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O que é arte?

Três teorias sobre um problema central da estética


Aires Almeida

Introdução

Este ensaio apresenta aos estudantes de filosofia os problemas teorias e argumentos da


estética, o que será feito da seguinte maneira:

1. Em primeiro lugar, procurarei mostrar que a estética é uma disciplina


heterogênea, a qual tem sido encarada como teoria do belo, como teoria do
gosto e como filosofia da arte. Direi muito rapidamente em que consiste cada
uma dessas coisas e orientarei o seu interesse para a estética enquanto filosof ia
da arte, apresentando razões para isso.
2. Seguidamente, apresentarei as principais noções de base necessárias à
discussão crítica dos problemas, teorias e argumentos da filosofia da arte.
3. Finalmente, apresentarei criticamente, mas de forma abreviada, algumas teorias
e argumentos acerca do problema da definição de arte. A escolha das teorias
tem por base o seu carácter intuitivo e a convicção de que traduzem de maneira
organizada o que os alunos pensam de maneira desorganizada. Essas teorias
são as designadas teorias essencialistas: teoria da imitação, teoria da expressão
e teoria formalista.

1. O que é a estética?

O ramo da filosofia a que se dá o nome de «estética» inclui um conjunto de conceitos e


de problemas tão variado que, aos olhos daquele que se inicia no seu estudo, pode
parecer uma matéria demasiado dispersa e inacessível. Essa primeira impressão é
compreensível, mas ultrapassável. Uma maneira de desfazer tal impressão é começar
por esclarecer que a estética é a disciplina filosófica que se ocupa dos problemas,
teorias e argumentos acerca da arte. A estética é, portanto, o mesmo que f ilosof ia da
arte.

Mas há um problema com esta forma de apresentar a estética: o termo «estét ica» não
tem sido sempre utilizado nesse sentido. E isso não ocorre apenas em relação ao uso
comum da palavra «estética»; ocorre também no interior da própria tradição filosófica.

Na tentativa de desfazer essa dificuldade, a estética é muitas vezes apresentada como a


disciplina filosófica que se ocupa dos problemas e dos conceitos que utilizamos quando
nos referimos a objectos estéticos. Só que isso pouco adianta se não soubermos
antes o que se entende por «objectos estéticos». Podemos, contudo, acrescentar que os
objectos estéticos são os objectos que provocam em nós uma experiê nc ia e sté tica .
Mas, uma vez mais, ficamos insatisfeitos, pois teremos agora de saber o que é uma
experiência estética. Resta-nos insistir e perguntar: «O que é uma experiência
estética?» Uma resposta possível, mas sem ser circular ― sem voltar ao princípio e
afirmar que uma experiência estética é o que resulta da contemplação de objectos
estéticos ―, é apresentar alguns exemplos daquilo que consideramos ser juízos
estéticos, isto é, juízos acerca de objectos estéticos e que, portanto, exprimem
experiências estéticas.

Eis alguns exemplos de frases que habitualmente proferimos e que qualquer pessoa
estaria disposta a reconhecer que exprimem juízos estéticos:

F1: «Aquela casa é bonita»


F2: «O vale do Douro é belo»
F3: «O nascer do dia naquela amena manhã de Maio no Gerês com o cheiro a
terra molhada e os pássaros a chilrear foi sublime»
F4: «A decoração desta montra está com muito bom gosto»
F5: «O último andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven é emocionante»
F6: «O quadro Mulher-cão de Paula Rego é uma verdadeira obra-prima»
F7: «O livro Ulisses de James Joyce é uma obra complexa»

Estas frases parecem trazer de volta a impressão inicial de que os problemas da estética
são heterogéneos.

Assim, frases como F1 e F2 exprimem juízos acerca do que se considera ser bonit o ou
belo, mas nenhuma das outras o faz. Talvez F1 esteja também a referir alguma obra de
arte (se essa casa for, por exemplo, a casa da cascata, de Frank Lloyd Wright ) o que
não acontece com F2.

Por sua vez, frases como F4, F5, F6 e F7 exprimem a opinião de alguém acerca de algo
realizado por outras pessoas, mas enquanto as três últimas referem obras de art e, t al
não sucede com F4.

Quanto a F3 e F4 sabemos que não está em causa o conceito de belo nem se refere
qualquer obra de arte, mas apenas o que sentimos em relação a algo que simplesment e
nos agrada. Isso é também o que acontece em relação a F5, só que desta vez a
propósito de uma obra de arte.

O que podemos concluir daqui?

Se os nossos exemplos se limitassem a F1 e F2, então a estética seria entendida apenas


como teoria do belo, pois o problema parece consistir em saber o que significa «ser
belo».

Caso pensemos apenas em F3, F4 e F5, o que temos como problema já não é
rigorosamente o do significado de «ser belo» mas o de saber por que razão e sob que
condições acabamos por formar esse tipo de juízos, ou seja, juízos de gosto (nesta
perspectiva também F1 e F2 podem simplesmente ser tomados como juízos de gosto).

Finalmente, se pensarmos em F1 (pelo menos em certos casos, como o da referida casa


da cascata ), F5, F6 e F7, o problema com que nos deparamos não é o do belo, nem
sequer o do juízo de gosto, mas sim o problema de saber o que é e como se avalia uma
obra de arte.

Estamos, assim, em condições de concluir que a estética pode ser ― o que de rest o é
mostrado pela sua história ― uma de três coisas: teoria do belo, teoria do gosto ou
filosofia da arte.

Deveria também ficar claro que a teoria do belo não exclui completamente do seu
domínio muitas das obras de arte e a filosofia da arte não se desinteressa
completamente de algumas obras belas, tal como a teoria do gosto se pode aplicar quer
a objectos belos, quer a objectos de arte.

Mas não devemos confundir teoria do belo, teoria do gosto e filosofia da arte. Até
porque há obras de arte que não são belas, como o célebre Urinol, de Marcel Duchamp;
há obras de arte de que não gostamos, como acontece comigo em relação à música dos
Madredeus, aos quadros de Júlio Pomar, aos livros de José Saramago e aos filmes de
Manoel de Oliveira; há coisas belas que não são arte, como um pôr-do- sol nat ural e a
planície alentejana; e há coisas de que gostamos que não são arte nem são belas, como

a nossa caminha e melão com presunto.

Isto significa que os objectos que fazem parte da extensão dos c onceitos de belo, de
gosto e de arte não são os mesmos, pelo que não estamos a discutir os mesmos
problemas quando discutimos cada um desses conceitos.

Em que ficamos, então?

Se bem que a estética tenha sido entendida inicialmente como teoria do belo e só
depois como teoria do gosto, é como filosofia da arte que ela é actualmente entendida.
Vale a pena, ainda que brevemente, apresentar algumas razões para isso:

1. Em primeiro lugar, tanto a teoria do belo como a teoria do gosto dirigiram o seu
interesse de forma particular para as obras de arte. Para além do problema de
saber o que é o belo, um dos problemas colocados pela teoria do belo foi o da
distinção entre o belo natural e o belo artístico. No mesmo sent ido t ambém os
defensores da teoria do gosto procuraram compreender porque é que a arte está
na origem de grande parte dos nossos juízos de gosto.
2. Em segundo lugar, a teoria do belo e a teoria do gosto não conseguem dar conta
de muitos dos problemas que se colocam com o conceito de arte. É o c aso das
obras de arte que dificilmente podemos considerar belas e daquelas de que não
gostamos mas não podemos deixar de considerar obras de arte.
3. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da arte consegue levantar problemas
acerca dos conceitos de belo e de gosto que estes não conseguem levantar
acerca da arte. Isso torna-se evidente quando, por exemplo, os gostos e a
própria noção de belo se podem modificar à medida que contactamos com
diferentes obras de arte (a ideia de que a arte educa os gostos e influencia a
nossa própria noção de belo).

2. Estética e filosofia da arte

É, pois, como filosofia da arte que a partir de aqui irei falar de estética. A filosofia da
arte é, por sua vez, formada por um conjunto de problemas acerca da arte, para a
resolução dos quais concorrem diferentes teorias. Algumas dessas teorias e os
argumentos que as sustentam serão aqui discutidos, nomeadamente aquelas teorias
que têm um conteúdo aparentemente mais intuitivo, isto é, aquelas que colhem a
adesão espontânea de grande parte das pessoas que se defrontam pela primeira vez de
forma directa com o problema. São também as teorias mais antigas e que, embora com
um menor poder explicativo, gozam de uma popularidade assinalável.

2.1. O problema da definição de «obra de arte»

O primeiro problema que qualquer teoria da arte tem de enfrentar é o problema da


própria definição de «arte» ou de «obra de arte». Como podemos então definir «art e»?
Para o saber temos de perceber antes o que é definir algo.

Tipos de definições

Há quem defenda que definir um conceito é dizer em que consiste e caso não saibamos
defini-lo dessa maneira também não estamos em condições de o utilizar
adequadamente. Defender isto é o mesmo que dizer que há apenas uma forma de
definir conceitos, o que não é o caso. Ao contrário do que é vulgar pensar-se, não existe
apenas um tipo de definições. Sabemos utilizar perfeitamente o conceito «azul» sem
que, no entanto, o possamos definir dessa maneira. Não o saber definir dessa maneira
não é o mesmo que o não poder definir. Para compreendermos isso é preciso dist inguir
dois tipos de definições: definições explícitas e definições implícitas.

Diz-se que uma definição é explícita quando apresentamos as condições necessárias e


suficientes do conceito a definir. Mas o que são condições nec essárias e suf ic ient es?
Oferecemos uma condição necessária de X se apresentarmos uma propriedade que
qualquer objecto tem de ter para ser X. Por exemplo, se dissermos que uma mãe é
alguém que já teve filhos, estamos apenas a referir uma condição necessária para
alguém ser mãe (de facto ninguém pode ser mãe se não tiver tido pelo menos um
filho); só que isso não é suficiente, pois há pessoas que já tiveram filhos, como é o caso
dos homens com filhos, e que não são mães. A condição necessária aplica-se a todas as
mães, mas não tem de se aplicar só às mães. Temos, pois, de definir «mãe» de tal
maneira que a definição inclua as mães e só as mães, o que se faz indicando a condição
suficiente. Uma condição suficiente de X é uma característica t al que se um qualquer
objecto a possui, então esse objecto é X. Isso indica -nos que se trata de uma
característica de X e apenas de X. A condição suficiente de X não nos garant e, pois, a
inclusão de tudo o que queremos incluir na definição de X. Para dar um e xemplo, é
condição suficiente viver no Algarve para viver em Portugal, embora essa não seja uma
condição necessária. Afinal de contas, as pessoas que vivem no Minho t ambém vivem
em Portugal. Voltando ao meu primeiro exemplo, se quisermos dar uma definição
explícita de «mãe» teremos de dizer qualquer coisa como isto: «alguém é uma mãe se,
e somente se, é do sexo feminino e já teve filhos». Ser do sexo feminino e ter tido filhos
são em conjunto propriedades suficientes para alguém ser mãe; mas cada uma delas
em separado é apenas condição necessária.

Já numa definição implícita não temos de oferecer as condições necessárias e


suficientes de um conceito. Exigir, por exemplo, as condições necessárias e suf ic ient es
do conceito de azul, é fazer uma exigência que não pode ser satisfeita. Penso que o
mesmo acontece também com o conceito de filosofia. Daí o embaraço do prof essor de
filosofia quando o aluno lhe pede que defina a disciplina que lecciona. Significa isso que
não podemos definir tais conceitos? Se estivermos a pensar numa definição explíc it a, é
claro que não. Mas é perfeitamente possível dar uma definição implícita, que é o que
fazemos com as crianças quando lhes queremos ensinar as cores (e com os alunos
quando nos perguntam o que é a filosofia) e o que provavelmente teríamos de f azer se
nos aparecesse por aí algum extraterrestre interessado em compreender o que
dizemos. Assim, para dar uma definição de X, usamos esse conceito em situações
diferentes de tal modo que, ao fazê-lo, estamos a exemplificar as propriedades dos
objectos que com X queremos identificar. Diríamos, então, ao extraterrestre que o c éu
(poderíamos até apontar) é azul, que o mar é azul, que as camisolas do Belenenses são
azuis, e por aí em diante.

Definições e caracterizações
Mas acontece, ainda assim, que muitas das nossas definições implícitas nos deixam
insatisfeitos. Precisamos de saber algo mais acerca dos conceitos def inidos. Algo que
seja relevante para a compreensão do conceito e que nos informe acerca das
propriedades mais important es dos objectos que fazem parte da sua extensão. Para isso
é que servem as caracterizações, isto é, a apresentação das principais c arac teríst icas
daquilo que os conceitos referem. No caso da filosofia, o professor pode apontar
exemplos de problemas, teorias e argumentos filosóficos. Estará assim a dar uma
definição implícita de filosofia. Mas pode e deve ir mais longe, fazendo acompanhar a
sua definição de uma caracterização. Nesse sentido, poderá referir o que dist ingue os
problemas filosóficos dos problemas científicos e religiosos; as teorias filosóficas das
teorias científicas, religiosas e artísticas, etc. É claro que tal caracterização nunca irá ser
exaustiva nem pacífica, mas, concordemos ou não com ela, sempre clarifica aquilo que
se tem em mente quando se usa tal conceito.

Utilização classificativa e valorativa de «arte»

Retomando o problema da definição de «arte», quero desde já esclarecer que o t ermo


«arte» ou a expressão «obra de arte» são frequentemente usados em dois sentidos
diferentes: o sentido classificativo e o sentido valorativo. No primeiro destes dois
sentidos não se tem em conta se uma determinada obra de arte é boa ou não, mas
apenas se cai ou não debaixo da extensão do conceito de arte. Pretende -se apenas
estabelecer se um certo objec to deve ser classificado como obra de arte. Ao
classificarmos um veículo como automóvel nada dizemos acerca do seu valor como
automóvel. Mas, às vezes, proferimos frases como «isto sim, é um automóvel», em que
o significado de «automóvel» não é o mesmo que o apontado anteriormente. Est amos,
neste caso, perante um exemplo da utilização valorativa de «automóvel», uma vez que
com esta expressão queremos manifestar de forma positiva a nossa apreciação do
veículo em causa, tal como o fazemos em relação a uma obra de arte ao afirmar «est e
quadro sim, é uma obra de arte». Aqui não estamos a classificá-la como obra de art e,
mas a avaliá-lo como obra de arte boa. Estes dois usos são frequentemente confundidos
e é imprescindível tê-los em mente quando se discutem as diferentes teorias da arte.

2.2. Definições explícitas de «arte»: as teorias essencialistas

Irão ser aqui brevemente discutidas três teorias da arte essencialistas. Trata -se de
teorias que defendem uma ideia de arte intuitivamente partilhada por muitas pessoas,
apesar das dificuldades que, como iremos ver, revelam quando são criticamente
avaliadas.

Mas antes de avançar precisamos de esclarecer em que consiste uma teoria


essencialista da arte. As teorias essencialistas defendem que existe uma essência de
arte, ou seja, que existem propriedades essenciais comuns a todas as obras de art e e
que só nas obras de arte se encontram. Ora as propriedades essenciais são dif erent es
das propriedades acidentais. Uma propriedade é essencial se os objectos que a
exemplificam não podem deixar de a exemplificar sem que deixem de ser o que eram.
Uma propriedade é acidental se, apesar de ser realmente exemplificada pelos objec t os,
poderia não o ser. Isso significa que as propriedades essenciais da arte são aquelas
propriedades que não podem deixar de se encontrar nas obras de arte. São, port ant o,
exemplificadas por todas as obras de arte, reais ou meramente possíveis. Mas uma
definição essencialista exige também que tais propriedades sirvam para distinguir a arte
de outras coisas que não são arte. Daí que se procurem apenas identificar as
propriedades essenciais que sejam individuadoras da arte. Por exemplo, uma
propriedade essencial das obras de arte é a de terem um autor (pelo me nos). Mas t er
um autor não é uma propriedade individuadora da arte porque outras coisas que não
são arte têm também essa propriedade essencial, como é o caso dos artigos de opinião
dos jornais. Não seria por aí que iríamos identificar as obras de arte. Ora , se há
propriedades comuns a todas as obras de arte e individuadoras das obras de arte, é
então possível dizer quais são as suas condições necessárias e suficientes; quer dizer, é
possível fornecer uma definição explícita de arte. Contudo, é preciso reconhecer que
nem todas as definições explícitas são essencialistas.

Teoria da arte como imitação

Esta é uma das mais antigas teorias da arte. Foi, aliás, durante muito tempo aceite
pelos próprios artistas como inquestionável. A definição que constitui a sua t ese central
é a seguinte:

 Uma obra é arte se, e só se, é produzida pelo homem e imita algo.

A característica própria desta teoria não reside no facto de defender que uma obra de
arte tem de ser produzida pelo homem, o que é comum a outras teorias, mas na ideia
de que para ser arte essa obra tem de imitar algo. Daí que seja conhecida c omo t eoria
da arte como imitação.

Vários foram os filósofos que se referiram à arte como imitação. Alguns desprezavam-
na por isso mesmo, como acontecia com o conhecido filósofo grego Platão que, ao
considerar que as obras de arte imitavam os objectos naturais, via essas obras como
imagens imperfeitas dos seus originais. Ainda por cima quando, no seu ponto de vist a,
os próprios objectos naturais eram por sua vez cópias de outros seres mais perfeitos. Já
o seu contemporâneo Aristóteles, mantendo embora a ideia de arte como imitação,
tinha uma opinião mais favorável à arte, uma vez que os objectos que a arte imit a não
são, segundo ele, cópias de nada.

O que agora nos interessa, mais do que saber quem defendeu esta teoria, é avaliar o
seu poder explicativo. Vejamos então os principais pontos que perecem favoráveis a
ela:

 Adequa-se ao facto incontestável de muitas pinturas, esculturas e out ras obras


de arte, como peças de teatro ou filmes imitarem algo da natureza: paisagens,
pessoas, objectos, acontecimentos, etc.
 Oferece um critério de classificação das obras de arte bastante rigoroso, o que
nos permite, aparentemente, distinguir com alguma facilidade um objecto que é
uma obra de arte de outro que o não é.
 Oferece um critério de valoração das obras de arte que nos possibilita dist inguir
facilmente as boas das más obras de arte. Neste sentido, uma obra de arte seria
tão boa quanto mais se conseguisse aproximar do objecto imitado.

Um aspecto geral desta teoria mostra-nos que é uma teoria centrada nos objectos
imitados. Ela exprime-se frequentemente através de frases como «este filme é
excelente, pois é um retrato fiel da sociedade americana nos anos 60», ou c omo «est e
quadro é tão bom que mal conseguimos distinguir aquilo que o artista pintou do modelo
utilizado».

Mas será uma boa teoria? Para isso temos de testar cada um dos aspectos atrás
apresentados que são favoráveis à teoria, começando pelo primeiro.

Como o que é afirmado no primeiro ponto é do domínio empírico, não precisamos de


procurar muito para percebermos que, apesar de muitas obras de arte imitarem algo,
são inúmeras aquelas que o não fazem. O que constitui a sua refutação inequívoca.
Obras de arte que não imitam nada encontramo-las tanto na pintura como na esc ult ura
abstractas ou noutras artes visuais não figurativas. De forma ainda mais notória
encontramo-las na literatura e na música. Em relação à música é até bastante
improvável que haja alguma obra musical que imite seja o que for, apesar de haver
quem se tenha batido pela música programática (música que conta uma história, ilust ra
um acontecimento ou evoca um cenário natural). Até porque evocar ou ilustrar com
sons não é o mesmo que imitar, a não ser indirectamente. Conscientes disso, os
defensores mais rec entes da teoria da arte como imitação, acabaram por substituir o
conceito de imitação pelo conceito mais sofisticado de representação. Assim já
poderíamos dizer que as quatro primeiras notas da 5.ª Sinfonia de Beethoven não
imitam directamente a morte a bater à porta, mas representam a morte a bater à
porta. O mesmo se passaria com a literatura, da qual talvez não se possa dizer que
imita mas que representa sempre algo que acontece no mundo. Mas, ainda assim,
podemos perguntar: o que representam a pintura Composição (1946) de Jackson
Pollock ou as Suites para Violoncelo Solo de Bach? Dificilmente diríamos que
representam algo. Ficamos, deste modo, com uma teoria que não observa os requisit os
anteriormente expostos acerca do que deve ser uma definição explíc it a, pois def ende
que uma condição necessária para algo ser arte é imitar, e isso não acontece com todas
as obras de arte. Trata-se de uma definição que não inclui tudo o que deveria inc luir,
deixando assim muito por explicar.
Em relação ao segundo aspecto, esta teoria deixa também muito a desejar. O que referi
acerca do ponto anterior acaba também por desconsiderar o critério de clas sificação
apresentado. Convém, portanto, realçar que o critério de classificação de arte propost o
por esta teoria não pode ser bom, pois ficamos insatisfeitos ao verificar que há obras
que são reconhecidamente arte e não são classificadas como tal. A conse rvar este
critério, seriam as obras de arte que deveriam conformar-se à definição de arte e não o
contrário. Mas acontece que nem esta nem nenhuma outra definição de arte disponível
é suficientemente forte para nos fazer abandonar as nossas intuições de que certas
obras são arte, ainda que tais definições as não classifiquem como tal.

Finalmente, o terceiro ponto também é muito discutível. Apesar de ficarmos muitas


vezes positivamente impressionados com a perfeição representativa de algumas obras
de arte, o seu critério valorativo falha porque muitas outras obras de arte não poderiam
ser consideradas boas nem más, já que não imitam nada. Mas falha ainda por haver
obras que imitam algo sem que nos encontremos alguma vez em condições de saber se
a imitação é boa ou má. Basta pensar em obras que imitam algo que já não existe ou
não é do conhecimento de quem as aprecia. Como podemos saber se A Escola de
Atenas, de Rafael, reproduz com perfeição as figuras de Platão e Aristóteles ou o
ambiente da Academia? Pior, como sabemos que o Jardim das Delícias, de Bosch, imit a
bem aquelas figuras estranhas e inverosímeis, admitindo que algo está a ser imitado?
Como podemos saber se O Nascimento de Vénus, de Botticelli, é uma boa imitação, se é
que, mais uma vez, algo é imitado? E não será abusivo afirmar que qualquer pintura
figurativa tecnicamente apurada é melhor do que o tosco Auto-Retrato com Chapéu de
Palha, de Van Gogh, ou do que todas as obras impressionistas? Segundo este critério
Picasso seria, com certeza, um artista menor e teríamos de reconhecer que a fotograf ia
é a mais perfeita de todas as artes. Só que não é isso que acontece. Vemos, assim, que
também em relação ao critério valorativo esta teoria está longe de dar resposta
satisfatória a todas as objecções que se lhe colocam.

Teoria da arte como expressão

Insatisfeitos com a teoria da arte como imitação (ou representação), muitos filósof os e
artistas românticos do século XIX propuseram uma definição de arte que procurava
libertar-se das limitações da teoria anterior, ao mesmo tempo que deslocava para o
artista, ou criador, a chave da compreensão da arte. Trata-se da t eoria da art e c omo
expressão. Teoria que, ainda hoje, uma enorme quantidade de pessoas aceita sem
questionar. Segundo a teoria da expressão
 Uma obra é arte se, e só se, exprime sentimentos e emoções do artista.

Vejamos o que parece concorrer a favor dela:

1. São muitos e eloquentes os testemunhos de artistas que reconhecem a


importância de certas emoções sem as quais as suas obras nã o teriam
certamente existido. Mais do que isso, se é verdade, como parece ser, que a
arte provoca em nós determinadas emoções ou sentimentos, então é porque tais
sentimentos e emoções existiram no seu criador e deram origem a tais obras.
2. Também nos oferece, como a teoria anterior, um critério que permite, com
algum rigor, classificar objectos como obras de arte. Com a vantagem acrescida
de classificar como arte todas as obras que não imitam nada, o que acontece
frequentemente na literatura e sempre na música e na arte abstracta.
3. Mais uma vez oferece um critério valorativo: uma obra é tanto melhor quanto
melhor conseguir exprimir os sentimentos do artista que a criou.

Uma teoria c omo esta manifesta-se frequentemente em juízos como «Este é um livro
exemplar em que o autor nos transmite o seu desespero perante uma vida sem
sentido» ou como «O autor do filme filma magistralmente os seus próprios traumas e
obsessões».

Mas também ela se irá revelar uma teoria insatisfatória. As razões são semelhant es às
que apresentei contra a teoria da arte como imitação, pelo que tent arei aqui ser mais
breve.

O primeiro ponto apresenta várias falhas. Desde logo, é também empiricamente


refutado porque há obras que não exprimem qualquer emoção ou sentimento. Podemos
até admitir que o emaranhado espesso de linhas coloridas do quadro de Pollock exprime
algo ao deixar registados na tela os seus gestos (é geralmente incluído na corrente
artística conhecida c omo expressionismo abstracto). Mas podemos dizer o mesmo da
maior parte dos quadros de Yves Klein, Mondrian ou de Vasarely? O grande composit or
do nosso século, Richard Strauss, autor de vários poemas sinfónicos, como o célebre
Assim Falava Zaratustra, esclarecia que as suas obras eram fruto de um trabalho
paciente e minucioso no sentido de as aperfeiçoar, eliminando desse modo os def eit os
inerentes a qualquer produto emocional. E que dizer da chamada música aleatória
(música feita com o recurso a sons produzidos ao acaso)? Além disso, mesmo que uma
obra de arte provoque certas emoções em nós, daí não se segue que essas emoções
tenham existido no seu autor. Se a ingestão de dez copos de vinho seguidos provoc am
em mim o sentimento de euforia, daí não se segue que o vinicultor que produziu o
vinho estivesse eufórico. Trata-se, portanto, de uma inferência falac iosa. T al c omo na
definição de arte como imitação, o mesmo se passa aqui, pois acaba por não se verificar
a condição necessária segundo a qual todas as obras de arte exprimem emoções. É,

assim, uma má definição.

A deficiência em relação ao critério de classificação é praticamente a mesma apontada à


teoria da imitação. A única diferença é que, neste caso, uma maior quantidade de
objectos podem ser classificados como arte. Mas nem todas as obras de art e são, de
facto, classificadas como tal.

Sobre o critério de valoração, também as objecções são idênticas às da teoria da


imitação. Se observarmos este critério, então as obras de arte que não podem ser
consideradas boas nem más são inúmeras. Como podemos nós saber se uma
determinada obra exprime correctamente as emoções do artista que a criou, quando o
artista já morreu há séculos? Na tentativa de apurar até que ponto uma obra de art e é
boa, muitos estudiosos defensores desta teoria lançaram-se na pesquisa biográf ic a do
artista que a criou, pois só assim estariam em condições de compreender os
sentimentos que lhe deram origem. Alguns deles, como o famoso pai da psicanálise,
Sigmund Freud, até se aventuraram a sondar as profundezas da psicologia do art ist a,
sem o que uma correcta avaliação da obra não seria possível. Freud f oi ao pont o de o
fazer com um artista morto há séculos, como é descrito no seu livro Uma Recordação de
Infância de Leonardo da Vinci. Supondo que, como já tem acontecido, a obra em c ausa
tinha sido erradamente atribuída a outro autor, essa obra deixaria de poder ser
considerada obra-prima? E as obras de autores anónimos ou desconhecidos não são
boas nem más? E como avaliar uma obra de arte colectiva ou a int erpret aç ão de uma
obra musical? O que conta aqui são as emoções do artista criador ou as do artista
intérprete (ou dos artistas intérpretes, como sucede com a interpret a ção da Segunda
Sinfonia de Mahler, a qual chega a exigir perto de 250 intérpretes em palco)? Enfim,
todas estas perguntas são demasiado embaraçosas para a teoria da expressão.

Teoria da arte como forma significante

Verificando que a diversidade de obras de arte é bem maior do que as teorias da


imitação e da expressão fariam supor, uma teoria mais elaborada, e também mais
recente, conhecida como teoria da forma significante (abreviadamente referida como
«teoria formalista»), decidiu abandonar a ideia de que existe uma característica que
possa ser directamente encontrada em todas as obras de arte. Esta teoria, def endida,
entre outros, pelo filósofo Clive Bell, considera que não se deve começ ar por proc urar
aquilo que define uma obra de arte na própria obra, mas sim no sujeito que a aprec ia.
Isso não significa que não haja uma característica comum a todas as obras de arte, mas
que podemos identificá-la apenas por intermédio de um tipo de emoção peculiar, a que
chama emoção estética, que elas, e só elas, provocam em nós. Por esta razão a inc luo
nas teorias essencialistas. De acordo com a teoria formalista de Clive Bell

 Uma obra é arte se, e só se, provoca nas pessoas emoções estéticas.

Note-se que não se diz que as obras de arte exprimem emoções, senão est ar-se-ia a
defender o mesmo que a teoria da expressão, mas que provocam emoções nas pessoas,
o que é bem diferente. Se a teoria da imitação estava centrada nos objectos
representados e a teoria da expressão no artista criador, a teoria formalista parte do
sujeito sensível que aprecia obras de arte. Digo que parte do sujeito e não que está
centrada nele, caso contrário não seria coerente considerar que esta teoria é formalista.

Tendo em conta a definição dada, reparamos que a característica de provocar emoç ões
estéticas constitui, simultaneamente, a condição necessária e suf ic ient e para que um
objecto seja uma obra de arte. Mas se essa emoção peculiar chamada «emoção
estética» é provocada pelas obras de arte, e só por elas, ent ão t em de haver alguma
propriedade também ela peculiar a todas as obras de arte, que seja capaz de provoc ar
tal emoção nas pessoas. Mas essa característica existe mesmo? Clive Bell responde que
sim e diz que é a forma significante.

Frases como «Este quadro é uma verdadeira obra prima devido à excepcional harmonia
das cores e ao equilíbrio da composição», ou como «Aquele livro é excelente porque
está muito bem escrito e apresenta uma história bem construída apoiada em
personagens convincentes e bem carac terizadas», exprimem habitualmente uma
perspectiva formalista da arte.
Para já, esta teoria parece ter uma grande vantagem: pode incluir todo o tipo de obras
de arte, inclusivamente obras que exemplifiquem formas de arte ainda por inventar.
Desde que provoque emoções estéticas qualquer objecto é uma obra de art e, f ic ando
assim ultrapassado o carácter restritivo das teorias anteriores.

Mas as suas dificuldades também são enormes.

1. Em primeiro lugar, podemos mostrar que algumas pessoas não sentem qualquer
tipo de emoção perante certas obras que são consideradas arte. Quer dizer que
essas obras podem ser arte para uns e não o ser para outros? Nesse caso o
critério para diferenciar as obras de arte das outras de que serviria? T eríamos,
então, obras de arte que não são obras de arte, o que não faz sentido. T ambém
não é grande ideia responder que quem não sente emoções estéticas em relação
a determinadas obras não é uma pessoa sensível, como sugere Bell, o que
parece uma inaceitável fuga às dificuldades.
2. Uma outra dificuldade é conseguir explicar de maneira convincente em que
consiste a tal propriedade comum a todas as obras de arte, a tal «forma
significante Socrática na Sala de Aula", leccionada por Desidério Murcho. »,
responsável pelas emoções estéticas que experimentamos. Clive Bell refere,
pensando apenas no caso da pintura, que a forma significante reside numa certa
combinação de linhas e cores. Mas que combinação é essa e que cores são essas
exactamente? E em que consiste a forma significante na música, na lit erat ura,
no teatro, etc.? A ideia que fica é que a forma significante não serve para
identificar nada. Não se trata verdadeiramente de uma propriedade, pois a
forma significante na pintura consiste numa certa combinação de cores e linhas,
mas na música, na literatura, no cinema, etc., já não podem ser as cores e
linhas a exemplificar a forma significante. Não temos, assim, uma propriedade
mas várias propriedades. É certo que diferentes propriedades podem provocar o
mesmo tipo peculiar de emoções nas pessoas, mas chamar a diferentes
propriedades "forma significante" é de tal forma vago que não se imagina o que
poderia constituir uma contra-exemplo a esta definição. Também a respost a de
que a forma significante é a propriedade que provoca em nós emoções est éticas,
depois de dizer que as emoções estéticas são provocadas pela forma significante
é não só inútil mas decepcionante, já que se trata de uma falác ia: a f alác ia da
circularidade.

E agora?

Pelo que se viu, nenhuma das teorias aqui discutidas parece sat isfatória. Tendo
reparado nas insuficiências das teorias essencialistas, alguns filósofos da arte, como
Morris Weitz, abandonaram simplesmente a ideia de que a arte pode ser definida;
outros, como George Dickie, apresentaram definições não essencialistas d a arte,
apelando, nesse sentido, para aspectos extrínsecos à própria obra de arte; outros ainda,
como Nelson Goodman, concluíram que a pergunta «O que é arte?» deveria ser
substituída pela pergunta mais adequada «Quando há arte?». Serão estas teorias
melhores do que as anteriores? Aí está uma boa razão para não darmos por t erminada
esta tarefa.

Aires Almeida

Trabalho realizado no âmbito da Acção de Formação "O Pensamento Crítico e a Tradição

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