de que muito carecia, porque as emoções
daquela noite a haviam esgotado física, mental e emotivamente.
Entretanto, não pôde repousar logo; entre o sono e a vigília permaneceu por algum tempo.
Parecia-lhe, às vezes, que alguém queria beijá-la. Sentia os braços fortes de um homem que a
agarravam. Acordava sobressaltada. Pensava então no que se passara naquela noite, tão
diferente de todas as outras noites da sua, vida. Scott Kentish, de quem ela ouvira falar de
passagem na véspera em palestra com os Cameron, era agora para Ana não mais apenas um
nome, mas um homem, o homem por excelência, o homem que lhe despertava sentimentos de
que nunca dantes tivera conhecimento.
Mas tudo isso se passara com tanta celeridade e em circunstâncias tão estranhas, que Ana
perguntava a si mesma se aqueles sentimentos novos corresponderiam a uma transformação
definitiva da sua personalidade ou se não passariam de manifestações de uma loucura transitória.
Scott afirmara-lhe que aquilo não era loucura e talvez ele tivesse razão, mas, certamente, a
situação se apresentava ainda com um aspecto de irrealidade diante da própria precipitação
dramática dos seus episódios.
Quando Ana despertou horas depois de um longo sono reparador, os mesmos pensamentos
acudiram-lhe de novo. O cérebro revigorado pelo repouso funcionava agora com mais clareza. As
fortes emoções se tinham aplacado e ela raciocinava lücidamente. Reconstituindo as cenas da
noite e da madrugada chegava à conclusão de que Scott tivera razão em afirmar-lhe que os
sentimentos que a ambos haviam empolgado não eram efêmeros e resultantes de uma
passageira tempestade passional. Começava a acreditar seriamente que para ela se abriam as
perspectivas de uma; vida nova. 113
Entretanto, o organismo retemperado pelo repouso reclamava insistentemente alimento. Ana
levantou-se e estimulada pelo banho sentia um apetite sadio e imperioso. Etel, a criada dos
Cameron, veio avisar-lhe de que Mrs. Maitland e Kathie já estavam há muito tempo arranjando a
casa nova e de lá só voltariam à hora do chá. Ana pediu o almoço e pouco depois comia com
apetite quase voraz as costeletas com batatas amassadas, que Etel solicitamente lhe
recomendava como alimento precioso para a recuperação das forças após uma noite de fadiga e
de agitação.
- O sr. Roddy perdeu o seu trem hoje. Não foi culpa minha, porque lhe levei três vezes água
quente para barbear-se. A água ficou fria como gelo e ele continuava a dormir. Quando acordou
disse que estava com uma terrível dor de cabeça e saiu correndo, ainda a vestir o paletó e com a
boca cheia de pão com doce de laranja.
Ana deu uma risada, enquanto a criada prosseguia, lamentando-se agora do excesso de trabalho
porque, devido ao cansaço de todos com a festa da véspera, ninguém a ajudava no serviço
doméstico. Ana prometeu que logo que acabasse o almoço iria auxiliá-la um pouco.
- Miss Maitland, sua mãe disse que a senhora precisava ficar em repouso por causa do seu pé.
- Não, o meu pé não tem mais nada. Esta manhã a inchação já desapareceu. Posso perfeitamente
trabalhar.
- Se a senhora está em condições de fazê-lo, fico muito satisfeita e agradecida. Realmente, tenho
tido hoje tanto trabalho, que até agora só consegui fazer as camas. Todo o resto do serviço está
atrasado.
- Não houve nenhum telefonema para mim, Etel?
- Não. Ninguém telefonou e dou graças a Deus porque, se com tanto trabalho tivesse ainda de
atender ao telefone, seria capaz de ficar louca. A senhora está esperando algum telefonema?
114 - Não, respondeu Ana afetando desinteresse. Fiz a pergunta apenas por fazer.
Entretanto, a moça estava realmente ansiosa por saber se a haviam chamado ao telefone. E Etel,
mesmo quando houvesse percebido a ansiosa expectativa em que Ana se achava, teria sido por
certo incapaz de adivinhar os motivos e o alcance das preocupações que a levavam a voltar a
todo momento os seus pensamentos para o telefone.
Enquanto Ana auxiliava a criada nos arranjos da casa, aliás com eficiência muito relativa, porque
sendo uma excelente secretária do seu chefe, um negociante de couros, Miss Maitland não
brilhava muito em matéria de serviço doméstico, tinha os ouvidos sempre atentos à espera de
ouvir tocar o telefone. Mas não houve nenhuma chamada. E Ana. ia, pouco a pouco, ficando
nervosa, ao ponto de que a sua face já se achava congesta. Às quatro horas soou enfim uma
chamada telefônica. A moça correu ao aparelho e, com o coração a bater, pôs o fone no ouvido.
Mas a voz que vinha do outro lado da linha não era de Scott. Era a de uma mulher.
- Miss Maitland está? Miss Ana Maitland.
- É Ana Maitland que está falando.
- Aqui é Nancy Hanshaw.
- bom dia, Miss Hanshaw, como vai? disse Ana desagradàvelmente surpreendida, mas tendo
dado à sua voz o tom da máxima cortesia.
- vou mal. Estou com os olhos encovados e muito feia. Aliás, isto se explica depois da noite que
passamos, não é?
- Não creio que possa estar feia, Miss Hanshaw, respondeu Ana amàvelmente e obedecendo
também ao impulso da sinceridade que a caracterizava. Realmente, Ana achara Nancy uma moça
linda.
115
- Estou telefonando para ter notícias suas. Meu irmão Jacky, que entrou em casa a uma hora
escandalosa e dormiu até depois do almoço, contou-me as suas aventuras. Disse-me que ficara
presa no clube e que fora socorrida por Scott Kentish, que a libertou com uma escada de cordas
por entre peripécias românticas.
Nancy pronunciara estas palavras com uma emoção que escapou a Ana, que teria ficado
surpreendida se tivesse podido ver a expressão de ansiedade estampada no rosto da outra, a
quem fora apresentada na véspera e com a qual, verificara logo, nunca poderia travar relações de
amizade. Nancy achava-se em grande excitação nervosa. Sem ter na vida ocupações, nem
preocupações, consagrava todo seu tempo e toda sua atividade a satisfazer caprichos, não
recuando nunca diante dos meios a que recorria para realizar os seus objetivos mundanos.
Prendendo Ana no "toilette" do clube, Nancy ultrapassara a medida e estava alarmada com as
possíveis conseqüências do ato que praticara. Telefonara a Miss Maitland a fim de verificar se
Scott não a comprometera com ela. Assim, ficou suspensa à espera da resposta da sua rival.
- Foi um caso engraçado, respondeu Ana rindo. Creio que aquele velhote que toma conta do
clube, fechando as portas, como de costume, me deixou trancada no "toilette". Não compreendo
bem como o idiota não viu que havia luz acesa ali, mas atribuo o fato à circunstância de ter ele
talvez bebido demais. Entretanto, tudo correu sem maior contratempo e da aventura guardo
apenas a recordação do seu lado pitoresco.
- Mas, Miss Maitland, esse caso não ficará provavelmente assim, retrucou Nancy aliviada, mas
ainda receosa do que pudesse surgir em torno do incidente.
- O que pode ainda acontecer a esse respeito? Estou perfeitamente bem e dou o caso por
encerrado.
116 - Não, a comissão administrativa do clube provavelmente vai abrir um inquérito e o velho
Pottle se verá bem atrapalhado. - Ah, o homem chama-se Pottle? É um nome que fica bem a
quem gosta tanto de ir ao pote. Mas, Miss Hanshaw, não desejo de modo algum que se faça mais
barulho com esse assunto. Ficaria muito triste se, logo à minha entrada em uma sociedade tão
alegre, me tornasse causadora de dificuldades e aborrecimentos para alguém.
- E não será apenas um aborrecimento para Pottle, porque é bem possível que a comissão o
demita.
- Não, não posso consentir nisso. Você não faz parte da comissão?
- Não, mas meu irmão Jacky é um dos membros.
- Então, peça-lhe por obséquio que faça abafar este caso.
- Outro membro da comissão, e muito influente, é Scott Kentish. Por que você não fala com ele?
- Falarei, sem dúvida, quando o encontrar, respondeu Ana com perfeita polidez, mas com uma
expressão de desprezo, que Nancy não teria gostado de ver.
- Quando falar a Kentish, pode dizer-lhe que eu também me associo a seu pedido. Scott Kentish
costuma fazer tudo que lhe peço.
- Se for necessário, não deixarei de apelar para a sua influência, disse Ana, não podendo conter
na voz uma nota de frieza, aliás não notada por Nancy.
- Miss Maitland, permite-me que a visite quando estiver instalada na sua nova casa?
- Certamente. Terei imenso prazer em recebê-la.
E as duas moças, que vinham desde a véspera travando uma luta bem feminina, despediram-se
com as palavras convencionais de cordialidade, escondendo cada uma delas, nas
117
patas aveludadas, as garras felinas com que desejariam mutuamente estraçalhar-se.
Ana, entretanto, já tinha o espírito formado em um ambiente de trabalho mental, cuja influência
tendia a emancipá-la do círculo em que as mulheres se habituaram a uma vida irreal, em que o
tempo tem de ser ocupado com essas querelas, que deram ao seu sexo o feitio peculiar, julgado
por muitos como imutável condição prescrita pela natureza. As convenções já repugnavam àquela
moça moderna, integrada em outras atividades e outros interesses. O diálogo telefônico que
acabava de ter com Nancy Hanshaw causava-lhe um certo desgosto e parecia-lhe pouco digno da
sua personalidade. Dirigindo-se para o "hall", Ana tirou um livro da estante e deitou-se no sofá
com intenção de ler. Mas a conversa com Nancy estimulara-lhe os pensamentos, que já a vinham
absorvendo, e a moça começou de novo a impacientar-se com a falta de um telefonema de Scott.
De momento a momento olhava para o seu relógio de pulso. Já passava de quatro e um quarto e
a campainha do telefone continuava silenciosa.
Eram quase quatro e meia, quando Mrs. Maitland e Kathie entraram, contando pressurosamente
as grandes coisas que haviam feito na casa. A criada veio servir o chá e enquanto mastigavam
torradas e tomavam chá, as duas falavam em guarda-roupas, camas, armários, poltronas, tapetes,
cortinas e aparadores, pedindo a opinião de Ana sobre a maneira como haviam resolvido os
inúmeros pequenos problemas do arranjo doméstico. Ana, porém, respondia maquinalmente,
concordando com tudo, sem saber mesmo o que lhe diziam a mãe e a irmã. Terminado o chá,
Mrs. Maitland e Kathie partiram de novo, para recomeçar os seus trabalhos na nova casa. Ana
ficou pensativa. Não encontrava explicação para o silêncio de Scott. Por que não teria ele
telefonado como prometera? Seria possível que tudo aquilo tivesse sido mesmo uma crise de
exaltação 118 e de loucura, que se desvaneceria sem deixar vestígios na vida de nenhum dos
dois? Talvez Scott estivesse acanhado em dar-lhe a entender que os seus sentimentos não eram
mais os mesmos, que exprimira tão fortemente pela madrugada.
Olhou mais uma vez para o relógio de pulso. Um quarto para as cinco. Ana não podia mais conter-
se. Sua excitação a impelia a procurar abrigo contra os seus pensamentos em uma forma
qualquer de atividade física. Deixou o livro que não conseguira ler e subindo a escada foi para o
seu quarto de dormir. Ali deu com o vestido a fantasia que usara na véspera e com os sapatos de
baile. O vestido estava amarfanhado e precisava ser passado a ferro. Os sapatos, amassados de
tanto dançar, traziam-lhe, à memória as impressões daquela noite de agitação. Ana pegou do
vestido, mas o turbilhão de idéias e a vibração das emoções não lhe deixavam mais ter a iniciativa
de qualquer forma de trabalho que pudesse distraí-la. No seu cérebro repercutia, monòtonamente,
a mesma pergunta angustiosa: "Por que Scott não telefonara até àquela hora? "
Súbito, a voz de Etel interrompeu a ansiosa preocupação da moça.
- Miss Maitland, está aqui o sr. Kentish procurando pela senhora.
Ana ouvira alguns segundos antes tocar a campainha da porta, mas isso não a interessara porque
sua atenção se concentrava apenas no telefone, que lhe deveria trazer a chamada de Scott. As
palavras da criada causaram-lhe, portanto, um choque que lhe fez pulsar violentamente o
coração. Mentalmente repetiu: "Está aqui o sr. Kentish e procura por mim".
- Etel, peça ao sr. Kentish que espere dois minutos. vou descer imediatamente.
A criada saiu apressada e Ana parou diante do espelho, examinando a sua fisionomia. Achou que
tinha as faces
119
demasiadamente coradas. Pôs pó de arroz, mas parece-lhe que o efeito fora contraproducente.
Suas bochechas afiguravam-se-lhe ainda mais reluzentes. Recorreu de novo ao pó de arroz que
espalhou cuidadosamente. Passou o pente pelos cabelos bronzeados e desceu para receber
Scott.
Na sala de visitas, Scott olhava para fora, pela janela, e Ana, ao entrar, quando deu com aquele
rapaz espadaudo e de cintura delgada, vestido com uma roupa de sarja azul e os seus cabelos
bem penteados para trás, teve uma impressão estranha. Dir-se-ia que contava ver ali de novo o
Beaucaire vestido de cetim e de cabeleira empoada, que na noite precedente entrara pela sua
vida, abrindo-lhe uma nova perspectiva do futuro. Parecia-lhe que aquele homem que ela via de
costas, com a indumentária banal de todos os homens, não era o príncipe encantado que lhe
despertara pela primeira vez, no seu coração de mulher moderna, um sentimento novo e
impetuoso.
Quando Scott se voltou e deu com Ana de pé junto dele, teve também uma surpresa por não se
achar ali outra vez aquela moça flamejante e com os cabelos ornados de plumas que se agitavam
ligeiramente, como se alguém as estivesse misteriosamente soprando.
- Então, estamos outra vez na terra! exclamou o rapaz, procurando dar à sua voz um tom
convencional.
- Sim, estamos de novo na terra, que é tão diferente do mundo de fantasia em que passamos
juntos algumas horas, não é verdade? Sinto-me em terra firme melhor que em qualquer paraíso
de ficção.
- Como me acha melhor, agora ou como eu estava ontem? Está vendo pela primeira vez a cor dos
meus cabelos e eu também só neste momento é que posso apreciar a tonalidade dos seus.
Ana, sem hesitar, respondeu:
120 - Prefiro-o como está agora. E quanto a mim? Acha-me melhor hoje ou gostava mais da moça
flamejante como ontem me chamava?
- Quero-a assim como está, como estava ontem e de todas as maneiras.
Ana fechou os olhos, recostando-se no sofá, diante do qual Scott, sentado em uma poltrona, a
fitava com a fisionomia iluminada por um sorriso de indescritível alegria.
A moça convidou Scott para tomar chá e tendo ele declinado, perguntou-lhe se viera diretamente
do escritório."
- Sim, vim diretamente de lá.
- Antes de mais nada, quero pedir-lhe que não consinta que o pobre Pottle sofra coisa alguma por
ter-me fechado no "toilette". Como membro da comissão administrativa, você pode impedir que
lhe imponham qualquer castigo.
- Pottle? Mas eu não vim aqui para conversar sobre Pottle. Que história é essa? Quem lhe disse
que Pottle ia sofrer alguma coisa em conseqüência do que se passou ontem?
Ana, após um momento de hesitação, contou-lhe que Nancy Hanshaw lhe telefonara, dizendo-lhe
que Jacky levara a notícia do caso. Ao pronunciar o nome de Nancy a moça corou, ao mesmo
tempo que notava enrubescer-se também um pouco o rosto de Scott.
- E o seu pé, como vai?
- Muito melhor. Apenas, de vez em quando, me incomoda um pouco.
- Antes assim. Receei que a torcedura a aborrecesse por alguns dias. Mas, vamos agora ao nosso
caso. Já está convencida de que o que se passou ontem entre nós não foi loucura? Eu sei que
não estive em delírio e os sentimentos que me dominaram ontem são os mesmos hoje, e não se
modificarão nunca.
121
- Isso é mesmo certo?
- Absolutamente. E, no seu caso, foi loucura?
- Também não foi. Convenci-me de que você tinha razão.
- E não se arrepende de ter duvidado? continuou Scott, indo colocar-se por trás do sofá. Pondo as
mãos sobre os ombros de Ana, murmurou-lhe ao ouvido: Arrepende-se agora? Reconhece que eu
tinha razão, quando a acusava de ter sido injusta?

- Sim, mas compreenda bem o que se passou comigo. Tudo foi tão rápido e no meio de um
ambiente tão perturbador, que. receei tivéssemos sido ambos vítimas de uma exaltação
momentânea. Pensei que podíamos hoje estar arrependidos e, pior que isso, sem coragem de
confessar um ao outro que nos tínhamos iludido.
- Mas tudo isso está dissipado e, agora, dê-me o beijo que me negou ontem.
Scott, tomando Ana pela cintura, abraçou-a estreitamente. A moça pôs as mãos no pescoço dele
e durante muitos segundos estiveram assim unidos e com os lábios colados. Quando se
separaram, Ana, fitando o rapaz com um olhar malicioso, perguntou-lhe:
- Quantas namoradas você já teve, Scott?
- Este é o primeiro amor que tenho na vida. Não tive nenhum namoro a não ser aos 17 anos. Ela
também tinha 17 anos, era cheia de corpo, bonita e gostava de cebolas.
- E você teve amor por ela?
- Não, o amor não foi bastante para resistir às cebolas.
Os dois riram e Scott mais uma vez interpelou Ana, censurando-a carinhosamente por ter negado
o beijo que ele lhe pedira no táxi.
122 - Então não me queria dar um beijo, hein?
- Sim, queria e por isso mesmo é que não dei. Você estava muito arrebatado e já falei e disse que
tinha muito medo de que nos arrependêssemos.
- Eu estava mesmo quase fora de mim, mas não quero que você pense que sou um bruto e,
sobretudo, que nunca imagine que aquela exaltação era uma onda passageira de paixão e de
entusiasmo. Adiantando-se de novo para Ana, estreitou-a fortemente, cobrindo-lhe de beijos a
face. Depois sorrindo, ficaram algum tempo em silêncio, que Scott rompeu perguntando: Ana,
quando nos casaremos?
- Quando você quiser; lembre-se, porém, de que nos conhecemos ontem e a notícia do nosso
noivado tão repentino fará com que todos nos julguem loucos.
- Pois que pensem de nós o que quiserem! gritou ele com um gesto que parecia de desafio ao
mundo inteiro.
CAPITULO VII
Os dois não ficaram por muito tempo a sós. Roddy chegou da cidade ainda a queixar-se dos
efeitos da noite anterior e pouco depois entrava o velho sr. Cameron. Era um escocês alto e
ossudo, tendo o sotaque característico da gente do seu descampado natal. Não existia mais a sra.
Cameron, que havia falecido há muitos anos, deixando inconsolável o marido que tinha por ela
profundo afeto e que depois de sua morte perdera quase todo o interesse na vida. A palestra girou
em torno de assuntos banais e Scott, a quem o pequeno deus do amor dera naquela tarde um
enternecimento inteiramente fora dos seus hábitos, estava absorto e respondia maquinalmente ao
que se lhe perguntava.
123
O sr. Cameron entrou a discutir assuntos econômicos, que depois da morte da mulher constituía o
principal consolo da sua solitária viuvez. Scott sentiu a necessidade de intervir mais ativamente na
conversa e procurou interessarse nos temas que tanto fascinavam o velho Cameron. com a
chegada de outras pessoas a conversa tornou-se mais geral e animada, o que facilitou a posição
de Scott e de Ana, que sentiam agora menos embaraço em disfarçar os seus sentimentos. Assim
o tempo foi passando, sem que nenhum dos que ali se achavam suspeitasse do noivado tão
repentinamente assentado por aqueles dois, que vinte quatro horas antes ainda não se
conheciam.
Scott foi convidado para o jantar que correu de acordo com as convenções. A palestra versou
sobre o baile da noite anterior, comentando-se as fantasias, fazendo-se a crítica da orquestra e
discutindo-se as várias histórias de inocente maledicência que haviam circulado durante a festa.
Pottle foi também posto em debate, tendo sido sugerida a conveniência de um castigo para o seu
ato indesculpável de prender no "toilette" a hóspede de honra do clube.
- Ele não estava com a cabeça regulando bem, adiantou Roddy. Desde o princípio da noite esteve
a beber e, portanto, é natural que mais tarde não soubesse bem o que fazia.
- Acho que deveria ser despedido, interveio Maddie. O fato de estar embriagado não é
desculpável e não me parece que se deva perdoá-lo por esse motivo.
- Não se pode deixar de tomar a sério o contratempo que ele causou a um convidado do clube,
afirmou Roddy.
- Mas quando o convidado deseja que não se fale mais do caso, não há razão para pensar-se em
castigos, disse Ana que com grande satisfação observou que Scott apoiava vivamente a sua
opinião.
Dirigindo-se a este, a moça pediu-lhe que interviesse junto aos outros membros da comissão
administrativa a fim
124 de que Pottle nada sofresse e o caso fosse dado por encerrado.
- Seria para mim motivo de grande pesar tornar-me causadora de sofrimento para alguém, logo no
primeiro dia em que pus o pé no clube, concluiu a moça.
Curvando-se para Ana, Scott, em tom de não ser percebido pelos outros, murmurou-lhe
lembrando-lhe que ela havia feito sofrer outra pessoa.
- Não me faça corar. Não quero hoje estar dando explicações maçantes aos outros.
- Então, afaste-se de mim, porque senão lhe dou imediatamente um beijo.
- Olhem Scott e Ana em conciliábulo para obter a comutação da sentença do velho criminoso!
exclamou Maddie, provocando uma risada geral.
- Acho que Ana tem toda razão, observou Mrs. Maitland. Nós ainda não estamos instalados em
nossa casa e...
- A propósito da nossa casa, Ana, o seu guarda-roupa branco, que devia ficar no quarto, foi posto
na alcova, interveio Kathie. É bom que você amanhã apareça por lá e dê uma vista d'olhos para
ver se isso lhe agrada.
- Tudo que agradar a você estará bem para mim, respondeu Ana em um tom de cordialidade, em
que se patenteava quanto o seu pensamento estava longe daqueles arranjos domésticos.
- Mas você, Ana, interpôs Mrs. Maitland, precisa não se esquecer de que vamos passar naquela
casa o resto da nossa vida. Quanto tempo você ficará lá?
Ana não ouviu as últimas palavras de sua mãe, porque Scott já lhe perguntava em murmúrio: -
Quanto tempo, Ana, você pretende morar lá? - Quanto tempo calcula você? retrucou a moça. -
Se eu tivesse uma casa pronta para você, não ficaria ali nem cinco minutos. 125
- Todos acabarão dizendo que somos dois loucos, murmurou Ana sorrindo.
- Scott, para que está você a querer assustar Ana com esses olhos esgazeados? disse Maddie.
Ela o viu ontem com aquela cabeleira, sem a qual ninguém mais dá importância a você.
Scott verificou então que se achava muito encostado a Ana e afastou-se rapidamente, corando um
pouco e dizendo a Roddy, com uma risada, que chamasse à ordem sua irmã.
- É inútil qualquer esforço, exclamou Roddy.
- Aquela cabeleira estava adorável, Scott, continuou Maddie. Não concorda comigo, Ana?
- Sim, ficava-lhe muito bem.
- Você gosta mais dele de cabeleira ou sem cabeleira? Apesar de tudo, Ana, acho que você o
prefere assim sem cabeleira, não é verdade?
Ana concordou com o que Maddie acabava de dizer, enquanto Scott, chamando Miss Gameron de
diabinho, a intimava, gracejando, a pôr termo às suas perfídias. Ao mesmo tempo, com a mão
escondida por baixo da mesa, apertava a delicada mãozinha da sua noiva com tanta força que ela
não pôde conter um gritinho de dor.
- Então você deve gostar muito dele, disse Maddie em tom malicioso e provocador.
- Sem dúvida, gosto muito! exclamou Ana no meio de uma risada geral. E voltando-se para Scott
disse a meia voz, de modo a não ser ouvida senão por ele: Não há nada melhor, para não se ser
acreditado, que dizer a verdade com toda a franqueza. Scott apertou de novo a mão de Ana,
desta vez sem violência e acariciando-a ternamente.
Acabado o jantar, o rapaz resolveu não se demorar. O velho Gameron, na forma do costume,
recolhera-se logo
126 ao seu gabinete de trabalho para ocupar-se com a sua correspondência. Maddie e Kathie
foram ajudar a criada na copa. Mrs. Maitland, estirada em uma poltrona, bocejava sonolenta,
tentando despertar para atender à costura que tinha nas mãos. Roddy, ainda sofrendo os efeitos
da ressaca da noite anterior, recolheu-se ao quarto.
Quando se viu a sós com Ana, Scott perguntou-lhe se não achava bom que ele fosse
imediatamente fazer o pedido de casamento a Mrs. Maitland.
- Não, respondeu a moça, não faça isso hoje, Scott. Eu mesma irei primeiro contar tudo à mamãe.
- Mas você irá dizer hoje mesmo? Acho conveniente que ela saiba de tudo quanto antes.
- Sim, contar-lhe-ei tudo esta noite.
Depois de se ter despedido de Mrs. Maitland, Scott dirigiu-se para a porta em companhia de Ana.
No "hall" tomou a moça nos braços e beijou-a longamente. Depois perguntou-lhe se ela o amava
muito. Ana respondeu com um aceno de cabeça, mas o rapaz não se contentou, exigindo que ela
o dissesse. Ana acedeu ao desejo, colando os seus lábios aos do noivo afirmou-lhe o seu grande
amor.
Em seguida ajudou-o a pôr o sobretudo. Scott ainda uma vez a abraçou e beijou ternamente. Por
muito tempo estiveram unidos, sem que nenhum tivesse coragem de se separar do outro.
Chegando ao jardim, Scott deu a volta até a porta da cozinha para despedir-se de Maddie e de
Kathie.
- Desculpe-me, Scott, não ir falar com você, gritou Maddie de dentro da copa. Estou aqui
atrapalhada com um serviço. Considere-se fervorosamente abraçado por mim. 127
Recolheram-se tarde para dormir e nessa ocasião Ana, chamando sua mãe de parte, disse-lhe
que precisava contar-lhe alguma coisa. Na casa dos Caméron, onde estava hospedada a família
Maitland, Ana tinha um quarto à parte, enquanto Mrs. Maitland e Kathie dormiam juntas em outro
aposento. Ana conduziu sua mãe para o seu quarto e logo que entraram fechou a porta. Mrs.
Maitland compreendeu logo que se tratava de alguma coisa grave e ao mesmo tempo pareceu-lhe
que Ana estava tão exuberante, que dela se diria irradiar uma aura luminosa. Mrs. Maitland era
uma dessas criaturas dotadas de espírito prático e de equilíbrio mental, que em geral são
consideradas muito materialistas e às quais ninguém se lembraria de atribuir uma poderosa
imaginação. Entretanto a boa senhora tinha como contrapeso daquele senso prático e realístico
uma viva imaginação. Essa faculdade entrava sobretudo em ação quando se tratava dos filhos e
particularmente de Ana.
Assim, Mrs. Maitland sentou-se na cama da filha enquanto em seu espírito galopavam idéias
fazendo-a imaginar uma infinidade de possibilidades acerca do que Ana lhe iria revelar. Mas entre
todas as hipóteses que ia vertiginosamente formulando, não figurava o caso que Ana subitamente
trouxe ao conhecimento de sua mãe quando esta no seu habitual tom de serenidade perguntou:
- Então, o que há? Conte-me tudo, porque estou preparada para o pior.
- Mamãe, Scott Kentish pediu-me em casamento.
Mrs. Maitland bem sabia que aquilo havia de acontecer mais tarde ou mais cedo, mas bem longe
dela estava o pensamento de que o casamento de Ana pudesse vir a ter lugar tão depressa.
Surpresa e atrapalhada diante da inesperada comunicação, limitou-se a interrogar de novo a filha
com o olhar.
128 - Sim, mamãe, ele me pediu e eu aceitei. Estamos noivos.
A realidade delineava-se agora de modo inequívoco e Mrs. Maitland começou a compreender todo
o alcance da nova situação. com a imaginação que possuía e que era talvez ainda mais ativa pela
circunstância de não se manifestar em palavras ou em outras expressões exteriores, Mrs.
Maitland sempre idealizara os filhos. Ao casar-se aspirava acima de tudo tornar-se mãe de uma
prole bela e destinada a um grande sucesso na vida. Kathie, a primeira que nasceu, logo na
infância foi fazendo ruir o sonho de Mrs. Maitland, profundamente desapontada com a parcimônia
com que a natureza dotara a sua primogênita em matéria de beleza. Ana viera reanimar as
esperanças de Mrs. Maitland. Nela, ainda mais que em Guy, o mais moço de todos,
concentravam-se os sonhos de grandeza daquela boa senhora, que parecendo ser pessoa tão
prática e equilibrada era contudo uma incurável utopista.
Ana não realizara talvez o ideal de beleza feminina ambicionado pelo amor maternal da sua
progenitora. Não era de fato um tipo de beleza desses que ganham prêmios em concursos,
estéticos, mas tinha um extraordinário encanto e um misterioso poder de fascinação. Era ainda
muito inteligente, original e dotada de aptidões que a tornavam notável em qualquer meio em que
aparecia. Todos esses atributos reconhecidos pelos outros eram ainda mais intensamente
apreciados por Mrs. Maitland.
Desde que Ana se tornara moça, em torno dela fervilhavam as atenções dos homens. A mãe
compreendia bem que a filha poderia casar, fazendo a sua escolha de alto a baixo, desde os que
ocupavam as mais elevadas posições, até os mais humildes. É claro que Mrs. Maitland não se
conformava com que Ana pudesse escolher alguém entre as camadas inferiores. 129
Por todos esses motivos, a comunicação que Ana lhe fizera, com a sua habitual franqueza e tendo
na voz apenas um ligeiro toque de nervosidade, vinha lançar por terra os castelos que Mrs.
Maitland durante anos pacientemente construíra em horas de devaneio. Scott Kentish causara-
lhe uma excelente impressão. Parecia-lhe um ótimo rapaz e dele só ouvira as melhores
referências, mas certamente não correspondia ao padrão de noivo que Mrs. Maitland imaginara
sempre para Ana, que não era somente a sua filha predileta, mas também a depositária das
esperanças de ver realizado um sonho que acariciara durante vinte anos.
Ana percebeu o desapontamento de sua mãe e perguntou-lhe se receava que achassem aquele
noivado tão inesperado um sinal de maluquice dos noivos.
- Maluquice não, minha filha, mas é realmente uma coisa súbita. Você conheceu ontem Scott
Kentish. Quando foi que ele lhe pediu, em casamento?
- Desde o primeiro momento em que nos vimos tivemos ambos o sentimento de que nos
amávamos. Mais tarde, no táxi, ele me fez uma declaração. Resolvemos, entretanto, não decidir
nada sem ter pensado sobre o caso. Esta tarde foi que ele me fez o pedido e eu aceitei.
- Mas quanto tempo vocês pensaram sobre o caso? Quando eu era moça, o que se chamava
pensar sobre um assunto desses era...
- Bem sei, mamãe, que naquela época não se faziam essas coisas a correr. Lembre-se, porém, de
que estamos em outros tempos.
- Sim, é verdade. Mas este seu noivado é ultramoderno pela rapidez.
- A senhora não gosta de Scott?
- Pelo contrário, gostei imensamente dele e só ouvi fazerem-lhe as mais elogiosas referências.
Estou apenas chocada pela precipitação do fato.
130 - Pensamos menos de vinte e quatro horas, é verdade. Mas há ocasiões em que vinte e
quatro horas valem mais que vinte e quatro dias.
- Tenho algum receio, minha filha, porque sei como na sua idade uma carinha bonita produz às
vezes uma impressão fulminante. Olhe, eu tinha dezessete anos quando conheci seu pai.
- Então a senhora apaixonou-se também por papai de repente? Ele era muito bonito?
- Muito. Tão bonito, que por causa dele mandei passear um homem de bem, que infelizmente era
feio.
- Ah! É aquele homem que está ao seu lado naquela fotografia que a senhora tinha sobre a
prateleira do fogão do quarto de dormir? A senhora não foi feliz com papai?
- Não, minha filha; fui muito infeliz.

- Ele era mau?


- Não sei, minha filha. É muito difícil dizer-se se um homem é mau ou bom.
- A senhora foi infeliz porque meu pai tivesse vícios? Era dado a bebidas?
- Não; sofria de uma dispepsia crônica, que lhe tornava o uso do álcool insuportável.
- Então era aquele homem da fotografia que queria casar com a senhora?
- Sim, pobre Jim Glenny, que eu sacrifiquei porque não era um Adonis!
- Imagine uma mulher que sabe cozinhar esplendidamente como a senhora, casada com um
homem dispéptico!
- Sim, mas a dispepsia não foi o pior. - Ele tinha outras mulheres, não?
Mrs. Maitland ficou em silêncio e depois dirigiu-se carinhosamente à filha: 131
- Não desejava que você viesse a saber essas coisas. Falei-lhe nisso apenas para mostrar como
uma carinha bonita pode arruinar a vida de uma mulher.
- E a senhora sofreu muitos anos?
- Nove anos. Seu pai morreu pouco depois do nascimento de Guy, quando você ainda não tinha
dois anos.
- Mamãe acredita que Scott seja capaz de fazer-me o mesmo que papai fez consigo?
- Não. Ele tem uma fisionomia muito leal. Tem a boca de um homem de bem. Não há -nada que
indique mais o caráter de um homem, que o corte dos seus lábios.
- Mamãe, devo dizer-lhe que não me apaixonei por Scott por ele ser bonito. Quando verifiquei
isso, já gostava muito dele. É claro que fiquei satisfeita com a sua bela aparência física. Mas a
senhora precisa saber que nós, moças de hoje, já não nos entusiasmamos só pela beleza dos
homens. No seu tempo as mulheres ficavam de beiço, caído diante de um par de suíças
emoldurando uma cara bem talhada. Nós agora temos um outro padrão para julgar os homens e
as carinhas bonitas só fulminam hoje as tolas de cabeça vazia.
- Bem, minha filha, desde que você é feliz, eu também sou. Fiz-lhe estas ponderações, porque me
lembrei do que me aconteceu há tantos anos.
Mrs. Maitland ficou em silêncio, enquanto a filha lhe acariciava os ombros. A boa senhora tinha a
consciência de não ter sido bem sincera no que acabava de dizer à filha. A questão da rapidez da
paixão e da precipitação do noivado não se afiguravam a Mrs. Maitland como pontos de tanta
importância. Argumentara desse modo porque sentia necessidade de fazer algumas objeções a
um casamento que não correspondia ao que ela idealizara para a filha. Mas percebia também que
lhe seria muitíssimo difícil expor os seus verdadeiros pensamentos sobre o caso. Ainda para
132 atenuar o efeito da alusão à sua infelicidade doméstica, lembrou a Ana que apesar de Scott
ter traços fisionômicos que pareciam imunizá-lo de certas tendências, convinha não esquecer que
a infidelidade não é a única causa dos desastres conjugais.
- Enfim, Ana, estou contente porque a vejo feliz. Acha que devemos participar imediatamente o
seu noivado?
- Não; por enquanto a comunicação será feita apenas à família. Conte logo isso a Kathie e vá se
acostumando a chamá-lo de Scott. Prepare-se para outras surpresas...
- Bem, Ana, vá dormir. Você precisa descansar. com todas essas emoções ficará doente, se não
tiver repouso. Não pense mais no que lhe disse. Não quero que me julgue uma espécie de ducha
fria sobre o seu entusiasmo.
Ana despediu-se da mãe, aludindo ainda à situação nova que para ela se abria e insistindo em
que, ao tratar-se de questões dessa natureza, era preciso sobretudo ter em vista os aspectos
essenciais das coisas.
- Aspectos essenciais das coisas. murmurava Mrs. Maitland ao sair do quarto da filha.
Essa foi a história do noivado de Ana Maitland e de Scott Kentish. História secreta, exceto para a
família Maitland, que guardou entretanto' o mais rigoroso sigilo, durante uma quinzena, até ficar
instalada definitiva e confortàvelmente na sua nova casa. Enquanto isso, corriam pelo bairro os
mais insistentes rumores, justificados aliás pelo fato de que Ana e Scott estavam sempre juntos.
Ao cabo de alguns dias era voz corrente que o mais desejado dos homens solteiros de Upper
Norton caíra afinal no laço.
133
Nancy Hanshaw acompanhava os acontecimentos, rangendo os dentes e arrancando cabelos
metaforicamente. Contudo, a sós em seu quarto, a bela Miss Hanshaw freqüentemente
transformava a metáfora em realidade. Tendo verificado que Scott não a traíra, relatando a Ana o
segredo de que era depositário acerca do episódio do aprisionamento de Miss Maitland no
"toilette" do clube, Nancy começou a fazer-se amiga íntima da sua rival. Logo que a família
Maitland se instalou, foi uma das primeiras a visitá-la, representando também sua mãe de quem
foi portadora de cumprimentos a Mrs. Maitland.
Desde então Nancy fazia freqüentes visitas a Ana, procurando principalmente escolher as noites
de sábado e os domingos. Esta preferência era provavelmente devida à circunstância de que
então, invariavelmente, encontrava Scott na casa dos Maitland. O rapaz, embora tratasse Nancy
com frieza, era contudo sempre correto e cortês para com ela.
Em presença de Scott, Nancy afetava ainda maior intimidade e carinho com Ana, chamando-a de
querida Ana, Aninha e dando-lhe apelidos ternos. Combinava com ela fazerem compras juntas,
idas a teatros e cinemas.
Ana compreendia perfeitamente o que se passava na alma de Nancy. Sabedora das intenções
que ela tivera em relação a Scott, sentia-se enjoada com aquela impertinente afetação de uma
amizade cuja insinceridade bem percebia. Mas Ana estava por tal forma empolgada pela alegria e
felicidade do seu noivado, que não tinha tempo de aborrecer-se com as manobras pequeninas e
pueris da sua despeitada rival.
Scott era cada vez mais estimado por Mrs. Maitland, a quem retribuía com um afeto crescente.
Kathie, na simplicidade do seu generoso coração, tornara-se uma verdadeira amiga do seu futuro
cunhado. Guy tinha por Scott
134 uma admiração sem limites. Isto nenhum mal fazia ao rapazinho porque, se Scott tinha, como
toda gente, alguns defeitos, possuía grandes qualidades e Guy só tinha a lucrar em tomá-lo como
modelo.
Entretanto, os dois noivos puseram-se a campo para fazer os preparativos do ninho nupcial. Scott
tomou um apartamento situado não. a uma distância demasiadamente grande de South
Kensington. Mandou decorá-lo de acordo com as tendências estéticas dele e de Ana. Os dois
julgavam o melhor tempo da sua vida o que ocupavam em comprar mobília e os outros objetos
para a casa que estavam arranjando. Não adquiriam um vasto mobiliário, mas tudo que
compravam era de boa qualidade, achando encantador o engenho com que conseguiam fazer de
vez em quando uma pechincha.
Scott dispunha de um pecúlio regular, fruto das suas economias. Além disso, o dinheiro entrava-
lhe com facilidade pelo bolso mas ia saindo também depressa com os arranjos do apartamento.
Mas, naquelas circunstâncias, o rapaz não tinha tempo nem disposição para pensar nesse lado
financeiro. O noivado continuava secreto e era para Ana e Scott um motivo adicional de prazer o
fato de estarem fazendo os arranjos da sua futura casa, enquanto todos fora do pequeno círculo
da família Maitland ignoravam que já fossem noivos.
A vida corria em um mar de rosas para Ana e para Scott. A moça insistia em que o noivado fosse
curto. Adoravam-se mutuamente, tinham recursos para viver confortàvelmente. Em tais
circunstâncias, para que demorar o casamento? Nada os preocupava e nenhum incidente vinha
perturbar-lhes a felicidade.
Até o caso de Pottle foi resolvido de modo a satisfazer os desejos de Ana, que não queria que o
pobre administrador do clube sofresse qualquer castigo pelo seu aprisionamento.
135
A comissão administrativa ocupara-se do assunto mas, diante das informações de que Miss
Maitland solicitava insistentemente indulgência para Pottle, limitou-se a repreendê-lo pelo seu
estranho procedimento naquela noite. Quando Pottle foi chamado e acusado de haver em estado
de embriaguez fechado uma pessoa no "toilette", o velhote ficou assombrado e protestou com
veemência.
- Eu? Não podia ter feito isso. Fechar o "toilette" com a luz acesa e ainda por cima atirar fora a
chave? É coisa que nunca teria feito. Juro sobre a Santa Bíblia.
- Você estava embriagado e fez isso sem ter consciência.
- Não, meus senhores. Estava embriagado, mas por isso mesmo era incapaz de subir a escada.
Minhas pernas não me sustinham mais. Conheço-as bem porque são minhas e sei que quando
bebo demais a primeira coisa que me acontece é não poder subir escadas.
A comissão não quis aprofundar o caso, não obstante dois dos seus membros terem ficado um
tanto impressionados pelo que Pottle dissera. Mas como se tratava apenas de uma repreensão
sem maiores conseqüências, não havia necessidade de investigar mais exaustivamente o
incidente, como seria preciso fazê-lo, se porventura se cogitasse, por exemplo, de demitir o velho
administrador.
Scott, depois da reunião, foi a casa dos Hanshaw comunicar a Nancy que o incidente estava afinal
encerrado. A moça teve uma tal sensação de alívio que, tomada de uma crise de emoção,
começou a chorar. Scott e Nancy conversavam a sós no "hall". Ela nervosamente o agarrou pelo
braço, mas o rapaz se afastou com um gesto ríspido.
- Scott, você me jura que nunca contará isso a ninguém?
- Não pretendo contar e não o farei, a não ser que se torne necessário.
136 - Como? Você será capaz de repetir isso a outra pessoa? Você não é mais o Scott tão meu
amigo?
- Digo que não contarei se não for necessário. Pôr exemplo, se o caso de Pottle se tivesse
complicado, eu não poderia conscienciosamente ficar calado.
- Então, para salvar Pottle da demissão, você teria sido capaz de cobrir-me de vergonha?
- Se acha o caso tão grave, quem se cobriu de vergonha foi você ao praticar semelhante ato.
- Mas, Scott, você nunca contará a Ana, não é?
- Por que o faria? Ana é a última pessoa a quem desvendaria esse segredo.
- Você está tão loucamente apaixonado por ela...
- Parece que está com vontade de me submeter a um interrogatório.
O diálogo se ia tornando demasiado desagradável para Scott que friamente se despediu e saiu
satisfeito de ver-se livre daquela situação de constrangimento. Quando se viu sozinha, Nancy teve
uma crise nervosa, atirando-se em uma poltrona e exclamando:
- Sou realmente muito estúpida.
No dia seguinte as últimas esperanças da obstinada e caprichosa rapariga se dissiparam, ao
receber Mrs. Hanshaw um cartão de Mrs. Maitland, convidando a família para uma festa que
oferecia, a fim de comunicar aos amigos o noivado de sua filha Ana com o sr. Scott Kentish.
CAPITULO VIII
Antes de terminado o mês de março, Ana e Scott estavam casados. O noivado fora dos mais
curtos e os dois não se conheciam ainda havia três meses. No dia do casamento, Ana e os outros
membros da família 137
maitland passaram pelas provações inerentes a uma celebração de núpcias realizada de acordo
com grande cerimonial. Ana quisera que o seu casamento tivesse a maior solenidade possível.
Isto de casamentos modestos não era para ela. E desde algumas semanas antes do
acontecimento, Upper Norton já andava excitado pela antecipação da grande festa mundana.
De Manchester viera o tio Leslie, irmão de Mrs. Maitland, e fora também convidada Amy, a única
pessoa sobrevivente da família do falecido sr. Maitland. Este último convite não fora muito
espontâneo e obedecera apenas às injunções do bom tom, que não permitiam excluir da
cerimônia a única prima de Ana pelo lado paterno.
Esta, depois de ter tido nos dias precedentes preocupações em que era acompanhada por Mrs.
Maitland e por Kathie acerca da pontualidade dos automóveis, arranjo da casa, das minúcias do
lanche, sem esquecer as apreensões sobre a indumentária das damas de honra, cujos sapatos
deviam corresponder às prescrições protocolares, estava agora absorvida pelo seu vestuário de
noiva. Mrs. Maitland e Kathie auxiliadas por Etel, que os Gameron haviam emprestado para a
solenidade, esmeravam-se em tornar absolutamente perfeita aquela obra de arte que devia
envolver Ana em um brilho lunar, coado através de uma neblina de tecidos delicadíssimos e
quase impalpáveis.
Quando a noiva ficou pronta foram chamados a pronunciar-se sobre aquela obra de beleza o tio
Leslie e Guy, o irmão de Ana. Leslie que não era militar, mas tinha no aspecto uma aparência
indiscutivelmente marcial, armou o monóculo e, erecto e firme, como se estivesse passando em
revista tropas, observou a noiva por longo tempo, pronunciando afinal o seu veredicto conciso,
mas eloqüente: "encantadora". Guy contentou-se em dizer que o arranjo da irmã estava bem
regular e que ela não parecia mal com
138 aquela fantasia. Etel, que acabara de atender a um dos últimos detalhes da obra, costurando
ajoelhada, deixou-se ficar nessa postura e, em atitude mística balbuciava, virando os olhos: "Miss
Ana, como a senhora está bela!" Em seguida, a criadinha dos Cameron, levantando-se, pensou
em si mesma e exprimiu em frases exuberantes a alegria que sentia ao pensar que iria para a
igreja assistir ao casamento com o seu vestido novo de blusa cor de rosa.
Mrs. Maitland e Kathie pediram a Ana que fosse ver a mesa do lanche, para que elas tivessem
tempo de prepararse, envergando a sua indumentária de grande gala. A noiva desceu a escada,
tomando infinitas precauções para não se atrapalhar com a cauda e com o véu. A sua impressão
da sala de jantar foi realmente de deslumbramento. A decoração feita com "daffodils", a única flor
que se podia achar naquele fim de inverno, dava à sala um aspecto encantador. A mesa,
sobrecarregada de finas iguarias de todo gênero, tinha ao centro o clássico bolo de casamento
que, erguendo-se com os seus cinco degraus e alvo como se tivesse sido feito de neve, parecia
ter uma curiosa consciência da sua importância no simbolismo culinário da festa.
Do alto do grande bolo partiam delicados cordões, donde pediam pequenas campainhas de prata.
Esses cordões vinham amarrar-se diante do talher dos convivas, em uma espécie de âncora, que
constituía uma lembrança que cada um deveria guardar em recordação do casamento de Ana
Maitland com Scott Kentish. Os mais modernos e originais bolos de casamento não se
emanciparam ainda da influência das idéias e do espírito artístico dos anos da década de
quarenta do século passado. A fertilidade inventiva dos criadores desses monumentos de
escultura culinária não consegue tirar às suas criações o que quer que seja que evoca os quadros
e o ambiente social de há noventa anos atrás. Assim, o contraste entre o bolo de casamento e as
bodas contemporâneas é sempre perceptível.

139
Mas naquele caso era mais, muito mais berrante ainda, a quem, depois de ter estado a observar o
imponente bolo tão evocativo dos quadros dos primeiros anos do reinado da rainha Vitória,
lançasse o olhar sobre Ana com o seu vestido de noiva, que parecia feito de um tecido de
madrepérola, adaptado como uma couraça ao seu corpo de formas que lembravam mais as de
um adolescente atlético, que as das mulheres do século passado. Entre aquela noiva e o seu
vestuário de um lado e as gazes e tecidos quase imateriais que ornavam o bolo, havia uma
contradição, em que se exprimia tudo que separa a mulher de hoje das suas antepassadas de
cem anos atrás.
Ana foi em seguida examinar a mesa, observando uma a uma as lembranças destinadas aos
convidados e lendo os seus nomes. Ficou contente com tudo e quando chegou aos lugares
destinados a ela e à outra estrela da festa e viu escrito no cartão "Mrs. Scott Kentish", sentiu o
coração pulsar em alvoroçada alegria.
A linguagem contemporânea em questões de casamento não tem o colorido romântico das
fórmulas consagradas de outrora. Mas nem por isso deixam de exprimir com a mesma eloqüência
estados de alma em última análise idênticos. Ana, examinando cheia de contentamento os
detalhes do seu lanche de casamento, a murmurar interjeições que teriam arrepiado os cabelos
das noivas do tempo da crinolina, se elas tivessem podido adivinhar tais irreverências de
linguagem, e a entoar em vez de baladas líricas os últimos temas aprendidos de uma banda de
"Jazz", manifestava os mesmos sentimentos humanos das noivas de todos os tempos. Estava
arrebatada pela idéia de casar-se com Scott, a quem amava com todo o amor de que era capaz.
Uma noiva do século passado encarava o casamento como a solução necessária do problema da
sua vida. Casar era vencer; ficar solteira era o desastre. Ana tinha sobre

140
as suas predecessoras a inestimável vantagem de não se achar mais nessa atitude trágica em
face do casamento. As moças de nossos dias não casam mais por necessidade. A mulher
conquistou uma situação social e econômica em que pode deliberar sobre questões de sentimento
com a liberdade que outrora era privilégio exclusivo dos homens. Tinham também o direito de
fazer a sua escolha e, o que é mais importante ainda, a educação e a cultura as haviam habilitado
a fazer essa escolha com possibilidades de acertar. Somente criaturas destituídas de bom-senso
podem agora casar em obediência cega aos impulsos de um sentimento primário, ligando-se a um
homem para constituir um lar a que falta a base insubstituível dos meios materiais para uma
existência confortável, alegre e feliz.
Ana rejubilava-se por ter sabido resistir até encontrar um homem que lhe podia dar na vida o
conforto, o prazer e as vantagens sociais do casamento. Scott não era ainda um homem rico, mas
ganhava bastante para que pudessem viver sem preocupações e tinha diante de si abertas as
perspectivas de uma melhora progressiva da sua já confortável situação.
Imponente no meio da mesa, o bolo de casamento, alvo como a neve, parecia opor às idéias
modernas daquela noiva emancipada de sentimentalismos arcaicos o espírito romanesco de eras
passadas. Dir-se-ia que naquela evocação de tradições e de idéias antigas, havia uma oportuna
advertência de que, por mais ultramodernas que sejam as noivas e as suas idéias, não devem
esquecer que vão fazer a coisa mais velha que há no mundo: casar-se.
A chegada dos automóveis conclamou a família para a partida. Seguiram a caminho da igreja,
Ana sem dar nenhum sinal de. emoção, além da alegria que irradiava de toda a sua
personalidade. Tal foi o desembaraço com que entrou pela nave, de braço com tio Leslie, que
Nancy
141
Hanshaw, que fizera questão de assistir ao casamento, disse à amiga que estava mais próxima:
"Parece até que ela já se casou pelo menos duas vezes."
Avançando por entre os convidados e curiosos que enchiam a nave, Ana estava em um estranho
estado de espírito. Sob certos pontos de vista a sua lucidez aumentara extraordinariamente. Por
outro lado, parecia que o seu cérebro se achava envolvido em neblina. Observava tudo e todos
com uma admirável precisão. Tia Amy foi o primeiro objeto da sua análise tão rápida quanto
meticulosa. Viu todos os detalhes das modificações e consertos feitos no seu velho vestido de
tafetá. Verificou que a tia trazia diamantes falsos e que em um dos adereços faltavam algumas
pedras. Apreciou o colar de pérolas verdadeiro e que na família constava ser muito valioso, mas
que pendurado ao seu pescoço enrugado produzia um desagradável efeito estético. Ana lembrou-
se que aquele colar, segundo tradição, era tudo que restava a tia Amy como lembrança de um rico
namorado, de quem fora noiva em tempos imemoriais.
Depois foi sobre a pequena Etel que se concentrou a atenção de Ana. Notou que a blusa do seu
costume parecia-lhe ainda mais cor de rosa que quando a vira em casa. Ao passar por Mrs.
O'Gorman reparou que a boa dona da pensão onde morava Scott estava tão alegre, que parecia
prestes a dar pulos para aliviar a tensão dos nervos. Ana imaginou mesmo Mrs. O'Gorman
saltando a empunhar uma bandeirola que naturalmente seria verde e teria ao centro um trevo
amarelo, como condizia aos sentimentos nacionalistas da velha irlandesa.
Encantou-se com a aparência e o porte de Mrs. Maitland que, com o seu vestido cor de aço,
estava quase bela e tornava-se impressionante com o seu aspecto de grande dignidade. Não lhe
escaparam também as fisionomias dos que se alinhavam à sua passagem, principalmente as das
142

mulheres, em cujas faces via estampados sentimentos de simpatia e admiração aqui, de crítica
em outras e finalmente de positiva inveja em muitas. Ainda observou como Jacky Hanshaw estava
elegante e à altura dos seus deveres de pajem de honra.
Finalmente deu com os olhos em Scott, notando que o noivo estava um pouco pálido, com os
lábios cerrados e talvez alguns trejeitos na face exprimindo suas fortes emoções. Nesse
momento, Ana ficou surpreendida ao ver que já se achava junto ao altar, onde ia começar a
cerimônia matrimonial. Os dois noivos olharam-se por um segundo. A mão de Scott ao colocar no
dedo de Ana o anel nupcial estava quente como se ele tivesse febre. E, depois, quando as duas
destras se apertaram em um simbólico gesto de união, Ana, que continuava absolutamente calma,
ficou impressionada pela contração nervosa dos dedos do noivo.
Entretanto havia na moça um alheamento das coisas que a cercavam. Somente ao sair da nave
de braço com Scott e ao som da Marcha Nupcial tocada ao órgão, Ana voltou à sua plena
consciência normal. E somente no automóvel sentiu-se de todo a mesma pessoa que era antes.
Scott beijando-a furtivamente disse-lhe:
- Mrs. Scott Kentish. Este nome não lhe parece bonito?
Ana sorriu, apertando fortemente a mão do noivo.
- Olhe, Ana, é preciso que essa história de convidados não nos tome muito tempo. Lembre-se que
temos de apanhar o trem.
- Pensa então que posso esquecer-me disso?
- O sul da França. Vamos ter um belo tempo, Ana.
Ela concordou com um olhar brilhante, que parecia já descortinar as terras de luz e de calor onde
iriam passar a lua de mel.
143
O lanche correu admiràvelmente. Mrs. Maitland revelara as suas aptidões de dona de casa. Sob
todos os pontos de vista o casamento de Ana fora um sucesso, de que a" elite de Upper Norton
guardaria lembrança por muito tempo. Tio Leslie, homem de outros tempos e de outros costumes,
não pôde dispensar um brinde solene aos noivos. O velho entusiasmou-se e chegou a ser
eloqüente. O auditório que acompanhava um pouco enfastiado aquele dispensável número
oratório, não pôde conter uma gargalhada, quando em certo ponto do discurso a prima Amy
interrompeu o orador com um caloroso "apoiado".
Ana foi mudar o seu vestido de noiva pelo traje de viagem e Amy pediu para assistir à sua
"toilette", o que não podia deixar de ser deferido. A velha solteirona encontrava um consolo ao
fracasso das suas remotas esperanças matrimoniais em assistir a casamentos e manusear a
indumentária das noivas. Assim, quando pegou do vestido que Ana acabava de tirar, esteve por
longo tempo em êxtase admirando-o com olhos lacrimosos, como se estivesse a contemplar uma
relíquia sagrada.
- Desejo que vocês sejam muito felizes, disse afinal.
- É com isso que contamos, respondeu Ana com uma risada.
- Mr. Kentish parece-me um excelente rapaz. Tem ar de quem deve ser um excelente marido.
- Sem dúvida; não é fácil encontrar alguém como ele.
- Vocês dois se amam muito, com certeza?
- Sim, nós nos afinamos muito bem.
- No meu tempo o amor era tudo, murmurou a prima Amy, evidentemente um pouco
desconcertada pelo tom alegre e ligeiro em que a noiva moderna falava sobre o assunto.
144 - Ainda hoje o amor continua a valer muito. Eu e Scott nos havemos de amar até a morte.
- Você então poderia amá-lo ainda que ele não tivesse um vintém.
- Alto lá! Isso não. Essa história de amor sem vintém é coisa em que nem eu, nem Scott jamais
pensamos. Só o amor não basta para fazer a vida feliz. Nessa época de vida cara e quando há no
mundo tanta coisa desejável e que enche a vida de prazer e alegria, casar sem dinheiro é uma
tolice, em que só podem cair os idiotas. Não, Scott e eu temos outra idéias sobre o casamento e a
vida em comum.
- Mas o amor em uma choupana tem muitos encantos suspirou a velha.
- Qual! Isso de amor em choupana é bonito nos romances. Na vida real acaba sempre em um
inferno. Monotonia, insuportável trabalho doméstico, vestidos velhos e remendados, credores
batendo à porta e os inevitáveis atritos que surgem sempre na pobreza. Não, eu e Scott queremos
tirar da vida tudo quanto ela nos puder dar. Nada de sacrifícios. Não pretendemos envelhecer
prematuramente no meio de aborrecimentos. Tanto eu como ele temos excelentes empregos e o
que ambos ganhamos representa uma receita suficiente para levarmos uma vida folgada e feliz.
Ana abaixou-se e vestiu o seu costume castanho de viagem e com um sorriso ofereceu o ombro,
para que a prima Amy a abotoasse. Enquanto atendia ao pedido, a solteirona, com um ar um
pouco espantado e no qual transparecia mesmo um certo horror, perguntou medrosamente:
- Então você, Ana, vai continuar no seu emprego?
- Por que não? Seria ato de rematada loucura abrir mão de um lugar tão bem remunerado e cujo
trabalho em nada embaraçará minha vida,
145
- Scott gostará que você continue empregada?
- com certeza. Ele ficaria mesmo muito desgostoso, se eu desejasse perder o meu emprego.
- Minha querida, cabe ao homem sustentar a mulher e zelar para que nada lhe falte. Lembro-me
de que o meu nunca esquecido Perci sempre me dizia que o seu maior motivo de orgulho era
pensar que me daria tudo e que seria sempre o meu apoio na vida.
Ana não deu resposta e a velha, como se estivesse monologando prosseguiu românticamente:
- O meu pobre Perci morreu de um acidente. E eu, que teria tido tudo na vida, se me tivesse
casado com ele, fiquei sem nada e a única coisa de valor que possuo é este colar de pérolas que
ele me deu como presente de noivado. Mas, se Perci não tivesse morrido, nunca teria precisado
mexer um dedo para trabalhar, concluiu a velha em tom orgulhoso.
- Essa história de alguém ter de cuidar de mim e lutar em minha defesa não me agrada. Já me
habituei a fazer o meu caminho na vida. Quero que Scott seja o meu companheiro; não desejo,
porém, ficar na exclusiva dependência do seu apoio. Acho que no casamento a mulher não deve
deixar de ter a sua própria independência garantida e por isso quero continuar a trabalhar.
- Mas, minha querida, o seu trabalho não virá embaraçá-la quando... chegarem os filhos?
interrogou Amy murmurando quase as últimas palavras, como se a alusão à prole dos recém-
casados envolvesse assunto escabroso.
- Os filhos? Isto é para mais tarde.
- Às vezes a minha língua me trai um pouco e falo demais. É claro que não me referi a filho já.
Eles podem vir, ninguém sabe quando. E deve ser tão doce ter criancinhas! concluiu a solteirona
com uma expressão de 146 sentimentos maternais que nunca haviam tido oportunidade de
encontrar objeto para os seus carinhos.
Ana completava nesse momento a "toilette", colocando sobre a cabeça, que com o cabelo cortado
curto mais parecia a de um rapaz, o gracioso chapeuzinho da mesma cor do costume.
Apressadamente, a moça acabava de fazer a mala, quando a primeira Amy, abrindo o seu velho
vestido de tafetá, fez sair das profundezas o que se afigurou a Ana ser um grande novelo azul.
Mas, diante dos seus olhos cheios de surpresa, viu a velha desdobrar um xale de finíssima lã
Shetland.
- Isso é para você cobrir a cabeça quando for aos bailes.
Ana ia soltar um gritinho de espanto diante da idéia sugerida pela ofertante, mas era uma moça
bem educada e conteve-se em tempo, exclamando amàvelmente:
- Era isso exatamente que eu queria.
- Trouxe isso para você, mas quando vi como eram luxuosos os seus presentes de casamento,
fiquei envergonhada e quis entregar o meu pobre presentinho a sós.
Ana, movida, agora por um sincero impulso de reconhecimento, Abraçou Amy e deu-lhe dois
beijos no rosto enrugado, guardando em seguida o xale na mala.
Poucos minutos depois os recém-casados despediam-se alegremente da família e dos
convidados que os acompanhavam até o automóvel. Ao abraçar e beijar Mrs. Maitland, Ana disse-
lhe carinhosamente que não chorasse, ao que a mãe retrucou-lhe, lembrando-lhe que bem sabia
que ela não era dada a esses desfrutes. Sob uma chuva de arroz e de pequeninas ferraduras de
papel prateado, Ana e Scott, por entre os votos de felicidade de todos, entraram no automóvel,
partindo imediatamente para a sua viagem de núpcias,
147.
Nenhum dos dois havia ainda saído da Inglaterra. A primeira experiência de uma viagem ao
estrangeiro vinha assim acrescentar um novo elemento de prazer à intensa alegria de Ana, ao
sentir-se na plenitude das suas possibilidades de mulher. A viagem correu admiràvelmente, como
se tudo se tivesse combinado para afastar dos noivos qualquer incômodo ou contratempo. O
próprio Canal da Mancha portou-se corretamente. Tão calma foi a travessia, que Ana nem deu
conta do ligeiro jogo do vapor. Apenas Scott teve uma breve crise de silêncio e palidez, cessada
aliás logo que pôs pé em terra firme. O novo ambiente que os cercou logo ao desembarque trouxe
ainda sensações novas e interessantes. Scott resolveu magistralmeinte as pequenas dificuldades
habituais com os funcionários aduaneiros. Falava com eles em francês. O rapaz, tendo
compreendido a importância do conhecimento das línguas no mundo das finanças adquirira uma
ligeira familiaridade com vários idiomas exóticos. No francês, entretanto, fizera progressos que lhe
permitiam falá-lo correntemente. Ana observava orgulhosa o desembaraço com que o marido se
dirigia aos funcionários franceses, cuja fisionomia viva e gesticulação vibrante lhe causavam uma
impressão extraordinariamente pitoresca.
Completadas as formalidades do desembarque, ao cabo de alguns minutos o casal achava-se em
um confortável compartimento do trem que partia para Paris.
- Meus parabéns. Que rapaz brilhante e desempenado arranjei para marido!
- Isto não é nada. Você vai ver o meu francês quando estiver encomendando "menus", disse Scott
em tom petulante. O rapaz estava satisfeito por ver a excelente impressão que causava na
esposa.
148 Já eram mais de nove horas da noite quando os dois, em um pequeno apartamento no hotel
em que se haviam hospedado, deliciavam-se com o jantar organizado por Scott. Durante a
refeição a conversa foi viva e cheia de alegria. À sobremesa Ana declarou que aquele fora o
melhor jantar de sua vida e felicitou Scott pela habilidade em arranjar "menus".
- Acho que a minha boa estrela nunca me protegeu tanto como neste jantar. Fique sabendo que
só vim a conhecer os pratos que encomendei quando os comi.
A conversa prolongava-se e Ana, que irradiava felicidade de todo o seu ser, exclamou afinal como
que tomada de surpresa:
- Como parece que a manhã de hoje está longe de nós...
- E você está contente por ver que estamos tão longe desta manhã? perguntou Scott
aproximando-se dela. Está satisfeita por ver-se casada?
A moça respondeu com a cabeça e Scott, segurando-lhe a face, beijou-a, dizendo-lhe
carinhosamente:
- Bem sei que está contente.
- Em seguida sentou-se ao lado de Ana e ia beijá-la de novo, quando o garção batendo à porta os
fez afastarem-se subitamente. Logo que o garção saiu, Ana levantando-se disse que ia
desarrumar a sua bagagem - "a nossa bagagem", corrigiu logo com um sorriso.
- Está se sentindo fatigada, querida?
- Não, não propriamente fatigada.
Passando ao quarto de dormir, Ana ficou satisfeita com o aposento. O quarto era espaçoso, muito
elegantemente decorado. A ele se seguia o quarto de vestir, depois do qual vinha a sala de
banho. Aberta a mala, a moça foi retirando vestidos e outros objetos, inclusive frascos de 149
perfume, pulverizadores e outros artigos de "toilette" que colocou sobre a penteadeira. Scott, que
ficara fumando na outra sala, entrou depois no quarto e perguntou quase cerimoniosamente:
- Está bem?
Ótimamente. Você não quer que lhe desarrume
a mala?
Não, minha querida; eu mesmo farei isso.
Pegando da sua mala, Scott passou ao "toilette". Ana, através da porta aberta, ouviu o tilintar das
chaves e acompanhou os ruidos de toda a arrumação que o noivo fazia, de modo apressado e
bem diferente dos processos minuciosos e artísticos que ela ia seguindo no arranjo do que era
seu. Ao cabo de uns dez minutos, Scott voltou ao quarto de dormir e Ana sentiu um movimento de
irritação ao observar que ele continuava com o cigarro entre os lábios. Àquela insistência em
fumar provocava-lhe uma íntima e inexplicável má vontade. Scott recostou-se em um divã ,
continuando sempre a fumar. Lançando para ele o olhar, Ana ficou impressionada pela beleza do
rapaz, que estava realmente esplêndido com o pijama de seda que tinha vestido. Ela por seu
turno devia causar impressão não menos forte em Scott, com o quimono que pusera em'
substituição ao costume de viagem e que com as sandálias de seda que calçara lhe dava um
aspecto encantador de sedutora intimidade. Tomando o xalezinho azul que lhe dera a prima Amy,
Ana quebrou o silêncio, dizendo a Scott:
Veja que coisa bonita para pôr à cabeça quando
for ao teatro. Isto ficaria admiràvelmente para Kathie. Sem nada dizer, Scott sorriu e Ana com uma
ligeira nervosidade continuou a falar acerca de Amy do seu frustrado casamento com o filho de
um rico fabricante de luvas, chapeleiro ou" coisa que o valha, morto subitamente em um
150 desastre. Afirmou que a velha prima deveria ter tido um grande amor por aquele homem.
Sendo muito pobre e vivendo com grandes dificuldades, nunca quisera desfazer-se do colar de
pérolas por ele dado como presente de noivado e que valia uma pequena fortuna.
- Aquelas pérolas são verdadeiras? perguntou Scott.
- Sim, são verdadeiras. Valem muito.
Ana admirava-se de estar falando com tanto desembaraço e com tanto acerto, quando não
pensava absolutamente no que estava dizendo. E Scott, por seu turno, acompanhava a conversa,
tendo o seu espírito completamente afastado dali.
Que importava a eles que as pérolas do colar da prima Amy fossem falsas ou valessem uma
fortuna e que se lhes dava que o malogrado noivo daquela parenta desinteressante tivesse sido
filho de um fabricante de luvas ou de um chapeleiro? Ana ocupava-se tão atentamente em
arranjar a sua bagagem e levava tanto tempo a alinhar as escovas e os vidros de perfume na
penteadeira, pelo mesmo motivo que fazia Scott fumar cigarros uns atrás dos outros. Ambos
procuravam diminuir a tensão nervosa de qualquer forma e tentavam também escapar à pressão
das emoções suscitadas pela nova situação em que se encontravam. Aquele dia alterara
radicalmente a vida dos dois recém casados. Para Ana, sobretudo, as horas decorridas desde a
manhã haviam precipitado uma tremenda transformação no curso da sua existência.
Os dois teriam talvez permanecido assim por muito tempo. Ela a arrumar a penteadeira e ele a
fumar cigarros, sentindo silenciosamente um contra o outro uma irritação íntima por aquela
situação de constrangimento, para a qual ambos contribuíam. Mas uma pancada sonora veio
interromper a monotonia irritante. A moça deixou instintivamente as escovas e Scott lançou a
ponta de cigarro à 151
lareira, enquanto ambos contavam as horas soadas pelo relógio.
- Onze! exclamou o rapaz. Já vai ficando tarde. Ana fez um sinal de cabeça e recomeçou as
arrumações.
- Ana, disse Scott com ternura, você parece estar muito interessada nessas escovas.
- E você com os seus cigarros.
Scott já se aproximara da moça e abraçando-a coloulhe a boca aos lábios, antes que ela
retomasse o fio da conversa banal, agora abafada pela onda de amor que unia os dois recém-
casados.
CAPITULO IX
Na manhã imediata Ana e Scott mergulharam na vida intensa e fascinante da Cidade Luz. A
alegria dos recém casados atingia as proporções de uma exuberância deliciosa, ao sentirem-se
naquele ambiente tão cheio de encantos e de seduções para os estrangeiros e principalmente
para americanos e ingleses. Andaram pelos "boulevards" e mais célebres ruas parisienses sem
destino e achando mais um prazer em perderem-se a todo momento. Scott pedia direção aos
transeuntes, que polidamente o sobrecarregavam de explicações, nem sempre bem
compreendidas pelo inglês, cujo conhecimento aliás amplo da língua francesa por vezes não era
bastante para acompanhar, sem nada perder, a acelerada fluência dos seus interlocutores.
Almoçaram em um restaurante do "boulevard" e foram depois fazer compras na Rue de Ia Paix.
Ana adquiriu um vestido elegantíssimo, primeiro presente de Mr. Scott Kentish à sua esposa. O
vestido era bastante caro, o que aumentou o interesse da compra.
152 Depois foram procurar presentes para Mrs. Maitland e Kathie, a quem Scott fazia questão de
brindar em primeiro lugar, porque eram, como dizia, as duas melhores pessoas que havia no
mundo. Em seguida compraram também lembranças para Mrs. O'Gorman, que Scott dizia ser a
única pessoa de amizade que até então tivera no mundo e para a prima Amy, por quem Ana
mostrava agora grande ternura, afirmando ser necessário suavizar-lhe um pouco a perpétua
tristeza em que a deixara há tantos anos o malogro do seu noivado. Os presentes, que foram logo
após despachados no correio para os seus destinatários, representaram um considerável
desfalque na verba de viagem do casal. Mas Ana e Scott estavam em tal exaltação por verem
realizados os seus sonhos e também pela influência da atmosfera estimulante de Paris que,
apesar de serem ambos pessoas muito equilibradas, não repararam sequer naquela pequena
estravagância.
Os recém-casados permaneceram ainda dois dias em Paris, cada vez mais encantados com a
maravilhosa cidade, de que partiram saudosos em demanda de Richeville. Já se achavam
instalados no compartimento do trem, muito satisfeitos com a perspectiva de viajarem a sós,
quando, de, repente, apareceu outro casal acompanhado pelo carregador, a quem davam
instruções em francês para a colocação da bagagem. A mulher ao entrar pisou o pé de Ana,
pedindo-lhe polidamente desculpas em francês. Mrs. Scott Kentish pronunciou uma breve réplica
em murmúrio, mas ficou convencida de que falara francês com tanta correção, que certamente a
outra, levando principalmente em conta a elegância do seu vestuário, a tomara por uma
compatriota.
Os dois casais ocuparam respectivamente os dois extremos do compartimento. Ana e Scott,
apesar de estarem em compreensível maré de ternura, mantinham sempre rigoroso decoro em
público. Sentados um em frente do outro Junto a uma das janelas, conversavam com impecável
153
linha. O outro casal ocupava, do lado oposto, posições semelhantes.
O trem pôs-se em movimento, atravessando em marcha progressivamente mais rápida os
subúrbios de Paris e entrando em seguida pela campanha afora. Os dois estranhos liam jornais e
trocavam de vez em quando algumas palavras entre si. O homem estava em diagonal a Ana e
esta pôde observar que ele era um belo tipo masculino, com cabelo escuro e face delgada. Podia
ser tanto um francês como um italiano ou um espanhol. Scott do seu lugar observava também a
mulher, muito elegantemente vestida, com um rosto oval e nariz aquilino, ten'do toda a aparência
de pessoa de boa sociedade:
Afinal o silêncio foi quebrado e como de costume a janela serviu de pretexto ao estabelecimento
de relações. O estranho, falando perfeito inglês, perguntou a Scott se incomodaria à sua senhora
que a janela fosse um pouco aberta. Ao mesmo tempo os recém-casados afirmaram que um
pouco de ar fresco lhes seria muito agradável. E verificaram com surpresa que todos quatro eram
ingleses.
- Mas eu pensei que fossem franceses, disse Ana, porque a senhora me falou nessa língua. -
Residimos há tantos anos em França, que já nos habituamos a pensar em francês. Chego, às
vezes, a crer que acabaremos falando inglês com sotaque estrangeiro.
O homem começou a conversar com Scott sobre assuntos financeiros, enquanto Ana e a outra
mulher palestravam sobre banalidades. O homem tratava a esposa com grandes atenções e
mesmo carinho. Ela o chamava de Abel em um tom que, de certo modo, soava aos ouvidos de
Ana como não condizendo com a figura esbelta daquele belo homem.
Observando mais atentamente aquela criatura, ainda há poucos minutos completamente estranha
e com a qual
154 entretanto, ia estabelecendo a intimidade que espontaneamente surge nas viagens por trem
ou por mar, Ana ficou impressionada pelo ar' preocupado e pela tristeza que se refletia nos olhos
daquela mulher. Tinha olhos realmente muito bonitos, mas a beleza deles era empanada por uma
sombra interior, que Mrs. Scott Kentish em vão procurava adivinhar o que poderia ser.
Quando chegaram a Richeville, as relações entre os dois casais já haviam atingido o ponto em
que a troca de cartões se tornava necessária. Scott e sua mulher viram então que os
companheiros de viagem haviam sido o sr. Abel Martin e sua esposa lady Emerald Martin, a quem
o marido tratava por Emmy. Os Martin disseram ao despedir-se que esperavam encontrar-se de
novo e continuarem aquelas boas relações. Ana e Scott responderam com as frases polidas que o
caso requeria.
Quando seguiam de automóvel para o hotel, Ana manifestando a sua simpatia por lady Emerald
declarou que ela provavelmente devia ser uma das flores da aristocracia.
- Certamente, observou Scott, basta ver aquele nariz e aquelas pálpebras, que são também
inconfundivelmente aristocráticas.
Os dois puseram de parte Mr. Martin e lady Emerald depois de Ana haver ponderado que gostara
muito da mulher, mas que achava alguma coisa esquisita no marido, ao que ele retrucou dizendo-
se satisfeito, porque não desejava que sua mulher se interessasse por homens bonitos de cabelos
escuros.
Em Richeville, Ana e Scott entraram em uma nova fase da sua deliciosa lua de mel. Sobre a
grande alegria de Paris pairava ainda o céu plúmbeo de um fim de inverno. Agora, em Richeville,
estavam debaixo de um céu maravilhosamente azul, como nenhum dos dois jamais vira. O
155
ar era quente e o mar de safira e de esmeralda oferecia outro lado encantador daquela
interessante localidade. Ana e Scott passeavam por toda parte apreciando paisagens para eles
inteiramente desconhecidas com os seus aspectos quase tropicais, em que as palmeiras
constituíam a maior das novidades para os dois jovens ingleses. Metidos em maios banhavam-se
freqüentemente nas águas tépidas do Mediterrâneo, encontrando imenso prazer em observar e
comentar a multidão cheia de vivacidade que se agitava na praia. Ao terceiro dia de estada em
Richeville encontraram-se com os Martin, tendo o sr. Abel Martin insistido para que os Kentish
viessem jantar com eles em um lugar onde pudessem divertir-se à larga. Desde então, as
relações entre os dois casais tornaram-se progressivamente mais íntimas. Ana e Scott, que aliás
estavam contentíssimos no seu hotel, onde a comida era particularmente deliciosa, começaram a
andar com Martin e lady Emerald, almoçando e jantando muitas vezes em restaurantes e outros
hotéis de Richeville. Pouco depois, Ana já tratava lady Emerald de Emmy e entre Scott e Martin se
havia estabelecido uma verdadeira intimidade.
Ana e Scott conversavam, quando os Martin vieram a ser objeto da palestra. A moça observou
que o casal parecia ser muito unido e feliz.
- Acho que são tão felizes como nós.
- Não, isso é exagero, replicou Scott. O nosso caso é muito diferente.
- Você parece estar gostando muito do Martin.
- Sim, parece-me ser um excelente homem. A conversa dele é muito interessante para mim. Você
não pode imaginar como ele conhece a fundo todos os negócios da bolsa. Não encontrei até hoje
na City quem tenha tanta competência.
156 - Mas eu continuo a gostar mais da mulher. Ela deve ser uma das figuras mais distintas da
aristocracia e deve ser também riquíssima.
- Sem dúvida, pois é filha do duque de Kelchester. Lembro-me aliás de já ter ouvido falar dela há
tempos. Parece que fugiu de casa para casar-se.
- Eu, também, já tinha ouvido qualquer coisa a respeito desse romance.
Com esses comentários sobre o casal Martin, Ana e Scott encerraram a conversa, porque já ia
ficando tarde e sentiam-se fatigados.
No dia seguinte Martin, ao encontrá-los perguntoulhes se ainda não tinham ido ao cassino. Diante
da resposta negativa, ponderou que somente o fato de estarem em lua de mel podia explicar não
terem ainda ido ver o que havia de mais interessante em Richeville.
- Sim, sou bem capaz de ir tentar a sorte por brincadeira, declarou Ana rindo.
- Por brincadeira? A senhora está falando com irreverência de uma coisa muito séria, Mrs.
Kentish, observou Martin com afetada gravidade. E prôsseguindo disse que tinha um sistema pelo
qual se ganhava na certa.
- Mas o seu sistema exige, que se tenha uma fortuna disponível para sustentar o jogo, interpôs
lady Emerald rindo, mas com um ar que não escapou à atenção de Ana.
- Uma fortuna, não, apenas algum capital, retrucou Martin. O meu processo, que resultou de
muitos estudos e prolongado trabalho, é positivamente infalível.
- Todos os sistemas de jogo parece-me que são infalíveis, não é verdade? disse Scott
ironicamente.
Nessa noite jantaram os quatro, no mais elegante restaurante de Richeville, indo depois ao
cassino. Ana teve uma surpresa e um desapontamento. Sempre imaginara 157
que em uma casa de jogo estaria uma multidão febril, excitada e vivamente empenhada em
ganhar ou manifestando espetaculosamente a sua tristeza diante das perdas. O cassino revelou-
lhe um ambiente totalmente outro. Um silêncio tumular. Calma absoluta em todos. Uma atmosfera
como a moça até então só encontrara nas igrejas. No primeiro momento aquele ambiente severo,
opressivo e quase lúgubre causou-lhe uma impressão deprimente. Passadas as primeiras
emoções que o cassino lhe despertara, Ana dispôs-se a tentar a sorte por brincadeira, como
dissera. Jogou apenas dez francos. A sorte foi-lhe propícia, como parece acontecer em geral com
os estreantes. Ganhou. Jogou outra vez e ganhou de novo.
Aproximando-se de Scott que também estava ganhando, embora em menor escala que sua
mulher, Ana murmurou-lhe carinhosamente:
- com o que ganhei aqui, Scott, vou dar-lhe uma cigarreira de ouro cravejada de diamantes.
Martin estava jogando, mas perdendo. Apesar de já serem consideráveis os seus prejuízos,
mantinha absoluta calma. Sua fisionomia era impassível e cada rodada contrária da sorte passava
sem que ele ao menos tivesse um piscar de olhos. Lady Emerald não jogava. Assistia às perdas
do marido também aparentemente impassível. Mas em sua fisionomia Ana notava mais uma vez
aquela estranha expressão que a intrigara desde o primeiro momento, ao encontrarem-se no
compartimento do trem.
O ambiente do cassino tornara-se de novo insuportável para Ana. Conseguira a princípio vencer a
repugnância que aquela atmosfera lhe causara. Voltava, porém, a não poder tolerar o aspecto
lúgubre e opressivo da sala. Toda aquela gente elegantemente vestida, em silêncio absoluto, que
era apenas quebrado pelas vozes regulamentares dos "croupiers" convidando ao jogo e
anunciando o "feito", 158 dava a Ana a impressão de estar assistindo a uma cerimônia religiosa
de algum culto macabro. Não pôde mais conter-se e depois de ter feito uma brincadeira com
Martin a propósito da demonstração negativa do seu sistema com os resultados das suas
paradas, pilhéria que o jogador acolheu de muito bom humor, a moça insistiu em que se
retirassem. Martin não quis partir e propôs que as senhoras fossem conduzidas até a porta por
Scott, que voltaria para fazer-lhe companhia.
Quando se viu ao ar livre, Ana teve uma exclamação de alívio. Em companhia de lady Emmy
seguiu para a praia, onde as duas mulheres ficaram apreciando o luar e ouvindo o marulhar
cadenciado das pequenas ondas que se quebravam na areia. Ana observou de novo o ar
estranho da sua companheira. Não pôde reprimir uma pergunta, que as relações ainda recentes
entre as duas tornavam um tanto indiscreta.
- Estou preocupada por sua causa. A ansiedade que nota em mim não é devida, como julga, ao
fato de meu marido estar perdendo no jogo. Já estou muito habituada a isso, como também estou
acostumada ao ambiente dos cassinos que você na sua primeira experiência achou tão
desagradável.
- Então, qual a causa do seu mal-estar? Disse que era por mim. Não posso compreender.
- Sim, é porque gostei muito de você desde o primeiro momento que a vi.
- Confesso-lhe que compreendo menos ainda.
- Não posso ver uma moça em lua de mel, sem pensar em muita coisa. O casamento é uma
questão muito complexa.
-; Não tem sido feliz no seu casamento?
- Muitíssimo. Martin é um marido ideal. Mas isto não vem ao caso. Diga-me, você gosta muito de
mim?
159
- Sem dúvida, respondeu Ana que, embora surpreendida pela pergunta, não teve dificuldade em
responder, porque de fato gostava de lady Emerald. Tem sido tão amável e bondosa para comigo!
- Isso não quer dizer nada. Ninguém gosta de outrem pelo que lhe faz, mas pela impressão que
lhe causa. Há pessoas que nos fazem mal e cujos atos muitas vezes nos provocam repugnância,
mas pelas quais sentimos profunda amizade. com essas palavras, lady Emmy passou o braço na
cintura de Ana, convidando-a a ir tomar café no terraço do seu hotel.
As duas para lá seguiram e já estavam sentadas junto a uma das mesas na varanda do mais
luxuoso hotel de Richeville, quando Scott e Martin chegaram do cassino. O último vinha radiante.
Passara a ganhar e o seu sistema mais uma vez demonstrara infalível eficácia. Jubiloso, Martin
perguntou à mulher que presente queria que lhe desse. E enquanto lady Emmy sorria
silenciosamente, deulhe um carinhoso beliscão na orelha.
- Diga-me, querida, quer um colar de pérolas ou um automóvel? É só fazer a escolha.
A palestra prolongou-se por mais algum tempo, estando todos muito alegres. Scott e Ana
despediram-se, marcando encontro para o dia seguinte. Logo que acordaram, os recém-casados
partiram para a praia e por muito tempo estiveram a deliciar-se voluptuosamente nas águas
quentes do mar banhado de sol. Depois passearam e almoçaram sozinhos. Andavam à tarde a
correr mais uma vez a cidade, encantando-se sempre com as lojas bem ornamentadas e as
pitorescas casas de frutas, quando encontraram Martin.
Alegre e expansivo, como sempre, o novo amigo dos" Kentish comunicou que sua mulher,
acometida de terrível dor de cabeça, não pudera acompanhá-lo. Em seguida, disse que lady
Emmy lhe pedira que, se encontrasse Mrs.
160 Scott Kentish, lhe solicitasse o favor de vir conversar uma meia hora com ela no hotel. Ana
ficou um pouco desapontada, porque desejaria não se separar do marido. Só tinham mais dois
dias de Richeville. Depois de amanhã teriam de partir e a lua de mel estaria acabada. Mas Ana
gostava realmente de lady Emerald e não podia esquivar-se ao convite. Dirigiu-se para o hotel,
onde se achava a esposa de Martin, deixando este em companhia de Scott. Encontrou-a no
terraço.
- Seu marido disse-me que estava com dor de cabeça.
- Sim, uma terrível enxaqueca.
- Disse-me também que desejava que viesse vê-la e aqui estou para fazer-lhe companhia.
- Muito obrigada. Foi muito amável da sua parte vir até aqui.
Tocando a campainha, lady Emerald ordenou ao garção que logo apareceu que viesse trazer-lhes
chá. Até ser esse servido a conversa teve um caráter geral e sem importância. Mas logo que
começou a preparar o chá, lady Emmy assumiu um aspecto preocupado e mais uma vez Ana teve
a impressão, agora transformada em plena convicção, de que aquela mulher guardava um
segredo que lhe torturava a existência.
- Meu marido ficou com o sr. Scott?
- Sim, deixei ambos juntos.
Lady Emmy tinha agora nos olhos acinzentados uma expressão estranha e evitava encarar a
outra de frente.
- Quero dar-lhe um conselho. É coisa grave. Não deixe seu marido fazer negócios com Abel.
- Tanto quanto sei, Scott não pretende fazer nenhum negócio com o sr. Martin. Mas por que me
dá esse conselho?
161
- Minha querida, Abel é uma excelente' pessoa, mas é um grande sonhador em matéria de
negócios e devo acrescentar que o seu critério nesses assuntos vale tanto como esta mesa. E a
lady bateu violentamente com os dedos sobre a mesa que tinha diante de si.
- Agradeço-lhe o conselho, mas acho que Scott tem bastante juízo para...
- Sim, não duvido, mas tenho muito receio de que não resista à lábia de Abel que, quando propõe
um empreendimento qualquer, é capaz de convencer os mais precavidos. Meu marido acha
sempre qualquer aventura um negócio de primeira ordem e muito seguro.
Depois de pronunciar as últimas palavras, lady Emmy desviou ainda mais o olhar para não
encarar Ana; a sua fisionomia contraiu-se, como se estivesse agitada por fortes emoções. Parecia
que a mulher tinha rapidamente envelhecido e Ana não entreteve mais dúvidas de que um
mistério, que agora a interessava diretamente, se ocultava naqueles olhos claros cuja expressão
era nada menos que trágica.
- Está mentindo ou pelo menos não me diz toda a verdade, pensou, tomada subitamente de
violenta emoção e agindo sob um impulso instintivo de arrancar daquela mulher tudo que ela não
lhe queria dizer.
- Precisa que eu lhe diga tudo? Não pode adivinhar nos meus olhos? respondeu lady Emerald,
fixando agora a sua interlocutora de um modo que dizia a verdade melhor que quaisquer palavras.
- Acaso seu marido será um canalha, um malandro, um chantagista?
- Sim, tudo isso, e é por esse motivo que tenho medo que seu marido faça algum negócio com
ele. Um malandro e um tolo juntos é sempre perigoso.
162 - Está enganada, porém, Scott não é um tolo. É um homem inteligente, criterioso e com
experiência de negócios. Não é pessoa para ser embrulhada pelo primeiro chantagista que
encontre.
- Fico muito satisfeita em saber que o sr. Scott será capaz de defender-se, mas devo dizer-lhe que
não é coisa fácil escapar de meu marido. Ele tem enleado com sua manha gente muito inteligente
e experimentada.
- Como pode você viver com um homem assim?
- Minha amiga, já lhe disse ontem que as pessoas não gostam de outras porque elas lhes façam o
bem ou porque sejam virtuosas. Nossas emoções de afecto não dependem da apreciação que
fazemos do caráter ao qual nos sentimos inclinados. E isto é principalmente verdade quando se
trata de amor.
- Mas viver com um chantagista? exclamou Ana que gaguejava com a emoção de que se achava
possuída diante de uma situação que se lhe afigurava monstruosa.
- Quando tiver mais experiência da vida, compreenderá que o meu caso, embora trágico, não é
tão extraordinário como lhe parece.
- Jamais poderia suportar semelhante situação. Graças a Deus amo um homem que é um perfeito
cavalheiro e uma alma nobre.
- Deve sentir-se muito feliz por isso; compreenda, porém, que nem todas as mulheres têm a
mesma felicidade.
- Diga-me, você é mesmo filha do duque de Kel-1 chester? interrogou Ana, cuja fisionomia refletia
a perturbação que a agitava.
- Sim, sou, ou antes, fui filha do duque de Kelchester. Digo fui, porque meu pai não me considera
mais sua filha e dele não recebo o mínimo auxílio.
- Então, donde obtêm recursos para manter o luxo em que vivem?
163
- Muito simplesmente. Do que meu marido arranca da tolice dos incautos.
- Será possível que seu senso moral esteja tão obliterado que lhe permita levar semelhante vida?
- Pensa que não me custa fazer-lhe esta confissão? exclamou lady Emmy com a voz entrecortada
por um soluço mal contido.
Ana compreendeu a tragédia que se passava na alma daquela infeliz mulher e a expressão de
desprezo que tinha nos lábios dissipou-se.
- Sim, compreendo que lhe deve ser profundamente doloroso fazer uma revelação dessa
natureza.
- Creia que só a fiz porque, embora a conheça há muito poucos dias, sinto uma profunda simpatia
por si. Raramente em minha vida tenho encontrado alguém por quem me sinta tão atraída, como
por você.
- Agradeço-lhe e vejo que está falando com sinceridade.
Realmente, Ana sentia que lady Emerald estava dizendo toda a verdade. Comparando a sua
felicidade, como mulher de um homem de bem, com a situação daquela desgraçada que, tendo
nascido na mais alta posição social e podendo ter tido tudo na vida, se achava amarrada por uma
paixão funesta a um escroque, Ana achou que devia ser generosa e estender à infeliz a proteção
da sua simpatia humana.
- Agora, minha amiga, vá embora. Minha enxaqueca e a opressão que me causa no coração o
que estivemos conversando, tornam-me péssima companhia. Você não deve estragar a sua lua
de mel com gente aborrecida.
Ana levantou-se e, apertando afetuosamente a mão de lady Emerald, despediu-se dando-lhe a
esperança de que as coisas melhorariam um dia para ela.
164 - Espero que um dia você tenha coragem para tomar uma deliberação e ponha a sua vida em
ordem. Ninguém sabe o que o futuro nos reserva.
- Queira Deus que esteja profetizando a verdade.
- Adeus. Quanto a Scott, não creio que seu marido o tenha embrulhado. É muito inteligente e não
é homem de fazer negócios levianamente.
Lady Emmy lançou sobre a moça que ia partindo um olhar em que transparecia o seu cepticismo.
Conhecia bem Martin e sabia como era difícil escapar às suas armadilhas...
Ana só viu Scott mais tarde, quando já estava fazendo a sua "toilette" para o jantar. Scott vinha
contentíssimo. Entrou cantarolando e fazendo passos de dança. Beijou afetuosamente a mulher e
passando-lhe o braço pela cintura pôs-se a dançar com ela. Depois entrou para a sala de banho e
Ana podia ouvir o barulho do chuveiro acompanhado, pelas modulações de uma forte voz de
barítono.
Ao jantar o rapaz continuava exuberante de alegria, como se naquele dia lhe houvesse acontecido
alguma coisa particularmente agradável. Só então a mulher lhe contou o segredo que lady
Emerald lhe revelara. O efeito da comunicação sobre Scott foi simplesmente fulminante. Tão
estupefato ficou que, com os olhos fitos em Ana, foi ouvindo a narrativa, tendo na mão o garfo em
que fincara um bocado para levar à boca.
- Será possível o que me está dizendo? Abel Martin será mesmo um escroque? Isto parece
absurdo.
- E o mais trágico, Scott, é que a pobre mulher tem uma paixão louca por esse miserável. Arruinou
a vida por causa dele e não tem coragem de deixá-lo.
Scott passou todo o resto do jantar visivelmente perturbado e, mal terminada a sobremesa, pediu
a Ana que o deixasse sair, a fim de ver se apurava alguma coisa sobre
165
aquele caso estranho. Meia hora mais tarde regressava ao hotel cabisbaixo e visivelmente
preocupado.
- Você tinha razão, a história deve ser mesmo verdadeira.
- Certamente que é verdadeira. Acredita então que uma mulher conte uma história dessas sobre o
marido se não fosse verdade?
- É verdade, infelizmente, murmurou Scott pensativo. Foram-se embora, desapareceram.
- Fugiram então? No hotel disseram-lhe alguma coisa sobre eles?
- Não, nada. Não sabem para onde foram. Antes de partir pagaram a conta, o que basta para
terem ficado com a reputação limpa no hotel.
- Ainda bem que de nós não levaram nada, disse Ana sorrindo.
- Foi apenas um princípio passageiro de amizade que não nos prejudicou.
- Felizmente não fomos lesados por esse malandro.
- Sim, não fomos lesados em nada, confirmou Scott com um estranho tom, que aliás não foi
percebido por Ana.
Saíram os dois a passeio, mas naquela noite, a penúltima da lua de mel, Ana e Scott não estavam
alegres como de costume. O rapaz mostrava-se taciturno e a mulher percebeu, por vezes, na sua
maneira de responder às perguntas que lhe fazia, uma certa irritação que nunca lhe observara.
Chegando ao hotel foram deitar-se. Scott adormeceu rapidamente.
Ana estava tão preocupada com as atitudes inexplicáveis do marido, que receou estivesse ele
doente. Assim, acendendo a lâmpada de cabeceira e dispondo o abajur de modo a que a luz não
incidisse sobre a face de Scott, esteve a observá-lo ansiosamente. Mas nada indicava 166
moléstia. A face bronzeada pelo sol tinha um aspecto inequivocamente sadio. O pescoço robusto
do moço atlético e o tórax, que o pijama meio desabotoado deixava à mostra, atestavam também
a solidez daquele organismo. A respiração era regular e calma como a de uma criança. Ana
convenceu-se de que Scott não estava doente.
- Sou uma idiota! exclamou apagando a luz e deitando-se também para dormir, porque já se
sentia fatigada e sonolenta.
CAPÍTULO X
Ana despertou do profundo sono em que se achava mergulhada com a voz de Scott, que lhe
acariciava a fronte, dizendo-lhe carinhosamente:
- Acorde, meu bem, temos que sair cedo.
A moça abriu os olhos e espreguiçou-se perguntando que horas eram.
- Oito horas e temos que fazer os preparativos para a partida.
Sentada na cama, Ana começou a conversar com o marido sobre aqueles dias alegres da lua de
mel, passados em-Richeville, lamentando que esse período estivesse enfim acabado.
- A nossa lua de mel nunca há de acabar, havemos de viver sempre como noivos, disse Scott.
- Sim, meu amor, espero que a felicidade destes dias continue indefinidamente e que a mesma
confiança que existe entre nós perdure, acompanhada pela ternura que nos torna tão carinhosos
um para o outro.
Levantando-se, Ana descuidadamente ia pondo a mão sobre o colarinho de Scott que se achava
em cima da
167
mesa de cabeceira. O marido, com um gesto ríspido, chamou-lhe a atenção, lembrando-lhe que
era a única daquelas peças de vestuário que tinha fora das malas e acrescentando em tom jocoso
que ela ia cometendo um dos pecados imperdoáveis do casamento.
- Haverá entre nós pecados imperdoáveis? perguntou Ana.
- Não, meu amor, é claro que não. Estava brincando.
Enquanto se beijavam carinhosamente, Ana insistiu sobre o tema, sustentando que nunca haveria
nada a perdoar entre eles, porque cada um cuidaria em não fazer coisa alguma que precisasse de
perdão.
- E se um de nós o fizer? perguntou Scott.
- Não sei por que o faremos, uma vez que depende da nossa vontade evitar o que possa magoar
o outro.
- Sim, para isso acho que basta o nosso amor e a lealdade que devemos um ao outro.
- E não ter segredos, nem admitir mistérios que nos possam separar.
Ana dissera estas palavras sem nenhuma intenção oculta, mas não deixou de reparar que Scott
como que desviara dela o seu olhar ao ouvi-la falar assim. Beijando de novo o marido, a moça
começou a fazer a mala apressadamente e como se estivesse um pouco nervosa. Scott observou-
lhe que não era preciso andar com tanta pressa, porque havia tempo de sobra.
Depois de feitas as malas, Ana e Scott desceram para o primeiro almoço, passando antes pela
portaria, a fim de verificar se tinham correspondência. Encontraram duas cartas, uma de Londres
com o endereço na inconfundível grafia de Kathie e a outra com o carimbo local. Ana
instantaneamente concluiu que esta última devia ser de lady Emmy. Abrindo o envelope leu o
seguinte:
168 "Minha cara amiga, vou partir. Mais uma vez estamos em movimento, sempre na estrada,
como tem sido a minha vida. Meu marido ficou furioso porque lhe confessei que lhe havia dito a
verdade sobre ele, a fim de evitar algum negócio ruinoso para o seu marido. Não sei se a cólera
de Martin foi motivada pelo receio de que você espalhasse o que lhe contara ou porque realmente
ele já houvesse envolvido seu marido em um dos seus habituais negócios. Nada me disse, como
aliás sempre procede, conservando-me na ignorância do que faz nessa matéria.
Estou outra vez a caminho. É uma fatalidade a que não posso escapar e tenho de viver como
cigana de pouso em pouso. Os hotéis de luxo substituem para mim a carroça pitoresca dos
nômades. Estou cansada desta vida, mas não tenho esperança de poder a ela escapar. Sinto-me
enojada de mim mesma e confesso ter inveja de você, da sua felicidade pura e da inocência da
sua alma ainda não contaminada pela vida.
Se ao menos tivesse a compensação de ter amigos!... Mas não posso ligar-me a ninguém, porque
em relação a todos que de mim se aproximam sou forçada a sentir remorsos dentro em breve.
Entretanto, confesso que fiquei gostando muito de você e também, embora em grau menor, de
seu marido. Ele é um homem de bem e extremamente simpático. Permita-me, contudo, que lhe
diga que no casal a força está com você. E se algum dia precisarem de apelar para a ação
enérgica, será você quem salvará a situação. Não fique zangada comigo por lhe dizer assim
abertamente que o marido que idolatra não é precisamente um Sansão entre os homens. Acredito
que ele tenha muitas qualidades, mas precisa da colaboração e do apoio da energia que você
possui em muito maior escala que ele. Digo-lhe isto, porque lhe quero dar um bom conselho, não
somente porque a aprecio muito, como também porque desejo indenizá-la com o único serviço
que lhe posso prestar
169
por qualquer prejuízo que meu marido porventura tenha causado ao seu.
- Desejo-lhe toda a felicidade e despedindo-me peço-lhe que pense de mim o melhor que puder. -
Emmy."
Quando Ana entrou na sala de jantar, Scott já estava sentado à mesa. A primeira pergunta que lhe
fez foi sobre a correspondência, ao que Ana respondeu, dizendo que só haviam chegado as duas
cartas que trazia na mão. Após alguns momentos de hesitação passou ao marido a carta de lady
Emerald, observando-lhe com um sorriso que apreciasse aquilo.
Scott leu atentamente e em certo ponto Ana notou que ele tinha corado, atribuindo isso às
palavras um tanto depreciativas da missivista em relação à fortaleza de caráter de seu marido.
- Ela não parece fazer um alto juízo de mim, disse Scott, restituindo-lhe a carta de lady Emmy.
- Ainda bem, porque não desejo que aventureiras de olhos melancólicos se estejam
entusiasmando por meu marido, retrucou ela sorrindo.
Scott perguntou-lhe que notícia Kathie dava em sua carta, obtendo como resposta que a cunhada
comunicava terem estado ela e sua mãe no apartamento, onde haviam arejado a roupa e
mandado colocar mantimentos. Comentando essas notícias, Ana manifestou com vivacidade a
ânsia em que estava de ver-se afinal instalada no seu apartamento em Londres. Scott, que nesse
momento engolia o café, piscou os olhos por sobre a xícara em sinal de acordo com as palavras
da mulher.
Pouco depois partiam e começavam a viagem de retorno à Inglaterra. Na vinda haviam
interrompido o percurso em Paris, descansando ali alguns dias. Agora a viagem de retorno era
feita ininterruptamente. Longas horas em trem fatigaram profundamente os dois, nenhum dos
170 quais jamais passara por semelhante provação. Além disso, o deslocamento rápido do clima
quente e do sol luminoso do Mediterrâneo, para a chuva e o vento do norte, repercutiu, nos nervos
de Ana e do marido. A travessia do Canal trouxe novas e desagradáveis surpresas. O mar, que se
portara com tão extrema gentileza durante a primeira passagem dos recém-casados, estava desta
vez em um dos seus dias de pior humor. Ana, que era indiscutivelmente excelente marinheiro, não
deu conta do jogo em que o vapor parecia agitar-se em uma acrobacia macabra. Mas o pobre
Scott, que era a negação do marujo, sentiu na sua plenitude os horrores dessa inocente, mas
espantosamente cruel moléstia, que se chama enjôo de mar. Parecia-lhe, às vezes, que se ia
submergir no oceano, enquanto em outras tinha a impressão de que era violentamente projetado
para o céu. Ao cabo de algum tempo o rapaz, seguindo o que contraproducentemente fazem
todas as vítimas daquele mal, saiu do convés e foi-se meter no salão embaixo.
Ana, que continuava absolutamente insensível às ondas enfurecidas, desceu a procurar o marido.
Encontrou-o recostado em um sofá, tendo sobre a mesa próxima um copo com conhaque. A
impossibilidade em que se encontram aqueles que são imunes ao enjôo de mar de compreender
os horrores da situação em que se acham as vítimas desse mal, dá sempre lugar a equívocos
pitorescos nas viagens marítimas. Ana, que também era uma estreante e nunca tinha visto gente
enjoada, não podia avaliar a penosa situação de Scott. Assim, o acariciou, sem dar conta do
sofrimento pelo qual seu marido passava. Pegando do copo colocou-lhe aos lábios e fê-lo engolir
o líquido de um só gole. Scott, que tinha a sensação de estar quase a morrer, ao acabar de beber
o conhaque, empurrou a mulher, dizendo-lhe brutalmente:
- Agora, deixe-me só.
171
Ana, se Scott lhe houvesse batido, não teria tido maior surpresa, nem se sentiria mais ofendida.
Parecia-lhe impossível que o homem, sempre tão carinhoso para com ela, a tivesse repelido com
um gesto e com palavras positivamente impróprias de qualquer pessoa bem educada. É claro que
se a moça houvesse obedecido ao seu próprio preceito de nunca perder o equilíbrio mental, não
teria tido impressão tão forte diante de uma atitude muitíssimo natural em se tratando de um infeliz
torturado pelas angústias do enjôo de mar. Mas, como dissemos, Ana tinha o ponto de vista dos
imunizados contra esse flagelo e não possuía também a experiência que os viajantes veteranos
adquirem a esse respeito.
Scott, se era uma das vítimas mais cruelmente torturadas pelo enjôo, era felizmente daquelas que
mais depressa se recompõem, logo que sentem os pés em terra firme. Em Dover o rapaz já havia
retomado a posse de si mesmo e pôde providenciar sem dificuldade acerca da bagagem e da
procura de um compartimento no trem. Vinte minutos mais tarde, a sós com Ana no
compartimento em que tinham tido a ventura de não encontrar companheiros, Scott voltara
inteiramente à normalidade. Ana, calada e com a fisionomia fechada, ruminava a sua indignação,
lembrando-se do que o marido lhe fizera a bordo. Este, inteiramente alheio à causa daquela
atitude, perguntou-lhe se estava cansada. Ana contentou-se em responder com um movimento de
cabeça e começou a olhar através das vidraças para a escuridão. O marido, um pouco
desconcertado adiantou uma pergunta sobre a verdadeira causa daquele mau humor.
- Você não me disse que o deixasse sozinho? - Eu? Quando lhe disse semelhante coisa?
- A bordo, quando lhe fiz beber o conhaque.
172 Scott deu uma gargalhada, confessando que não tinha a mínima lembrança de haver
pronunciado as palavras incriminadas. Só se recordava de que ao beber o conhaque sentira que'
ia lançar pela boca até a própria alma.
Ana ainda manteve por algum tempo a posição hostil que assumira mas Scott, tomando-a nos
braços e beijando-a apaixonadamente, fez-lhe ver que era uma tolice continuar a fazer cavalo de
batalha de um episódio que não era mais que um incidente cômico das aventuras angustiosas de
um mau marinheiro, no meio de ondas agitadas.
- Garanto-lhe, minha querida, que nem pára outra lua de mel me fazem repetir esta travessia.
Chegaram ao apartamento tarde da noite. Foi para os dois, e sobretudo para Ana, uma emoção
nova e extraordinariamente agradável. Não era mais a lua de mel em apartamentos de hotel que,
por mais elegantes e confortáveis que fossem, tinham sempre alguma coisa de vulgar no seu
caráter de habitações coletivas e de pousos efêmeros de uma série anônima de viajantes.
- Estamos no nosso apartamento. Isto é o nosso lar e não há nenhum quarto de hotel no mundo
que se compare a ele! exclamou Ana jubilosa e atirando-se ao pescoço de Scott que cobriu de
beijos.
Mrs. Maitland, com o seu fino senso de dona de casa, dispusera as coisas de forma a dar ao
apartamento uma aparência nova e que surpreendia Ana e Scott diante do partido que a boa
senhora soubera tirar do mobiliário e das decorações, para criar um ambiente delicioso de
domesticidade sóbria e elegante. O casal percorria, um após outro, os diferentes aposentos, em
cada um dos quais encontrava novos motivos para exclamações de alegria e palavras de louvor à
proficiência com que Mrs. Maitland e Kathie lhe haviam preparado aquele ninho amoroso.
173
No dia seguinte Ana e Scott retomaram o curso da sua vida de trabalho. Saíam juntos de casa e
separavam-se depois, indo cada um para o seu escritório. Quando podiam encontravam-se para o
almoço e muitas vezes voltavam juntos para casa. Mas haviam combinado que nenhum sacrifício
do trabalho ou do interesse seria feito ao prazer sentimental desses encontros.
Ana tomara uma cozinheira e uma arrumadeira, que desempenhavam admiràvelmente as suas
funções. Era sempre para o casal um prazer o jantar, em que contrastavam a cozinha gostosa da
sua casa com a monotonia dos "menus" dos restaurantes em que almoçavam.
As habilidades culinárias eram grandemente facilitadas pela liberalidade com que Scott provia o
dinheiro para as despesas domésticas. Ganhava bastante e não se preocupava em contar
vinténs. Assim, a vida doméstica do casal Kentish tinha a amplitude que o desafogo financeiro traz
a um lar. Tudo que Ana ganhava, Scott a fazia gastar em vestuário. Sentia inexcedível prazer em
ver a mulher bem vestida e orgulhava-se sobretudo pela originalidade dos figurinos que ela
inspirava às suas modistas e que a libertavam do espírito de rebanho, com que a maioria das
mulheres se escravizava à moda, sem dar conta do caráter individual da verdadeira elegância.
Scott e Ana começaram a ter uma vida social bastante intensa. Quase todas as noites iam ao
teatro e ceavam em restaurantes ou freqüentavam bailes e compareciam a recepções. No
apartamento, não raro, tinham lugar jantares, em que se reuniam amigos, apreciando a
companhia e também a boa cozinha. Mrs. Maitland prestava relevantes serviços nesse particular,
orientando a cozinheira
174 Com a sua longa experiência da arte culinária. Discretamente a boa senhora nada dizia sobre
certas liberalidades que observava por parte da cozinheira no tocante às compras e ao
aproveitamento dos restos sempre demasiados dos jantares. Ana incluía, entre as suas
obrigações de mulher moderna, não se preocupar demasiadamente com o serviço doméstico. De
fato, ela não prestava a mínima atenção aos arranjos da casa, que ficavam inteiramente a cargo
da responsabilidade da cozinheira e da arrumadeira, discricionárias cada uma delas no seu
departamento.
Mrs. Maitland intimamente desaprovava aquele estado de coisas. Habituara-se a encarar a
administração da casa de outro ponto de vista e não podia compreender a atitude de Ana, da qual
evidentemente resultava para o casal uma soma apreciável de prejuízos. Mrs. Maitland, porém,
tinha muito tato e também não queria dar uma ducha fria no entusiasmo da filha, que se sentia tão
feliz, pensando apenas no momento presente e sem nunca ter as preocupações do futuro, como
acontecera sempre com as mulheres burguesas da geração a que pertencia Mrs. Maitland. Por
outro lado, esta desfrutava também as vantagens daquela vida feliz e ampla do casal Kentish. Era
muito estimada por Scott e, no círculo social que se ia formando em torno da filha e do genro,
ocupava um lugar de destaque e era cercada de grande acatamento.
O apartamento dos Kentish era freqüentemente um ponto de agradáveis reuniões. As amigas de
Ana, tanto as antigas como as novas, os homens de negócio e os companheiros de Scott na City
e ainda por cima a gente do pequeno mundo de Upper Norton afluiam ao apartamento, onde
todos tinham certeza de passar algum tempo no meio de alegria e de bom humor.
Ao almoço naquele dia, Scott comunicou à mulher que não iria jantar em casa. Havia sido
convidado por um

175
sujeito importante. Tratava-se de conversar sobre negócio de grande vulto e do qual se poderiam
tirar consideráveis vantagens.
- Você não virá mudar de roupa?
- Não, o homem irá buscar-me ao escritório no seu automóvel e seguiremos diretamente para o
jantar. Você não se importa com jantar sozinha?
- Certamente sentirei falta da sua companhia, mas desde que se trata de um negócio, conformo-
me com isso de bom grado.
- Receei que você estranhasse. Lembre-se que é a primeira vez que não jantaremos juntos desde
o nosso casamento.
- Sim, mas. repito, trata-se de um negócio importante e eu felizmente ainda não estou caduca.
Apertando a mão da mulher por baixo da mesa, Scott murmurou-lhe algumas palavras ternas a
que ela respondeu com outras expressões de carinho. Prosseguiram na conversa e o rapaz
contou que se tratava de um homem parente de Kale, seu chefe, e que simpatizara com ele,
Scott. Esse homem tinha informações confidenciais com as quais era possível realizar um
formidável negócio, que traria à firma uma verdadeira fortuna, da qual Scott comparticiparia com
uma quota apreciável.
- Não estou fazendo nenhuma pergunta indiscreta e por maior que seja o interesse que tenho nos
seus negócios, não gosto nunca que você se adiante muito em contar-me segredos.
- Que pretende você fazer à noite? Provavelmente chegarei muito tarde.
- Irei ver mamãe. Não vou lá há quinze dias. Quanto a você, chegue à hora que puder, sem ter
receio de ser recebido com um sermão.
176 - Ana, não somente você é a mulher mais fascinante do mundo, como também a mulher de
mais juizo que existe.
Despediram-se e Ana, chegando ao escritório, telefonou a Mrs. Maitland, avisando-a que iria
jantar com ela. Mas os planos de Ana, que esperava passar uma noite de agradável intimidade
com a família, foram frustrados. Logo ao entrar, encontrou na sala de visitas Nancy Hanshaw. com
dificuldade disfarçou o aborrecimento que lhe causava aquela surpresa. E a irritação de Ana
aumentou ainda quando Nancy, com o propósito evidente de desagradar-lhe, perguntou-lhe se
Scott não viera com ela. "Esta imbecil não está vendo que ele não veio?" disse a moça
mentalmente.
- Scott foi jantar com um amigo. Parece que é um figurão qualquer aí da City.
- Mas você, Ana, não tem curiosidade em saber o nome das pessoas que vão jantar com o seu
marido?
Nancy tinha uma arte instintiva em dizer coisas que punham a pedra no sapato das outras
pessoas e isto era ainda mais acentuado quando se tratava de Ana, sempre prevenida contra
aquela amiga, em cuja sinceridade não podia depositar a mínima confiança. Assim, pela primeira
vez lhe ocorreu que realmente era curioso não lhe tivesse Scott dito o nome de quem o convidara
para aquela noite. E espontaneamente, ou por haver percebido o efeito que a observação de
Nancy causara na filha, Mrs. Maitland, sempre disposta a defender e a elogiar Scott, interveio
dizendo:
- Mas seria preciso que Ana tivesse perdido o juizo, para andar a perguntar ao marido os nomes
de todos os amigos que ele tem na City. Seria um questionário enfadonho para ambos. 177
A observação, acompanhada por uma risada, provocou também o riso de Ana, ao qual se
associou em seguida Nancy.
- Bem, mamãe, vou tirar o meu chapéu, disse ela levantando-se.
Nancy, como se estivesse prosseguindo no que antes dissera, observou que realmente Ana tinha
razão em depositar implícita confiança em Scott, porque ele era um caso excepcional entre os
homens. Quando dizia que ia jantar com um amigo da City, era porque se tratava mesmo de um
jantar de negócio e não de alguma ceia com raparigas alegres no Ciro ou no Cassim. Mas logo
que a amiga saiu da sala e como em resposta a uma frase desta, que prometera contar a Scott o
elogio feito por Nancy, acrescentou:
- Scott bem sabe qual é o elogio que posso fazer dele.
As palavras foram ouvidas por Ana como Nancy desejava e produziram também o efeito visado
pela pérfida rapariga. Ana, enquanto fazia a sua "toilette" no quarto da irmã, pensava que durante
anos Scott e Nancy haviam sido companheiros inseparáveis e que talvez aquelas últimas palavras
envolvessem uma alusão a coisas que possivelmente se tivessem passado entre os dois.
Nancy conseguiu alcançar naquela noite todos os seus objetivos. Ana não teve um momento livre
para conversar à vontade com a mãe e a irmã. Nancy fez-se convidada para o jantar e não
arredou pé toda a noite. Quando Ana, bastante aborrecida com o que se passara, ia retirar-se Guy
entrava. A moça dirigiu-se alegremente ao irmão, abraçando-o efusivamente. O rapaz propôs-se
logo a acompanhá-la até à estação. Mrs. Maitland ainda observou de dentro que Guy talvez não
tivesse jantado, ao que ele
178 respondeu dizendo que já comera bastante em companhia de um amigo.
- Mas o que esteve você fazendo até agora, Guy? perguntou Ana logo que saiu em companhia do
irmão.
- Andei vadiando por aí com outros rapazes. Continuaram a caminhar e Ana verificou que Guy
estava bastante macambuzio. Perguntou-lhe o que tinha, indagando se ele estava apaixonado. O
rapaz respondeu negativamente.
- Então ela o mandou embora?
- Não, Ana; estou realmente aborrecido, mas não há "ela" nenhuma nesta história.
- Então de que se trata? Estará você muito sem dinheiro?
- É exatamente um caso desse gênero. E você Ana, será bem minha amiga para arranjar-me o
que preciso?
- Pois não, Guy, disse Ana abrindo a bolsa. Guy segurou-lhe a mão, dizendo-lhe:
- Não, o meu caso não é daqueles que se resolvem com um biscoito.
Biscoito? Ia dar-lhe uma nota de cinco libras. Será isso apenas um biscoito para você?
- No meu caso cinco libras não passam de uma ração de pulga.
- Então a sua situação é séria. Conte-me o que há.
Ana, andei fazendo umas asneiras e perdi muito dinheiro.
- Em que?
- Nas corridas. Um rapaz lá do escritório convidou-me para fazer um "betting" nas corridas de
Lincoln. Ele me garantia que ganharíamos na certa. Perdemos, mas joguei outra vez e depois
ainda outra. Um sujeito
179
que conheço na City prontificou-se a adiantar-me dinheiro para que eu continuasse a jogar.
- Mas sob que condições ele adiantou o dinheiro?
- Ah! só agora é que estou vendo como as condições foram pesadas. Na ocasião queria o dinheiro
para fazer os "bettings" e o meu capitalista dizia-me que não me preocupasse com o prazo de
pagamento e que a nota promissória que eu lhe ia passar era apenas um documento de
formalidade, que seria reformada na data do vencimento, caso eu não pudesse pagar. Mas agora
o homem está a perseguir-me exigindo o pagamento e eu não tenho dinheiro.
- Mas a quanto monta a dívida?
- Quinhentas libras.
- Quinhentas libras?
- Sim, e você não pode arranjar-me esse dinheiro? Vejo-a sempre com tanta largueza, que julgo
não lhe será difícil arranjar-me esta soma.
- Engana-se redondamente. Gastei a maior parte das minhas economias com o meu enxoval. Em
todo caso, será possível que lhe arranje umas trezentas libras.
- Se você não me arranjar, não sei como resolverei o caso. Não queria falar à mamãe sobre isso.
- Por amor de Deus, não toque nisso à mamãe.
- Mas eu preciso do dinheiro porque, se não pagar a promissória, o homem faz um barulho dos
diabos e eu posso ficar desmoralizado no escritório. Não seria possível arranjar-me esse dinheiro
com Scott?
- Certamente não. Por que Scott havia de dar dinheiro a você? Porventura, casando-se comigo,
contraiu ele a obrigação de custear todas as idiotices da família?
O resto do percurso até à estação foi feito em silêncio. Guy estava tão cabisbaixo que Ana, cujo
espírito forte se
180 revoltava contra todas as fraquezas, começou a sentir grande irritação. Depois de ter
comprado o bilhete de passagem e quando o trem já estava a chegar, despediu-se do irmão,
dizendo-lhe em tom amigável, mas enérgico:
- vou ver o que posso fazer e dentro de dois dias lhe telefonarei. Mas acabe com esse abatimento
que nada lhe adianta e só pode tornar as coisas ainda piores.
Guy apertou-lhe a mão e foi-se com as suas preocupações, talvez um pouco mais esperançado.
Ao vê-lo caminhar, com os ombros curvados e o passo vacilante, Ana, ao entrar no trem,
exclamou: "Grande idiota! "
CAPITULO XI
Quando Ana chegou ao seu apartamento, as criadas já tinham ido dormir. Sobre a mesa haviam
deixado uma bandeja com sanduíches e bebidas. Depois de ter comido e tomado uma limonada
gasosa, Ana foi para o quarto despindo-se e deitando-se logo. Ficou a folhear um exemplar de
"Vogue", mas não podia ler, porque se achava preocupada com várias coisas, principalmente com
o caso de Guy.
Não se podia conformar com a idiotice que o rapaz cometera, embrulhando-se tão ineptamente
em um negócio ruinoso. À medida que mais meditava sobre o fato, crescia a irritação de Ana, que
não encontrava escusas ou atenuantes para procedimento tão insensato. O aspecto da
mentalidade da moça, que a levava a ser sempre excessivamente severa no julgamento dos atos
alheios, sobretudo quando neles transparecia o sinal de fraqueza da vontade, fazia-se sentir agora
contra o irmão. Prosseguindo nessa ordem de idéias, chegou a formular conceitos tão ásperos
181
sobre Guy, que teve um pequeno sobressalto e ficou um pouco assustada dos limites a que
chegara nas demasias do seu rigor.
Apesar de estar indignada com Guy, não hesitava em auxiliá-lo, não tanto por pena do rapaz,
como para evitar um desgosto a Mrs. Maitland, que além de tudo, provavelmente, não dispunha
de meios para socorrer o filho. Aprofundando ainda a análise do incidente, chegou à conclusão de
que em Guy deviam estar se manifestando as funestas tendências de seu pai. A circunstância de
o irmão sofrer as conseqüências da hereditariedade provinha de um progenitor, cujas faltas ela
não podia perdoar, não atenuou de modo algum sua atitude severa na apreciação da tolice que o
irmão cometera. Foi exatamente quando a moça examinava esse aspecto do caso, que percebeu
o ruido anunciador da chegada de Scott. com doçura chamou-o e da sala a voz meiga de Scott
respondeu logo ao seu apelo.
Logo que o marido apareceu à porta do quarto, com um sanduíche e um copo, perguntou-lhe
como correra o jantar.
- Muito bem. Gostei muito de conversar com Brendon.

- Ah, então o homem se chama Brendon? Você não me tinha dito o nome dele.
- Não? Ora, querida, foi um esquecimento. E você, jantou com sua mãe?
- Sim, mas imagine que não pude conversar um momento com a minha velha, porque Nancy lá
estava e ficou firme a noite inteira.
- Aquela Nancy parece ter o dom da ubiqüidade, disse Scott, indo para a sala, a fim de colocar o
copo sobre a mesa.
182 Voltando ao quarto, passou ao "toilette", onde se despiu e pôs o pijama e chinelos. Sentou-se
depois na beira da cama de Ana, recomeçando a palestra.
- Foi realmente um jantar agradável e espero que dele resultem vantagens.
- Mas a fortuna já está arranjada? perguntou Ana rindo.
- Não, mas estamos a caminho disso.
Depois de alguns momentos de silêncio, Scott contou que, terminado o jantar, haviam levado as
senhoras a casa.
- Então havia senhoras no jantar? Pelo que você me disse, pensei que fosse um jantar
estritamente de negócio, observou Ana, lembrando-se vivamente do que lhe dissera Nancy.
- Sim, e, a propósito, Mrs. Brendon está com muita vontade de conhecer você. É uma boa e
maternal criatura.
Certamente você não fará objeção a que ela venha aqui. - Se ela é como você a descreve, nada
tenho a opor, disse Ana sorrindo.
- Você está ficando ciumenta? Olhe que nesse caso farei vir também Miss Brendon. Essa, sim, é
uma interessante criaturinha de dezesseis anos, jogando tênis, montando a cavalo e sabendo
conversar como uma rapariga ultramoderna.
Ana pôs-se a brincar com o marido, puxando-lhe o nariz e como ele observasse que notava em
sua fisionomia qualquer preocupação, contou-lhe o que acontecera a Guy.
- Mas que rapaz bobo! exclamou Scott. Gomo é que ele foi fazer um negócio dessa ordem?
- Pediu-me para que o tirasse das dificuldades, sugerindo-me também que recorresse a você para
auxiliá-lo. Respondi-lhe que você não tinha nenhuma obrigação de socorrê-lo, porque não era seu
irmão.
183
- Por esse motivo, não.
- Tenho um plano para auxiliar Guy, de quem não estou com pena, mas que quero tirar desse
embaraço apenas para evitar um desgosto à mamãe. Você será capaz de me emprestar trezentas
libras? Pagarei em prestações e espero que não faça comigo negócio de usurário, concluiu Ana
sorrindo.
- Infelizmente, querida, é impossível, porque no momento não tenho esse dinheiro.
- Mas, Scott, como é possível que você não disponha de trezentas libras? Terá gasto todas as
suas economias? Em que aplicou todo o dinheiro que "tinha?
- Comprei mobiliário, você bem sabe. Gastei na nossa viagem ao sul da França e. Scott notou que
Ana o fixava atentamente e pareceu-lhe que no olhar da mulher se refletia uma idéia, que ele por
seu turno quase adivinhava.
- Então, Scott, você se meteu em especulações ruinosas? Não me contou nada. Não quero
submetê-lo a um interrogatório. Mas, se me tivesse falado em um negócio dessa natureza, talvez
lhe tivesse dado um bom conselho.
- É verdade. Meti-me em um mau negócio, onde perdi metade do que havia economizado.
- Ah, você nunca me disse nada sobre isso!
- Não valia a pena falar, mas não pense que eu esteja arruinado e que tenha falta de dinheiro. Os
meios pelos quais ganhei continuam ao meu alcance, disse Scott com uma certa nervosidade e
em tom um pouco impaciente.
- Essa especulação foi feita antes ou depois do nosso casamento?
Scott hesitou, mas o olhar de Ana era tão frio e imperioso, que ele não pôde evitar uma resposta
sincera.
- Foi depois...
184 - Então você perdeu o dinheiro com Abel Martin, não é verdade?
Scott teria dado tudo no mundo para dizer que não, mas a mulher o dominava naquele momento
com a energia do seu olhar e com uma expressão que parecia mostrarlhe ser inútil mentir.
- De fato, perdi dinheiro com Martin; aquele patife roubou-me.
- Então você foi embrulhado por Martin, não?
- Quem pode evitar uma coisa dessas? Estava em lua de mel e o meu espírito achava-se fora do
mundo dos negócios. Foi por isso que ele conseguiu embrulhar-me.
- Mas você me tinha dito que nada perdera com Martin.
- Sim, mas...
- Não há meio de tergiversar sobre esse ponto. Você me afirmou que não fora prejudicado por
Martin.
- Não creio que lhe tivesse dito isso categoricamente.
- Sim, talvez não tivesse usado precisamente essas palavras, mas implicitamente o disse, uma
vez que me afirmou que nada havíamos perdido com aquele efêmero e indesejável conhecimento.
Scott começava a julgar intolerável a situação em que se encontrava. Para evitar o olhar frio e
penetrante de Ana desviava os olhos para o chão, fixando-os sobre a ponta dos chinelos. Mas ela
insistiu lembrando que lhe dera muitas oportunidades para que ele dissesse a verdade. A
tenacidade de Ana fez-lhe perder a calma e ele exclamou:
- Afinal de contas, que motivo tinha eu para contarlhe isso? O dinheiro era meu e não seu.
- Isso não tem a mínima importância. Se o dinheiro fosse meu, não estaria mais desgostosa do
que estou. Não
185
lamento a perda, sinto-me revoltada contra o fato de você ter mentido.
- Mentido? Não! retrucou Scott visivelmente ferido pela injúria.
- Sim, você mentiu e mentiu sem que tivesse ao menos uma atenuante para essa deslealdade. É
um grande desapontamento que tenho, porque até agora o julgava incapaz de mentir.
- Mas, Ana, eu não menti, não quis enganá-la, ponderou Scott que não falava mais com
impaciência e tinha o tom persuasivo e cordial. Não lhe contei o fato, porque não queria aborrecê-
la.
A mudança de atitude do marido, longe de melhorar a situação, veio agravar ainda mais a cólera
da mulher que, com maior exaltação, lhe disse que ele estava mentindo de novo, porque o motivo
que o levara a ocultar o prejuízo causado por Martin não fora o desejo de não a incomodar, mas o
receio de ser tomado por um tolo, facilmente explorado pelas manhas de um escroque que vivia
desses expedientes.
Os dois fitaram-se de novo e nos olhos de cada um deles havia uma profunda hostilidade. A
alusão de Ana ao papel ridículo que fizera, caindo como um idiota na armadilha preparada por um
vulgar chantagista, irritou extraordinariamente Scott.
- Vejo que forma de mim juízo tão mau como lady Emerald.
- Não formo juízo algum. Estou apenas afirmando que você mentiu.
Scott era por temperamento muito verídico. Um conjunto de circunstâncias o levara a não dizer a
verdade à mulher durante a lua de mel. Mas tinha a consciência da injustiça que sofria ao ver-se
tratado com tão excessiva
186 severidade por um desvio, aliás não muito grave, do caminho de veracidade e lealdade que
sempre trilhava. A insistência com que a mulher lhe repetia a acusação de mentira começava a
torná-lo positivamente furioso. Ana, por seu turno, estava tão indignada que do seu espírito se
tinham varrido todas as lembranças agradáveis e doces do convívio com o marido. Daí em diante
a discussão transformou-se em positiva briga. Falavam baixo, porque ambos temiam que as
criadas ouvissem o barulho. Mas trocavam-se palavras ásperas e aquele primeiro conflito conjugal
assumia proporções capazes de envolver graves conseqüências. Scott, desesperado e não
podendo mais conter-se, entrou para o seu quarto e bateu violentamente a porta. Ana, recostada
aos travesseiros, não desarmava a sua cólera.
Nada era mais antagônico à índole de Mrs. Kentish que a mentira. Considerava-a como
mesquinha, indigna e covarde. A idéia de que Scott lhe tinha faltado à verdade a enchia de tal
indignação, que se lhe afigurava não ser aquele homem o mesmo a quem tanto amara e que
durante meses compartilhara com ela um idílio, em que nunca surgira uma sombra de divergência
ou de desconfiança.
Mais uma vez Ana era vítima do esquecimento da máxima pela qual pretendia sempre pautar os
seus atos. Tivesse ela conservado um pouco mais de equilíbrio naquele episódio e verificaria que
a sua indignação, até certo ponto compreensível, fora levada a extremos insensatos. Aliás, a
atitude tanto dela como do marido naquela primeira briga conjugal indicava apenas que ambos se
amavam. Ana e Scott haviam verificado esse fato desde o primeiro momento em que se
encontraram, mas a mulher, agindo conforme a tendência do seu sexo, sob o impulso do instinto e
guiada quase exclusivamente pela intuição, tomava o marido como uma personalidade
homogênea, na qual a sua análise demasiado simplista não descobria as
187
contradições e as incoerências, que na alma de cada um de nós refletem os frutos acumulados
não só da experiência da vida, mas da ação remota da herança psíquica de que somos
portadores.
Pouco a pouco Ana foi recobrando a calma. Já não sentia aquela violenta hostilidade contra Scott.
Começou mesmo a ter um certo remorso dos excessos a que chegara. Em vez de pensar
agressivamente, lamentava que o marido não lhe tivesse contado francamente o que se passara.
No meio da gloriosa exaltação da lua de mel, a perda de dinheiro, embora substancial, não
deixaria vestígio. Por que Scott não lhe dissera a verdade? Ana, cujo cérebro funcionava agora
com maior lucidez, principiou a compreender o ponto de vista do rapaz. Não quisera diminuir-se
diante dela, confessando que se deixara embrulhar por um vulgar chantagista. Era uma
atenuante, mas Ana não podia ainda justificar a falta de sinceridade do marido. Bem compreendia
que ele tivesse receado a humilhação de confessar que o equilíbrio mental e o tato para os
negócios, de que tanto se orgulhava, não o haviam defendido do golpe de Abel Martin. Mas isso
não justificava a mentira. E como poderia ela ter no futuro a mesma confiança que implicitamente
até então depositara em Scott? Nesse momento, lembrou-se das palavras de Nancy acerca da
confiança que se podia ter em Scott.
A imagem de Nancy perturbou-a de novo e o seu pensamento perdeu a clareza que ia retomando.
O veneno daquela frase pérfida infiltrava-se-lhe no espírito e produzia de novo os seus efeitos.
Ana começou a sentir o ciúme que Nancy habilmente lhe insinuara. Realmente, seria possível que
um jantar de negócio tivesse durado tanto tempo? E a tal Miss Brendon, a sirigaita jogadora de
tênis e entusiasta de cavalos, com os seus dezesseis anos e os seus modos de moça
ultramoderna? Ana sentia vagamente alguma coisa que lhe repugnava em tudo isso, embora não
188 compreendesse ainda estar pensando sob a influência de uma forte emoção de ciúme.
Esse sentimento de nojo despertou-lhe outro de vergonha de si mesma. Era o melhor que lhe
podia acontecer naquelas circunstâncias, em que tendia a tornar-se demasiadamente severa no
julgamento de um ato do marido. Não há nada melhor para moderar os excessos de puritanismo
que a consciência de alguma coisa que nos envergonhe.
Ana esteve por muito tempo a pensar. Idéias contraditórias e sentimentos opostos cruzavam-se
no seu cérebro. Pouco a pouco, porém, e a despeito da sua vontade, foi revendo o caso que tão
repentinamente interrompera uma felicidade conjugal de tantos meses. Achou que realmente fora
excessivamente severa para com Scott. Bem devia ter compreendido que um homem sentisse
relutância em confessar-se um tolo à mulher com a qual casara poucos dias antes e com quem
estava passando uma deliciosa lua de mel. Entretanto, não se conformava com a idéia de que o
marido não houvesse encerrado a cena pedindo-lhe desculpas pela mentira de que o acusava.
Esses pensamentos foram levando Ana a uma sensação de isolamento e logo após à idéia de que
Scott estava pela primeira vez separado dela no quarto próximo. Apagara a luz e a escuridão
ainda lhe aumentou a sensação de isolamento e ao mesmo tempo acentuou a emoção carinhosa
pelo marido. Estaria ele também sofrendo uma angústia igual à sua? As lágrimas corriam-lhe
pelas faces e Ana mergulhava a cabeça nos travesseiros, a fim de abafar os soluços. O relógio da
sala de jantar deu três pancadas surdas. Três horas haviam decorrido desde a briga e Ana sentiu
verdadeiro horror ao pensar que por tanto tempo ela e Scott estavam separados. Não, não
consentiria que essa separação continuasse e achava agora monstruoso que a
189
felicidade de ambos fosse comprometida por um incidente, que agora se lhe afigurava não ter tido
maior importância.
Quando estes últimos pensamentos lhe preocupavam o espírito, Ana já se havia levantado
maquinalmente, encaminhando-se para a porta, que abriu sem fazer ruído. A janela do quarto de
Scott estava escancarada e a aragem que entrava agitou-lhe a fina camisola de cambraia. A lua,
em quarto minguante, como uma delgada foice de prata, iluminava a cama em que Scott estava
deitado. Ana aproximou-se cuidadosamente e teve um choque de desagradável surpresa. O
marido dormia profunda e tranqüilamente.
Então, ela tivera todo aquele angustioso arrependimento e viera ao encontro do homem a quem
julgara ter tratado com excessiva aspereza, receando encontrá-lo presa dos mesmos sentimentos
de ansiedade e talvez mesmo de desespero, para verificar agora que durante todo aquele tempo,
que para ela fora de agonia, ele dormia como uma criança. Os homens são realmente seres
esquisitos, pensava Ana. Atravessam crises violentas e em seguida dormem, como se nada de
anormal lhes tivesse ocorrido.
Já voltara as costas para retornar ao seu quarto, quando se sentiu agarrada por dois braços fortes
e ouviu a voz carinhosa de Scott, que a puxou para a cama, dizendo-lhe:
- Querida, não imagina que horror passei aqui sem você.
A doçura da reconciliação compensou os sofrimentos daquelas horas de tortura. Mas a briga
deixara em ambos um vestígio, que as carícias e a ternura não puderam apagar. Ana e Scott se
haviam pela primeira vez defrontado em atitude de cólera, que é o estado de alma em que os

190 indivíduos melhor revelam os aspectos profundos da sua personalidade. Cada um observara
no outro traços de que antes não haviam suspeitado a existência.
Passaram-se três dias, durante os quais, apesar de as relações entre ambos serem as mais
cordiais, tanto Ana como Scott sentiam a persistência de uma sombra, que toldava a felicidade
mantida até a primeira desavença. Na noite do terceiro dia, Ana se estava preparando para ir ao
teatro, quando Scott, chegando-se a ela, lhe disse carinhosamente, mas em tom sério:
- Não sou um mentiroso, Ana.
- Por que você ainda fala desse assunto? retrucou Ana, voltando-se para ele e pondo-lhe as mãos
ao pescoço.
- Insisto, porque quero fazer-lhe compreender bem que tenho tanto amor à verdade e detesto
tanto a mentira como você.
- Já dei o caso por encerrado definitivamente.
- Não, meu amor, sinto que precisamos esclarecer completamente a situação.
- Você já me explicou tudo.

- Mas não lhe disse tudo que deveria ter contado para justificar-me. Guardei segredo acerca da
fraude de que fora vítima por parte de Abel Martin, não por querer enganá-la, mas porque não tive
coragem de afrontar o juízo que poderia formar a meu respeito. Você, Ana, teve sempre em tão
alto conceito o meu critério e a minha habilidade de homem de negócios, que fiquei acanhado em
confessar-lhe que havia sido embrulhado por aquele patife.
- Compreendo tudo, meu bem. Não falemos mais nisso.
- Deixe-me apenas dizer-lhe ainda que, quando penso na noite em que brigamos, tenho a
sensação de um pesadelo. 191
- Exatamente o mesmo que se dá comigo, afirmou ela.
Abraçando e beijando a mulher, Scott declarou-lhe que a partir daquele momento se amariam
ainda mais que antes e nunca mais consentiriam que a felicidade de ambos fosse perturbada por
desentendimentos e desavenças.
Pouco depois, no automóvel, Ana, radiante, apertava a mão do marido, dizendo:
- Scott, nunca estive tão unida a você como agora.
Ao cabo de algum tempo de silêncio, o rapaz comunicou-lhe que arranjara um meio de tirar Guy
das dificuldades em que se metera.
- Não deixe de telefonar-lhe amanhã, avisando-o de que me deve procurar.
- É verdade, esqueci-me completamente do pobre Guy. Que coisa inqualificável! Isto serve para
mostrar como é mau brigar com você.
Em seguida os dois, apertando-se as mãos, olharam-se com infinita ternura e cheios de alegria,
porque realmente sentiam que agora a união deles era mais perfeita que nunca.
CAPÍTULO XII
Na manhã seguinte Ana telefonou para o escritório onde Guy trabalhava. Quando o irmão veio
atender, a moça estranhou-lhe a voz.
- Quem fala? É você mesmo, Guy?
- Sim, Ana, sou eu mesmo, respondeu o rapaz em tom visivelmente alegre.
- Pois não conheci a sua voz. Falei a Scott no seu caso e ele lhe pede que o procure, porque acha
que poderá auxiliá-lo. Se quiser, venha hoje jantar conosco.
192 - Muito obrigado, Ana. Fico muito grato a Scott, mas não preciso mais de socorro.
- Então você conseguiu sair das dificuldades? Como foi isso?
- Você não pode imaginar. Seria impossível encontrar-se no mundo dois casos de sorte
semelhantes ao meu. Calcule que apareceu, vindo da índia, o tal Mr. Glenny, que viajou até a
Inglaterra para nos ver. Você já tinha ouvido falar nesse homem?
Ana fez uma pausa, lembrando-se do que sua mãe lhe contara, na noite em que lhe participara o
seu noivado com Scott. O Glenny, a quem se referia Guy em termos tão jubilosos, não podia ser
outro senão o antigo namorado de Mrs. Maitland, que figurava ao lado dela na fotografia colocada
sobre a prateleira da lareira no seu quarto de dormir. Ao cabo de alguns momentos, respondeu a
Guy, dizendo imaginar de quem se tratava.
- Pois bem, esse Mr. Glenny tem ido à nossa casa todos os dias e já convive conosco, como se
nos tivesse conhecido desde que nascemos.
- E você arranjou o dinheiro com ele?
- Exatamente. Expus-lhe as minhas dificuldades e o homem prontificou-se logo a dar tudo que eu
precisava. E fique sabendo que fez isso sem me pregar sermão de moral.
Ana deu uma risada, interrompendo Guy, que continuou entusiasmado:
- Veja você, arranjar a solução de um caso desses, sem ter a maçada de ouvir conselhos. Mr.
Glenny parece simpatizar muito comigo e eu o estou achando um ótimo tipo.
- Pensa você que ele fez isso por sua causa?
193
- É possível que tenha sido por causa da mamãe, mas por isso não me considero menos feliz de
ter encontrado esse homem providencial.
Ana despediu-se do irmão, que mandou agradecer muito a Scott os seus bons desejos, sentindo
não poder ir encontrá-los logo para relatar as peripécias do feliz desfecho da sua aventura. Em
seguida Ana telefonou a Mrs. Maitland.
- Mamãe, como vai passando a senhora? Que há de novo?
- Nada, vamos todos passando bem.
- Já sei que há uma novidade aí. O aparecimento inesperado de um velho amigo seu. Guy deu-me
essa notícia.
- Sim, James Glenny. Chegou há dias e tem vindo aqui visitar-nos, respondeu muito calmamente
Mrs. Maitland, que prosseguindo disse a Ana estar Glenny ansioso por conhecê-la e que ela
viesse com Scott jantar e passar a noite de sábado.
Ana, encerrada a conversa telefônica com sua mãe, foi encontrar Scott para almoçarem juntos.
Contou-lhe então a maneira como Guy tirara partido do aparecimento de James Glenny e o
marido ponderou que o rapazinho estava destinado a grandes coisas, com essa maravilhosa
aptidão para agarrar a fortuna à sua passagem.
- Não há nada melhor para vencer-se na vida que ter uma cara de bronze, disse Scott rindo.
Conforme haviam combinado, Ana e Scott foram a Upper Norton no sábado. Quando entraram na
sala de visita de Mrs. Maitland, James Glenny, que se achava
194 comodamente recostado a uma poltrona, levantou-se dirigindo-se aos recém-chegados com
um desembaraço, que deu aos dois a impressão de que o homem já se sentia dono da casa. Ana
sentiu um movimento íntimo de hostilidade, mas quando Mrs. Maitland fez as apresentações
tratando-o por Jim, a impressão de Ana era que a mãe já pertencia àquele homem. Entretanto,
quando Glenny, apertando-lhe a mão e dizendo-lhe que tinha um grande prazer em conhecê-la, a
encarou com os seus límpidos olhos azuis, a moça sentiu-se desarmada pela impressão de
sinceridade que o homem lhe dava.
Apesar de colocada em termos mais cordiais com o antigo namorado de sua mãe, Ana, durante o
jantar e na palestra que a ele se seguiu, manteve uma atitude de certa reserva, que não escapou
a Glenny. Aliás, este estava perfeitamente à vontade. Todos pareciam encantados com ele. Guy
falava-lhe em tom afetuoso e com estudado respeito. Kathie parecia ter passado a vida inteira em
sua companhia, tal a intimidade com que o tratava. Scott gostava imensamente do homem e
conversava com ele animadamente. Em um momento em que falou a sós com Ana, exprimiu o
seu entusiasmo por Glenny, dizendo que via nele o tipo desses homens brancos que iam civilizar
terras bárbaras. Ana, com um gesto desdenhoso, manifestou o seu cepticismo diante do
entusiasmo do marido.
Mais tarde, enquanto Mrs. Maitland e Kathie estavam ajudando a criada na copa e Scott
conversava com Guy, Glenny chamou Ana e convidou-a para dar um passeio. Saíram os dois pelo
jardim, caminhando por entre os canteiros, onde as flores exalavam o seu perfume ao calor da
escura noite de verão. Após alguns momentos de silêncio, Glenny dirigiu-se a Ana.
-Já me haviam dito muitas vezes que eu viria encontrar as coisas muito mudadas na Inglaterra,
mas confesso
195
que nunca pensei que a transformação tivesse sido tão grande, que fosse preciso pedir licença a
uma filha para fazer a corte à mãe.
- Então o senhor pretende casar-se com minha mãe? disse Ana com um risinho.
- Sem dúvida, e porque não hei de fazê-lo?
- Do seu ponto de vista está muito direito. Mas o que eu penso sobre o caso é coisa diferente.
- Que razão a leva a ter ciúmes de sua mãe?
- Não se trata de ciúmes. É que eu não sei se o senhor é digno de casar-se com minha mãe.
- Bem sei que não a mereço.
Estas palavras foram pronunciadas com um tom de tocante sinceridade e produziram em Ana
imediato efeito, tornando-a logo mais simpática a Glenny. Ao cabo de um curto silêncio a moça
perguntou-lhe abruptamente:
- Por que motivo o senhor auxiliou Guy?
- Por uma razão muito simples. Não podia deixar um filho dela em uma situação desagradável.
Não me custava nada auxiliá-lo, porque, como sabe, tenho felizmente uma confortável posição
financeira.
- Bem sei. Mas qual foi a sua intenção?
- Acha que fiz isso para agradar a sua mãe? Ela nada sabe sobre o caso e farei tudo para que
nunca venha a sabê-lo.
- Sim, peço-lhe desculpas por ter tido a seu respeito um pensamento injusto, mas sabe que gosto
muito da minha mãezinha.
- Nada tenho a desculpar e fico muito contente por ver como gosta de sua mãe. Aliás já sabia que,
de todos três, era a mais afetuosa para com ela. E foi exatamente por isso que quis a sua licença
antes de pedir sua mãe em
196 casamento, sem me julgar obrigado a fazer o mesmo com Kathie e Guy.
- Mas se o senhor gostou sempre de mamãe, por que não veio casar há mais tempo? Meu pai
morreu há nove anos. Assim eu me teria habituado mais cedo à nova situação.
- Minha mulher.
- Sua mulher? Então o senhor não foi o cão fiel que eu supunha?
- Fui muito fiel, mas quando vi sua mãe casar, fiz o mesmo.
- Por pirraça, não?
- Sim; não são só as mulheres que fazem pirraça. - Mas o senhor foi feliz no casamento?
- Prefiro não discutir aqui o meu primeiro casamento. Minha mulher era uma excelente criatura e
foi uma esposa exemplar. Está morta. Em minha vida só tive um romance e por causa dele acabo
de fazer uma viagem de milhares de milhas. Vim realizar o meu sonho, antes tarde que nunca.
- Minha mãe também teve um romance, mas parece que não se saiu muito bem dele.
Depois de haver dito estas palavras, Ana percebeu a expressão de tristeza na face de Glenny e
compreendeu que o ferira, relembrando o lance mais doloroso da sua vida. Apressou-se em pedir
desculpas, ao que ele retrucou, dizendo com simplicidade que não pensasse mais nisso.
- Mas o senhor vem buscar minha mãe?
- É o que pretendo fazer, se ela consentir.
- vou sentir imensamente essa separação. Sempre vivemos muito juntas e mesmo depois do meu
casamento, embora nos afastássemos um pouco mais uma da outra, ainda assim ela está sempre
no meu apartamento e não 197
posso compreender que uma grande distância se interponha entre nós.
- Bem compreendo isso, mas é preciso considerar que a senhora tem seu marido e uma vida
cheia de interesses e de ocupações.
- Diga-me com franqueza, tem realmente um grande amor por minha mãe?
- Sim, sempre tive e ela é realmente a única pessoa que amei na vida. Creio também que ela me
corresponde.
- Sim, vejo que ela gosta muito do senhor. Devo contar-lhe ainda uma coisa. Tem um retrato seu
tirado junto com ela sobre a prateleira do fogão no quarto de dormir. Conheço esse retrato desde
pequena.
- É verdade? exclamou Glenny com um júbilo, que lhe deu uma expressão de rapaz, radiante de
alegria.
Da porta da sala de jantar partiu a voz de Mrs. Maitland, chamando para o café. Quando viu os
dois se aproximarem, ela olhou um pouco desconfiada para Ana. Glenny, rindo, lhe disse que
acabava de ser submetido a julgamento.
- Foi aprovado com distinção, afirmou Ana rindo e beijando Mrs. Maitland.
James Glenny, sorrindo, olhou de soslaio para Ana, que somente mais tarde, quando foi pôr o
chapéu à hora de partir, teve ensejo de conversar mais demoradamente com sua mãe.
- Que impressão você teve de Glenny?
- Excelente, mamãe, e acho que ele mereceu você tivesse guardado carinhosamente o retrato
dele por tanto tempo.
Conversaram em seguida sobre a nova situação que se delineava à família e Mrs. Maitland
mostrou-se muito satisfeita ao saber que Glenny sondara os sentimentos de Ana
198 a seu respeito, antes de um anúncio protocolar do pedido de casamento que lhe fizera. Ana,
contente por ver a alegria de Mrs. Maitland, exprimiu a sua satisfação, augurando-lhe um resto de
vida feliz e tranqüilo.
- Não sei, minha filha. A vida tem tantas surpresas! Diga-me, você ainda não encontrou em Scott
algum traço de caráter ou de temperamento que nele não tivesse observado quando noiva?
- Talvez, mamãe, mas coisas pequenas, respondeu a moça corando e agitando nervosamente a
fita que lhe caía por detrás do chapéu.
- Ainda bem, minha filha, que você tem encontrado coisas insignificantes. Na minha primeira
experiência de casamento tive bem cedo grandes e dolorosas surpresas mas, apesar de tudo,
tenho confiança na vida...
- Mamãe, você merece toda a felicidade e o destino há de trazer-lhe afinal uma compensação pelo
que já sofreu.
Quando Ana e Scott se despediram, a moça, abraçando e beijando carinhosamente Mrs. Maitland,
sentiu que esta se achava possuída de uma alegria, como nunca lhe observara antes e teve a
impressão de que um providencial encadeamento das coisas preparara para aquela mulher, após
amarga experiência da vida, a realização do único sonho sentimental, em que realmente todo o
seu ser havia compartilhado.
Ana, pouco a pouco, foi tendo menos convivência com a mãe e a irmã. As suas visitas a Upper
Norton tornavam-se cada vez mais raras. O casal Scott Kentish ia sendo vertiginosamente
arrastado para um turbilhão de intensa vida mundana. 199
A boa estrela de que Scott tanto se gabava parecia estar agora a aproximar-se do zênite. O jovem
empregado de Kale & Dives parecia levado para a fortuna por uma maré cheia de sucessos na
City. Negócios uns melhores que os outros sucediam-se, como se uma chuva de ouro caísse
ininterruptamente sobre o felizardo Scott. Raro era o dia em que, por entre beijos e carícias, não
anunciava à mulher o desfecho feliz de mais uma operação lucrativa.
A prosperidade alargava os horizontes da vida social do casal. O círculo de amigos aumentava
incessantemente e cada vez de mais alta situação eram as pessoas com que Ana entrava em
convívio. No apartamento reuniam-se, em jantares elegantes, personagens de destaque no
mundo da alta finança. Ana via multiplicarem-se os convites para festas, jantares, ceias e visitas a
casas de campo de gente elegante e opulenta. O guarda-roupa de Mrs. Kentish continha um
número crescente de vestidos, saídos das mais afamadas casas de modas. Scott também
possuía agora uma formidável coleção de ternos. Não comprava jóias para si, porque a isso se
opunha o seu critério da masculinidade mas, em compensação, cobria Ana de ricos adereços e
colares e ornava os seus dedos delicados com anéis custosos. Às vezes o espírito equilibrado da
mulher formulava objeções à acelerada progressão das despesas, mas Scott, para quem o
dinheiro só tinha valor como meio de proporcionar bem-estar, conforto e mesmo luxo, lhe dizia
rindo:
- Minha querida, vá comprando e mande trazer-me as contas.
Scott fez com que Ana deixasse o seu emprego. Achava que ela lhe prestaria serviço
infinitamente maior consagrando todo o seu tempo à vida mundana, de que, dizia ele, dependia
em grande parte o êxito da sua atividade financeira na City. A vida do casal já não era apenas de
grande conforto, mas estava cercada de positivo luxo.

200
De acordo com as necessidades da sua nova situação social, Scott alugou uma casa de
campo. Era um desses prédios que
os agenciadores costumam anunciar como
pertencendo a um período antigo e completamente renovado e modernizado sob o ponto de vista
sanitário. Isto na verdade significava
apenas tratar-se de uma edificação
moderna no estilo arquitetônico da época dos Tudor.
Ampla e muito confortável, a casa era mobiliada em estilo antigo e equipada com os mais
modernos aparelhos de serviço doméstico.
Gercava-a um grande jardim, em que
se estendiam canteiros de flores e gramados entrecortados por caminhos sinuosos, ao longo dos
quais se enfileiravam arbustos
selecionados. Mais longe, dois campos
de ténis. À esquerda um pomar e à direita um pequeno bosque. Enfim, reunia-se ali tudo que
justificava o anúncio entusiástico
do agenciador.
A princípio, Ana e Scott iam apenas passar os fins de semana na sua residência campestre,
convidando amigos para fazer-lhes
companhia. Depois acharam que era pena
interromper reuniões tão agradáveis e decidiram fixar residência permanente ali. Scott todas as
manhãs tomava na estação
local o trem das oito e cinquenta. Era um
expresso utilizado exclusivamente por gente elegante e rica e que, em menos de uma hora,
deixava os seus passageiros de
elite em uma das gares da City. Mas Scott
começou a achar enfadonha a necessidade de submeter-se ao horário inflexível. Comprou um
automóvel. Era um carro do tipo
mais elegante e de uma das marcas mais famosas.
Baixo, longo e de cor creme. Poltronas mais que confortáveis e todos os apetrechos
complementares de um automóvel de grande
luxo.
Uma bela manhã, Scott chamou a mulher à janela e apontando para o carro, disse-lhe:
- Que tal?

201
- Simplesmente magnífico.
- Pois é o nosso automóvel. Gomprei-o barato. O dono estava em aperturas. Dei-lhe por conta
uma parte do preço e irei pagando
o resto em prestações.
- Mas, Scott, poderemos arcar com essa despesa?
- Não se assuste, meu bem; você tem um maridinho cujos dedos parecem ter adquirido a
propriedade do rei Midas. Tudo que
eles tocam se transforma em ouro.
Em uma espécie de êxtase, Scott ficou a contemplar o automóvel. Era mais um dos sonhos que
realizava na vida. Pouco a pouco
ia conquistando tudo que sempre ambicionara.
O luxo fora por ele encarado desde menino não como supérfluo, mas como condição essencial
para tornar a vida decente e digna
de ser vivida.
- Estamos tendo tudo que desejávamos, Ana, e havemos de ter muito mais. Isto é apenas o
começo.
A mulher apertou-lhe o braço carinhosamente e ficou silenciosa a fixar também o luxuoso carro,
que marcava o início de uma
nova etapa na carreira de triunfos financeiros
e mundanos de Scott.
- O que estou realizando é apenas a base para o meu grande voo. O sucesso atrai o sucesso. O
êxito nos negócios prepara
negócios de maior vulto. O dinheiro é o imã
que chama a riqueza.
- Brendon é de opinião que você está caminhando rapidamente para juntar-se ao grupo dos
milionários de Londres.
- Milionário, não sei... Mas é preciso não esquecer que Rudolph Brendon não é nesses assuntos
um juiz cujas opiniões se
possam desprezar.
- Brendon parece que lhe tem dado sorte.
- Sim, é uma verdadeira mascote. Mas, por enquanto, ele ainda não me deu toda a sorte que
espero. O
202
grande projeto de Brendon vai ser o meu golpe decisivo. A coisa está andando um pouco mais
devagar que contávamos, mas vai tomando pouco a pouco forma e, quando
chegar o momento oportuno, será uma dessas operações dramáticas, com que se faz fortuna do
dia para a noite. A minha senha para entrar no mundo da riqueza será "Borracha Koraviana".
Guarde o mais absoluto segredo sobre isto, Ana. Olhe bem.
- Pode ficar tranqüilo.
- Então poderei tornar-me milionário e você será uma milionária. Terei a satisfação de realizar o
sonho que acariciava no momento preciso em que nos unimos junto ao altar. E que elegante e
graciosa milionária será você! Os vestidos luxuosos e as jóias ficam-lhe tão bem! Há mulheres
que por mais caras que sejam as suas "toilettes", parecem sempre criadas envergando os
vestidos das patroas. Mas você, Ana, nasceu para a glória do luxo.
- Sim, tenho consciência de que fico bem com tudo que ponho sobre mim.
Envolvida nesse turbilhão de vida mundana, Ana foi tendo pouco a pouco menos contato com a
mãe e os irmãos. Raramente tinha tempo de ir a Upper Norton e seu afastamento fez com que a
notícia protocolar do próximo casamento de Mrs. Maitland com James Glenny a viesse
impressionar como surpresa. É claro que Ana estava perfeitamente ao corrente desse projeto,
cuja realização não podia ser para ela uma novidade. Em outras circunstâncias, a moça teria
ficado acabrunhada com a perspectiva da próxima partida para o Oriente da mãe, a quem votava
tão profunda e terna amizade. Mas no meio da sua intensa vida de prazeres e deveres sociais,
Ana não avaliou o alcance do que ia acontecer. Por seu turno Mrs. Maitland, que teria relutado um
pouco em casar-se, a fim de não se separar da filha, não resistiu por mais tempo aos desejos
203
de Glenny, vendo que Ana, absorvida pela sua nova vida, dela tanto se afastara.
O casamento teve lugar logo em seguida e imediatamente após o casal embarcava em
companhia de Guy, que ia trabalhar com um bom emprego nas plantações de chá de Glenny, e
Kathie, muito contente com a idéia da viagem a um país longínquo e pitoresco. Somente no cais,
quando se despediu de Mrs. Maitland e viu afastar-se o grande paquete que devia levá-la ao outro
lado do mundo, Ana avaliou a enormidade da perda que acabava de sofrer. Ainda no automóvel o
seu abatimento era tão profundo, que Scott teve o bom-senso de não perturbar o silêncio daquela
grande dor. Passada a crise, abraçou-a e beijou-a, fazendo-lhe sentir que, como compensação do
afastamento da mãe, tinha o seu carinho e a alegria de uma vida feliz, movimentada e luxuosa.
Assim, realmente, aconteceu. Ana mergulhou de novo nos prazeres e ocupações do mundo em
que agora se movia. Novas necessidades de luxo surgiam, estimuladas pela satisfação de
aspirações anteriores. O casal, bafejado pela fortuna que continuava a cercar Scott na City,
ampliava cada vez mais o círculo da sua existência inteiramente absorvida pelos prazeres
mundanos e progressivamente mais emaranhada nas engrenagens de uma vida social elegante e
faustosa.
CAPITULO XIII
A fortuna continuava a derramar os seus benefícios sobre Scott, e Ana estava cada vez mais
empolgada pela vida de luxo, de movimento e de prazer em que cada dia surgiam novas
aspirações que, uma vez satisfeitas, iriam estimular outros e mais ambiciosos desejos. Os
negócios de Scott na City prosseguiam, assinalados sempre pelo

204 êxito e por lucros cada vez maiores. Brendon parecia ser realmente não apenas uma
incomparável mascote, como um seguro e experimentado piloto de negócios. Os seus golpes
eram certos e agora o grande plano por ele arquitetado começava a dar os seus primeiros
resultados. Borracha koraviana era, de fato, uma senha para a conquista da fortuna.
Ana, mais equilibrada e prudente que o marido, tinha os seus momentos de apreensão e de
dúvida. Afigurava-seLhe às vezes que aquela vida tinha alguma coisa de fantasmagórico e temia
que a realidade suplantasse de repente toda a fulgurante encenação. Mas, quando uma vez
perguntou a Brendon se aquele negócio da borracha era seguro, teve como resposta uma
afirmação positiva que refletia a confiança do experimentado manipulador da Bolsa.
- Mrs. Kentish, não há no mundo nada mais seguro que isso. E se não o fosse, estaria eu metido
nesse negócio até o pescoço?
A resposta de Brendon era categórica e aquele homem, muito mais velho que Scott, tinha a
reputação de profundo e criterioso conhecedor de negócios. Aliás, pensava Ana, o próprio Scott
trabalhava havia muitos anos na City e o seu emprego consistia exatamente em comprar e vender
títulos na Bolsa. É certo que ela nunca se esquecia de que uma vez o marido fora tão
ridículamente embrulhado por um vulgar escroque. Entretanto, também se lembrava de que Kale
& Dives se tinham metido a fundo no negócio da borracha koraviana e a grande firma onde Scott
trabalhava tinha na City a fama de nunca se envolver em jogatina de Bolsa demasiadamente
arriscada. Ana, no seu raciocínio tranqüilizador, não levara em linha de conta o fato essencial de
que às vezes e em qualquer ramo de atividade humana os homens mais inteligentes e mais
experimentados no seu ofício cometem erros.
205
Amanhecera o dia do aniversário de Ana. Era no fim de outubro, mas o outono parecia ter recuado
para o verão. Um sol quase sem nuvens iluminava a sala de jantar da casa de campo de
Hertfordshire, que Scott decorara com magníficas rosas, em quantidade que não poderia ter sido
por certo suprida, naquela estação do ano, pelo jardim da vivenda. Quando a moça entrou para o
primeiro almoço e escapou dos braços do marido que, dando-lhe uma dúzia de beijos, exprimira
outras tantas vezes os seus votos de felicidade, descobriu ao lado do seu talher uma bela caixa
de tartaruga, que continha um rico colar de pérolas. A refeição correu alegre e acidentada pela
chegada dos primeiros presentes. Scott despediu-se, dizendo que faria o possível para voltar a
tempo do chá e que em todo o caso estaria de regresso muito cedo.
O dia passou-se por entre constantes surpresas, com a chegada de encomendas postais e de
portadores trazendo as lembranças com que os agora numerosos amigos do casal Kentish
queriam atestar o seu apreço pela aniversariante, esposa de um jovem homem de negócios, que
nas rodas da City já era apontado como um dos milionários de amanhã.
À hora do almoço, Ana telefonou a Scott para dar-lhe conta da maneira como ia correndo o
aniversário. Em grande excitação, foi mencionando os presentes mais belos e enviados pelas
pessoas de maior importância. Brendon e sua mulher mandaram um serviço de "toilette" todo em
tartaruga com incrustações de ouro e Ana estava tão encantada com o presente, que dizia sentir
serem os seus cabelos cortados tão curtos, que mal podia aproveitar-se de tão soberbas escovas.
Entretanto, do outro lado da linha, a voz de Scott desconcertara a mulher. Falando 206
apressadamente, o rapaz parecia não estar prestando atenção ao entusiástico relatório da
esposa. Esta, contudo, não se dava por achada e continuava a mencionar as coisas bonitas que
recebera. Radiante, contou que de Mrs. Maitland chegara da índia um lindo presente. Era um
bloco de uma fina madeira oriental, admiràvelmente cravejado de turquesas, engastadas em ouro.
- Um objeto verdadeiramente asiático! exclamava Ana, prosseguindo na informação de que a mãe
também lhe remetera um deslumbrante quimono de seda azul bordado a prata, um sari, como se
chama na índia.
Scott dava sinais de impaciência, mas Ana insistia em dizer-lhe que recebera várias bolsas,
finíssimos lenços bordados, carteiras de cigarro, algumas das quais lindíssimas, meias de seda,
luvas, bombons, numerosas cestas de flores
O marido, evidentemente muito apressado, pediu-lhe então que interrompesse a conversa e que
não lhe telefonasse mais, porque estava atarefadíssimo. Ana, quase sem se despedir, pôs o fone
no gancho. Todo o seu entusiasmo se dissipara com o frio acolhimento que Scott dera à sua
alegria.
À hora do chá Scott não apareceu, o que, aliás, não a surpreendeu depois da conversa telefônica
que haviam tido. Após o chá, Ana colocou pronta a roupa de noite para Scott e foi tomar um
prolongado banho perfumado. Vestida em seguida com a finíssima combinação especialmente
destinada àquele dia e envergando um quimono, sentou-se diante do espelho para pentear-se.
Por muito tempo esteve a alisar os cabelos, até que eles ficaram reluzentes, como se fossem fios
metálicos.
O tempo foi passando e quando Ana olhou para o relógio verificou com surpresa que apenas
faltava um quarto para as sete. A demora de Scott era estranha. Sem 207
dúvida, muitas vezes chegava tarde para o jantar, mas Ana custava a compreender como isso
poderia acontecer no dia do seu aniversário. Ficou à espera e às sete horas começou a tornar-se
um pouco impaciente. Sete e um quarto. A demora era realmente inexplicável. Junto à
penteadeira, tamborilava nervosamente com os dedos sobre a cobertura de cristal. Alguém bateu
à porta. Era a criada que vinha trazer o vestido, especialmente feito para aquele dia. Ana o
quisera de uma cor de fogo, a mesma da fantasia que levara ao baile, em que pela primeira vez
se encontrara com Scott. A criada perguntou-lhe se queria que a ajudasse. Respondeu que sim e
enquanto se vestia, foi-se acalmando, em parte pela distração que isso lhe trazia, mas também
devido à circunstância da presença da empregada. Quando completou a "toilette", olhou-se ao
espelho e teve a convicção de que realmente estava com magnífica aparência.
Eram sete e "meia. Scott já teria pouco tempo para trocar de roupa para o jantar. Ana começou a
inquietarse de novo. Aquela demora a assustava agora. Ao mesmo tempo, vinha-lhe o
pressentimento de alguma coisa muito grave que se avizinhava. Desceu ao primeiro pavimento e
foi ver na saleta da entrada a correspondência e os jornais da tarde. As cartas chegadas nada
tinham de importante. Entre elas a maioria era de felicitações pelo seu aniversário. Pegando de
um dos vespertinos, Ana passou os olhos sem dar com qualquer epígrafe que lhe atraísse a
atenção. Afinal, na coluna das notícias de última hora, as palavras "Pânico na Bolsa" fixaram o
seu olhar. Um subtítulo: "Os koravianos em queda vertiginosa" deu-lhe um choque.
Antes que pudesse coordenar os seus pensamentos em sobressalto, a porta abriu-se e Scott
entrou com uma fisionomia desfigurada. Se houvera pânico na City, menor não era o reflexo do
acontecimento na face do seu marido.
Pálido como um cadáver, com os olhos esgazeados e os lábios a tremerem, Scott dava a
impressão de um homem que enlouquecera ou que acabava de escapar a um perigo de vida. Ana
fitou-o tranqüilamente, interrogando-o com o olhar.
- Levei a breca. Estou arruinado. Os títulos da borracha koraviana caíram catastròficamente.
- Explique-me, Scott, o que aconteceu, disse Ana com uma calma que certamente corria em parte
por conta da sua incapacidade de apreender a situação.
- Não há nada a explicar. Já lhe disse tudo! exclamou o marido com uma impaciência, em que se
traduzia a alta tensão dos seus nervos. Estou arruinado, estou morto. Não tenho mais nada a
fazer na vida.
- Mas, como é possível o que me está dizendo? Conte-me, conte-me o que houve.
- Houve o que eu já lhe disse que aconteceu. Os koravianos eram esta manhã, ao abrir-se a
Bolsa, os melhores títulos em cotação. Começaram a cair em uma derrubada vertiginosa e dentro
de algum tempo não valiam nem um vintém. É tudo que há. Estou arruinado e não tenho saída
alguma da situação desgraçada em que me encontro.
- Não há motivo para você ficar em um estado de tão profunda depressão. Então tudo que
tínhamos estava aplicado nos koravianos?
- Tudo. Raspei todas as minhas economias e as empreguei nesse negócio. Não tenho mais nada.
Sou um homem falido.
- Sim, mas, mesmo assim, a vida continuará para nós. Você ainda tem a Kale & Dives, onde é
empregado. Outras oportunidades virão e você há de refazer-se.
- Kale & Dives? Estão tão arrebentados como eu. Levaram a breca também. Tinham-se envolvido
até o 209
pescoço na especulação com os koravianos e hoje andaram como loucos, procurando em vão
meios de impedir a catástrofe. Nada conseguiram e estão falidos.
- E Rudolph Brendon?
- Brendon afundou-se também.
A lembrança de Brendon fez Ana pensar em uma minúcia prosaica do seu desastre.
- Então, ele e a mulher são capazes de não vir ao nosso jantar?
- Jantar? E ainda temos esse maldito jantar! Não posso suportar isso. Telefone aos convidados
dizendo que não venham.
- Como será possível fazer isso? Que explicação hei de dar?
- Diga-lhes que eu estou quebrado, estou morto, que desapareci. Diga o que quiser, mas não
posso estar fazendo sala a ninguém.
Ana maquinalmente encaminhou-se para o telefone, mas ocorreu-lhe logo que já era tarde para
avisar os amigos. Além disso, veio-lhe à lembrança o que lady Emmy lhe dissera em Richeville:
"Se algum dia tivessem necessidade de energia, seria a força de caráter dela que podia salvar o
casal." Não, o que Scott queria não se devia fazer. Suspender uma festa, despedindo amigos que
nenhuma culpa tinham pelo que acabava de acontecer, era um ato insensato e também feia
manifestação de covardia. Um magnífico e dispendioso jantar estava preparado. O quarteto que
devia tocar para as danças estava a chegar. Confessar desânimo por forma tão espetaculosa não
adiantaria de modo algum à solução das dificuldades que vinham agora apresentar-se. Ana, em
vez de telefonar, foi à sala de jantar e preparou um uísque e soda que trouxe a Scott. Este, com
os cotovelos fincados nos joelhos e cobrindo o
210 rosto com as mãos, olhou para a mulher com ar desvairado, quando ela o chamou.
- Beba isto, Scott.
Automaticamente, o rapaz pegou do copo e engoliu de um trago a forte dose de uísque. Ana
declarou-lhe então que resolvera não avisar os convidados, porque já era demasiadamente tarde.
E também porque achava que não deviam dar aquela inútil e inepta demonstração de fraqueza.
- Amanhã você enfrentará a nova situação, procurando ver o que se pode fazer. Esta noite vamos
receber os nossos amigos e você fica proibido de pensar na City, nos koravianos e em outras
coisas tristes. Agora vá tomar um banho rápido e mude a roupa. Uma camisa e um colarinho
limpos servirão de muito para melhorar o seu estado de espírito.
Scott, sem discutir os conselhos que a mulher lhe dava mais como ordens, levantou-se, subiu a
escada a correr e foi preparar-se para o jantar.
Poucos minutos após chegava o primeiro grupo de convidados. Era Jacky Hanshaw e Nancy,
Maddie e Roddy Cameron. Nancy com um belo vestido de veludo cor de pérola realçava os seus
dotes naturais de beleza. A presença da rival estimulou ainda mais fortemente as disposições de
Ana a não se deixar vencer naquela situação.
Mais tarde, quando Ana relembrava o que se passara naquela noite, não podia deixar de sentir
íntima satisfação e mesmo orgulho pela maneira como enfrentara a tremenda provação e dela
saíra vencedora. Recebendo os seus convidados, a moça mantinha tanta calma e ostentava com
uma alegria comunicativa tão espontânea, que os amigos,
211
embora já sabedores pelos jornais da tarde do que se passara na Bolsa, não podiam suspeitar
que Scott tivesse sido atingido seriamente pelo colapso das ações e debêntures da borracha
koraviana. Alguns, diante da atitude de Ana, não hesitaram mesmo em abordar o assunto,
perguntando se Scott nada sofrera com o grande "crack". A resposta era dada com a mais
absoluta indiferença, contentando-se Ana em dizer que o marido provavelmente sofrera algumas
perdas, o que dava a todos a certeza de que realmente Scott não recebera no desastre da
borracha koraviana golpe de grande importância.
Tendo feito a sua "toilette", Scott desceu e veio cumprimentar os convidados. O conselho de Ana
fora salutar. O banho e a roupa fresca haviam servido para acalmar os nervos do pobre rapaz,
que agora estava bastante calmo e podia enfrentar aquela cena torturante de fingir-se alegre e
feliz, quando acabava de ser vítima de uma catástrofe, que o precipitava da abundância e do luxo
a uma situação em que poderia ser levado até à miséria.
Sem poder representar a cena com a admirável serenidade que permitia a Ana afastar de todos
os que ali se achavam a mais ligeira suspeita da situação real, Scott, contudo, desempenhava
bem o seu papel. Apenas a fisionomia abatida denunciava o seu estado de espírito. Mas isso era
naturalmente interpretado pelos convivas, como o efeito inevitável das horas de agitação e de
trabalho intenso que deveria ter passado na Bolsa durante aquele dia.
O momento crítico foi a chegada de Rudolph Brendón e de sua mulher. Ana temia que os Brendón
não viessem, o que seria certamente notado por todos, dada a bem conhecida intimidade entre
ele e Scott. Quando os viu chegar, a moça sentiu um alívio e maior foi a sua satisfação ao
observar que Brendón e a mulher vinham perfeitamente calmos e com ar alegre.
212 O jantar constituiu o momento mais difícil daquela angustiosa comédia. Ana, entretanto,
atravessou vitoriosamente a cena, primorosamente representada até o fim. Scott, por seu lado,
portou-se bem, mantendo a conversa. Quando começaram as danças, nenhum dos convidados
seria capaz de pensar que sobre aquela casa desabara tragicamente uma terrível calamidade.
Ana dançou alegremente e quando Brendon veio tirá-la para uma valsa, ela procurou ainda tornar
mais exuberante a sua alegria, conversando vivamente com o seu par durante todo o tempo. Ao
fazê-la sentar em seguida, Brendon disse-lhe:
- Beijo-lhe os seus sapatinhos de baile. Gonsidere-os beijados. Sempre tive grande admiração
pela senhora, Mrs. Kentish, mas hoje sinto verdadeiro deslumbramento diante da sua força de
caráter.
- O senhor exagera. Estou fazendo a mesma coisa que sua mulher. Veja como está
absolutamente calma.
- Mas ela não sabe nada do que aconteceu.
- Como? Então não viu os jornais?
- Viu, mas não deu importância ao fato, porque nunca a ponho ao corrente dos meus negócios.
Quando leu a notícia do colapso das ações e debêntures da borracha koraviana, perguntou-me se
eu tinha muito dinheiro nesses papéis. Respondi-lhe que algum, mas não coisa de grande monta.
Ficou tranqüila e não se preocupou mais com o caso. Achei que era melhor nada lhe dizer. Assim
ela se diverte hoje e tem mais uma noite de felicidade.
Ana ficou a pensar na diferença entre o modo como Brendon pretendia levar a notícia do desastre
à sua mulher e a maneira como Scott lhe anunciara a ruína. Julgou que afinal de contas fora
melhor assim e achou também que era justo tivesse ela compartilhado de modo mais completo do
sofrimento de seu marido. 213
- E Scott ficou muito abatido? Ele não se queixou de mim?
- Queixar-se do senhor? Por que? O desastre não foi culpa sua.
- Sim, não foi, mas fui eu quem deu a Scott um conselho que o levou à ruína. Tenho notado
sempre que as pessoas que são vítimas de uma infelicidade procuram lançar sobre outrem a
responsabilidade do que aconteceu.
- Não, Scott absolutamente não se queixou do senhor, apenas disse que a sua perda era tão total
como a dele.
O quarteto começou de novo a tocar e Ana propôs a Brendon que dançassem outra vez.
- Agora quero ficar de parte a admirar os seus sapatinhos de baile.
Scott, à medida que a noite ia avançando, começava a ter maior dificuldade em sustentar a alegria
forçada com que ia iludindo os seus convidados. Ana observou o abatimento que se apoderava do
marido e afinal ficou positivamente assustada ao notar que ele não podia mais conter-se; afastado
das outras pessoas e esquecendo mesmo os seus deveres de dono da casa, Scott passeava só,
em um estado de evidente nervosidade. Compreendendo a gravidade da situação, foi
imediatamente em socorro do marido. Chegando-se a ele, convidou-o para dançar. Esperava que
Scott no primeiro momento se recusasse, mas com alguma surpresa viu que ele a tomou logo nos
braços e pôs-se a dançar, dizendo:
- Ana, minha querida Ana!
Ela compreendeu que naquele momento o que ele precisava era do apoio do seu carinho e da
animação que só ela lhe podia dar. Fazendo um esforço de vontade, superior ainda a tudo que ela
já realizara naquela noite, lembrou-lhe que estava vestida da mesma cor da fantasia com que fora
ao baile em que se haviam encontrado pela
214 primeira vez. Recordou-lhe as cenas que então se haviam passado e procurou alegrá-lo,
fazendo comentários jocosos sobre os primeiros desentendimentos, que haviam marcado o início
do namoro, em poucas horas convertido em noivado.
Scott ia sendo influenciado pela energia que irradiava de Ana e quando acabaram a dança o
rapaz já tinha os nervos suficientemente calmos, para poder suportar até o fim a provação
dificílima a que era submetida a sua vontade, menos vigorosa que a da mulher.
A madrugada já ia alta, quando a festa terminou. Ana teve então a inevitável reação dos seus
nervos, mantidos durante tantas horas em um estado de tensão, cujo domínio representava
verdadeiro prodígio da vontade. A sala tinha o aspecto melancólico que caracteriza o
encerramento de um baile. Pelo assoalho envernizado se viam os inúmeros pequenos vestígios
de horas de ininterrupto dançar de uma pequena multidão, demasiadamente numerosa para as
proporções do recinto. Aqui, um pedacinho de renda, ali uma flor artificial arrancada por algum
encontrão. O quadro impressionou Ana, como uma imagem da sua vida, de que agora só
restavam ruinas. A casa estava em silêncio. Os criados tinham ido dormir.
Ana e Scott subiram e prepararam-se para fazer o mesmo. Enquanto cada um fazia a sua
"toilette" de dormir, ela no seu quarto e Scott no aposento de vestir, a moça sentiu que seus
nervos iam enfim sofrer o grande colapso. Todo o horror da calamidade, que em poucas horas
alterara radicalmente a sua existência de alegria, de luxo e de prazer, apresentou-se-lhe como
uma tremenda realidade. As lágrimas, correndo-lhe pelas faces, serviram-lhe, entre215
tanto, de derivativo e Ana recompôs-se, ao ponto de estar de novo com uma aparência
perfeitamente calma, quando Scott voltou ao quarto de dormir do casal. Escancarando a janela,
ele fez entrar no aposento com o fresco ar matinal a claridade já bem definida do dia que ia
nascer.
- Por favor, Scott, feche essa janela, pediu Ana, que tivera uma sensação de horror, ao perceber o
despontar do dia. Ela daria tudo para que aquele dia nunca chegasse e queria pelo menos
prolongar a ilusão da última noite de felicidade.
Deitados e afastados um do outro, Ana e Scott começaram a conversar.
- Ana, talvez você não avalie a extensão da nossa desgraça. Imagino que só me podem ocorrer
de ora em diante calamidades cada vez maiores. Perdemos tudo. Esta casa, o apartamento em
Londres, os criados, o automóvel, a vida feliz e confortável, o convívio de uma sociedade fina e
elegante. Parece-me sentir o mundo inteiro a fugir-me sob os pés.
Colocando a mão sobre os lábios, ela fez um esforço para reprimir os soluços e logo que pôde
falar, disse:
- Scott, não pense mais nisso. Estou certa de que havemos de arranjar um meio de sair desta
dificuldade. Tenho um pressentimento de que tudo se resolverá bem afinal.
- Não, Ana, é inútil estarmos procurando meios de nos iludirmos. A perda foi total e irreparável. Se
eu tivesse vendido os títulos, enquanto eles valiam alguma coisa. Mas segui o conselho de
Brendon e esperei uma reação do mercado. Em vez disso, o que aconteceu foi a queda das
cotações até a derrocada completa.
- Você acha que Brendon agiu de boa fé?
- Sem dúvida, a esse respeito nada se pode dizer.
216 A lealdade de Brendon é indiscutível. Foi vítima de indicações erradas.
- Vocês seguiram o conselho de Brendon sempre ou somente no princípio da especulação?
- Só no princípio. Depois eu mesmo dirigi as operações na Bolsa.
- Scott, embora a perda seja total e apesar de Kale & Dives estarem envolvidos ruinosamente no
desastre, você há de arranjar trabalho. Há na City outras firmas e qualquer delas terá muita
satisfação em dar emprego a um homem como você.
- Qual! Ninguém quererá mais saber de mim.
- Por que? Você falhou em uma operação de Bolsa, mas não cometeu nenhuma desonestidade,
não é verdade?
- Pratiquei, porém, uma coisa que prejudica um homem de negócios tanto como a desonestidade.
Dei provas de incapacidade.
- Apesar de tudo, tenho esperança de que surgirá qualquer coisa.
- Surgirão apenas os credores. - Você deve muito, Scott?
- Estou endividado até a raiz dos cabelos.

- Mas tudo que compramos está pago, não? Sempre possuímos alguma coisa.
- Nada. O meu ativo é apenas um valor mínimo em relação ao que devo.
- Não compreendo por que não pagou. Só fiz compras de jóias e de outras coisas porque você me
dizia que lhe mandasse as contas. Estava convencida de que tudo era pago.
- Não, todo o dinheiro de que dispunha ia invertendo na especulação da borracha koraviana.
Aguardava a solução da operação para liquidar todas as dívidas.
217
- Scott, você fez muito mal. Isto é uma situação horrível! exclamou ela prorrompendo em pranto.
- Perdoe-me, Ana. Sei que lhe fiz um grande mal, mas me perdoe, porque o meu único
pensamento era darlhe felicidade.
Ana em silêncio continuava a chorar e Scott, trêmulo, perguntou-lhe se ela o odiava.
- Odiar a você? respondeu a moça abraçando-se nervosamente ao marido. O meu amor é agora
ainda mais profundo e mais forte que nunca.
E os dois, abraçados, misturavam as suas lágrimas. Tudo lhes poderia acontecer agora, mas, por
maiores que fossem as desgraças que o futuro lhes reservasse e mesmo quando não tivessem
energia para enfrentar as calamidades, alguma coisa mais profunda, mais forte e mais essencial
os unia de ora em diante em uma solidariedade, que nada mais poderia destruir. Assim
abraçados, adormeceram, enquanto, através das cortinas, o sol que nascia ia coando a sua luz
dourada.
CAPÍTULO XIV
Scott dissera que no dia seguinte seria o dilúvio e de fato assim aconteceu. Foi um dilúvio, que se
prolongou por uma série de ondas devastadoras que demoliram o dique, a cuja sombra se
abrigava a vida feliz e descuidada do casal. O colapso da borracha koraviana acarretara o
desastre, em maior ou menor escala, entre todos os portadores de ações e debêntures. Firmas e
indivíduos eram envolvidos no turbilhão daquela catástrofe de Bolsa. Entre as firmas figurava em
lugar proeminente Kale & Dives. Um banco bem conhecido e conceituado fora também 218
atingido pelo desastre. Scott era um dos muitos que individualmente haviam sido arruinados.
A situação que se delineava ao rapaz era das mais graves. Os credores assediavam-no,
reclamando pagamento. Se ele tivesse podido vender tudo que possuía, ter-lhe-ia sido fácil
liquidar suas obrigações pessoais. No entanto, a maior parte das coisas que se achavam em
poder de Scott não eram vendáveis, pelo motivo muito simples de que ele não as havia ainda
pago. Desta situação redundaram complicações aborrecidas e por vezes mesmo profundamente
desagradáveis e escabrosas. Felizmente, o mobiliário do apartamento de Londres era indiscutível
propriedade de Scott, adquirida por compra com pagamento integral. Da venda daquela mobília
foram obtidos alguns recursos para sossegar os credores. As jóias de Ana também tinham sido
pagas e formaram um inestimável socorro naquela emergência. O resultado da venda delas
reduziu o passivo de Scott a proporções muito menos assustadoras. Então, ele e Ana
regozijavam-se por terem ao menos aproveitado o dinheiro que lhes havia passado pelas mãos
com a aquisição daqueles objetos de valor, agora de uma utilidade que se diria providencial. Não
fossem os credores, o produto da venda das jóias de Ana teria permitido a Scott aprumar-se e
começar vida nova. Mas as dívidas tudo absorveram. A nova fase que se abria para o casal
impunha-lhe uma reforma radical de hábitos. Não se pensava mais em festas. Vida de luxo,
prazeres mundanos, criadagem e relações elegantes eram coisa do passado. Tudo isso se fora,
como também haviam partido muitos dos amigos do tempo de prosperidade.
A crise havia proporcionado a Ana e a Scott um meio de distinguir entre verdadeiros e falsos
amigos. Se muitos pertenciam a esta última categoria, não lhes faltaram por outro lado alguns cuja
sinceridade veio a ser comprovada na hora das dificuldades. Entre eles Jacky Hanshaw, agora
219
em noivado com Maddie Cameron, que escreveu uma longa carta a Scott, oferecendo-lhe um
empréstimo avultado. Scott, porém, muito orgulhoso, não quis aceitar. Maddie e toda a família
Cameron puseram-se também à disposição de Ana que, imitando a atitude do marido, não quis ir
ao encontro do oferecimento que se lhe fazia. Realmente, teria sido mais efetiva e útil a boa
vontade dos amigos fiéis, se Ana e Scott não tivessem mantido uma atitude tão sobranceira e
orgulhosa. Para Ana, um dos aspectos mais pungentes da situação era a maneira como se
portava Nancy Hanshaw. Manifestando sua simpatia e pesar pelas formas mais enfáticas e
aparentemente mais carinhosas, Nancy deixava entrever o quanto gozava aquele desastre.
As novas condições tornavam-se particularmente penosas, porque marido e mulher não tinham
espírito, nem hábitos de economia. Scott, que desde muitos anos ganhava bastante na City,
parecia ter-se esquecido dos tempos de meninice e de juventude em que se vira forçado a ser
parcimonioso. Ana nunca soubera em sua vida o que era fazer economia. Assim, grande foi a
dificuldade de ambos em conformarem-se com a dura realidade de uma situação em que só
deviam comprar o que fosse estritamente necessário. Além disso, Ana e Scott sofriam
tremendamente no seu amor próprio. Tal era a vergonha que lhes causava aquela dramática
perda de uma boa posição social assegurada pelo dinheiro, que evitavam sair e, quando o faziam,
andavam a quebrar esquinas, afastando-se das ruas de maior movimento.
Alugaram em Fulham Road o que se anunciava pomposamente como apartamento independente,
mas que não era mais que dois quartos com uma cozinha quase microscópica, banheira e
medidor de gás separado. Quando se viram alojados em condições tão modestas, tiveram uma
nova hora de amargura e mais um esforço a fazer para se adaptarem ao ambiente da pobreza.
220 Ao cabo de um mês, a crise que fora violenta, mas rápida, estava passada e o novo estado
de coisas começava a normalizar-se. Scott começou então a procurar trabalho, desenvolvendo
uma atividade febril nesse sentido. Não conseguiu encontrar um emprego que lhe conviesse. A
verdade era que Scott não se adaptara ainda às condições a que o tinha reduzido o desastre.
Continuava a conservar as idéias de grandeza que se haviam enraizado no seu espírito, sob a
influência do sucesso alcançado muito cedo na vida. Todos os empregos lhe pareciam indignos e
insuportáveis. Scott era evidentemente um daqueles que, somente sob a pressão da extrema
miséria, se dispõem a abrir mão de certos preconceitos, a que atribuem na vida o valor de
princípios fundamentais, cujo abandono lhes parece envolver o sacrifício da própria dignidade.
Ana, por seu turno, sentia amargamente as circunstâncias em que tinha de viver. Nunca fizera
nada de serviço doméstico e agora era obrigada a limpar a casa, lustrar o assoalho, fazer a cama
e cozinhar. Habituara-se sempre a ver as coisas domésticas andarem a tempo e a hora e agora
se espantava diante do tempo tomado pelo arranjo daqueles dois quartinhos e da acanhadíssima
cozinha. A vida em tais condições tornava Ana e Scott positivamente infelizes. Viviam irritados e
não se conformavam com aquela situação. A maior parte da energia que deveriam empregar em
um esforço para se reerguerem, era esbanjada pelo casal em lamentações contra a sorte e em
protestos amargos contra o destino que trouxera semelhantes condições. Por outro lado, a
aspereza da vida fazia com que surgissem freqüentemente atritos entre mulher e marido.
Certa vez, pela manhã, Ana estava na cozinha. Era sempre uma das horas mais atrozes para a
moça. Não herdara de Mrs. Maitland o gênio culinário. Fazer café, sem que a beberagem se
tornasse positivamente odiosa, era coisa em que só por acaso Ana acertava. Raríssimas 221
também eram as vezes que o presunto assado para o primeiro almoço de Scott não vinha com o
aspecto de um pedaço de sola torrada. No dia em que se passou o caso que vamos narrar, Ana
se achava absorvida pela esperança de fazer um café mais decente, quando Scott, aos berros,
reclamou da porta do banheiro que ela lhe dera água fria para barbear-se. Ana irritou-se,
protestando que a água estava quente quando ela a levara e que se ele a deixara esfriar,
passeando pela casa, a culpa não era sua. Scott, sem responder, seguiu para o quarto com uma
toalha molhada na mão. Só então Ana percebeu que ele havia feito um grande corte no queixo, o
que explicava aquele acesso de fúria. Correu, foi abraçá-lo e beijá-lo, pedindo-lhe desculpa.
Fizeram as pazes, explicando Scott que andava agora com os nervos sempre sobressaltados.
Essa era a verdade. Uma grande depressão, resultante da idéia de que fracassara na vida, ia
minando a energia moral do rapaz. Dia após dia andava pelas ruas na pesquisa baldada de
emprego. Em casa só encontrava desconforto. E Scott, que sempre fora rebelde a qualquer
incômodo ocasional, não se podia conformar com os contratempos e aborrecimentos que agora
lhe vinham em chuveiro. A vida do casal ia pouco a pouco se tornando menos harmoniosa.
Nenhum dos dois tinha temperamento para viver com bom humor em condições tão árduas. Os
incidentes mais simples se tornavam pontos de partida de discussões e de brigas. Uma vez Scott
encontrou um lenço de Ana entre as suas camisas. Fez um barulho terrível, perguntando se não
podia ter um lugar para as suas coisas naquela casa infernal. Ana reagiu diante da injustiça,
lembrando que só dispunha de uma gaveta na cômoda que, com um armário, uma cama de ferro
esmaltada, uma cadeira de palha e um lavatório de cantoneira, constituía todo o mobiliário
daquele pobre quarto. Tão desprovida se achava
222
223
de espaço para o pouco que lhe pertencia, que tinha de colocar debaixo da cama a caixa de
chapéus.
Uma discussão amarga separou ainda mais os dois outrora tão unidos, e Scott acabou saindo e
batendo violentamente a porta do apartamento. Cenas dessa natureza eram conseqüências
inevitáveis da mudança repentina e violenta de condições de vida para aqueles que, como Ana e
Scott, nem sequer haviam jamais imaginado a possibilidade de semelhante queda. Mesmo sem
levar em conta a existência positivamente faustosa do casal nos últimos tempos que haviam
precedido o colapso da borracha koraviana, a vida no meio em que agora se achava era
incontestàvelmente penosa. Um apartamento acanhado, onde todo o serviço doméstico era feito
por uma mulher que, desde que nascera, sempre tivera uma casa em ordem e criados para servi-
la. Mobiliário pobre e incômodo. Um banheiro em que a falta de conforto moderno devia ser
intolerável para quem, como Scott, se achava havia muitos anos acostumado ao prazer dos
banhos em verdadeiras miniaturas de piscinas, ao chuveiro e ao conforto das instalações de água
quente e fria a todas as horas.
Ana sentia pungentemente o peso da situação. O dinheiro que ainda possuíam ia rapidamente
diminuindo. Para economizar, cortando a despesa da lavanderia, ela já lavara a roupa branca de
Scott. Também nesse gênero de trabalho Ana não alcançou sucesso. Foi obrigada a reconhecer
que, como lavadeira, estava abaixo do medíocre e ainda por cima queimava as mãos no ferro ao
passar a roupa.
A situação, já de si tão lastimável, era enormemente agravada pela perspectiva da absoluta
miséria. Ao cabo de mais algumas semanas os recursos estariam esgotados e o casal se veria
literalmente defrontado pela fome e pela falta de um teto. Ana tomou então uma resolução
decisiva.
À noite, quando estavam à mesa ceando, dirigiu-se a Scott e com firmeza lhe declarou que no dia
seguinte iria procurar um emprego. Como a moça esperava, o marido opôs-se fortemente à idéia.
Não se conformava em que viesse a ser sustentado pela esposa. Já sentia bastante a humilhação
a que se via reduzido e não queria passar por mais uma diminuição dessa ordem. Mas Ana se
mostrou inflexível. Lembrou-lhe que ao tempo do casamento ela trabalhava e que de comum
acordo continuara no seu emprego até que Scott, deslumbrado pela fortuna que lhe parecia entrar
por casa, imprudentemente a fizera deixar o cargo, onde obtinha meios de subsistência e de
independência.
- Mas havia uma grande diferença. Naquela época eu ganhava o bastante para nos mantermos
ambos muito confortàvelmente. O que você percebia do seu emprego representava apenas
dinheiro para as suas fantasias pessoais. Hoje sou um desempregado e, se você for trabalhar,
ficarei na posição do homem que é mantido pela mulher. Os que agora me olham
desdenhosamente, ainda mostrarão mais desprezo por mim. Não me conformo com uma tal
situação.
- Você quer então que eu me resigne a continuar nesta vida horrível, vivendo neste apartamento
miserável, com mobília sem o mínimo conforto e fazendo todo o serviço doméstico, como se fosse
uma criada de gente pobre?
- Acho precipitada a sua resolução. A minha estrela nunca me faltou. Este período de extremas
dificuldades há de passar.
- Não duvido absolutamente disso, mas é bem possível que ainda se prolongue por algum tempo
e os nossos recursos apenas chegam para pouco mais de um mês. Não me conformo com uma
atitude de inação, à espera de que a miséria absoluta nos entre pela porta. Amanhã 224
começarei a procurar emprego. Por enquanto, ainda tenho vestidos decentes. Quando estiver em
farrapos, maior dificuldade terei ainda de encontrar trabalho.
Sem responder, Scott levantou-se, acendeu um cigarro e ficou encostado à lareira, olhando
fixamente o fogo. Ana notou que ele deixara o seu prato quase intacto e perguntou-lhe se não
queria terminar a ceia.
- Essas costeletas estão insuportáveis.
- Meu caro amigo, não sou cozinheira profissional. Faço o que posso.
- Seria preferível que você cozinhasse melhor. Vejo que também não consegue engolir a sua
produção culinária.
Espicaçada pelas últimas palavras do marido, Ana resolveu comer tudo quanto tinha no seu prato.
Foi-lhe difícil, não porque achasse as costeletas tão más como dizia Scott, mas porque o seu
estado nervoso a fazia até recear engasgar-se. Ao terminar, a moça começou a observar o
marido, que se sentara lendo um jornal da tarde. Ficou surpreendida pela expressão de dureza
que havia nos olhos de Scott e que era acompanhada pela maneira desagradável como ele
cerrava os lábios. Sentiu que se achava afastada, como nunca pensara, daquele homem que
tanto a deslumbrara. Agora, nem sequer o achava bonito. Ana teve horror dos seus próprios
pensamentos. A destruição do seu amor afigurava-se-lhe uma catástrofe ainda maior que tudo
que já lhe acontecera. Levantou-se e foi ajoelhar-se junto a Scott. O rapaz deixou cair o jornal,
que talvez não estivesse mesmo lendo, pôs as mãos sobre os ombros da mulher e ficou a fitá-la
com o mesmo olhar que tanto a impressionara.
- Scott, você avaliou as coisas desagradáveis e duras que nós estivemos dizendo um ao outro?
Será possível que o nosso amor esteja acabando? Você não gosta mais de mim como gostava?
225
- Ana, nunca deixarei de amá-la intensamente, mas o meu estado de nervos é cada vez pior. Se
isto continuar, não sei o que me acontecerá.
Ana enterneceu-se diante do sofrimento do marido e teve remorsos de pouco antes, quando
estavam discutindo, ter-lhe dito sarcàsticamente se ele estava à espera de que lhe dessem de
novo o ótimo emprego que tivera. Mas resistiu ao impulso de pedir desculpas, porque não teve
coragem de reavivar a ferida tão cruelmente aberta.
Todas as brigas até então surgidas terminavam sempre em beijos e as sombras de desavença
dissipavam-se em uma reafirmação do amor. Mas desta vez Ana sentia que Scott estava
separado dela. Insistiu apaixonadamente em que não se deixassem levar pela corrente que
parecia desviá-los em direções opostas, completando assim os infortúnios dos últimos meses com
a derrocada irreparável do que havia de essencial na felicidade que lhes restava. Scott friamente
observou que ele também supunha que o amor fosse afinal de contas o essencial. Ana revoltou-se
indignada contra a atitude do marido, reduzindo o caso a uma simples suposição. Scott continuou
a lamentar-se, reparando principalmente em que Ana não queria compreender o ponto de vista
em que ele se encontrava. A moça achou que tinha talvez razão, porque a queixa principal dela
era também relativa ao fato de Scott não apreciar o seu ponto de vista pessoal.
- Scott, você parece não pensar mais em mim.
- Penso tanto em você, que às vezes julgo que vou enlouquecer. Mas depois penso também em
mim e quando falo acerca de minha situação individual fico irritado, Porque você então quer que
eu me ocupe das coisas que a estão interessando.
Ana procurou amenizar a situação e tal era a sua ânsia em impedir que entre os dois se cavasse
um abismo 226 intransponível, que propôs desistir do seu plano de procurar trabalho, se
porventura Scott fizesse questão disso.
- Não, pensei melhor. Acho bom que você procure trabalho. Sou um homem perdido que
fracassou na vida.
- Não diga isso. Não fracassou na vida. Esta crise é passageira e você tem um grande futuro
diante de si.
- Não creio nisso, mas lhe asseguro que morrerei antes de enfrentar uma situação, que não me
permita mais dúvidas sobre o meu fracasso.
Ana, recorrendo a tudo que lhe inspirava o seu coração feminino, tentou reanimar o marido.
Acabou, porém, compreendendo que, pelo menos temporariamente, perdera a influência que
sobre ele sempre exercera e foi deitar-se oprimida pelo desespero.
CAPITULO XV
Ao despertar no dia seguinte, Ana havia recobrado com o repouso dos nervos a fortaleza de
ânimo. O dia amanhecera claro e o sol brilhante inundava com a sua luz o apartamento, trazendo
assim mais um estímulo à moça, que se dispunha a começar naquele dia o combate decisivo à
má sorte que a vinha perseguindo.
Logo que Scott saiu na sua melancólica peregrinação diária em busca de emprego, Ana vestiu-se
tão elegantemente quanto lhe permitiam os restos da riqueza passada e dirigiu-se para a City. Ao
ver-se de novo no meio da colmeia ativa e trabalhadora em que passara tantos anos felizes de
independência e de tranqüilidade, sentiu que o peso opressivo das calamidades recentes havia
sido levantado dos seus ombros. Naquelas ruas cheias de gente que se movia de um escritório
para outro, pensando em negócios e animada pela confiança e pelo desejo de vencer, Ana
227
estava liberta das influências deprimentes das lamúrias de Scott e da pesada atmosfera em que
vivera os últimos meses. Tinha a certeza de que as oportunidades estavam ao seu alcance.
Naquele meio em que todos lutavam e os fortes venciam, ela se sentia com bastante energia para
não se deixar cair pelo plano inclinado por onde resvalam os fracos.
A idéia de que dentro em breve teria trabalho, ganharia com o seu próprio esforço e não seria
mais dependente das fraquezas e dos erros alheios, dava-lhe um grande e amplo sentimento de
liberdade. Tão forte foi essa impressão, que ela chegou a ter medo. Estaria porventura desejosa
de libertar-se do casamento e de Scott? Analisando os seus pensamentos, viu que não era esse o
sentido daquela expansão da sua alma em procura de um ambiente livre para agir
individualmente. Não cogitava em deixar a sua situação matrimonial, mas compreendia que pelo
trabalho seria livre dentro do casamento.
Era a hora em que as ruas da City se convertem em formigueiro humano, quando de milhares de
escritórios jorra a caudal ininterrupta de empregados, que se encaminham' para o almoço nos
restaurantes. Ana dirigiu-se também para o ponto, onde durante anos diariamente ia almoçar com
as companheiras a que mais'se afeiçoara no escritório. O coração bateu-lhe quase em alvoroço
ao lembrar-se dos seus felizes tempos de solteira. Foi sentar-se à mesma mesa a que se
habituara outrora e teve um movimento de satisfação ao ser cumprimentada pela mesma
"garçonnette" que sempre a servia e que amàvelmente lhe perguntou por onde andara todo
aquele tempo. Ana interrogou a rapariga acerca de Miss Oliver, perguntando-lhe se ela continuava
a vir almoçar ali. Tratava-se de Hilda Oliver, a colega com quem mais tivera intimidade e em cujo
espírito equilibrado e prático depositava confiança na conjuntura em que agora se encontrava.
228 - Miss Oliver, como sempre, vem pontualmente almoçar. Dentro de poucos minutos ela deve
estar aqui.
Ana fez o seu "menu" cautelosamente, pois o dinheiro que trazia na bolsa era muito escasso e
disse à "garçonnette" que não se apressasse, porque queria almoçar em companhia de Miss
Oliver. Esta, entretanto, não apareceu com a pontualidade anunciada. Passaram-se dez minutos
depois outros dez. Hilda Oliver não chegava. Ana convenceu-se afinal de que era inútil esperar.
Deu ordem à "garçonnette" para que lhe servisse o almoço. Ficara desapontada e lamentava a
despesa inutilmente feita e que, embora muito pequena, representava sempre um rombo nas suas
finanças de mulher de desempregado.
Havia muito tempo que Ana só comia o que ela própria cozinhava e os pratos do restaurante
despertaram-lhe um apetite quase voraz. Teria pedido mais, se não fosse a necessidade de ser
extremamente parcimoniosa no gasto dos seus vinténs. Absorvida pelo prazer da refeição, Ana foi
surpreendida ao ouvir o seu nome, pronunciado por uma voz que não lhe era estranha.
- Ana, que é isto, você por aqui?
Levantando a cabeça, a moça deu com lady Emmy, elegantemente vestida de preto e que lhe
sorria afetuosamente. Lembrando-se da última entrevista que tinham tido, Ana sentiu-se
constrangida e, embora acolhesse amàvelmente a recém-chegada, não lhe estendeu a mão. Lady
Emmy sentou-se e encomendou o seu almoço, ao mesmo tempo que ia conversando com Ana.
Aludiu logo ao prejuízo que seu marido causara a Scott. Ana respondeu friamente, dizendo-lhe
que realmente seu esposo fora vítima de um embuste de Martin.
- Você, Ana, tem ressentimento de (mim por isso?
- Não. O caso não causou nenhum mal a Scott, que depois ganhou muito dinheiro. 229
- Ainda bem. Sabe que estou viúva? Abel morreu.
- Como? Seu marido morreu? exclamou Ana sobressaltada pela notícia, que tão repentinamente
lhe era dada.
- Sofreu muito nos últimos tempos. Sua vida de expedientes não podia ser levada com êxito por
muito mais tempo. Já se tornara suspeito e em torno dele se formava um cerco, que mais tarde ou
mais cedo viria colocá-lo em uma posição desgraçada. Um dia foi apanhado por um automóvel em
Paris e morreu instantaneamente. O caso foi considerado acidental, mas tenho minhas suspeitas
de que ele se suicidou.
- Seu marido teria coragem para suicidar-se?
- Creio que tinha muito medo de morrer. Acho, porém, que tinha ainda mais terror da perspectiva
de ser desmascarado e processado como escroque.
- Diga-me, Emmy, você sentiu muito a morte de seu marido?
- Muitíssimo. Devo também dizer-lhe que me senti muitíssimo aliviada e muitíssimo livre.
- E seu pai, reconciliou-se com você?
- Não, ele nunca mais quererá saber de mim. Meu pai é um desses homens que, dizendo ou
fazendo qualquer coisa, nunca mais voltam atrás. É o que ele chama ter vontade de ferro.
- Acho cruel semelhante atitude por parte dele.
- Não; compreendo bem o ponto de vista em que se coloca meu pai. Você não tem ainda
experiência da vida como eu, que dela conheço o lado nobre, os escrúpulos de honra, a
observância inflexível de certas regras morais e conheço também os aspectos mais tenebrosos da
duplicidade, dmalandrice e do crime. O primeiro lado da vida, apreciei-o em casa de meu pai. O
outro, observei-o na convivência 230 com Abel, que aliás, sendo um criminoso, não era um
homem inteiramente mau.
Ana fez algumas observações sobre a impressão que lhe causara Martin, manifestando com
sinceridade pesar pela sua morte. De fato, a moça sentia uma impressão de horror ao pensar na
morte violenta e súbita de um homem tão cheio de vida e de alegria, como Abel Martin.
- E quais são agora os seus planos de vida, Emmy?
- vou montar uma casa de modas. Obtive de um velho amigo algum capital emprestado e aluguei
um apartamento muito bem situado em Stuart Street, perto de Bond Street. Dentro em poucos
dias o meu estabelecimento começará a funcionar.
- E você não me quererá aceitar como um dos seus modelos?
Lady Emmy por alguns momentos fitou Ana, procurando verificar se a moça estava pilheriando.
Mas notou em sua fisionomia o tom sério e observou-lhe as feições que traduziam uma ansiosa
preocupação. Compreendeu logo que a moça estava realmente em situação de precisar ganhar a
vida.
- com o maior prazer lhe darei emprego. Devo dizer-lhe que não me surpreende a sua situação.
Sempre tive um palpite de que seu marido, apesar de ser um homem muito simpático e bom, era
daqueles a quem estão reservados na vida golpes cruéis do destino.
Enquanto terminavam o almoço, Ana contou tudo que se passara e como Scott, depois de haver
estado quase a fazer uma grande fortuna, caíra desastradamente com o colapso da operação de
Bolsa em que se envolvera. Lady Emmy convidou em seguida Ana a ir em sua companhia à casa
de modas, cujos últimos preparativos estavam sendo concluídos. Ali a moça passou toda a tarde,
muito interessada nos diferentes aspectos do negócio e depois de haver

231
tomado chá com lady Emmy na saleta que servia de escritório, partiu para casa, onde ao chegar
já encontrou Scott, que mais uma vez voltava desalentado da sua baldada procura de emprego.
Ana, a quem lady Emmy fixara o ordenado de três libras por semana, estava radiante. Conseguira
trabalho mais depressa que esperava. O desencontro com a sua amiguinha Hilda Oliver, causado,
como depois veio a saber, por moléstia que prendera em casa a sua antiga colega, redundara em
um golpe benfazejo da fortuna, que assim lhe proporcionou o meio de obter ocupação ainda com
maior facilidade.
O aspecto do marido, mergulhado em uma profunda depressão, produziu nela um efeito
repentinamente neutralizante da sua alegria. Não teve coragem de comunicarlhe que arranjara
trabalho. Um sentimento de delicadeza impediu-a de falar. Afigurava-se-lhe realmente cruel dizer
àquele homem, que todos os dias procurava em vão um emprego, que ela em poucas horas
obtivera colocação. Mas não era possível deixar de fazer a comunicação a Scott e, à hora da ceia,
Ana, que depois de tirar o seu vestido de sair se esmerara em cozinhar melhor que nunca, contou
a Scott tudo que se passara.
Com surpresa para ela, ele não recebeu a notícia tão mal quanto a esposa esperara. Contentou-
se em fazer umas alusões amargas a lady Emmy e a repetir mais uma vez as suas lamúrias sobre
a humilhação de ser sustentado pela mulher. Aludiu também ao pequeno salário, insistindo em
que com três libras por semana viveriam miseravelmente. Ana, impacientada, retrucou-lhe,
ponderando que era preferível viver com extrema parcimônia a morrer de fome.
Depois desse dia as relações do casal tornaram-se ainda Piores. Ana esforçadamente fazia todo o
serviço da casa antes de sair para o emprego e, ao voltar, preparava a Ceia, procurando
desenvolver o mais que lhe era possível
232 as suas limitadas habilitações culinárias. Para evitar cenas e também porque sentia ainda
pena de Scott, a moça não poupava esforços a fim de atenuar o desconforto a que era tão
sensível o marido.
Scott, porém, mostrava-se indiferente a tudo que aquela abnegada e heróica mulher fazia para
auxiliá-lo na crise. Tudo lhe desagradava. Queixava-se a todo momento das condições em que
vivia, da pobreza do mobiliário, da comida insuportável e, acima de tudo, da humilhação de ser
sustentado pela mulher. Entre os dois, as cenas tornavam-se cada vez mais freqüentes e
sobretudo mais violentas e amargas.
Ana, às vezes, fazia um exame de consciência, procurando indagar de si mesma se Scott não
teria alguma razão, quando a acusava de não compreender o ponto de vista dele. Mas de tais
exames resultava-lhe sempre a convicção de que era o marido, com o seu egoísmo selvagem,
que se recusava obstinadamente a encarar com simpatia e inteligência o ponto de vista dela.
Uma noite, Scott andava pelo apartamento lamentando-se de que ainda por cima tivesse de
pensar na sorte da mulher. Ana, julgando-se vítima de uma injustiça que ultrapassava os limites
da sua paciência, observou-lhe friamente:
- Mas por que você não me deixa?
As palavras da esposa, pronunciadas com a maior calma, sobressaltaram Scott, que teve a noção
de haver levado demasiadamente longe aquelas cenas desagradáveis, a que o arrastavam o seu
caráter fraco e os seus nervos desequilibrados.
- Não posso deixar você, Ana. Quero-lhe tanto bem, que um tal pensamento nem sequer pode
ocorrer-me.
- Pois a sua atitude não parece indicar tais sentimentos para comigo, respondeu Ana, cuja
irritação não se
233
abatera com as palavras doces de Scott. Tudo que faço lhe desagrada. Meus esforços para
animá-lo apenas o irritam. Não, Scott, creio que há alguma coisa errada em nossa vida. Foi talvez
um erro nos termos amado. É possível que na nossa vida de casados se tivesse insinuado o que
quer que fosse que nos separou. Talvez seja a profunda diferença que há entre nós no modo de
enfrentar o infortúnio."
- Sim, Ana, eu reconheço que você tem muita coragem, que é uma mulher esplêndida, com uma
alma forte...
- O modo como me trata não corresponde à idéia que diz formar de mim.
Incidentes como esse repetiam-se e as reconciliações eram cada vez menos apaixonadas. Ana
sentia que entre ela e Scott se cavava uma grande separação. E talvez intimamente a moça
desejasse que as coisas se precipitassem, no sentido de um desfecho daquela intolerável
situação.
Ana já estava trabalhando havia algumas semanas como modelo na casa de lady Emmy e Scott
continuava a procurar emprego. Uma tarde, o rapaz entrou pela casa alegre e parecendo
transfigurado por um acontecimento feliz. Abraçou e beijou a mulher com um entusiasmo que
lembrava os carinhos de outrora. Ana julgou que Scott tivesse arranjado uma boa colocação,
quando ele lhe disse jubiloso que, afinal, iam sair daquela vida de constrangimentos e de
aperturas. com surpresa, a moça obteve em resposta a declaração de que não havia achado
emprego, mas que encontrara coisa muito melhor. Um amigo lhe dera uma informação de primeira
ordem sobre um negócio em que poderia ganhar o bastante para começar de novo a vida e abrir
outra vez o caminho para a fortuna. Bastava um capital muito pequeno.
- Mas que negócio é esse? E qual a informação que lhe deram?
234 - Trata-se de umas ações que estão sendo vendidas na Bolsa em grande baixa, mas que
dentro de dois ou três dias subirão como um foguete. com algumas dezenas de libras poderei
ganhar centenas e, assim, preparar-me para em breve estar aprumado de novo. Onde está aquele
dinheiro que você anda a ajuntar?
- Está fechado na minha gaveta, respondeu Ana visivelmente contrariada e encarando o marido
com ar muito sério.
- A quanto montam as suas economias? Preciso delas para fazer este negócio.
- Já tenho juntas quarenta libras, mas não darei esse dinheiro para que você o aplique na jogatina
de Bolsa.
- Ana, você não sabe o que está dizendo. Não se trata de jogatina. É uma operação segura.
Tenho informação de fonte excelente e o resultado favorável é coisa positivamente certa.
- Positivamente certo era também o negócio da borracha koraviana, que nos reduziu à miséria.
Não podemos, nas circunstâncias em que nos achamos, correr riscos.
- A borracha koraviana era um negócio de primeira ordem. Perdemos, porque cometi o erro de
não vender os títulos no momento oportuno. Esperei demasiadamente e fui apanhado pelo
"crack".
- Todas essas especulações de Bolsa não passam de jogatina. Sempre se perde por não
aproveitar o momento oportuno. O dinheirinho que temos guardado não pode ser arriscado em
aventuras. É a nossa garantia contra qualquer surpresa.
Scott começou a irritar-se, insistindo em tom zangado em que a mulher lhe entregasse o dinheiro.
Era, dizia ele, um ato estúpido perder uma oportunidade de triplicar ou quadruplicar em poucos
dias aquele pecúlio. Ana, porém,
235
sabia ser obstinada e desta feita a sua resolução de não entregar as quarenta libras a Scott era
simplesmente inabalável. Impacientado, Scott chegou a abrir a boca para dizer um impropério.
Conteve-se porém, e afastou-se.
Daí a pouco voltou, já sem maneiras violentas, e começou em tom persuasório a tentar convencer
a mulher. Fez-lhe ver que o seu informante conhecia a fundo o negócio. A alta dos títulos de que
se tratava era coisa certa, infalível. Sem correr, portanto, o mínimo risco, poderiam com aquelas
quarenta libras fazer em quarenta e oito horas cento e cinqüenta ou mesmo umas duzentas libras.
E isto, insistia, sem que houvesse o mínimo risco de perder o capital aplicado na operação.
- Tudo isso é muito bonito, mas já o vi arruinar-se com a borracha koraviana, em relação à qual as
garantias pareciam ser muito maiores. Agora que estamos na pobreza, seria imperdoável que
envolvêssemos a nossa insignificante reserva em especulações de Bolsa. Não insista, portanto,
Scott, porque não darei o dinheiro.
- Mas por que?
- Por um motivo muito simples. O dinheiro é meu. Entreguei-lhe tudo que tinha - minhas "jóias,
meus presentes de casamento, minhas pequenas economias e até parte dos meus vestidos, para
ajudar a pagar os credores, quando você se arruinou com a especulação da borracha koraviana.
Fiz tudo isso de boa vontade e não me arrependo de tê-lo feito. Mas não entregarei para arriscar
em jogo o pequeno pecúlio que estou formando e que tenho principalmente avolumado desde que
estou trabalhando na casa de modas de lady Emmy. Para juntar esse dinheiro, sacrifico tudo.
Faço grandes caminhadas para descobrir os armazéns onde posso comprar um pouco mais
barato. Deixei de fumar. Poupo passagens de ônibus. Assim, vou aumentando a nossa pequenina
reserva. Ela
236 me pertence, é minha e você pode desistir da idéia de aplicá-la na jogatina.
- Bem sei que o dinheiro é seu. Se não soubesse, não o estaria pedindo.
- Pois não peça mais, porque não o darei.
Scott afastou-se furioso, declarando que as mulheres eram incapazes de compreender negócios e
que nenhum homem seria tão estúpido de, estando na pobreza, perder a oportunidade de ganhar
entre cem e duzentas libras.
Ana passou o resto da noite acabrunhada com aquele incidente, que por mais de um motivo vinha
aumentar a sua tristeza e acentuar as divergências cada vez mais profundas entre ela e o marido.
Sentia que de dia para dia perdia o respeito por Scott que, sob a pressão das dificuldades e do
infortúnio, ia patenteando fraquezas de caráter e a leviandade pueril do seu espírito. Não fora para
melindrá-lo, mas exprimindo o que considerava simples verdade, que pouco antes lhe dissera
estar a sua confiança crédula em informações sobre jogatina de Bolsa fazendo lembrar seu irmão
Guy, o meninote inexperiente que se encalacrara, ouvindo conselhos de pessoas autorizadas em
corridas de cavalos.
Três dias mais tarde, Ana não ouviu sem alguma tristeza Scott dizer-lhe, ao chegar à tarde, que
se ela lhe tivesse dado as quarenta libras, ele agora teria trazido nada menos de duzentas e
quarenta. Reconhecendo que o caso era lamentável, a moça com firmeza manteve o seu ponto de
vista, fazendo sentir ao marido que, no estado de pobreza em que se achavam, era preferível
perder uma oportunidade de ganho a arriscar a pequena reserva de dinheiro acumulada com tanta
dificuldade.
A opinião de Ana era indiscutivelmente sensata. Scott via as coisas por outro prisma e sua
irritação contra a mulher, que lhe fizera perder a oportunidade de reencetar
237
a sua atividade na Bolsa com umas duzentas libras, tornou-se profunda e quase rancorosa. Desde
esse dia, a separação entre os dois cônjuges pareceu tornar-se irreparável.
Passaram-se alguns dias após a cena provocada pela especulação quando, ao acordar, Ana
sentiu-se mal. A cabeça pesava-lhe e ao levantar-se uma vertigem a fez quase perder o equilíbrio
e cair. Ao mesmo tempo sentia-se enjoada e nauseosa. Ficou alarmada, receando adoecer. Era
princípio de primavera e a gripe lavrava em epidemia. Ana muito antes tivera gripe uma vez e
lembrava-se de ter estado doente cerca de seis semanas. A possibilidade de ver-se agora forçada
a interromper o seu trabalho, quando os seus ganhos constituíam a única fonte de receita do
casal, era para ela questão de extrema seriedade.
Sentindo-se sempre incomodada, conseguiu contudo fazer o serviço da casa e partir para o
emprego. À tarde estava melhor e pouco a pouco os sintomas inquietadores se dissiparam por
completo. Ana julgou-se livre do perigo. Escapara da gripe.
Nos dias subseqüentes a mesma coisa sobreveio e a moça inclinava-se a pensar que o seu
fígado estivesse afetado. No terceiro ou quarto dia os fenômenos assumiram caráter ainda menos
tranqüilizador. Um estado nervoso particular provocava em Ana uma irritação inexplicável. À hora
do primeiro almoço, essa irritação tomou a forma de uma curiosa repugnância por Scott, cuja
presença lhe parecia insuportável. O marido notou que ela não comia e perguntou-lhe o que tinha.
Ana respondeu que estava com uma enxaqueca e ficou satisfeita por ver que Scott não mostrava
maior interesse pelo caso. Chegando ao
238 emprego, onde tinha de provar várias "toilettes" novas de primavera, Ana sentia-se tão
perturbada ao mover-se no pequeno palco onde exibia os vestidos, que -só não julgou estar
desempenhando desastrosamente o seu papel porque lady Emmy não lhe fez nenhuma
observação a respeito.
Uma semana decorreu ainda, sem que Mrs. Kentish acertasse na significação daquela estranha
moléstia. Afinal, a situação se esclareceu. Ana ia ser mãe.
CAPITULO XVI
Quando Ana saiu do estado de perturbação e mesmo de assombro em que a lançara a
descoberta de que ia ser mãe, começaram a delinear-se em seu espírito diferentes quadros, em
cada um dos quais se continha um dos aspectos da nova situação. Às vezes sentia ansiedade e
se ia deixando ficar deprimida, até atingir às raias de positivo terror, em face das dificuldades e
complicações que viriam agora agravar os problemas em que ela se debatia, desde a ruina
financeira do marido.
O estado físico de Ana concorria poderosamente para fazê-la sofrer ainda mais. Seus nervos
mostravam uma delicadeza e uma sensibilidade de reação aos menores estímulos, o que a
tornava mais susceptível, tanto às dores morais, como aos constrangimentos a que a sujeitavam
as suas condições de vida material. Mesmo certas manifestações normais do seu estado
constituiam uma fonte de desgosto e de aborrecimento. O alimento comum não lhe apetecia e a
moça ficava surpreendida pelos caprichos extravagantes do seu paladar, que dera em reclamar
com impertinente insistência iguarias delicadas e que, nas circunstâncias atuais, estavam fora das
suas possibilidades financeiras. Mas a principal causa de tormento era 239
verificar que dentro em pouco tempo teria de interromper o trabalho e ver assim estancada a única
fonte de receita do casal. E por sobre tudo isso, de quando em vez sua carne se arrepiava com a
antecipação da tortura física da maternidade.
Mas Ana também tinha os seus momentos de gloriosa exaltação. Do íntimo do seu ser irrompiam
às vezes impulsos cuja origem ela desconhecia, mas que a elevavam a um plano de sublimação
moral, de que nunca se julgara capaz. O sentimento da realização da suprema finalidade da
mulher dava-lhe uma consciência nova da sua dignidade e uma vaga idéia de importância, cujo
sentido Ana não percebia bem, mas que confusamente compreendia consistir no reconhecimento
de que afinal realizava a razão de ser da sua própria existência feminina.
Nada contara a Scott. O sigilo era-lhe aconselhado por um motivo de bondade. Ana não queria
agravar a angústia do marido, fraco e deprimido, com uma revelação que lhe viria fazer sentir
mais agudamente a sua penosa posição. Dias antes ela não teria tido tais contemplações com
Scott. Pouco se lhe daria que ele sofresse mais, tal era o retraimento em que dele se ia afastando.
Mas desde que descobrira o seu estado, Ana se achava sob a influência de uma suave onda de
ternura. Não era um sentimento especial em relação ao marido, mas sim uma grande maré de
simpatia humana que a arrastava, despertando no seu espírito um impulso de carinhosa
benevolência por todas as coisas que viviam.
Não lhe foi porém possível demorar a comunicação, até que Scott tivesse pelo menos arranjado
uma colocação qualquer e assim estivesse um pouco mais tranqüilo e menos abatido. O marido
continuava em vão a procurar emprego. E o estado de Ana seguia o seu curso natural, chegando
enfim a um ponto, em que ela se viu obrigada a dizer a
240 lady Emmy que tinha de suspender o trabalho. No sábado em que recebeu pela última vez as
suas três libras de salário, Ana compreendeu que chegara finalmente o momento de dizer tudo a
Scott. Quis ainda adiar por vinte quatro horas a comunicação, deixando para fazê-la no domingo,
quando Scott estivesse menos agitado pela sua labuta penosa em busca de trabalho.
Entretanto, circunstâncias imprevistas precipitaram a revelação. Ana chegara a casa e o marido,
que já tinha chegado, pediu-lhe que lhe desse meia coroa, porque tinha de ir procurar uma
pessoa, de quem possivelmente conseguiria uma ocupação. Ana, com um carinho que
ultimamente não costumava mostrar pelo esposo, deu-lhe prontamente o dinheiro, ao mesmo
tempo que se esforçava por ser o mais amável possível. Mas Scott, como de costume,
prorrompeu nas suas queixas amargas contra a sorte, que o obrigava a viver de dinheiro ganho
pela mulher.
Ana sentiu profundamente aquela atitude, tanto mais injustificável, quanto ela acabava de mostrar
ao marido o prazer que tinha em auxiliá-lo. Não compreendia o egoísmo estúpido daquele homem
que, dando à sua vaidade estulta a forma de um orgulho pervertido, não percebia, ou antes, não
queria entender a beleza da ação solidária de- dois entes, que no infortúnio comum deviam lutar
juntos. Por que não teria Scott o espírito de camaradagem que lhe permitiria aceitar, sem sentir
uma humilhação absurda, o concurso do trabalho da sua companheira? Entre Ana, integrada já no
espírito da sua época e aquele homem de idéias anacrônicas, ainda cheio dos preconceitos
bolorentos, que no passado tinham reduzido a mulher no casamento a uma figura decorativa,
privada do exercício da nobilitante prerrogativa do trabalho, cavava-se uma separação que
parecia dividir os representantes de dois mundos diferentes.
241
A indignação surda de Ana explodiu, quando Scott lhe disse que o pensamento de que sua mulher
recebia um salário semanal do qual ele estava vivendo, dava-lhe desejos de atirar pela janela a
moeda, que há pouco ela lhe dera.
- Quem sabe, Scott, se você não vai ter a satisfação de ver-se privado do meu salário?
- Que quer você dizer com isso? perguntou ele fitando-a, surpreendido e intrigado.
- Suponha que eu tenha deixado hoje de trabalhar, que tenha saído da casa de lady Emmy...
- Que brincadeira é essa? Você quer divertir-se comigo?
- Não estou brincando. Saí hoje da casa de lady Emmy.
- Saiu? Por que? Que aconteceu com você?
- Oh, Scott, você ainda não descobriu? disse Ana encarando o marido fixamente e com um
sorriso.
- Não descobri nada. Que podia eu ter descoberto?
- Ainda não desconfiou de que eu vou ser mãe?
Scott excedeu com a sua atitude tudo que Ana podia prever diante da opinião cada vez pior que
dele formava. Furioso a princípio por julgar que a mulher se estava divertindo à sua custa e mais
furioso ainda quando se convenceu de que ela dizia a verdade, Scott deblaterou frenèticamente
contra a má sorte que o perseguia e que, como afirmava, acabava de encher a medida,
perseguindo-o com supremo flagelo daquela paternidade indesejável.
Ana ficou tão surpreendida pela maneira como Scott recebera a notícia, que o pasmo a princípio
não a deixou ficar empolgada pelo sentimento de revolta contra o selvagem egoísmo do marido.
Procurou ainda tocar-lhe o coração perguntando-lhe se não se alegrava com a notícia que
acabava de dar-lhe.
242 - Alegrar-me? Seria preciso que fosse doido. Você ainda quer que tenhamos alguma
desgraça maior.
E com estas palavras, que ela recebeu como um insulto, Scott saiu arrebatadamente, batendo a
porta com brutalidade.
Ana, cujas lágrimas tinham começado a correr, deixou depressa de chorar. O procedimento do
marido não a entristecia, provocava-lhe um violento protesto íntimo de indignação. com a
grosseria de sentimentos maior ainda que a brutalidade de maneiras, em que Scott, recebera a
notícia de que sua mulher esperava uma criança, o desastrado rapaz se havia definitivamente
incompatibilizado com a esposa. Ana já não tinha mais dúvidas sobre os seus sentimentos para
com o marido. Havia muito tempo que vinha pouco a pouco perdendo a admiração e o respeito
que outrora ele lhe inspirava. Começara mesmo a ter um certo desprezo por Scott. Mas agora
positivamente o odiava.
Um capricho do destino fez com que naquele mesmo dia Scott encontrasse um emprego. Leviano
e extremamente volúvel nos seus estados de espírito, o rapaz ficou tão satisfeito por ter obtido
colocação, que imediatamente os seus sentimentos para com Ana se alteraram radicalmente.
Teve outra vez um impulso de ternura pela mulher e então, pela primeira vez, reconsiderando a
cena que pouco antes se passara, sentiu arrependimento pelo modo como acolhera a
comunicação que ela lhe fizera. Voltou a casa radiante e disposto a uma daquelas reconciliações
que tanto condiziam com a sua fraqueza de caráter. Mas em breve Scott verificaria que as suas
boas intenções chegavam tarde.
Ao entrar em casa, Scott, que trazia para a mulher um raminho de violetas, ficou surpreendido por
uma mudança que se realizou nos arranjos domésticos. O divã que estava no quarto de dormir
fora colocado na saleta que servia também de sala de jantar. A modificação
243
do mobiliário coincidia com a mudança ainda mais impressionante no aspecto de Ana. A moça
parecia envolta em uma atmosfera de absoluta calma. O seu olhar tinha mais luminosidade e a
cabeça muito levantada dava a Ana um aspecto de serena dignidade. Scott entrou rindo e já
disposto a uma cena de ternura. A frieza com que ela o recebeu desconcertou-o logo. Atirou o
chapéu para cima de uma cadeira e exclamou:
- Afinal arranjei um emprego!
- Tenho muito prazer em saber disso, respondeu Ana glacialmente.
Scott começava a ficar nervoso. Ia arrancando do raminho as violetas uma após outra e
esmagando-as entre os dedos.
- É um lugar muito ruim. Trata-se de trabalhar com um sujeito que vai explorar uma patente de
invenção de um aparelho para lavar pratos. Creio que vou dirigir todo o escritório. Só há lá uma
empregada. É uma dessas rapariguinhas com vestidos de seda surrados, saltos de meio palmo de
altura e pérolas falsas por toda a parte. Você conhece bem esse tipo de dactilógrafa e pode
imaginar o que é a tal Miss Sweet.
- Em matéria de negócio a coisa não parece muito promissora, observou Ana sarcàsticamente.
Ainda mais desconcertado, Scott contou que iria ganhar duas libras e dez "shillings" por semana.
- Nas circunstâncias em que nos achamos, tudo serve. Antes isso que nada, disse ela friamente.
- Ana, eu tinha trazido estas violetas para você, murmurou Scott apontando para as flores, já
esmagadas
espalhadas pelo assoalho.
- Não parecem agora poder servir para muita coisa, observou a moça.
244 - Esta tarde, parece que você ficou magoada comigo. Quando me deu aquela notícia, tive um
choque e fiquei perturbado.
- Sim, ficou de fato muitíssimo perturbado e revelou a sua perturbação por uma forma com que eu
não contava.
- Mas, Ana, disse Scott agarrando-a pelos braços, você deve compreender a minha situação, o
meu estado de nervos, tudo que tenho sofrido. Não dá o desconto disso?
- Não. Não dou mais desconto de coisa alguma. Há mais de três meses que guardava esse
segredo, para não o preocupar ainda mais. Não acredita que tenha sofrido muito sozinha? Não
imagina tudo que passei, sofrendo as conseqüências do meu estado e prevendo o muito mais que
tenho ainda de sofrer? Suportei tudo isolada, sem ter ninguém a quem fazer uma confidência e de
quem recebesse apoio e animação. A minha única força durante esses meses promanava de mim
mesma e da consciência do que havia de nobre e de grande na maternidade para que me
preparava. Quando lhe comuniquei a notícia, esperava que seus sentimentos se associassem aos
meus, porque, se vou ser mãe, o filho não é só meu, é seu também. Mas você, enclausurado na
tristeza pela sua má sorte, ficou insensível diante do que constitui o maior acontecimento da
nossa vida de casados. com o seu procedimento, cortou as amarras que me prendiam ao seu
destino.
E, desenvincilhando-se das mãos de Scott, a moça recuou dois passos e o marido sentiu que
estava tão separado dela, como se uma grade de ferro se houvesse interposto entre ambos.
Observando mais uma vez a saleta e fixando o olhar sobre o divã, Scott teve um pressentimento.
Levantou a capa que cobria o móvel e viu por baixo lençóis e um travesseiro.
- Uma cama? Para quem? 245
- Para você ou para mim. Não faço questão disso.
- Certamente para mim. Então, você-me pôs fora?
- Sim, Scott, e não creio que jamais nos possamos unir outra vez.
Scott, sem dar uma palavra, pegou do chapéu e encaminhou-se para a porta. Ana, em silêncio e
absolutamente calma, acompanhou com o olhar o marido que saía.
CAPÍTULO XVII
A partir daquele momento a vida de Ana tomou uma direção inteiramente nova e a sua própria
personalidade veio a sofrer profunda modificação. O casal, no regime de separação que se
estabelecera, mantinha relações de estrita cortesia, em que não havia vislumbre de
sentimentalismo e nem mesmo nada que se pudesse chamar de intimidade. Conversavam como
duas pessoas estranhas, que são acidentalmente postas em um contacto forçado.
Scott desejaria quebrar a frieza daquelas relações, mas não tinha coragem e a serenidade glacial
da mulher o punha à distância sempre que pretendia dar à conversa um tom de maior intimidade.
Narrava com precisão mecânica o que se passava no escritório, onde se fixara no exercício do
seu emprego. Contava histórias de Miss Sweet, a moça dos vestidos de seda surrados e das
pérolas falsas. Aludia a tudo isso, procurando às vezes interessar Ana pelas suas narrativas
minuciosas e coloridas por uma tocante simplicidade.
A esposa, porém, continuava no seu esplêndido isolamento. Não sentia mais contra Scott aversão
ou hostilidade. O marido era-lhe absolutamente indiferente. Aliás, a tudo a moça se ia tornando
indiferente. O serviço 246 doméstico e os arranjos da casa. não a interessavam mais.
Descuidava-se de si mesma, não tratava das unhas e das mãos e esquecia-se até dos cabelos.
Tudo que outrora constituía para ela assunto de tanta importância, não a preocupava mais. As
próprias dificuldades financeiras a deixavam' insensível.
Todo o seu pensamento se concentrava em torno do seu estado e da previsão da crise em que
ele ia culminar. Por vezes imaginava com horror as terríveis dores que lhe estavam reservadas.
Julgava então que iria sucumbir mas, depois, vinha a reação. O sentimento maternal que nascia
nela inspirava-lhe uma coragem ilimitada e uma confiança implícita no êxito da crise que se ia
avizinhando. Então, ela tinha a certeza de que tudo correria bem e antecipadamente vibrava com
a alegria da próxima maternidade.
Nesse estado de espírito as figuras que antes haviam ocupado tanto lugar na vida dela, não
passavam agora de sombras que sua memória nem sequer evocava. Quando certa vez Scott lhe
disse que encontrara Nancy Hanshaw, ela dera menos importância ao caso do que se ele
houvesse narrado um incidente banal presenciado na rua. Mas um dia, indo abrir a porta à qual
alguém batera, Ana teve um sobressalto ao ver diante de si a sua antiga rival de Upper Norton.
Nancy Hanshaw, no esplendor de um vestido lindo, modelo de Paris, com a sua beleza natural
realçada pelas cores que se haviam acentuado com o exercício forçado da subida de vários
lances de escada, ali estava de pé, na atitude triunfante de quem vem visitar o campo de batalha,
onde alcançou uma vitória. Em Ana, a presença de Nancy provocou a irrupção instantânea dos
instintos primários, que nela, como em toda gente, dormiam na sua alma de civilizada. O seu
impulso foi dar um pulo à cozinha, apanhar a vassoura e descarregar um golpe violento sobre
aquela 247
cabeça linda e impertinente. Mas o controle do seu barbarismo íntimo estava muito exercitado e,
automaticamente, recalcou-lhe o ímpeto bravio. - Posso entrar Ana?
- Pois não, entre.
E Nancy, fingindo-se distraída e indiferente ao ambiente paupérrimo do apartamento, foi entrando
e observando todos os sinais da derrocada social da sua rival. A saleta, refletindo as
conseqüências do desmazêlo a que Ana fora levada pelo seu estado, tinha um aspecto de
pobreza ainda mais lamentável que a realidade. Sobre a mesa permaneciam pratos e xícaras
servidos, restos do pequeno almoço. Os tapetes mostravam não terem sido varridos por uns dois
ou três dias. Os móveis, com uma grossa camada de poeira. A prateleira do fogão cheia das mais
variadas coisas, inclusive cinzeiros com pontas de cigarros e contas de fornecedores,
indiscretamente deixadas ao alcance da inspeção bisbilhoteira da visitante. Mais grave ainda
como índice de desmazêlo doméstico e da negligência que a pobreza acarreta, o divã que servia
de cama a Scott, ali estava, denunciando afrontosamente o fim em que era empregado.
As duas mulheres, sentadas junto à mesa, uma diante da outra, fitaram-se por alguns momentos
em silêncio. O ar petulante de Nancy tornava-se positivamente provocador. Lançando sobre
aquele aposento em desordem um olhar de soslaio, que acompanhava com um desdenhoso
movimento de lábios, Nancy queixou-se de que Ana não dera mais sinal de vida, de modo que ela
não tivera meios de procurá-la.
- Não pensava que vocês tivessem chegado a esta condição. Ouvira dizer que Scott se arruinara
na Bolsa, mas estava longe de imaginar que as coisas houvessem chegado a este ponto. Dizendo
estas palavras Nancy mais
248
uma vez lançava um olhar em torno de si, exprimindo na fisionomia uma sensação, que poderia
ser de náusea.
Ana, em silêncio, fitava Nancy, que ia pouco a pouco tomando um ar mais impertinente de triunfo.
- Outro dia encontrei Scott. Fiquei espantada ao vê-lo com roupa tão surrada. Não me quis dar o
endereço, o que aliás compreendo, porque realmente este seu endereço não é coisa que se goste
de dar. Mas resolvi descobrir onde vocês moravam e pus-me a seguir Scott até aqui. Não sou um
bom investigador?
- Sem dúvida; e agora, que levou a bom termo a sua diligência, já poderá ir contar a toda a gente
em Upper Norton o estado de extrema pobreza a que chegamos, disse Ana impassível.
- Oh, Ana, você está a fazer-me uma grande injustiça. Nunca seria capaz de falar desse modo da
situação em que vocês se encontram. Digo mesmo que, se tivesse adivinhado que tinham
chegado a este estado de pobreza, aqui não teria vindo, com receio de humilhá-los.
Quando Nancy pronunciou estas palavras irrompeu de novo em Ana a mesma onda profunda e
recalcada de atávicos instintos selvagens. Desta feita, porém, não lhe atravessou o cérebro o
pensamento de ir buscar a vassoura e de espancar a impertinente visita. É possível que, se a
idéia lhe tivesse ocorrido, a moça a pusesse em execução. Não pensou nisso e apenas se pôs de
pé.
Havia na fisionomia de Ana uma expressão de ferocidade que alarmou Nancy, fazendo-a também
levantar-se. O ar de triunfo dissipara-se da linda face da maldosa rapariga. Olhava para Ana
ansiosa e sem saber mesmo o que temia daquela mulher que, diante dela, despenteada com as
unhas por fazer, de chinelos e tendo sobre o corpo um pobre quimono de chita, a fitava de um
modo tão altivo e 249
ao mesmo tempo tão feroz, que a sua miséria parecia envolvida em uma aura de grandeza. Nancy
deveria naquele momento ter tido vagamente no cérebro pensamentos semelhantes aos de um
homem civilizado que, perdido na selva, vê de repente surgir diante de si um grande carnívoro em
atitude. de combate. Após alguns momentos, a cólera surda de Ana aplacou-se e Nancy sentiu-se
aliviada. Só então observou o estado da sua rival.
- Oh, Ana, eu não tinha percebido! Meu Deus! Ainda por cima, você está nesse estado? Que
horror! Estou às suas ordens para prestar-lhe qualquer serviço. Diga-me o que posso fazer.
- Pode fazer uma coisa apenas: ir-se embora imediatamente.
Quando Nancy, desconcertada e confusa, saiu, Ana fechou a porta, murmurando: "gata pérfida!"
Depois ficou a pensar que aquela criatura perversa iria divertir as rodas de Upper Norton,
contando o que vira no seu apartamento de miséria. Mas aqui Ana fazia uma injustiça a Nancy,
como outra cena, que viria a passar-se meses mais tarde, o demonstraria.
Ao amanhecer daquele dia, Ana sentira-se abatida e uma forte dor de cabeça a tornava incapaz
de desempenhar mesmo de modo perfunctório os seus deveres de dona de casa. A tensão
nervosa a que era freqüentemente sujeita acentuava-se e, sem saber porque, teve uma longa
crise de choro. Scott- estava nessa manhã ainda mais tristonho e irritado que de costume. As
deficiências no preparo do primeiro almoço agravaram o mau humor do marido, que
250 saiu sem lhe dar uma palavra, deixando-a ainda mais nervosa e preocupada.
Mal podendo ter-se sobre os pés, Ana foi novamente deitar-se e ficou na cama até muito depois
do meio-dia. Foi então que se lembrou de que em casa nada havia para a ceia e, fazendo um
esforço, levantou-se e vestiu-se, a fim de ir fazer as compras necessárias. Como de costume,
estas foram mais que modestas. Umas duzentas e cinqüenta gramas de rosbife salgado, um
pouco de alface, alguns tomates, quatro bananas e três bolos de limão e queijo formavam o parco
carregamento de víveres que Ana reuniu na sua cestinha de compras.
Quando vinha de volta para o apartamento, a moça começou a pensar na sua vida, lembrando-se
com saudade do passado e sentindo mais uma vez acudirem-lhe ao espírito os desejos
caprichosos, que nos últimos meses com tanta freqüência a assediavam. Teve um sentimento de
nostalgia dos tempos do seu noivado com Scott e da época em que o seu casamento não se
tornara ainda um inferno com o desastre financeiro do marido. Veio-lhe também um forte e mesmo
impetuoso desejo de ir ao campo. Dir-se-ia que o organismo da mulher reclamava o ar puro e a
ambiência serena de uma rusticidade sadia. A idéia de ver-se fora da cidade, livrar-se daquelas
ruas cheias de tráfego e afastar-se das casas que pareciam oprimi-la, tornou-se dentro em pouco
tão insistente, que Ana sentiu a necessidade imperiosa de estar perto das árvores e de espairecer
o olhar pelos extensos gramados.
Não podendo satisfazer integralmente aquela ânsia do campo, Ana resolveu ir até Kensington
Garden, que era o que mais próximo se achava como sucedâneo da autêntica campanha. Tomou
um ônibus e um quarto de hora mais tarde estava sentada em um banco, situado em um dos
pontos mais tranqüilos do grande jardim. O ar puro, 251
refrescado pela brisa da tarde, trouxera calma ao espírito torturado da moça. Por algum tempo
sentiu-se feliz e repousada. As lágrimas, que durante todo o dia tivera dificuldade em reprimir,
correram ainda, mas como que desafogando o coração opresso da infeliz mulher. Acudiram-lhe de
novo lembranças da vida passada e insensivelmente começou a fazer um exame retrospectivo
das suas relações com Scott nos últimos dias. Não podia deixar de reconhecer quanto ele era
injusto para com ela. Mas nesse ponto ocorreulhe pela primeira vez um pensamento, que lhe
causou sobressalto. As suas brigas constantes com o marido e a irritação permanente entre
ambos não teriam determinado conseqüências prejudiciais ao pequeno ser que nela se estava
formando?
Recordou-se de ter ouvido dizer, e também lido muitas vezes, que o estado mental da mãe
influencia favorável ou desfavoràvelmente o organismo em geração. Viva inquietação apoderou-se
da moça, que começou a imaginar as possibilidades dos nefastos efeitos daquelas condições em
que vivera, exatamente quando era necessário que todas as energias do seu corpo e da sua alma
convergissem para tornar o mais favorável possível o desenvolvimento do pequenino ser, em que
ela ia desdobrando a sua própria vida.
Esses pensamentos e as emoções por eles estimuladas levaram Ana a um estado quase
vertiginoso. Parecia-lhe que as árvores dançavam ao redor dela e que o bosque, do outro lado do
gramado, recuava cada vez para mais longe. Uma voz carinhosa murmurou-lhe o seu nome. Ana
voltou-se de repente e ficou perplexa, parecendo-lhe reconhecer ao seu lado a prima Amy.
- Ana! É você mesma? Avistei-a de longe mas, quando me aproximei, julguei por um momento ter-
me enganado. Ainda bem que é você mesma. Mas o que tem? Está tão pálida! Está se sentindo
mal?
252 Estendendo as mãos carinhosamente para Amy, Ana apenas pronunciou o nome da parenta,
que se sentou junto dela. A vertigem acentuara-se e a moça caiu para o lado, repousando a
cabeça no ombro da prima, que a amparou afetuosamente.
Quando Ana se recompôs, Amy, antes com um olhar que com perguntas, interrogou-a sobre a sua
vida. A moça fez uma longa e minuciosa narrativa do que ocorrera desde o casamento e quando
disse a Amy que estava para ser mãe, a boa velha deu um salto e com a fisionomia radiante de
alegria fixou os seus olhos pequeninos sobre Ana, como se visse nela uma criatura extraordinária,
a mais feliz das mulheres, a quem o destino concedera a maior de todas as suas dádivas.
- Então, Ana, está esperando um bebê? Como deve sentir-se feliz! Uma criancinha, pequenina,
com os pèzinhos muito gordos e rosados e cachinhos de cabelo a caírem pelo pescoço!
Amy fitava Ana, mas os seus olhos pareciam agora perdidos em um horizonte longínquo, onde a
velha procurasse encontrar os seus remotos sonhos de uma maternidade nunca satisfeita. Ana
sentiu-se feliz ao ver nos olhos da prima aquele fulgor, que correspondia tanto aos sentimentos
profundos que lhe vinham da alma, quanto sentia a tremenda significação do seu estado. Era em
Amy que ela encontrara o que debalde procurara arrancar do egoísmo frio e do coração insensível
de Scott.
As duas mulheres ficaram a conversar em torno do tema, que constituía para Amy o assunto mais
interessante no universo. Aquela velha solteirona, de tanto pensar na maternidade que lhe fora
negada, desenvolvera aptidões notáveis em relação a tudo que se prende à procriação. Como se
fora um médico sagaz, observou logo que Ana não estava tendo a nutrição exigida pelo seu
estado.
253
- Que comeu você hoje?
Quando Ana lhe respondeu, confessando que uma torrada fora até aquela hora o seu único
alimento, Amy em tom decisivo declarou-lhe que a acompanharia a casa e a faria ter uma boa
refeição.
- Que faz seu marido que a deixa descuidar-se assim da sua alimentação? Logo que chegar à sua
casa e depois de ter feito você comer, ou eu não sou Amy Pruett, ou direi àquele sujeito o que
penso dele.
- Scott não tem culpa. Estamos vivendo muito mal. Temos brigado. O nosso casamento tem sido
um terrível...
- Não diga essas tolices.
A prima Amy não entendia muito de dificuldades conjugais, mas, para ela, a situação de Ana
resumia-se em uma única questão. A moça ia ser mãe e era preciso cercá-la de todo o conforto
material e moral que assegurasse a saúde e o vigor do pequenino ser que ia nascer. Quanto a
bebês, Amy orgulhava-se de conhecer tudo, exceto aquilo que sempre desejara em vão: possuir
um, a quem ela tivesse dado a vida. Ana sentia-se acanhada em mostrar à parenta o pobre
apartamento em que vivia. Mas Amy, percebendo essa relutância, abordou francamente o caso,
pondo a prima à vontade. Durante todo
O percurso', Amy deu conselhos à moça, insistindo no grave erro que ela cometia descuidando-se
da sua pessoa, donde, na sua opinião, resultava o mau humor do marido. E logo que chegaram à
casa, Amy foi aquecer agua para que Ana lavasse o rosto e trouxe-lhe depois as escovas e o
estôjo de manicura, dizendo-lhe autoritariamente:
- Agora você vai pentear o seu cabelo, até pô-lo tão brilhante como no dia do seu casamento
assim como também vai cuidar dessas unhas, que estão realmente indecentes. Enquanto estiver
a fazer-se
254 bonita vou preparar-lhe um chá com torradas e uns ovos quentes. Depois arranjarei esta
casa. Isto realmente está em tal estado, que qualquer homem fica de mau humor ao encontrar
tanto desmazêlo, quando volta cansado do seu trabalho.
Ana, quando se viu ao espelho que Amy pusera diante dela, não pôde deixar de ficar surpresa ao
contemplar o aspecto desagradável a que o descuido reduzira aquele rosto de que ela mesma
tantas vezes se envaidecera. Depois de haver-se penteado e tomado o chá que Amy trouxera ao
quarto em uma bandeja, a moça cuidou das unhas, enquanto na saleta a prima, com movimentos
rápidos e enérgicos, varria os tapetes e espanava os móveis.
- Vamos agora preparar a ceia, disse a boa velha logo que Ana acabou de tratar das unhas. Estive
vendo o que você trouxe na sua cestinha de compras. Rosbife salgado! É uma coisa cara e não é
alimento para um homem que trabalha. vou sair e trarei alguma coisa mais substancial.
De volta, com as compras que fizera, Amy veio ajudar Ana no preparo da ceia.
- Não trabalhe demais. O seu estado não lhe permite excessos. Deixe-me, que farei a ceia.
- Sinto-me muito bem. Há muitas semanas que não tenho esta sensação de bem-estar. Vejo que
você tem toda a razão. Fiz mal em deixar-me arrastar pelas circunstâncias e descuidar-me da
minha pessoa. Hoje estou com esperança de que ainda poderei ser feliz com Scott. vou pôr o meu
melhor vestido para recebê-lo. Faremos uma pequena festa de reconciliação.
Amy aplaudia os bons propósitos da prima, enquanto ia preparando a mesa com uma toalha limpa
e colocando

255
sobre ela um vaso com rosas, que comprara exatamente para esse fim.
Abraçando carinhosamente a prima e'agradecendo-lhe o imenso bem que lhe fizera. Ana insistiu
para que ficasse também para cear.
- Não; você hoje deve estar a sós com o seu marido. Voltarei amanhã cedo.
Ana procurou ainda demover a solteirona do seu propósito, mas esta se manteve firme, dizendo:
- Dois fazem boa companhia. A minha presença aqui seria não apenas supérflua, mas
inconveniente. Vocês já perderam muito tempo em brigas e precisam recuperar o atrasado. Não
se levante amanhã, porque carece de repouso. Virei fazer o trabalho da casa. Não me custa nada.
Este apartamento é uma casa de boneca, que não dá trabalho.
Quando Amy partiu, Ana lembrou-se de que tantas vezes rira à custa daquela criatura
superiormente bondosa. E teve vergonha do seu humorismo.
Sentada perto da janela, cheia de esperança de ver reabrir-se diante de si as perspectivas de uma
nova felicidade, a moça ficou aguardando a chegada do marido. Eram sete horas e Scott não
podia tardar. Ana esperou-o e continuou a esperá-lo pela noite a dentro.
CAPÍTULO XVIII
Ana ficou sentada junto à janela a contemplar a mesa, tão cuidadosamente posta pela prima Amy.
Passaram-se as horas e era quase meia-noite quando Scott entrou, ressabiado e evitando encarar
a mulher. Enquanto colocava o chapéu sobre uma cadeira e dava as costas à mulher, Perguntou-
lhe um tanto ansiosamente:
256 - Ainda de pé a estas horas?
- Estava à sua espera, Scott. Tinha-lhe preparado uma ceia muito boa.
- Não me foi possível vir.
- Mas onde esteve até agora?
- Fui ao Tivoli.
- com quem foi você ao cinema?
- com Miss Sweet. Ao menos ela me faz companhia e mostra interesse pelo meu infortúnio.
Ana, que já observara na manga de Scott uma mancha de pó de arroz e sentira também o
perfume adocicado que dele irradiava, não se surpreendeu com o que o marido acabava de dizer-
lhe, mas não pôde deixar de sentir intimamente repugnância pela associação que Scott assim
estabelecia com uma criatura tão inferior, como essa Miss Sweet, de quem ele próprio já dissera o
bastante para que se pudesse julgar que espécie de mulher era a sua colega de escritório. Ana
não podia conformar-se com o fato de que um homem encontrasse prazer na companhia de uma
Miss Sweet e achava sobretudo extravagante a idéia de Scott, indo pedir conforto moral a
semelhante criatura.
- Você não quer comer alguma coisa, Scott?
- Não. Jantei muito bem em um Lyons.
- Também em companhia de Miss Sweet? perguntou ela sarcàsticamente.
- Sim, jantei com Miss Sweet.
Ana permaneceu silenciosa por alguns momentos. Não sentia absolutamente ciúmes, mas o seu
senso moral se revoltava contra o fato de Scott ir pagar cinema e jantar para uma mulher vulgar
como aquela, quando sabia que tinham tão pouco dinheiro, que em casa ela 257
precisava reduzir ao mínimo as próprias despesas com a alimentação. Voltando-se para o marido,
observou-lhe apenas:
- Foi pena que você escolhesse o dia de hoje para jantar com Miss Sweet, porque havia
preparado uma ceia melhor e que ficou perdida. com estas palavras Ana levantou-se, entrando
para o quarto sem se despedir de Scott e fechando a porta.
Se, até conciliar o sono, Ana sofria na cama a impressão profundamente desagradável que lhe
causara aquela nova demonstração da falta de critério e mesmo de senso moral do marido, este
por seu turno também se sentia profundamente aborrecido com o incidente. Tinha vergonha de
haver andado pelo cinema e pelo restaurante em companhia de uma mulher que, afinal de contas,
não lhe inspirava interesse e lhe era desagradável mesmo, pela visível vulgaridade dos seus
sentimentos e das suas maneiras. Ainda quando estavam no cinema aborrecera-se com as
interjeições e os suspiros com que a moça de pouca cultura e deficiente educação acompanhava
os lances mais sensacionais da fita.
Mas Scott era invariavelmente levado pelo seu temperamento, em que o egoísmo, a fraqueza e o
sentimentalismo se combinavam, a lançar sobre Ana a principal responsabilidade daquele
incidente. Era a falta da compreensão e da simpatia da mulher que o deixavam em um
desamparo, no qual as palavras meigas e os olhares ternos de Miss Sweet lhe traziam o conforto
de que carecia a sua alma torturada pelo infortúnio. Esses pensamentos o enterneciam por tal
forma, dando-lhe tanta ternura para consigo mesmo, que as lágrimas lhe vinham aos olhos.
Na manhã seguinte, o rapaz, que compreendera ter-se tornado na véspera ainda mais funda a
separação entre ele e a mulher, procurou aproximar-se dela.

258 - Ana, não pense que eu tenha qualquer coisa com Miss Sweet.
A resposta da mulher foi uma risada tão desdenhosa, que Scott ficou desconcertado apressando-
se em engolir a comida e em sair de casa o mais depressa possível.
Pouco depois entrava a prima Amy. A boa velha vinha com um sorriso alegre, em que havia uma
pontinha de malícia ingênua. Prelibava o prazer de ouvir Ana contar-lhe a história enternecedora
da reconciliação do casal. Em vez disso, veio a saber que a sua atividade na preparação da ceia
fora inútil.
- Scott foi jantar com a dactilógrafa do seu escritório, disse Ana dando uma risada.
Em vez do violento sermão que esperava de Amy contra o marido, Ana ficou surpreendida quando
a prima, em tom severo, a censurou por ter deixado as coisas chegarem àquele ponto.
- Mas, então, você acha que devo ter vergonha disso? Parece-me que Scott é quem tem motivos
para envergonhar-se.
- Não, Ana; sou ainda do tempo em que se compreendia que as mulheres são sempre as
culpadas das infelicidades conjugais. Quando uma esposa é carinhosa e proporciona ao marido
conforto no lar, tudo corre bem. Um homem que encontra em casa afeto, comodidade, enfim tudo
que ele procurara no casamento, não vai andar a correr atrás de outras mulheres.
Ana estava positivamente espantada diante daquelas idéias, em que se refletia um mundo já
pertencente ao passado. Tentou argumentar, mas a prima Amy não entretinha dúvidas sobre a
verdade da sua tese. E como havia muita coisa necessária e urgente a tratar-se, as duas
259
mulheres de comum acordo encerraram o debate, ficando cada uma firme no seu ponto de vista.
Daí em diante Ana e Amy tornaram-se inseparáveis. Guiada pela solteirona, que revelava cada
vez mais os seus profundos conhecimentos acerca da indumentária dos bebês, Ana foi
rapidamente preparando o enxoval da criança, que esperava com tanto afeto e ansiedade. A
prima Amy, além de ser uma orientadora admirável na compra e na encomenda de tudo que
convinha figurasse no enxoval, parecia ter descoberto uma misteriosa mina, donde hauria
recursos inesgotáveis. Ana, que sempre ouvira dizer que Amy vivia de uma pequena pensão,
admirava-se ao ver agora a velha parenta suprir fundos para a compra de tudo que se podia
desejar para o seu futuro bebê.
Amy realmente não consentia que no enxoval do filho de Ana aparecesse nada de ordinário e de
banal. Desde as fraldas até a capa que devia completar o vestuário do herdeiro dos Kentish, tudo
era de primeira qualidade e feito com muito gosto. Amy mostrava mesmo conhecimentos
avançados de puericultura, fazendo incorporar ao enxoval o que a higiene infantil aconselha como
complemento necessário à equipagem de uma criancinha, que ao entrar neste mundo deve ser
defendida contra todas as causas de moléstia que a ameaçam. Ana aceitava a generosidade da
parenta, sem sentir constrangimento, tal a simplicidade da atitude de Amy; bastava a prima
formular o desejo de alguma coisa, para que logo isso fosse ajuntado ao enxoval.
A boa velha fazia as despesas tão naturalmente e com tal desembaraço, que embora Ana
estivesse admirada dela
260 dispor de tanto dinheiro, não se atrevia sequer a fazer uma pergunta sobre o assunto. O
enxoval do bebê esperado já estava quase pronto, quando um dia o correio trouxe uma
encomenda, em que Ana encontrou um jogo completo de vestuário infantil que, pelo alto preço
dos tecidos empregados e pela suprema elegância do feitio, parecia destinado a algum
principezinho do país das fadas. O volume não trazia nenhuma indicação da procedência do rico
presente, que Ana só veio a conhecer horas depois, quando o carteiro lhe entregou uma carta da
última das pessoas de quem ela poderia esperar correspondência.
A missiva era assinada por Nancy Hanshaw e a maior parte do texto continha a confissão de tudo
que ela fizera contra Ana, desde o momento em que a vira pela primeira vez no baile do Upper
Norton Club. Nancy narrava minuciosamente as peripécias daquela noite tão- decisiva para a vida
das duas moças e contava o caso do fechamento de Ana na sala do "toilette" do clube. Pedia
também desculpas da sua atitude na visita que lhe fizera.
A carta foi lida com a atenção e o interesse que se pode imaginar, mas o que mais impressionou
Ana foi o último parágrafo redigido nestes termos: "vou casar-me com um homem tremendamente
rico. Você, Ana, é pobre e eu serei riquíssima dentro em breve. Mas na vida só uma coisa me
interessou até hoje - o meu grande amor por Scott. Tudo daria para que ele fosse meu, mas ele
lhe pertence. Assim, apesar da minha riqueza e da sua pobreza, foi você quem ganhou a partida e
vai ter um filho de Scott! Andei a correr as lojas mais elegantes de Londres à procura do que
pudesse encontrar de mais lindo para essa criancinha, que desde já me faz ter tanta inveja de
você. Peço-lhe como um favor que às vezes vista o seu bebê com essas roupinhas". Seguia-se a
simples assinatura: "Nancy".

261
Ana esteve a examinar por alguns momentos as roupinhas e atirou-as para o lado com um gesto
desdenhoso. Depois embrulhou-as em papel de seda, guardando-as na gaveta. Afigurava-se-lhe
ser improvável que alguma vez seu filho usasse aquelas roupas, mas a revelação do amor de
Nancy por Scott causou-lhe um prazer íntimo. Sobre o caso nenhuma palavra disse ao marido, de
quem agora mais que nunca se achava afastada.
Scott continuava a sofrer as conseqüências do isolamento em que o deixara o retraimento de Ana.
Como a prima Amy sagazmente previra, a moça estava involuntariamente fazendo o jogo de Miss
Sweet. Esta, que assentara o propósito de conquistar Scott, tornara-se ainda mais doce na sua
solicitude em consolar o rapaz, sempre em lamúrias pelo infortúnio que o fizera rolar da riqueza a
uma situação de tantas aperturas.
- Bem imagino o que deve sofrer nesse isolamento em que ora se encontra, dizia a dactilógrafa.
Eu também vivo tão só, e posso portanto compreender o que outras talvez não saibam apreciar.
Naquela tarde, Miss Sweet parecia ter mais acentuados os traços grosseiros, mas provocadores
da sua beleza vulgar. Os olhos úmidos e convidativos completavam a sedução dos lábios
carnudos e sensuais. Scott, sobre quem o isolamento em que o deixara a mulher ia produzindo os
seus inevitáveis efeitos, estava mais sensível aos encantos de Miss Sweet e, embora não
admitisse ainda a idéia de vir a ter com ela mais que um ligeiro flirte sem conseqüências,
262 aceitou com satisfação a proposta de uma ida ao cinema. Como já anteriormente acontecera,
foram antes jantar e depois do cinema Scott acompanhou a rapariga até a casa de apartamentos
onde ela morava, em uma das ruas próximas de Tottenham Court Road.
Ali chegando, despediu-se. Miss Sweet, porém, começou a insistir em que Scott viesse ver o seu
apartamento. Durante a sessão do cinema, os dois, que já haviam no jantar entabulado uma
intimidade maior, agarrando-se de vez em quando as mãos em apertos carinhosos, haviam
prosseguido no flirte e Scott, mais que nunca, estava agora sob a influência dos encantos da sua
colega de escritório. Contudo, relutou em entrar, receoso de que sua aventura fosse levada mais
longe do ponto em que desejava parar. Mas Miss Sweet ganhou a partida e dentro de alguns
momentos estavam os dois no pequeno apartamento da dactilógrafa.
Scott queria partir logo, mas a sua colega o obrigou a tirar o sobretudo e fê-lo sentar-se,
convidando-o a tomar alguma coisa. O rapaz, que ia pouco a pouco deixando-se ficar sob a
influência de Miss Sweet, concordou e os dois estiveram a conversar, enquanto a moça preparava
duas xícaras de chocolate, que em seguida tomaram. Miss Sweet tornava-se de momento a
momento mais sentimental. Referia-se com voz terna à vida triste de Scott e à necessidade que
ele tinha de alguém que o compreendesse e confortasse. Fitando o fogo que ardia na lareira e
segurando as mãos do rapaz, dizia-lhe:
- Como seria bom se pudéssemos passar a noite inteira vendo estas chamas...
Depois, avançando mais desassombradamente, Miss Sweet abordou o caso das relações de
Scott com sua mulher, dizendo-lhe que, se esta já tinha ciúmes dela, era melhor 263
que os tivesse com razão. Scott não gostou de que a conversa resvalasse para esse assunto e,
em tom um pouco ríspido, pediu à rapariga que não lhe falasse em sua esposa.
Miss Sweet docimente recebeu o repelão, e tenazmente prosseguiu na sua ofensiva.
Espreguiçando-se muito e fingindo bocejar, Miss Sweet declarou estar com sono. Scott, ansioso
por partir. aproveitou o ensejo e despediu-se. Quando ia vestir o sobretudo, a rapariga, tomando-o
pelo braço convidou-o a vir ver o seu quarto de dormir. O aposento causou-lhe péssima
impressão. O mobiliário de mau gosto era um espécime típico desse estilo de marcenaria barata,
que procura dar uma impressão de luxo que se torna ridícula. Sobre a penteadeira acumulavam-
se cremes, cosméticos, perfumes, tudo do gênero das imitações baratas, ao lado da aparelhagem
de manicura. O fogo quase apagado iluminava com uma claridade tristonha aquele ambiente de
vulgaridade, onde também não faltavam sinais de pouco asseio, particularmente perceptíveis na
colcha de renda que cobria um edredão de espalhafatosa cor amarela e nos inúmeros
travesseiros e almofadas de todos os tamanhos espalhados sobre a cama.
Miss Sweet, sem dar conta do efeito que tudo aquilo produzira em Scott, aproximou-se ainda mais
dele, passando-lhe a mão pela cintura. O contacto da mulher, o brilho daqueles olhos lânguidos
que o fitavam tão de perto, quase sentindo o rosto dela encostado ao seu, foram pouco a pouco
exercendo sobre os nervos do rapaz uma influência sutil e, se infiltrou como um veneno. Miss
Sweet, conhecedora dos processos a que recorria, foi intensificando o poder sugestivo da sua
sedução. - Passava agora a mão pelo pescoço de Scott e alguns momentos após os seus lábios
colavam-se aos dele.
264 Ocorreu então um fato estranho e do qual Miss Sweet nunca teve explicação. De repente,
Scott desenvincilhou-se da rapariga, empurrou-a e ficou como se estivesse a ouvir algum ruído,
que a sua colega não atinava com o que era. Depois saiu correndo, entrou na saleta, pegou do
chapéu e do sobretudo e, sem vestir este, desceu precipitadamente as escadas. Quando já estava
na rua, Scott, cambaleante, envergou com dificuldade o seu pesado sobretudo de inverno. Era
uma noite de novembro e uma neblina já um tanto espessa prenunciava um nevoeiro. No meio da
ligeira cerração, Scott avistou os faróis de um táxi. Gritou nervosamente ao chofer chamando-o e
logo que entrou no veículo deu-lhe ordem de tocar o mais depressa que pudesse para
a sua casa.
Quando ali chegou já passava de meia-noite. Abrindo a porta, Scott não viu nenhuma luz acesa.
Na saleta, diante da porta fechada do quarto de Ana, estacou e, sem saber por que, teve a idéia
de fazer uma oração. Não conseguiu porém dizer mais que as primeiras palavras de uma prece
qualquer de que se lembrara. Cuidadosamente, moveu o trinco e ao abrir a porta procurou
observar o interior do aposento, fracamente iluminado pelos clarões de um fogo que se ia
extinguindo e também pela luz mortiça de uma lamparina colocada na mesa de cabeceira e
encoberta por um abajur de vidro fosco. Por alguns segundos não pôde ver bem o que estava
sobre a cama. Depois, seus olhos, já adaptados à semiobscuridade, fixaram-se sobre Ana que
jazia no leito e cuja fisionomia extremamente abatida Scott
265
foi pouco a pouco observando com crescente ansiedade. Aproximou-se da cama e exclamou:
- Ana, Ana!
Quando os olhos da moça se abriram, teve um alívio, dissipando-se do seu espírito o temor
terrível que o assaltara.
- Scott, é um menino!
Foi então que o rapaz, indo ao outro lado da cama, viu repousado sobre o braço da esposa a
forma pequenina de seu filho. Ajoelhado junto à cama, Scott dividia a sua emoção entre a
criancinha que Ana tinha sobre o braço e a mulher, cuja fisionomia era iluminada por um
esplêndido sorriso, que ele antes nunca observara.

- Sofreu muito, minha querida?


- Bastante, mas felizmente tudo correu depressa. Para ter a alegria que tive, dou por bem
empregado todo o meu sofrimento.
Dirigindo-se afetuosamente ao marido, Ana falou-lhe da vida atribulada dos últimos tempos e
pediu-lhe que a desculpasse por ter sido muitas vezes áspera e injusta para com ele. Scott, que
estava em maré de fazer penitência, protestou, sustentando que a culpa das divergências
surgidas no casal fora dele. Ana tinha muitos motivos de queixa e ele agora queria pedir-lhe
perdão.
- Não, a principal causadora de todo o mal fui eu mesma. Reconheci-o há poucas horas, quando
no meio desta crise me senti tão isolada com a sua ausência. Onde estava você, Scott?
O rapaz ficou hesitante e Ana, adivinhando-lhe os pensamentos, encarregou-se de responder por
ele.
- Estava com Miss Sweet, não é verdade?
- Sim, disse Scott, enleado e comovido por um 266 sentimento sincero de remorso. Procedi muito
mal para com você; peço-lhe perdão.

- Fui eu a culpada de tudo isso. Amy tem toda a razão quando afirma que são as mulheres as
responsáveis pela infidelidade dos maridos. Eu mesma o forcei a ir procurar a companhia daquela
mulher e pedir-lhe o conforto moral que não obtinha de mim.
- Foi um inferno!
- A princípio julguei que estivesse realmente caído por essa Miss Sweet, mas depois cheguei à
conclusão de que não havia nada de sério entre você e ela e neste momento tenho a absoluta
certeza disso. Mesmo que você me tivesse sido positivamente infiel, eu não tinha o direito de
censurá-lo, porque fui a culpada de tudo.
- Quero dizer-lhe toda a verdade. Fui-lhe infiel. Não no sentido técnico em que a infidelidade é
entendida pelo tribunal do divórcio, disse Scott ensaiando um ligeiro sorriso, mas fui infiel. E esta
noite teria passado o limite, se não fosse um milagre.
- Um milagre? Conte-me isso, Scott.
Aproximando o rosto ainda mais de Ana, Scott em palavras rápidas contou-lhe como, apesar de
sentir verdadeiramente repugnância por aquela mulher, tinha chegado a beijá-la, quando fora
sacudido ao ouvir o choro da criança.
- Mas, choro de que criança? Do nosso filho? Como foi isso possível?
- Não sei, Ana, você talvez julgue que eu tenha enlouquecido, mas o fato é que ouvi a criança
chorar.
Ana ficou a pensar alguns momentos e de súbito perguntou:
- Que horas eram, Scott, quando ouviu o bebê chorar? "
267
- Devia faltar um minuto para a meia-noite, porque logo em seguida vi em um relógio que era
meia-noite em ponto.
- Mas isto é realmente extraordinário! exclamou Ana. Ele chorou exatamente a essa hora. Tenho
certeza disso, porque a prima Amy, ouvindo-o chorar, entrou no quarto e me disse que era meia-
noite em ponto. Foi realmente um milagre, Scott.
- Então a prima Amy está aqui?
- Sim, está deitada no seu divã, mas creio que, extenuada, adormeceu, porque já devia ter vindo
tirar o pequenino dos meus braços, para pô-lo de novo no berço. Amy tem sido realmente uma
amiga extraordinária. Ainda neste momento o serviço que ela me presta é incalculável. Só contava
que a criança nascesse daqui a três dias e a enfermeira, que havia sido contratada, tinha
compromissos até a data prevista. Amy teve de chamar outra às pressas, mas esta só pode vir
durante o dia. Aliás, não faz falta, porque em matéria de tratamento de crianças recém-nascidas,
prima Amy só ignora o que não vale a pena saber.
O choro de criança que fizera Scott repelir de modo tão pouco amável a sua colega de escritório
que o beijava apaixonadamente, constituía para ele e para Ana um autêntico milagre, uma vez
que lhes seria impossível dar uma explicação natural da ocorrência. Miss Sweet, se lhe tivessem
contado o caso, teria facilmente elucidado tudo. No pavimento imediatamente abaixo daquele em
que residia a dactilógrafa, morava um jovem casal com um filhinho de poucos meses, que andava
às voltas com o penoso processo da dentição. Contra as comichões que sentia nas gengivas, o
pequenino protestava todas as noites com a choradeira, que distintamente se ouvia no
apartamento de Miss
268 Sweet. Esta já se habituara tanto ao barulho, que só dava conta dele quando a criança
chorava mais violentamente. Por isso não atinou com o motivo que sobressaltara Scott e o deixara
de ouvido atento, como se estivesse a escutar alguma coisa.
Assim, o que ficou sendo milagre para Ana e Scott continuava a ser insondável mistério para Miss
Sweet.
- Foi realmente maravilhosa a maneira como você voltou para mim. Um grande milagre nos reuniu
de novo.
- Sinto-me agora outro homem e completamente feliz. Todos estes meses em que andei
procedendo tão mal para com você, a melhor parte do meu ser se revoltava contra o que fazia.
Quando ouvi o choro da criança, tive a certeza de que ela havia nascido. Fiquei ansioso por saber
em que condições você se achava. Corri para aqui com a alma torturada por uma mistura de
medo e de remorso.
- Não pense mais nisso. Dê-me um beijo, Scott. Os meus beijos varrerão da sua memória a
lembrança dos outros, em que você foi procurar esquecimento do que sofrerá por minha culpa.
Scott beijou carinhosamente a mulher e, depois de terem estado por algum tempo em silêncio, o
rapaz começou a rememorar o passado, relembrando o momento em que os dois haviam trocado
olhares, no baile onde se encontraram pela primeira vez.
- O que nos atraiu, Ana, foi o pressentimento do que agora está acontecendo. Quando penso que
você hoje é mãe de meu filho, compreendo o sentido das forças que nos aproximaram.
- É verdade. Este é o grande acontecimento que vai marcar o início de uma nova vida para nós.
269
Banalisamos o nosso amor no passado, Scott. Somente agora é que podemos compreender a
significação e a grandeza dele.
Um pequeno suspiro fez a mulher voltar-se para o filhinho que repousava sobre o seu braço.
- Scott, você ainda não prestou atenção ao seu filho. Veja como ele é grande e forte. Sabe que
pesa mais de quatro quilos? Pegue-lhe no pulsozinho para ver como ele é forte.
O rapaz levantou os panos que envolviam o bebê e, depois de tê-lo examinado detidamente,
murmurou em uma expansão de orgulho:
- Que criança esplêndida! Está se vendo que há de ser um rapagão.
Ana ficou satisfeitíssima diante do entusiasmo do marido. Receava que Scott tivesse em relação
ao filhinho uma dessas expressões pejorativas, que tão freqüentemente definem a atitude
masculina diante de uma criança recém-nascida.
- E você notou como ele tem o olhar inteligente? A enfermeira me diz que as crianças no primeiro
dia não vêem nada, mas não posso crer nisso, quando observo a maneira como ele me olha.
- Vê, sem dúvida nenhuma; tem mesmo um olhar que parece até estar pensando.
Os dois beijavam-se de novo, unindo-se na alegria daquela grande reconciliação. O idílio foi
interrompido pelo aparecimento de um vulto que entrava no quarto. Era Amy que, metida no seu
roupão de flanela cor de cinza, vinha buscar a criança para pô-la no berço. Em tom autoritário, a
boa velha repreendeu o casal, lembrando que Ana precisava de repouso.
- Não sei como peguei no sono e deixei esta criança aqui nos seus braços. Isto é a coisa mais
imperdoável que
270 se pode fazer. Nunca fique com a criança na cama ao seu lado. A culpa foi minha.
O pequenino Kentish, devidamente enrolado nos seus linhos e flanelas, foi colocado no berço.
Amy endireitou a cama e as roupas de Ana, acomodando-lhe os travesseiros. Depois, sem
cerimônia, pôs Scott para fora do quarto.
CAPITULO XIX
Quando a prima Amy pôs tudo em ordem no quarto de Ana, voltou à saleta e dirigiu-se a Scott
com um ar severo.
- Onde andou o senhor até estas horas?
- Ana já sabe.
- com certeza esteve a passear com a tal sirigaita.
- Sim, e já contei tudo a Ana.
- Como? Contou-lhe tudo? O senhor não tem vergonha?
- Felizmente não tinha a confessar-lhe mais que um pecado incompleto. Se as coisas tivessem
chegado mais longe, não teria coragem de voltar aqui.
- A sua obrigação era estar hoje em casa. Mas, talvez tivesse sido melhor mesmo que não
estivesse, porque a sua presença nos poderia ter atrapalhado.
Verificando que Scott estava realmente arrependido, Amy começou a ter pena do pecador
arrependido. Para atenuar a rudeza com que acabava de falar-lhe, passou a tratar do estado de
Ana e da criança dizendo-se muito satisfeita com as condições de ambas. Nada havia a recear
271
e agora era preciso apenas ter muito cuidado durante alguns dias com a mãe e com o bebê. A
prima Amy falava com o desembaraço de um técnico. O entusiasmo da solteirona por tudo que se
relacionava com o nascimento dos bebês lhe havia desenvolvido espontaneamente aptidões
profissionais dignas de um pediatra.
O rapaz, cujos olhos estavam a transbordar de lágrimas, naturalmente provocadas pelo ríspido
sermão da boa velha, fez ainda perguntas sobre a maneira como Ana se portara durante a crise e
ouviu de Amy os mais calorosos elogios à coragem e à calma da jovem mãe.
Mas a boa velha voltava outra vez a assumir a atitude de rígida censora moral. Começou de novo
a verberar o procedimento de Scott, dizendo-lhe ser preciso agora lembrar-se de que era pai e
não podia mais estar fazendo loucuras, como as que praticara durante os últimos meses. Scott,
que se achava visivelmente arrependido, pediu à prima que se compadecesse dele e pusesse
termo à sua pregação, agora supérflua, depois da sua reconciliação com Ana. A emoção do moço
era tão sincera que Amy achou ser realmente desnecessário insistir em verberar-lhe o leviano
procedimento. Ficou mesmo com pena de Scott e disse-lhe que era preciso arranjar um lugar
qualquer onde pudesse dormir. Assentaram em que o divã seria cautelosamente levado para o
quarto de Ana e ali Amy dormiria, enquanto Scott ficaria cochilando em uma das poltronas na.
saleta.
Quando iam transportando o divã com todo o cuidado para não fazer barulho, o colar de pérolas
da prima Amy, que se achava debaixo do travesseiro, caiu sobre o tapete. Scott desastradamente
não pôde evitar que o pisasse e com surpresa notou que várias pérolas haviam sido esmagadas
pelo seu sapato. Perturbado, abaixou-se, apanhou os fragmentos e ao observá-los verificou logo
tratar-se de pérolas
272 falsas. O caso o intrigou, porque sempre ouvira Ana falar do grande valor daquele colar,
lembrança que Amy guardava do noivo, morto muitos anos antes em um desastre. Dirigindo-se à
velha, muito atrapalhado, exclamou:
- O seu colar! E mais surpreendido ainda ficou com a calma de Amy, respondendo-lhe que aquilo
não tinha importância.
Por alguns momentos o rapaz e a solteirona encararam-se, como se quisessem perceber
mutuamente os seus pensamentos.
- Mas... este colar... estas pérolas... murmurou Scott enleado.
- Este colar não vale nada, disse Amy com um risinho.
- Mas o colar que a senhora tinha e que fora presente do seu noivo era tão valioso.
- Sim, mas não valia tanto, que não devesse ser sacrificado a coisas mais importantes.
- Agora compreendo! exclamou Scott muito emocionado. Todo esse dinheiro que a senhora tem
gasto ultimamente conosco provinha da venda do seu valioso colar!
- Conosco, não! Gastei e gastarei tudo que tiver, por causa daquela criaturinha de pèzinhos
gordos e rosados que está lá dentro. Se pudesse, faria muito mais por aquele anjinho.
- Mas a senhora nunca devia ter feito isso. Foi um sacrifício que não se justifica, balbuciou Scott
abraçando a velha.
- Fique quieto, disse Amy desenvincilhando-se dos braços do rapaz. Está proibido de dizer a Ana
uma só palavra a esse respeito. Se cometer alguma indiscrição, há de arrepender-se, porque
nesses assuntos não sou de brincadeira. Ouviu bem? Nem um pio... 273
O divã foi transportado para o quarto e quando Scott se viu sozinho na saleta, pôs-se à vontade,
envergou um roupão e sentou-se em uma das poltronas diante do fogo, já quase apagado.
A fadiga e as emoções retardaram-lhe um pouco o sono. Depois ficou meio cochilando e na
modôrra o seu cérebro povoava-se de sonhos, em que ora se esboçavam quadros sombrios da
sua vida agitada e inquieta dos últimos meses, ora irrompiam recordações e imagens da felicidade
passada. Finalmente pareceu-lhe que via sair da sombra a figura de Ana, radiante de beleza,
como ele nunca a vira e com aquele sorriso que pouco antes Scott observara, quando a mulher
contemplava o filhinho adormecido sobre o seu braço.
Scott procurara dissuadir a prima Amy das preocupações ansiosas que ela mostrava a seu
respeito, mas a boa velha não se conformava com a idéia de que ele continuasse a trabalhar no
mesmo escritório com Miss Sweet.
- Acho muito mau que você continue a conviver com aquela mulher despudorada. Depois do que
se passou, não fica bem que tenha quaisquer relações com ela.
- Concordo com a senhora e muito desejaria livrarme de uma convivência que se me tornou
naturalmente desagradável, mas não posso abrir mão de um emprego, sem ter outra colocação
em vista.
- Talvez isso não esteja muito longe, disse a prima Amy sorrindo e metendo a mão no bolso da
saia, donde tirou uma carta que entregou a Scott.
274 Este leu, surpreendido e ao mesmo tempo cheio de satisfação, o seguinte:
"Minha cara Miss Pruett,
Com o maior prazer venho comunicar-lhe que estou pronto a arranjar na minha firma um emprego
para o sr. Scott Kentish, a quem se refere em sua carta em termos tão elogiosos. É claro que não
posso adiantar nada quanto à natureza do emprego, sem primeiro conversar com o sr. Scott
Kentish. Desde já fique certa de que farei tudo por ele em atenção à sua pessoa que muito me
merece e em consideração à memória do meu querido irmão, que bem sei quanto a estimava.
Diga ao sr. Kentish que me procure no escritório da nossa casa em Londres segunda-feira, antes
do meio-dia ou quarta-feira o mais cedo possível, a partir das três horas.
Creia-me, minha cara Miss Pruett, seu muito sincero admirador.
Ricardo Johns."
- Quando a senhora arranjou isto? perguntou Scott, ainda sob a impressão de tão agradável
surpresa.
- Pensava então que eu havia de ficar de braços cruzados, deixando-o naquele escritório ao lado
da tal sirigaita?
- E quem é esse Ricardo Johns?
- É o chefe da casa Johns, os fabricantes de chapéus. Ricardo é irmão do meu querido Perci que,
se não tivesse morrido, seria hoje o chefe da firma.
- Segunda-feira irei procurá-lo.
- É o que deve fazer. Você pode colocar-se muito bem ali, porque é uma grande casa. E se
arranjar um bom lugar, não se meta outra vez em maluquices.
275
De dentro do quarto, uns gritinhos que se assemelhavam a grunhidos indicavam estar Scott Júnior
sendo preparado para a noite. O pai, olhando para o interior do aposento, respondeu ao conselho
de Amy.
- Diante daquele pequenino não farei mais loucuras.
- Ainda não perdi a esperança em você, observou a velha.
Alegre e cheio de agradecimento, ele a abraçou, beijando-lhe fortemente o magro rosto.
- Cuidado, prima Amy, disse Ana, vendo que Scott deixara na face da solteirona um sinal róseo no
ponto onde a beijara, meu marido parece um vampiro.
- Olhe que não fui eu quem lhe pediu o beijo, observou Amy, afetando um ar muito sério.
- Não querem ver o meu filhinho antes de dormir?
Amy apressou-se em chegar junto ao berço, dizendo ao mesmo tempo a Scott que contasse a
Ana o que havia a respeito de Ricardo Johns. Quando a moça acabou de ler a carta que Scott lhe
mostrara, ficou contentíssima, declarando estar certa de que Scott se colocaria bem ali.
Abraçados, os dois vieram para a saleta, enquanto a velha ficava no quarto ao lado do bebê.
- Prima Amy é muito boa.
- Sim, ela é um verdadeiro anjo, afirmou Scott, lembrando-se da venda do colar de pérolas, o que
Ana continuava a ignorar. Ficarei gratíssimo, mesmo que não arranje o emprego.
- Há de arranjar. Tenho certeza de que o homem vai gostar de você. Sempre que o vejo, tenho
uma impressão tão boa e estou certa de que esse Ricardo Johns há de tê-la também.
- Mas você, Ana, já uma vez se enganou a meu respeito, julgando-me melhor do que de fato sou.
276 - Não, Scott, não me enganei. O que houve entre nós foram desentendimentos, por não
termos compreendido o ideal do nosso amor.
- Quer você dizer que esse ideal está perdido para nós?
- Não, respondeu ela sacudindo vivamente a cabeça. O ideal do nosso amor começa a realizar-se
agora. A lição que devemos ter aprendido é que, se os casamentos se fazem às vezes no céu,
têm de ser vividos na terra. Minha mãe costumava dizer que não sabemos onde o destino nos vai
ferir. Estou hoje convencida de que ele nos atinge nos pontos onde temos alguma coisa a
aprender.
Os dois abraçaram-se e beijaram-se. Assim ficaram por algum tempo em um eloqüente silêncio,
que Ana interrompeu, dizendo a Scott que ouvisse um canto em surdina vindo do interior do
quarto.
Era a prima Amy, fazendo adormecer o filhinho que os viera reconciliar.

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Dois amores Felicidade inesperada O homem sem piedade A maltrapilha Qual dos três? O
selvagem A sétima Miss Brown Uma noiva em leilão
Gentil Leitora:
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Perguntaríamos, isto sim, se você gostaria de ler outros romances como este, e melhores ainda
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O Editor
Fim

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