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Brant Minayo-Gomez. A Transformação Do Sofrimento em Adoecimento - Do Nascimento Da Clínica À Psicodinâmica Do Trabalho (2004) PDF
Brant Minayo-Gomez. A Transformação Do Sofrimento em Adoecimento - Do Nascimento Da Clínica À Psicodinâmica Do Trabalho (2004) PDF
A transformação do sofrimento
ARTIGO ARTICLE
em adoecimento: do nascimento da clínica
à psicodinâmica do trabalho
Abstract Starting from the conceptual differen- Resumo Tem-se como pressuposto que o proces-
tiation of suffering, pain and illness, we tried to so de transformação do sofrimento em adoeci-
find, through previous literary works and inter- mento, na gestão do trabalho, está relacionado
views with workers and managers, elements to não apenas com a produção e reprodução de dis-
demonstrate the existence of a transformation cursos originários da medicina científica, mas
process that turns suffering into illness in the também com um conjunto de práticas sustenta-
work management area. This process is not only das, na atualidade, pela medicina ocupacional.
related with the production and reproduction of Partindo da diferenciação conceitual entre sofri-
discourses originally from the scientific medicine, mento, dor e adoecimento, buscou-se na literatu-
but also with a set of practices supported, in the ra e em entrevistas com trabalhadores e gestores
present time, by the occupational medicine. The elementos para demonstrar a existência deste pro-
evidences of our research point to the attempt of cesso. Constatou-se uma tentativa de silencia-
silencing this suffering and to the existence of an mento do sofrimento e uma cultura da promoção
illness promotion culture in the company space. do adoecimento no espaço da empresa, envolven-
This situation involves workers, health profession- do trabalhadores, profissionais da saúde e os ges-
als, and managers with the complicity of the fam- tores com a cumplicidade de famílias de trabalha-
ilies whose workers are identified as patients. dores identificados como pacientes. No entanto,
However, some cases have shown resistance to this alguns casos oferecem resistência ao processo,
process, which constitutes a real counter-illness constituindo um verdadeiro movimento do con-
movement. After these elements we came to the tra-adoecimento. Conclui-se que, nesses dois sé-
conclusion that, during these two centuries of sci- culos de “medicina científica”, embora houvesse
entific medicine, despite the desire of changing desejo de mudança, renovação das práticas e in-
and renewing practices and investments, iatro- vestimentos das mais diversas ordens, atos iatro-
genic acts and violence still have been done in the gênicos e violências foram e são cometidos ainda
1 Centro de Estudo name of science, of health, and of workers well- em nome da ciência, da saúde e do bem-estar dos
da Saúde do Trabalhador being. trabalhadores.
e Ecologia Humana,
Escola Nacional de Saúde Key words Psychic suffering, Worker’s health, Palavras-chave Sofrimento psíquico, Saúde do
Pública, Fiocruz. Psychodynamic of work, Occupational health trabalhador, Psicodinâmica do trabalho, Saúde
Av. Leopoldo Bulhões 1480, ocupacional
Manguinhos, 21041-410,
Rio de Janeiro RJ.
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Brant, L. C. & Minayo, C. G.
riências que se diferenciam e que são vivencia- go percurso do “poder disciplinar” que foi
das, espacialmente, em diferentes regiões. aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão
Qualquer que seja a denominação e a localiza- dos homens. A partir do século 18, procurou-
ção dessa dimensão humana, no físico ou na se investigar de que maneira os gestos são fei-
alma, pouco importa; o interessante é perceber tos, qual o mais eficaz, rápido e mais ajustado,
a existência de uma diferença que já está assi- conforme descrição de Foucault (1979). Na
nalada, no mínimo, no plano da linguagem. gestão do trabalho pós-industrial, a disciplina
Portanto, sofrimento e dor não podem ser como técnica de exercício do poder tem por
reduzidos à dimensão corporal ou lingüística função não mais controlar os gestos e os cor-
como propõe Ricouer (1994) quando afirma pos, mas o pensamento, a criação e as manifes-
que o termo dor está destinado às manifesta- tações do sofrimento. Os mecanismos de ges-
ções que têm lugar em órgãos específicos do tão disciplinar do corpo, que exigiam uma acir-
corpo ou no corpo como um todo. Ou seja, a rada vigilância de olhares sobre os trabalhado-
dor estaria marcada por um solipsismo que as- res, nas primeiras décadas do século 20, torna-
sinala a prevalência da realidade imaginária do ram-se incompatíveis com a moderna organi-
eu, portanto, não implicaria a dimensão da al- zação. Na contemporaneidade, já não faz senti-
teridade, reflexividade e linguagem, como acon- do que o indivíduo seja observado e cronome-
tece no sofrimento. Nesses termos, a questão trado regularmente. No entanto, a necessidade
exige um cuidadoso estudo de modo que se de controlar parece exigir medidas disciplina-
possa avançar a compreensão do ser no mundo res cada vez mais refinadas. Como acontece,
do trabalho, para além do corpo e da lingua- por exemplo, com o processo saúde-doença-
gem. Diferenciação fundamental quando pen- cuidado, que, no interior das fábricas pós-in-
samos na existência de um processo de trans- dustriais, tornou-se uma dessas medidas. Em
formação do sofrimento em adoecimento nas conseqüência disso, observam-se sutis tentati-
empresas. Pois, em última instância, essa dife- vas de destituição do trabalhador da sua condi-
renciação pode definir pela permanência ou ção de sujeito, para transformá-lo em paciente.
afastamento do trabalhador; ou seja, em termos Processo esse fundado numa relação muito
de saúde ocupacional, ele está doente ou não? É singular, que envolve profissionais da saúde,
tudo que alguns médicos do trabalho definem; gestores, trabalhadores e alguns de seus fami-
o que constitui um enorme reducionismo do liares.
processo saúde-doença-cuidado. Compreender Ao reportarmo-nos ao século 19, é possível
a diferença entre sofrimento e dor e a sua arti- verificar, através das obras de Foucault (1998;
culação com o sujeito, como construto psicana- 1979) e Herzlicch & Pierret (1987), o início da
lítico, pode colaborar no grande desafio que é ruptura que se estabeleceu no saber médico e
estabelecer o diagnóstico diferencial entre os que transformou o sujeito em paciente. Com o
distúrbios osteo-musculares relacionados ao advento da medicina científica, novas formas
trabalho (DORT) e fibromialgia. E assim com- de conhecimento e novas práticas institucio-
preender que mesmo na ausência de um com- nais tornaram o paciente desvinculado do seu
prometimento neuromuscular, resultado dos sofrimento. Nessa época, para conhecer a “ver-
mais avançados exames de imagens, é possível a dade do fato patológico”, o médico precisou
existência da dor no sujeito. O que não signifi- abstrair o sujeito, pois sua disposição, tempera-
ca, necessariamente, manipulação histérica ou mento, fala, idade, modos de vida perturbavam
má-fé do trabalhador. Existe algo para além da a identificação da doença, segundo o desenho
doença ou da não-doença; e isso o médico ja- nosográfico preestabelecido. Com base em
mais poderá esquecer, sob pena de operar um uma formação mecanicista, o papel dessa lógi-
imenso reducionismo na sua prática e silenciar ca médica era neutralizar essas perturbações,
o sofrimento do trabalhador, adoecendo e es- manter o sujeito distante para que a configura-
tigmatizando-o. ção ideal da doença aparecesse aos olhos do
médico, no abismo que se instaurava entre eles.
Nessa nova racionalidade, o olhar clínico
Silenciando o sofrimento e promovendo foi dirigido para o corpo, representado como
o adoecimento: uma trajetória histórica lugar da doença. Houve um quase silenciamen-
to do paciente que, em vão, tentava falar de seu
A transformação do sofrimento em adoeci- sofrimento e daquilo que imaginava ser o seu
mento pode ser compreendida através do lon- mal. A doença foi retirada de sua metafísica da
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doentes para uma prática com não-doentes estranho diante do trabalhador. Este último,
implicava a mudança de um domínio circuns- mesmo sendo aquele que faz a demanda da in-
crito para o campo social como um todo. De- tervenção do profissional, é habitualmente um
nominado como prevenção, esse deslocamento “inocente”, pois desconhece os destinos que to-
tentava subordinar cidadãos sem demandas de mará o seu sofrimento manifestado.
cuidado aos critérios de cientificidade da prá-
tica médica, incutindo um ideal forjado, mui-
tas vezes, alhures à realidade do sujeito para re- O sofrimento para a psicodinâmica
ceber o que se julga melhor para ele (Costa, dejouriana
1989a).
No campo da “saúde mental”, o exercício da Interpretar determinadas manifestações do so-
prevenção pode ser considerado historicamen- frimento no trabalho como pecado, loucura,
te falido. No entanto, as noções de sujeito uni- preguiça, malandragem ou patologia depende
versal e de predição controlada do comporta- daquele que o diagnostica, de sua inserção em
mento – que sustentam as práticas preventivas determinados discursos, da utilização que faz
– permanecem firmes e continuam fundamen- do vocabulário disponível em sua época, da
tando teorias e intervenções nos campos da origem social do trabalhador diagnosticado e
saúde e do trabalho. Prevenção implica “pré- do seu capital social. A psicopatologia do tra-
dizer”, imaginariamente, a existência de uma balho, em meados do século 20, tentou fundar
doença no horizonte e dos mecanismos para uma clínica de afecções mentais que poderiam
evitá-la. Assim procedendo, a medicina fornece ser ocasionadas pelo trabalho. Assim, ela repro-
elementos lingüísticos para uma comunidade duzia o espírito da época, caracterizado por
nomear, com vocabulário médico, situações um corpo de conhecimentos extremamente
pertencentes ao seu universo cultural (Costa, dominado pelo organicismo que vivia, então, o
1989a). É nesse sentido que se pode entender o seu apogeu teórico. De forma semelhante, a pa-
encaminhamento de um trabalhador, que se tologia profissional somática, que gozava de
apresenta triste ou com medo, à assistente so- grande prestígio, influenciou as intervenções
cial, que por sua vez o conduz ao médico do sobre os danos físico-químico-biológicos dos
trabalho que o dirige, preventivamente, para o postos de trabalho. As investigações no campo
psiquiatra. Nossas observações indicam, como trabalho-saúde, naquela época, obedeciam a
prática mais comum, que esse sujeito receba o um modelo teórico causal, com vista a encon-
diagnóstico de depressão, de fobia ou paranóia, trar evidências entre doenças mentais e traba-
acompanhado de uma prescrição medicamen- lho. Essas observações, por sua vez, não trouxe-
tosa. Dessa forma, dimensões contingentes à ram os resultados esperados pelos psicopatolo-
existência humana vêm sendo diagnosticados gistas: destacar e caracterizar a doença mental
como transtornos psiquiátricos. específica originária da organização do traba-
Mesmo que na atualidade, nos encontremos lho (Dejours, 1994).
temporalmente distantes do ideal eugênico das Diante do fracasso dos modelos teóricos da
primeiras décadas do século 20, a história da psicofisiologia pavloviana e da patologia do
psiquiatria permanece exemplar. Ela sinaliza a trabalho para demonstrar a correlação entre
necessidade de conceder especial atenção ao pa- trabalho e doença mental, uma “nova psicopa-
pel dos contextos na produção de teorias e prá- tologia do trabalho” começou a se delinear na
ticas de atenção à saúde, de modo que não ve- França. Para o psiquiatra francês Christophe
nhamos a reproduzir, no interior das empresas, Dejours, um dos seus mentores, esse novo mo-
os erros e equívocos cometidos em nome da delo foi possível a partir do momento em que a
ciência e da saúde. Seguindo essa perspectiva, é normalidade foi considerada “enigma”, tornan-
necessário analisar a passagem da psicopatolo- do-se objeto de estudo. De acordo com essa
gia do trabalho para a psicodinâmica dejouria- nova orientação, as investigações não tiveram
na e as conseqüências da entrada do “espírito mais como direção as “doenças mentais”, mas
científico” nos mecanismos de sobrevivência as estratégias elaboradas pelos trabalhadores
organizados pelo conjunto dos trabalhadores. para enfrentar mentalmente a situação do tra-
O profissional da saúde, como portador de um balho. Iniciava-se assim, no começo dos anos
interesse disseminado em um discurso reco- 80, sob a influência da psicanálise, a psicodinâ-
nhecido e munido das prescrições dos códigos mica do trabalho, cujo objeto de estudo era o
de ética da sua profissão, não deixa de ser um sofrimento e as defesas contra a doença. Nessa
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Esse processo, entretanto, não acontece sem cilmente aceitam atrasos, principalmente, nos
resistências dos atores sociais envolvidos. A in- casos já tornados públicos de abuso do álcool.
subordinação ao imperativo organizacional da Sua mais árdua missão é a manutenção da dis-
transformação do sofrimento em adoecimento ciplina e o controle de horários, objetivos mais
leva à instituição de uma grande diversidade de importantes do que as metas de produtividade.
movimentos. Criam-se diversas alternativas de No entanto, chegar atrasado é tentar reivindi-
sobrevivência emocional e material no espaço car para si próprio o controle de um aspecto de
da fábrica, uma verdadeira cultura do contra- sua identidade e de seu autogoverno. É uma
afastamento por motivos médicos. A socializa- forma de se ver livre do tempo institucional, si-
ção dessas ações entre alguns trabalhadores tuação intolerável para uma empresa. Já, o gole
deixa entrever uma organização política míni- de álcool parece constituir-se uma estratégia
ma e um nível cultural desorganizado. Essa multifacetada de extraordinária importância
cultura, em franca contradição à lógica do para lidar com as condições do chão-de-fábri-
adoecimento, é capaz de abrigar e sustentar, em ca. É usado, geralmente, para lidar com o tédio,
seu interior, atores que fazem um duplo movi- o medo e o cansaço. Serve para enfrentar situa-
mento de subordinação e insubordinação para ções difíceis e problemas, um “verdadeiro re-
driblar essa forma de exclusão. Embora essa médio” para quase tudo, segundo a opinião do
cultura possa garantir a permanência no traba- citado trabalhador.
lho, não é o suficientemente capaz de evitar o É possível detectar estratégias de resistên-
estigma de portador de uma doença. O próprio cia, mesmo em situações em que o trabalhador
movimento de permanecer, principalmente en- se encontra bastante fragilizado. É o caso de
tre aqueles que manifestam seu sofrimento, é uma atendente comercial com diagnóstico de
interpretado como um ato insano. Para uma “distúrbio de estresse pós-traumático” por ma-
melhor observação desse movimento, nada nifestar ansiedade, após ter sofrido dois assal-
mais apropriado do que deixar os próprios tra- tos em seu posto de atendimento, no intervalo
balhadores falarem. de seis meses, e encontrar dificuldades em rea-
Os serviços de saúde na empresa, a veicu- daptar-se. A convivência com os colegas a faz
lação do discurso médico e a existência do hos- constatar, rapidamente, que vinha sofrendo
pital, como medidas disciplinares, parecem não discriminação por apresentar um comporta-
ser suficientes para que a identidade do traba- mento diferenciado. No entanto, ela não perce-
lhador doente possa se configurar. É necessário be que a manifestação do seu sofrimento revela
construir uma rede de comunicação, envolven- a periculosidade da sua função e quebra as es-
do profissionais da saúde, gestores e familiares tratégias defensivas dos colegas que tentam mi-
do trabalhador que, em comum acordo, deci- nimizar a percepção do sofrimento. A sua an-
dem num determinado momento o afastamen- gústia lhes faz lembrar aquilo que gostaria de
to ou a hospitalização. É o que pode ser consta- esquecer e revela um perigo real. Daí a pressão
tado na entrevista com Riovaldo, de 29 anos, para se igualar ao conjunto, na forma de lidar
trabalhador de chão-de-fábrica: A minha inter- com as ameaças a que o cargo a expõe. Por não
nação foi elaborada pelo meu chefe, que ligou pa- conter a própria apreensão, como os demais
ra a assistente social, que chamou minha famí- parecem conseguir, foi obrigada a se afastar,
lia, dizendo que era preciso me hospitalizar. Eles novamente, do seu posto. O grupo profissional
decidiram me internar. Eu não queria, estava armado da ideologia defensiva elimina aquele
com medo. Eu estava bem, apenas bebendo um que não consegue suportar o risco (Dejours,
pouco mais e chegando atrasado. 1992). Entretanto, a nossa entrevistada procura
Os gestores – extrapolando os objetivos resistir às situações que podem transformá-la
formais da organização referentes à gestão do em doente. Sua consciência crítica e sua forma-
trabalho – estabelecem elos com os profissio- ção universitária oferecem alguns subsídios,
nais da saúde para capturar o trabalhador, nu- como é possível constatar quando afirma: Os
ma complexa trama em torno do processo tra- colegas de trabalho resistiram. Até me falam que
balho-doença-cuidado. Sem o apoio familiar, eu devia esquecer tudo. Fazer como eles, traba-
essa estratégia disciplinar não seria possível. A lhar. É terrível tomar antidepressivo. Passa de
família, uma vez acionada e sentindo-se impo- uma questão de trabalho para ser pessoal. Todo
tente diante das manifestações do sofrimento mundo te pára na rua e pergunta se você melho-
do trabalhador, incorpora a ordem médica e rou. As pessoas te enxergam como doente mental.
autoriza a hospitalização. Os supervisores difi- (M., 22 anos, atendente comercial).
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rior. Essa prática permite a figuração do sofri- ção asséptica, sem verdadeiro diálogo. A medi-
mento, mesmo em situações marcadas pela ri- cina para ser científica tentou anular o que há
gidez, como é o caso da reunião com a direto- de sujeito no paciente e no profissional, bus-
ria regional. Segundo esse entrevistado, nin- cando transformá-los, respectivamente, em ob-
guém acredita em sua timidez e dificuldade de jeto e instrumento.
relacionamento, que tanto o fazem sofrer, exa- Partir do nascimento da clínica para tentar
tamente, devido às brincadeiras. É necessária assinalar pontos que poderiam dar sustentação
uma habilidade transgressiva e um certo know- à tese da transformação do sofrimento em
how para expressar os sentimentos dessa for- adoecimento constituiu uma arriscada e ousada
ma. A risada, a conversa e o comportamento de tarefa para um artigo. Apenas limitamo-nos a
pilhagem são bastante eficazes, mas não total- apontar algumas constatações. De forma seme-
mente, para vencer o tédio – um tédio aumenta- lhante aos colegas do século 19, na atualidade,
do por seu próprio êxito (Willis, 1991). determinados profissionais da saúde parecem
não perceber que seus atos contribuem para a
produção da identidade do sujeito doente. No
Considerações finais entanto, assinalar pontos da história parecia in-
suficiente. Ter dado voz aos trabalhadores de-
Quando nos perguntávamos pelos elementos monstrou ser um recurso apropriado. Permitiu
que compõem o processo de transformação do verificar que a articulação entre profissionais da
sofrimento em adoecimento, uma de nossas hi- saúde e gestores para a manutenção da ordem
póteses era de que a produção e a reprodução no espaço da empresa, através do adoecimento,
de determinados discursos no campo da saúde não se faz sem a cumplicidade da família. E que
ocupavam um importante lugar. Muitos desses a “brincadeira”, por exemplo, constitui uma es-
discursos, sustentados por reconhecidos inte- tratégia para expressar o sofrimento sem correr
lectuais e respeitados profissionais do campo os riscos do destino do adoecimento.
da saúde, não são apenas produtos, mas eles A estratégia utilizada permitiu reconhecer
próprios também produzem uma cultura: a do que, no espaço da fábrica pós-industrial, não
sujeito doente. Não obstante, a compreensão parece haver lugar para o sofrimento. A tristeza
essencialmente lingüística desse processo não é e o medo, ao não serem reconhecidos como di-
suficiente. A reprodução do discurso do adoe- mensões próprias do ato de viver, são transfor-
cimento precisa de se “imaginarizar” em práti- mados em depressão e fobia. Numa cultura
cas reconhecidas socialmente, como os exames, marcada pela imediaticidade, o sofrimento é
a medicalização e a internação hospitalar. visto como um sinal de fraqueza. Entendemos
Ao longo da trajetória que vai do nasci- que não é tanto a doença, mas sim o processo
mento da clínica à psicodinâmica dejouriana, do adoecimento que abre maiores possibilida-
embora houvesse um desejo de mudança, de des de afastamento do trabalho. O adoecimen-
renovação dessas práticas e empenho para to só é possível devido à existência de um dis-
acertar, cometeram-se sérias distorções, violên- curso e uma prática que afirmam: “você está
cias e exclusões, em nome da ciência, da saúde doente”; como se a presença da doença e do ser
e do bem-estar dos trabalhadores. doente pertencessem à mesma categoria. As-
Nesses dois séculos da “medicina científi- sim, entre o visível e o enunciável da relação do
ca”, a fala e a memória do paciente se tornaram médico com seu paciente, é preciso perguntar:
objetos de interesse apenas como conjunto de e o que se fala se dá a partir do que se vê? Ou se
dados informativos para elaboração de diag- enxerga apenas o que já existe como discurso?
nósticos, jamais como registros vivos de uma Se assim for, não se vê, reconhece-se. Aquilo
história de trabalho. Para o olhar clínico, a his- que se fala ao paciente sobre a sua condição se
tória não está no sujeito, mas em seus prontuá- baseia no que se reconhece nele. Logo, é possí-
rios, basta consultá-los. Da mesma forma, é su- vel deduzir que o médico apenas vê ilusoria-
ficiente lembrar a seqüência dos sintomas, o mente o trabalhador, pois a doença diagnosti-
aparecimento de seus caracteres atuais, as me- cada não está propriamente nele, tem origem
dicações já aplicadas e as intervenções médicas em outro lugar: na instituição do discurso mé-
sofridas. A palavra pela qual o sujeito se faz dico que conduz à construção de trabalhadores
presença no mundo não é relevante, pelo con- doentes. Sendo assim, a quem pode interessar a
trário, pode atrapalhar. O olhar sem a escuta produção de trabalhadores incapacitados insti-
faz da relação médico-paciente uma investiga- tucionalmente?
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