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6. LE MONDE DIPLOMATIQUE - edição portuguesa . dezembro 2016 LE MONDE DIPLOMATIQUE - edição portuguesa . dezembro 2016 .

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Ciência

Trabalho sem direitos? dade da ciência que, enquanto cidadãos, pa-


gamos.

Precariedade científica: Neste quadro, a abertura ao diálogo e a


intenção de combater a precariedade cien-
tífica que foi declarada pelo ministro da tu-

modo de não usar


tela, Manuel Heitor, suscitou, na comunidade
científica nacional, elevadas expectativas.
Infelizmente, o primeiro diploma legis-
lativo produzido acerca do assunto – o De-
creto-Lei 57/2016, sobre contratação a
prazo de doutorados – associa boas inten-
A realidade do trabalho científico acompanha a que se vai instalando em todo o trabalho. Bolsa a bolsa, corte de ções com efeitos perversos potencialmente
financiamento a corte de financiamento, desenrascanço a desenrascanço, o sistema científico nacional tornou-se muito graves.
estruturalmente dependente do trabalho precário. Um recente Decreto-Lei ministerial tenta intervir nessa situação mas, Esse Decreto é sobretudo conhecido pelo
seu efeito transitório de atribuir, aos «bol-
paradoxalmente, escolheu fazê-lo através da institucionalização de contratos a prazo. Por que motivo é necessário alterar seiros» de pós-doutoramento com financia-
esse decreto e de que forma pode isso ser feito? mento público há mais de três anos, um con-
trato a prazo de até seis anos, gozando dos
direitos sociais que são inerentes à legislação
PAULO GRANJO * laboral geral.
Esta evidente e necessária melhoria surge,

S
egundo os dados oficiais divulgados em definitivo no local onde prestam serviço micos com décadas de vínculo definitivo à vas possibilidades de bolsa ou contrato, ou a não obstante, a par com a institucionalização
este ano, mais de 70% dos investiga- – e que, caso sejam bolseiros, nem subsídio função pública – não se limita a ser uma fa- um raro lugar definitivo e estável. de um novo modelo de contratação precária,
dores científicos[1] que trabalham em de desemprego irão ter. Muitos saltitam en- lácia, assente em pressupostos paternalistas Não se trata, contudo, apenas de uma que se vem somar às várias formas de pre-
instituições públicas não têm contrato de- tre diferentes bolsas e contratos precários e repressivos. É, para além disso, uma men- questão de desperdício de tempo e de es- cariedade científica já existentes. Trata-se
finitivo. Os seus casos pessoais dispersam- durante décadas, por vezes regredindo na tira factual. forço que poderiam estar a ser aplicados a precisamente desses contratos a prazo, aos
-se por uma miríade de situações que foram sua posição e salário. Outros emigram, refor- Na realidade, a precariedade estimula e fazer ciência. A precariedade científica di- quais qualquer instituição científica passa a
Adelina Lopes . Acte sans parole (Samuel Beckett, Acte sans proles I, 1956) (detalhe) . Cortesia Galeria Pedro Oliveira, Porto . (Fotografia: Dinis Santos)
sendo criadas ao longo de quase duas déca- çando outros países com o investimento que tende a reproduzir má ciência e desperdício ficulta também a inovação e as rupturas de poder recorrer, para o recrutamento de in-
das (ver Quadro 1) e a divulgação destes nú- em si foi feito pelo nosso. de recursos. pressupostos que a possibilitam, antes esti- vestigadores que podem ser remunerados
meros apenas veio dar um conteúdo quan- As coisas vão funcionando, mas com enor- É evidente que a incerteza acerca do seu mulando a «ciência normal»[2] e repetitiva, o segundo quatro diferentes níveis salariais. desejável nem para as pessoas, nem para a jável, é relativamente fácil introduzir-lhe me- novados: as contratações resultantes desta
titativo à realidade que se vê e sente, diaria- mes custos pessoais, sociais e institucionais. futuro profissional pressiona os cientistas business as usual. Terminado o contrato, o investigador encon- vida das instituições, nem para a ciência. lhorias que transformem os seus efeitos per- norma não seriam abrangidas pelas limita-
mente, nos centros de investigação. Não obstante, chegou a ser moda, há uns precários a publicarem tanto e tão depressa Isso acontece, por um lado, porque a ino- trar-se-á desempregado e terá de encontrar Nesse sentido, a chamada do Decreto-Lei versos em efeitos virtuosos, para os investi- ções ao aumento de massa salarial e os seus
De facto, esses investigadores precários anos atrás, a ideológica e esdrúxula noção de quanto possam, quer para suscitarem sim- vação e a ruptura com hábitos e paradigmas e vencer um novo concurso, para um novo à Assembleia da República para apreciação gadores e para o sistema. custos teriam de ser compensados por trans-
asseguram o funcionamento das institui- que a precariedade seria boa para a produ- patias hierárquicas, quer para poderem instalados exigem um tempo de aprofunda- contrato a prazo, naquela ou noutra institui- parlamentar (por parte do Bloco de Esquerda O ponto fulcral é reverter a criação de uma ferência directa do Orçamento do Estado.
ções científicas e a maioria do seu trabalho ção científica. Por isso se justifica que come- apresentar um currículo forte e competitivo mento, de sedimentação e de teste que raras ção. Isto, claro está, se a instituição em causa [BE] e do Partido Comunista Português carreira paralela, permanentemente precá- Por fim, por uma questão básica de equi-
de pesquisa, por vezes de ensino, fornecem- cemos por revisitar essa ideia. aquando das oportunidades de contratação vezes é compatibilizável com os ciclos curtos tiver dinheiro para o fazer. [PCP]) constitui uma oportunidade deter- ria. Olhando para os precedentes existentes dade, essa mesma norma teria também de
-lhes a massa crítica que lhes permite faze- que venham a existir. do trabalho precário, da mesma forma que Esse é o primeiro dos efeitos perversos minante para estabelecer consensos e para, noutros graus de ensino, a forma mais ade- ser aplicada aos contratos a termo incerto
rem aquilo que dantes não conseguiam; são Precariedade produz Mas, desde logo, tendo eles de assegurar a requerem a estabilidade pessoal necessá- do diploma: a sustentabilidade financeira mantendo o que ele tem de bom, transformar quada de o fazer seria introduzir um me- e aos contratos a prazo já existentes no sis-
parte essencial da sua vivência e vitalidade. má ciência sua subsistência para lá do término das suas ria para sabermos que podemos investir o do modelo passa do Ministério da Ciência, os seus efeitos perversos em potencialidades. canismo-travão à repetição de contratos a tema científico nacional.
Não obstante, não sabem o que lhes aconte- bolsas ou contratos precários, a sua situa- nosso esforço e capacidades para lá do curto Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e prazo. Se após seis anos numa instituição «Não há dinheiro»? Talvez. Mas, por um
cerá no fim da sua bolsa ou contrato. Apenas A tese de que a precariedade é a forma ção laboral obriga a que gastem uma parte prazo, em programas de trabalho que só vi- da Fundação para a Ciência e a Tecnologia O que tem de mudar um investigador continua a ser necessário, lado, isso não representaria na maior parte
que, devido às restrições de contratação por mais virtuosa de estimular a produção cien- significativa do seu tempo e capacidades na rão a dar frutos daqui a vários anos. (FCT) para a responsabilidade das universi- a ponto de ser novamente contratado, isso é dos casos um aumento de custos, pelo me-
parte das universidades, dificilmente ficarão tífica – ironicamente, defendida por acadé- busca e na preparação de candidaturas a no- Para além deste obstáculo à exploração do dades, fustigadas por anos seguidos de seve- À partida, a contratação a prazo não é a prova suficiente, por defeito, de que as fun- nos considerando o Orçamento do Estado
que é realmente novo, as condições de pro- ros cortes e restrições orçamentais. forma mais adequada de recrutamento cien- ções que exerce correspondem a uma neces- na sua globalidade. Por outro lado, não esta-
dução e as exigências com que se confronta Contudo, o efeito mais grave é que, ao criar tífico. A sua aplicação só faz realmente sen- sidade permanente. Assim sendo, deverá ter mos a falar de despesas actuais, mas de algo
Quadro 1
um cientista precário também estimulam um modelo de recrutamento sem pontes tido no caso da constituição de equipas para acesso a um contrato definitivo. que ocorreria, no mínimo, daqui a sete anos.
Tipologia dos investigadores científicos
activamente o business as usual, devido à ne- de conexão com as carreiras existentes e no projectos de investigação cujo financiamento Melhor seria que a celebração desse con- Um dos resultados dessa alteração se-
cessidade de rapidamente publicar muito e qual os contratos a prazo se podem suceder e duração estejam claramente delimitados no trato não exigisse mais do que a avaliação ria que a precariedade deixaria de ser a
Categorias equivalentes nas revistas mais conceituadas. Depressa se em diferentes níveis salariais, este Decreto- tempo. Para todo o restante trabalho de pes- positiva do seu desempenho e o reconheci- norma e uma possibilidade permanente,
Designação Tipo Duração Acesso
à carreira? aprende que a forma mais simples e segura -Lei institui, na prática, uma carreira profis- quisa e funcionamento regular das instituições, mento de que é necessário à instituição. Mas, para se tornar uma fase transitória e deli-
Avaliação quinquenal, de o fazer, passando incólume os filtros da sional paralela e precária. tal como para o normal rejuvenescimento dos aplicando os mecanismos que o próprio De- mitada, no acesso e integração na carreira.
«Laboratório Contrato a renovação havendo Concurso internacional, na revisão por pares, é escrever aquilo que a co- Por outras palavras, o diploma não se li- seus quadros, aquilo que faria sentido seria a creto-Lei prevê para outras situações, po- Outro resultado seria acelerar, de forma
Sim
associado» termo incerto financiamento; rescindível instituição munidade científica está habituada a ler, em mita a permitir a contratação temporária de institucionalização de um modelo de tenure derá e deverá legislar-se que, em caso de re- sustentada e justa, a renovação e o rejuve-
em qualquer momento vez de questionar e desafiar os seus pressu- cientistas, com direitos laborais gerais; mo- track, comum em muitos países. Um modelo novação de um contrato a termo, a institui- nescimento do sistema científico nacional
Concurso internacional, na postos e rotinas. Ou seja, aquilo que permite dela o sistema científico com base em dois no qual uma contratação provisória, na se- ção fique obrigada a realizar, num prazo ra- e das suas instituições.
«Investigador FCT» Contrato a prazo 5 anos Sim
FCT a um cientista precário reforçar a sua ima- grupos segregados de pessoas que fazem quência de um rigoroso concurso, conduz a zoavelmente curto, concurso para um lugar Conforme comecei por dizer, não é a solu-
gem e, talvez, vir a aceder a uma posição es- basicamente o mesmo trabalho, mas em uma situação experimental que é objecto de definitivo no exercício das funções que esse ção ideal.
«Compromisso com 3 anos renováveis uma vez, Concurso internacional, na
Contrato a prazo Sim tável no futuro, é a mesma coisa que apela à condições laborais muito diferentes. De um uma avaliação que, sendo positiva, transforma investigador desempenha. Mas é infinitamente melhor do que o po-
a Ciência» (extinto) após avaliação FCT
limitação das suas capacidades e à estagna- lado, um núcleo duro e reduzido de investi- o vínculo de trabalho em contrato definitivo. É óbvio que, perante o quadro de limitações tencial caos que resulta da redacção original
«Investigador ção científica. gadores e docentes de carreira, com vínculo De alguma forma (embora incluindo de orçamentais impostas às universidades, essa do Decreto-Lei. Está, agora, nas mãos da As-
Bolsa variável Candidatura casuística Sim
Convidado»
à função pública. Do outro, uma massa de permeio concursos para posições de car- obrigatoriedade teria de ser acompanhada sembleia da República optar por uma coisa
Renovação anual, até um Concurso internacional, na Boas intenções cientistas precários que aumenta ou diminui reira), era essa a filosofia subjacente aos con- pelas contrapartidas adequadas, até para evi- ou por outra.
«Bolseiro pós-doc» Bolsa Não
máximo de 6 anos FCT e efeitos perversos consoante os recursos e necessidades, com- tratos de «laboratório associado», não se tar que ninguém visse os seus contratos re- * Antropólogo, investigador científico.

Bolseiro em projecto Variável, até um máximo da Selecção pelo coordenador do


petindo a cada seis anos em concursos para tendo ela concretizado devido às limitações
Bolsa Não Dessa forma, combater e reverter a preca- contratos a prazo que nunca os conduzem a de contratação que foram impostas às uni- [1] A investigação é uma actividade muito feminizada. Não obstante, para evitar a sistemática duplicação
financiado duração do projecto projecto
rização do trabalho científico não é apenas uma posição estável e definitiva. versidades, na sequência da crise. de artigos, utilizarei sempre neste texto o género masculino.
3 anos, renovável Concurso simplificado, na [2] No sentido epistemológico de ciência produzida no âmbito e limites dos paradigmas já estabeleci-
Decreto-Lei 57/2016 Contrato a prazo Não uma questão de justiça social e laboral; é um Pelas razões anteriormente expressas, Contudo, embora o ponto de partida do dos, reconhecidos e dominantes, contribuindo para o conhecimento, no essencial, através de «mais do
anualmente durante mais 3 instituição
investimento de política científica e na quali- esse não é um modelo de sistema científico Decreto-Lei 57/2016 não seja o mais dese- mesmo».

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