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Competência constitucional da Polícia

Rodoviária Federal

ADILSON ABREU DALLARI

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Os textos legais. 3. Interpre-


tação das normas constitucionais. 4. O contexto do
dispositivo em exame. 5. Conclusão.

1. Introdução
O objetivo principal do presente estudo não
se concentra sobre a situação atual das
atribuições da Polícia Rodoviária Federal, mas,
sim, sobre suas possíveis futuras competências,
em face do que consta do texto do substitutivo
do Senado ao Projeto de Lei da Câmara nº 73,
de 1994, que dispõe sobre o Código de Trânsito
Brasileiro.
O artigo 20 desse Projeto elenca as compe-
tências da Polícia Rodoviária Federal, que são
enumeradas em treze incisos, compreendendo
uma gama bastante variada de atribuições.
O problema está na constitucionalidade
desse artigo, tendo em vista que a Constituição
Federal, em seu art. 144, restringe as compe-
tências da Polícia Rodoviária Federal ao
“patrulhamento ostensivo das rodovias
federais”.

2. Os textos legais
O dispositivo sobre cuja constitucionalidade
se indaga tem a seguinte redação:
“Art. 20. Compete à Polícia Rodo-
viária Federal, no âmbito das rodovias e
estradas federais:
I - cumprir e fazer cumprir a legis-
lação e as normas de trânsito, no âmbito
de suas atribuições;
Adilson Abreu Dallari é Professor Titular de
Direito Administrativo da Pontifícia Universidade II - realizar o patrulhamento osten-
Católica de São Paulo. sivo, executando operações relacionadas
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com a segurança pública, com objetivo de prontuários de condutores de uma
de preservar a ordem, incolumidade das para outra unidade da Federação;
pessoas, o patrimônio da União e o de XII - fiscalizar o nível de emissão de
terceiros; poluentes e ruído produzidos pelos
III - aplicar e arrecadar as multas veículos automotores ou pela sua carga,
impostas por infrações de trânsito, as de acordo com o estabelecido no art. 67,
medidas administrativas decorrentes e os além de dar apoio, quando solicitado, às
valores provenientes de estada e remoção ações específicas dos órgãos ambientais;
de veículos, objetos, animais e escolta de XIII - fiscalizar, autuar, aplicar as
veículos de cargas superdimensionadas penalidades e medidas administrativas
ou perigosas; cabíveis às infrações referentes a excesso
de dimensões e, por meio de balanças
IV - executar serviços de prevenção, móveis, as relativas a excessos de peso,
atendimento de acidentes e salvamento bem como notificar e arrecadar as multas
de vítimas; aplicadas”.
V - realizar perícias, levantamentos Como se pode notar, no inciso II, está
de locais de acidentes, boletins de ocor- prevista a realização do patrulhamento osten-
rência e termos circunstanciados, teste sivo, com a indicação de seus objetivos.
de dosagem alcoólica e outros procedi- Os demais incisos, todavia, contemplam
mentos estabelecidos em lei e regula- uma gama extremamente variada de atribuições
mentos imprescindíveis à elucidação das as mais diversas. Algumas delas enquadram-se
causas dos acidentes de trânsito. perfeitamente no disposto no inciso II, pois
VI - credenciar os serviços de escolta, outra coisa não são senão atividades inerentes
fiscalizar e adotar medidas de segurança ao patrulhamento ostensivo. Outras podem ser
relativas aos serviços de remoção de consideradas como complementares ao patru-
veículos, escolta e transporte de cargas lhamento. Mas, por outro lado, existem
indivisíveis; competências absolutamente extravagantes,
VII - assegurar a livre circulação nas totalmente desconectadas da atividade de
rodovias federais, podendo solicitar ao patrulhamento, como é o caso da arrecadação
órgão rodoviário a adoção de medidas de multas, ou que exigem conhecimentos
técnicos alheios à atividade policial, como são
emergenciais, e zelar pelo cumprimento exemplos a fiscalização do transporte de cargas
das normais legais relativas ao direito de indivisíveis e a realização de perícias.
vizinhança, promovendo a interdição de
construções e instalações não autorizadas; O mais aberrante é, sem dúvida, a concen-
tração de poderes para autuar infratores e
VIII - coletar dados estatísticos e arrecadar as multas, constante dos incisos III,
elaborar estudos sobre acidentes de XI e XIII.
trânsito e suas causas, adotando ou indi- Enfim, existe uma confusão muito grande
cando medidas operacionais preventivas entre atividades que, normalmente: são desen-
encaminhando-os ao órgão rodoviário volvidas por outros agentes, com auxílio e apoio
federal; do patrulhamento; atividades de patrulhamento
IX - implementar as medidas da que requerem o concurso de outros agentes; e
Política Nacional de Segurança e atividades próprias e típicas de patrulhamento.
Educação de Trânsito; Num primeiro lance de vista, portanto, o
que se percebe é um problema de técnica legis-
X - promover e participar de projetos lativa, de má redação, de maneira a causar
e programas de educação e segurança, terríveis dificuldades interpretativas.
de acordo com as diretrizes estabelecidas
pelo Contran; Mas não é difícil perceber o porquê desse
XI - integrar-se a outros órgãos e emaranhado confuso de atribuições. Esse texto,
entidades do Sistema Nacional de Trân- acima transcrito, segue, muito de perto, o que
sito para fins de arrecadação e compen- consta do art. 1º do Decreto nº 1.655, de 3 de
sação de multas impostas na área de sua outubro de 1995, que, atualmente, “Define a
competência, com vistas à unificação do competência da Polícia Rodoviária Federal e
licenciamento, à simplificação e à cele- dá outras providências”, o qual tem a seguinte
ridade das transferências de veículos e redação:
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“Art. 1º. À Polícia Rodoviária IX - efetuar a fiscalização e o controle
Federal, órgão permanente, integrante da do trânsito e tráfico de menores nas
estrutura regimental do Ministério da rodovias federais, adotando as provi-
Justiça, no âmbito das rodovias federais, dências cabíveis contidas na Lei nº
compete: 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
I - realizar o patrulhamento osten- da Criança e do Adolescente);
sivo, executando operações relacionadas X - colaborar e atuar na prevenção e
com a segurança pública, com o objetivo repressão aos crimes contra a vida, os
de preservar a ordem, a incolumidade das costumes, o patrimônio, a ecologia, o
pessoas, o patrimônio da União e o de meio ambiente, os furtos e roubos de
terceiros; veículos e bens, o tráfico de entorpecentes
II - exercer os poderes de autoridade e drogas afins, o contrabando, o desca-
de polícia de trânsito, cumprindo e minho e os demais crimes previstos em
fazendo cumprir a legislação e demais leis”.
normas pertinentes, inspecionar e fisca- Provavelmente, pensou-se que em assim
lizar o trânsito, assim como efetuar procedendo, ficariam eliminadas quaisquer
convênios específicos com outras orga- dúvidas ou questionamentos sobre a matéria,
nizações similares; pois o mencionado Decreto já foi expedido sob
a égide do texto constitucional atualmente em
III - aplicar e arrecadar as multas vigor, presumindo-se, portanto, que esteja em
impostas por infrações de trânsito e os perfeita conformidade com a Lei Maior.
valores decorrentes da prestação de
serviços de estadia e remoção de veículos, Todavia isso não ocorre. De imediato, veri-
objetos, animais e escolta de veículos de fica-se que o Decreto nº 1.655/95 foi editado
cargas excepcionais; pelo Presidente da República sob invocação dos
IV - executar serviços de prevenção, incisos IV e VI, do art. 84 da Constituição
atendimento de acidentes e salvamento Federal como seu fundamento de validade.
de vítimas nas rodovias federais; Entretanto, tais incisos não autorizam a
edição do referido Decreto, pois se referem,
V - realizar perícias, levantamentos ambos, ao poder regulamentar, à competência
de locais, boletins de ocorrências, inves- do Presidente da República para expedir
tigações, testes de dosagem alcoólica e normas destinadas à especificação de meios e
outros procedimentos estabelecidos em modos para a fiel execução da lei ou para a
leis e regulamentos, imprescindíveis à ordenação da administração pública federal em
elucidação dos acidentes de trânsito; nível infralegal, na forma da lei. Nunca em
VI - credenciar os serviços de escolta, lugar da lei, nem, muito menos, contra a lei.
fiscalizar e adotar medidas de segurança Ocorre que o atual Código Nacional de
relativas aos serviços de remoção de Trânsito (Lei nº 5.108, de 21.9.66) nem
veículos, escolta e transporte de cargas menciona a Polícia Rodoviária Federal entre
indivisíveis; os integrantes do Sistema Nacional de Trânsito,
VII - assegurar a livre circulação nas havendo, portanto, um evidente vício formal
rodovias federais, podendo solicitar ao na edição do Decreto nº 1.655/95.
órgão rodoviário a adoção de medidas Mas a preocupação que motivou o presente
emergenciais, bem como zelar pelo cum- estudo é de outra ordem. Está voltada para o
primento das normas legais relativas ao futuro e se concentra na constitucionalidade do
direito de vizinhança, promovendo a in- conteúdo das disposições que descrevem as
terdição de construções, obras e instala- competências da Polícia Rodoviária Federal.
ções não autorizadas; Com efeito, ao mencionar esse organismo,
VIII - executar medidas de segurança, em seu art. 144, ao dispor sobre a segurança
planejamento e escoltas nos desloca- pública, a Constituição Federal promulgada em
mentos do Presidente da República, 1988 o fez dentro do seguinte contexto adja-
Ministros de Estado, Chefes de Estados cente:
e diplomatas estrangeiros e outras auto- “Art. 144. A segurança pública, dever
ridades, quando necessário, e sob a do Estado, direito e responsabilidade de
coordenação do órgão competente; todos, é exercida para a preservação da
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ordem pública e da incolumidade das de defesa civil.
pessoas e do patrimônio, através dos § 6º - As polícias militares e corpos
seguintes órgãos: de bombeiros militares, forças auxiliares
I - polícia federal; e reserva do Exército, subordinam-se,
juntamente com as polícias civis, aos
II - polícia rodoviária federal; Governadores dos Estados, do Distrito
III - polícia ferroviária federal; Federal e dos Territórios.
IV - polícias civis;
§ 7º - A lei disciplinará a organização
V - polícias militares e corpos de e o funcionamento dos órgãos respon-
bombeiros militares. sáveis pela segurança pública, de
§ 1º - A polícia federal, instituída por maneira a garantir a eficiência de suas
lei como órgão permanente estruturado atividades.
em carreira, destina-se a: § 8º - Os Municípios poderão consti-
I - apurar infrações penais contra a tuir guardas municipais destinadas à
ordem política e social ou em detrimento proteção de seus bens, serviços e insta-
de bens, serviços e interesses da União lações, conforme dispuser a lei”.
ou de suas entidades autárquicas e A simples leitura desse conjunto de dispo-
empresas públicas, assim como outras sitivos já revela uma heterogeneidade entre as
infrações cuja prática tenha repercussão diversas entidades ligadas à área da segurança
interestadual ou internacional e exija pública. Algumas delas exercem atividade
repressão uniforme, segundo se dispuser policial propriamente dita, em sentido estrito,
em lei; enquanto outras são destinadas a prestar apenas
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito serviços auxiliares à segurança pública.
de entorpecentes e drogas afins, o Mais evidente ainda é a absoluta similitude
contrabando e o descaminho, sem preju- entre a Polícia Rodoviária e a Polícia Ferro-
viária federais, ambas destinadas a executar o
ízo da ação fazendária e de outros órgãos “patrulhamento ostensivo” nas respectivas
públicos nas respectivas áreas de compe- áreas. Não se lhes deu (pelo menos expressa-
tência; mente) competências propriamente “policiais”,
III - exercer as funções de polícia no sentido de exercício de atividades asseme-
marítima, aérea e de fronteiras; lhadas às das outras polícias mencionadas nesse
IV - exercer, com exclusividade, as mesmo contexto.
funções de polícia judiciária da União. Tendo a Constituição restringido a compe-
§ 2º - A polícia rodoviária federal, tência da Polícia Rodoviária Federal ao
órgão permanente, estruturado em “patrulhamento ostensivo”, cabe agora exami-
carreira, destina-se, na forma da lei, ao nar o disposto nesse § 2º supratranscrito, para
patrulhamento ostensivo das rodovias saber se ele autoriza o legislador ordinário a
federais. contemplar esse organismo com todas aquelas
§ 3º - A polícia ferroviária federal, atribuições acima referidas.
órgão permanente, estruturado em
carreira, destina-se, na forma da lei, ao 3. Interpretação das normas
patrulhamento ostensivo das ferrovias constitucionais
federais.
Antes de se procurar identificar o que o texto
§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por constitucional teria querido dizer ao mencionar
delegados de polícia de carreira, incum- o vocábulo patrulhamento, cabe examinar qual
bem, ressalvada a competência da União, o sentido desse palavra na linguagem comum,
as funções de polícia judiciária e a registrada nos dicionários.
apuração de infrações penais, exceto as
militares. No Brasil, o consagrado Aurélio Buarque
de Hollanda Ferreira se refere a “patrulha”
§ 5º - Às polícias militares cabem a como uma “ronda de soldados”. Em Portugal,
polícia ostensiva e a preservação da Rodrigo Fontinha, em seu Novo Dicionário
ordem pública; aos corpos de bombeiros Etimológico da Língua Portuguesa, menciona
militares, além das atribuições definidas “patrulha” como “grupo de soldados ou de
em lei, incumbe a execução de atividades polícias, encarregados de fazer rondas, durante
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a noite, para defesa dos cidadãos pacíficos”, “A Constituição é a lei suprema do
mencionando o verbo patrulhar como “guar- país; contra a sua letra, ou espírito, não
necer de patrulhas; vigiar; rondar”. prevalecem resoluções dos poderes
No campo do Direito, o famoso Vocabulário federais, constituições, decretos ou
Jurídico de Plácido e Silva conceitua “patrulha” sentenças federais, nem tratados, ou
nestes termos: quaisquer outros atos diplomáticos”.
Portanto, vamos diretamente ao texto
“Derivado do espanhol patrulla, na constitucional, sem perder de vista que as
terminologia militar designa o grupo de normas nunca podem ser examinadas isolada-
soldados ou de homens armados, sob o mente, pois não se pode conhecer o Direito
comando de militar mais graduado ou levando em conta uma norma isolada, apartada
de uma pessoa, com o encargo de exercer
o policiamento de uma cidade, ou de do sistema ao qual pertence, mas também sem
executar qualquer outra missão. Exten- deixar de considerar que cada norma isolada
sivamente, porém, é empregado para também é importante, também comporta inter-
designar o próprio policiamento, que pretação direta e imediata quando seu sentido
melhor se diria patrulhamento, ou a ronda, puder ser assim captado.
executada pelo grupo de soldados”. No campo específico da interpretação de
Esses registros correspondem efetivamente dispositivos constitucionais, cabe atentar para
à idéia, presente no senso comum, de exercer a a importantíssima assertiva feita com excep-
vigilância, com o propósito de manter a ordem cional ênfase por Antonino Pensovecchio Li
e a segurança. Em sua máxima extensão, o Bassi (L’interpretazione delle Norme Costitu-
conceito de patrulhamento chega perto de zionali. Milano : Giuffrè, 1972. p. 44 e sgts.)
policiamento, mas não vai além disso e não que, após ressaltar a importância do método
perde seu núcleo central de observar, cuidar, teleológico, que vivifica a atividade interpreta-
zelar ou vigiar. tiva, assim como do método lógico-sistemático,
Obviamente, quem patrulha não o faz para onde se consideram as normas, não isolada-
simplesmente contemplar os acontecimentos, mente, mas em seu relacionamento recíproco,
e, por isso, deve deter poderes para cumprir diz (e isto é de extrema importância para o tema
sua função de evitar a ruptura da ordem pública em estudo), que não se pode simplesmente
e zelar pela segurança de pessoas e bens. Porém, desprezar a interpretação da norma isolada.
nada mais que isso. Demonstrado aqui, até mesmo ad nauseam,
Cumpre agora, com observância das regras nosso respeito pelo método lógico-sistemático,
de hermenêutica, procurar saber qual teria sido resta considerar que isso não nos levará a
o propósito do constituinte ao dizer que a procurar obscurecer as disposições cristalinas
Polícia Rodoviária Federal “destina-se, na nem a procurar retirar, por vias indiretas,
forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das conclusões contrárias às afirmações categori-
rodovias federais”. camente contidas nas normas isoladas. Cons-
Com esse propósito, em primeiro lugar, é cientes da importância do sistema e de seus
preciso afastar qualquer cogitação a respeito princípios informadores, nem por isso despre-
de uma eventual influência do Decreto nº 1.655/ zamos o valor intrínseco de cada norma.
95 sobre o texto constitucional ou seu entendi- Essa orientação está em perfeita confor-
mento. Obviamente, não se interpreta a midade com os ensinamentos de Carlos
Constituição à luz de normas subalternas. Nem Maximiliano (op. cit., p. 111), no seguinte
se pense que o decreto regulamentar possa sentido:
condicionar a lei disciplinadora do preceito “Embora seja verdadeira a máxima
contido no texto constitucional. atribuída ao apóstolo São Paulo – a letra
A interpretação constitucional é diferente mata, o espírito vivifica –, nem por isso
da interpretação das normas ordinárias e deve é menos certo caber ao juiz afastar-se das
partir do próprio texto supremo, que não é expressões claras da lei, somente quando
condicionado por coisa alguma, mas que con- ficar evidenciado ser isso indispensável
diciona todos os outros textos legais de menor para atingir a verdade em sua plenitude.
hierarquia, conforme ensina Carlos Maximiliano O abandono da fórmula explícita consti-
(Hermenêutica e aplicação do Direito, 9. ed. tui um perigo para a certeza do Direito,
Forense, 1984. p. 314): a segurança jurídica; por isso é só
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justificável em face de mal maior, com- União, dos Estados, do Distrito Federal
provado: o de uma solução contrária ao e dos Municípios, que têm por fina-
espírito dos dispositivos, examinados em lidade o exercício das atividades de
conjunto. As audácias do hermeneuta planejamento, administração, normati-
não podem ir a ponto de substituir, de zação, pesquisa, registro e licenciamento
fato, a norma por outra”. de veículos, formação, habilitação e reci-
No caso em exame, não se pode ignorar que clagem de condutores, educação, enge-
o texto constitucional, não sem razão, ao se nharia, operação do sistema viário, poli-
referir à Polícia Rodoviária Federal, utilizou a ciamento, fiscalização, julgamento de
expressão patrulhamento, quando poderia ter-se infrações e de recursos e aplicação de
valido de qualquer outro, mais abrangente, caso penalidades”.
efetivamente desejasse dar a esse organismo Essas atividades todas estão distribuídas
uma dimensão maior. pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema,
Quando a Constituição Federal, no § 2º, do que estão logo adiante relacionadas:
art. 144, falou em “patrulhamento ostensivo das “Art. 7º. Compõem o Sistema Nacio-
rodovias”, era isso mesmo que estava querendo nal de Trânsito os seguintes órgãos e
dizer, conferindo à Polícia Rodoviária Federal entidades:
o poder-dever de exercer a vigilância, com o I - o Conselho Nacional de Trânsito
propósito de manter a ordem e a segurança, (Contran), coordenador do Sistema e
conferindo-lhe poderes para cumprir sua função órgãos máximo normativo e consultivo;
de evitar a ruptura da ordem pública e zelar II - os Conselhos Estaduais de Trân-
pela segurança de pessoas e bens. Mas nada sito (Cetran) e o Conselho de Trânsito
mais que isso. do Distrito Federal (Contrandife), órgãos
Assim sendo, não pode o legislador ordi- normativos, consultivos e coordenadores;
nário desobedecer o comando superior consti- III - os órgãos e entidades executivos
tucional, atribuindo à Polícia Rodoviária de trânsito da União, dos Estados, do
Federal competências muito maiores do que as Distrito Federal e dos Municípios;
que lhe foram dadas pela Constituição.
IV - os órgãos e entidades executivos
O campo de atribuições de qualquer órgão, rodoviários da União, dos Estados, do
entidade ou agente é sempre delimitado pela Distrito Federal e dos Municípios;
regra de competência. Quando a própria Cons-
tituição já fixou a competência, norma alguma V - a Polícia Rodoviária Federal;
pode aumentá-la ou diminuí-la. O mandamento VI - as Polícias Militares dos Estados
constitucional deve ser fielmente obedecido. e do Distrito Federal; e
VII - As Juntas Administrativas de
4. O contexto do dispositivo em exame Recursos de Infrações (Jari)”.
Note-se que há uma clara distinção entre
A interpretação do texto constitucional os “órgãos e entidades executivos rodoviários”
acima procedida é, de certa forma, reforçada (inciso IV) e a Polícia Rodoviária (inciso V).
pela análise do conjunto do Projeto de Lei em
exame. Esta não é órgão ou entidade executiva
Com efeito, enquanto a localização e a rodoviária.
configuração da Polícia Rodoviária Federal Não sendo órgão ou entidade executiva
dentro do Sistema Nacional de Trânsito estão rodoviária, não pode exercer as competências
em conformidade com a Constituição, o que o mesmo texto reserva para quem tem tal
disposto no art. 20 dele discrepa, aparecendo enquadramento:
como algo aberrante, desconectado do contexto “Art. 21. Compete aos órgãos e enti-
e com ele conflitante. dades executivos rodoviários da União,
Sem dúvida, a Polícia Rodoviária Federal dos Estados, do Distrito Federal e dos
está contida na definição que o Projeto dá ao Municípios, no âmbito de sua circuns-
crição:
Sistema Nacional de Trânsito:
I - cumprir e fazer cumprir a legisla-
“Art. 5º. O Sistema Nacional de Trân- ção e as normas de trânsito, no âmbito
sito é o conjunto de órgãos e entidades da de suas respectivas atribuições;
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II - planejar, projetar, regulamentar ridade das transferências de veículos e
e operar o trânsito de veículos, de pedes- de prontuários de condutores de uma
tres, e de animais, e promover o desen- para outra unidade da Federação;
volvimento da circulação e da segurança XIV - fiscalizar o nível de emissão
de ciclistas; de poluentes e ruído produzidos pelos
III - implantar, manter e operar o veículos automotores ou pela sua carga,
sistema de sinalização, os dispositivos e de acordo com o estabelecido no art. 67,
os equipamentos de controle viário; além de dar apoio às ações específicas
IV - coletar dados e elaborar estudos dos órgãos ambientais locais quando
sobre os acidentes de trânsito e suas solicitado;
causas; XV - vistoriar veículos que neces-
V - estabelecer, em conjunto com os sitam de autorização especial para tran-
órgãos de policiamento ostensivo de trân- sitar e estabelecer os requisitos técnicos
sito, as respectivas diretrizes para o a serem observados para a circulação
policiamento ostensivo de trânsito; desses veículos.
VI - executar a fiscalização de trân- Parágrafo único. Excetuam-se da
sito, autuar, aplicar as penalidades de competência do órgão rodoviário da União
advertência, por escrito, e ainda as multas as atribuições constantes do inciso VI”.
e medidas administrativas cabíveis, noti- Como se pode observar pela simples com-
ficando os infratores e arrecadando as paração entre os diversos incisos dos arts. 20 e
multas que aplicar. 21, há uma clara superposição de atribuições,
VII - arrecadar valores provenientes o que, se for mantido, ensejará uma infinidade
de estada e remoção de veículos e objetos, de conflitos de competências, gerando disputas,
e escolta de veículos de cargas superdi- insegurança, incerteza e afetando a qualidade
mensionadas ou perigosas; e eficiência de todo o Sistema.
VIII - credenciar os serviços de Do ponto de vista técnico, cabe eliminar tais
escolta, fiscalizar e adotar medidas de conflitos. Do ponto de vista jurídico-constitu-
segurança relativas aos serviços de cional, essa eliminação deve ser feita retiran-
renovação de veículos, escolta e trans- do-se do rol de atribuições da Polícia Rodoviária
porte de carga indivisível; aquilo que a ela não pode competir, por força
IX - fiscalizar, autuar, aplicar as de sua configuração constitucional como orga-
penalidades e medidas administrativas nismo destinado exclusivamente a exercer o
cabíveis, relativas a infrações por excesso patrulhamento ostensivo das rodovias federais.
de peso, dimensões e lotação dos veículos, Não se diga que o parágrafo único do artigo
bem como notificar e arrecadar as multas supratranscrito teria eliminado uma superpo-
que aplicar; sição. Talvez tenha sido redigido com essa
X - fiscalizar o cumprimento da intenção, mas o fato é que acabou atribuindo
norma contida no art. 96, aplicando as competências de autoridade de trânsito a quem
penalidades e arrecadando as multas nele não pode ser senão agente da autoridade de
previstas; trânsito.
XI - implementar as medidas da Com efeito, a leitura dos conceitos e defini-
Política Nacional de Trânsito e do ções constantes do Anexo I do Projeto de Lei
Programa Nacional de Trânsito; em exame mostra que “autoridade de trânsito”
XII - promover e participar de é o dirigente máximo do órgão ou entidade
projetos e programas de educação e executivo, e, conforme já foi dito, a Polícia
segurança, de acordo com as diretrizes Rodoviária não tem essa posição.
estabelecidas pelo Contran; Na verdade, a Polícia Rodoviária Federal
XIII - integrar-se a outros órgãos e enquadra-se perfeitamente no conceito de
entidades do Sistema Nacional de Trân- “agente da autoridade de trânsito”, habilitada
sito para fins de arrecadação e compen- para exercer “atividades de fiscalização,
sação de multas impostas na área de sua operação, policiamento ostensivo de trânsito ou
competência, com vistas à unificação do patrulhamento”.
licenciamento, à simplificação e à cele- Finalmente, cabe observar que o amplís-
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simo rol de competência do art. 20 não se sinteticamente, que o disposto nos incisos do
coaduna com o próprio “conceito de policia- art. 20, tal como se encontra, é claramente
mento ostensivo de trânsito”, contido no insconstitucional.
Anexo do Projeto de Lei em exame e que Na verdade, as atribuições constitucional-
tem a seguinte dicção: mente conferidas à Polícia Rodoviária Federal
“É a função exercida pelas Policias correspondem ao que consta do inciso II.
Militares e a Polícia Rodoviária Federal
com o objetivo de prevenir e reprimir atos Nada impede, porém, que se deixem mais
relacionados com a segurança pública e claramente fixadas, em outros incisos, algumas
de garantir que as normas relativas à outras atribuições, acessórias, instrumentais ou
segurança de trânsito sejam obedecidas, derivadas do que consta do inciso II, mas nada
assegurando a livre circulação e evitando mais que isso.
acidentes”. Por essa mesma linha de raciocínio, é
Nem mesmo a substituição do vocábulo forçoso concluir que o parágrafo único do art.
patrulhamento, usado pelo texto constitucional, 21 também não pode subsistir, pois sua manu-
pela palavra policiamento, constante da defi- tenção causaria um vazio legal no âmbito
nição acima transcrita, pode justificar o escan- federal, já que ninguém seria competente para
carado alargamento feito pelo art. 20 do Projeto exercer as atribuições ali referidas.
em exame. Manter a redação tal como se encontra, será
o mesmo que deflagrar a propositura de ações
5. Conclusão diretas de inconstitucionalidade, sobrecarregando
ainda mais o já demasiadamente sobrecarregado
Em face do exposto, resta apenas concluir, Supremo Tribunal Federal.

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