Você está na página 1de 25

1

Índice

2
A moral em Nietzsche:
o castrado e o espírito livre

É impossível se referir à moral em Nietzsche sem citar


a ligação necessária que o autor concebia entre este
conceito, o socratismo e o cristianismo. Apesar de ir-
mos em direção de entender o que é a moral em geral
na formulação nietzscheana, é importante compreen-
der a crítica concreta do autor alemão, que começa
com a repulsa à Sócrates e Platão.

Nietzsche, moral dos fortes e moral dos fracos

Reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declí-


nio, como instrumentos da decomposição grega, como
falsos gregos, como antigregos (“Nascimento da Tra-
gédia” 1872). Aquele consensus sapientium – isto fui
compreendendo cada vez melhor – não prova sequer
minimamente que eles tinham razão quanto ao que con-
cordavam. O consenso demonstra muito mais que eles
mesmos, esses mais sábios, possuíam entre si algum
acordo fisiológico para se colocar frente à vida da mes-
ma maneira negativa – para precisar se colocar frente a
ela desta forma (Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos
Ídolos).

O declínio, a decadência, como já explicado aqui, é o


movimento do niilismo, que tem como arma chave a
moral. O consenso representa exatamente o caminho
para esta decadência. O interessante é entender aqui
que havia um afastamento no pensamento socrático
no ato de olhar para a vida e a analisar como um ob-
jeto exterior ao ser vivente. Sócrates emitia juízos de

3
-se essedup es omoc avarolav a ele ,adiv a erbos rolav
.aled arof rat

oãn adiv ad otiepser a rolav ed sozíuj so ,otnatne oN


setarcóS euq edadirotua atse moc ranoicnuf medop
o“ :selpmis É .sogoláid sues etnaidem uedecnoc sehl
-neviv mu rop oãN .odailava res edop oãn adiv ad rolav
mu oãn e ,oigítil ed otejbo omsem ,etrap é ele siop ,et
-teiN zid ,”oãzar artuo amu rop ,otrom mu rop oãn ;ziuj
-ingis ossi euq O .)IC( solodÍ sod olucsúperC on ehcsz
átse euqrop railava es eugesnoc oãn ,adiv é êcoV ?acfi
-itsnoc et euq sovitailava serolav odnuges odnailava
ed sévarta railava atnet euq oliuqad etrap é êcoV .meut
.otnemaicnatsid oslaf mu

ehcszteiN ?oãsulcnoc atsed aicnâveler a é lauq saM


-arutan oãçisop reuqlauq e adot“ euq amrfia mébmat
,leváduas larom reuqlauq e adot ,é otsi ,larom an atsil
otnitsni O .IC on ”adiv ed otnitsni mu rop adanimod é
adivom aicnêtop a é ,aicnêtop ad oxufl ervil o é adiv ed
,serbon sod larom a é larutan larom a :savita saçrof rop
-serper ad larom a é socarf sod larom a e aicnêtop ad
-sem oA .omsinaitsirc od ,oãigiler ad ,oãçartsac ad ,oãs
,opmet om

euq siarom sa sadot esauq ,ajes uo ,larutanitna larom A


-emer ,sadagerp e sadarnoh ,sadanisne iuqa éta marof
sotnitsni so artnoc etnemataxe ,osrevni odom ed ,es-et
etnaurtinot aro ,aterces aro oãçanednoc amu é alE .siativ
-bo sueD‘ zid ale euq oN .sotnitsni setsed etnelosni e
siam siativ sojesed soa oãN zid ale ,’seõçaroc so avres
ad ogiminI omoc sueD odnamot ,sodavele siam e soxiab
mu é ,rezarp etnes sueD lauq oa otnuj ,otnas O …adiV
ed onieR“ o edno ,mfi oa agehc adiv A …laedi odartsac
sod olucsúperC ,ehcszteiN hcirdeirF( …açemoc ”sueD

4
Ídolos).

A tentativa de avaliar a vida e decidir a maneira correta


de vivê-la ou de enxerga-la é, por excelência, força re-
ativa. Ou seja, tentativa de barrar a potência do outro,
de minar a criatividade e de castrar o desejo. É a moral
dos fracos, que depende do outro para existir.

Até agora, conseguimos visualizar a moral em Nietzs-


che a partir da divisão da moral dos fortes (moral na-
turalista), reconhecida como o livre fluxo da potência,
e a moral dos fracos (moral antinatural), vista como
potência movida por forças reativas, que precisam da
referência do outro (e precisam barrar a potência do
outro) para existir. Mas o que é a moral em geral, em
Nietzsche?

Segundo Érico de Andrade Oliveira, no artigo A Crítica


de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima,
a moral “não seria um capítulo da razão humana [como
na visão kantiana], mas o ponto para o qual conver-
ge toda predicação da natureza do homem e de suas
ações”. A moral é como um todo que valora a vida e a
constitui o homem, o coloca no mundo e o faz perce-
ber o mundo e suas hierarquias de uma forma particu-
lar. A moral valora.

É aqui que passamos a entender que “quando falamos


de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da
vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a
vida mesma valora através de nós quando instauramos
valores” (Nietzsche, CI). A moral é uma forma de lidar
com a vida a partir da valoração do mundo, o dilema
da moral dos fracos e da moral dos fortes é que a pri-

5
meira tem valores morais como dados imutáveis, já a
segunda os considera como criações instintivas, explo-
sivas. E é exatamente isso que a Genealogia da Moral
vai expor: a tendência dependente da moral do fracos
e a explosividade e dominação da moral dos fortes.

Moral em Nietzsche: recusa do cristianismo

Primeiramente, Nietzsche recusa o socratismo, 1) de-


vido ao seu uso da dialética, que é o método dos per-
dedores, daqueles que não têm outra saída, afinal, a
dialética obriga o forte a se justificar e a provar que não
é um idiota (vide os diálogos de Sócrates) – os fortes
não se justificam, não provam sua honra, eles simples-
mente fazem e dominam. 2) devido ao afastamento da
vida que ela promove: a separação do mundo tal como
percebemos e do mundo ideal, assim como a separa-
ção do corpo e da alma promovem o niilismo negativo,
a crença de que a vida de verdade está para além da
vida como percebemos.

Após essa primeira recusa, ele ataca a situação concre-


ta da decadência exposta no parágrafo anterior (por
meio de uma crítica ao cristianismo),

Deus por conceito contrário e condenação da vida, é


apenas um juízo de valor da vida. – De que vida? De
que tipo de vida? – Mas eu já dei a resposta: da vida
decadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral,
tal como foi entendida até aqui – como por fim foi ainda
formulada por Schopenhauer, como “negação da von-
tade de vida” -, é o próprio instinto da décadence que
se transforma em imperativo. Ela diz: “Pereça!” ela é o
juízo dos que foram condenados… (Friedrich Nietzsche,
Crepúsculo dos Ídolos).

6
A vida termina onde o Reino de Deus começa. Isso por-
que o cristianismo é a incorporação da tese socrática
de que a vida atual não é uma vida efetiva, é só uma
aparência. A vida de verdade só existirá no paraíso, des-
ta forma, é necessário viver tendo em vista a salvação.

A hipótese da moral mínima

Érico de Andrade Oliveira, em seu artigo já indicado


acima, entende que a crítica de Nietzsche à moral Kan-
tiana tem como núcleo a “a falta de discussão, por par-
te daquela moral, de um critério por meio do qual a
produção e a legitimação de valores são realizadas”.
Os valores morais são como dados para esta proposta
moral de Kant e, assim sendo, determinam um tipo de
homem monolítico.

A moral em Nietzsche, quando vista sob o ponto de


vista da moral mínima, desligada da metafísica e inse-
rida na efetividade, ou seja, ligada à situação concreta
da multiplicidade de valores e de pessoas, assim como,
que percebe a multiplicidade do indivíduo fora do re-
banho, é uma moral que preserva condições mínimas
para a possibilidade de valorarmos a vida de acordo
com as diversas perspectivas de o que seria o humano.

A crítica à Kant é também uma crítica à religião (e, por


fim, à Sócrates),

As exigências feitas por Kant para que uma moral fosse


inscrita num patamar de universalidade, e portanto fosse
legítima, coincidem, para Nietzsche, com os preceitos
de uma religião que guarda uma prévia compreensão da

7
natureza do homem e tenta, com um controle total das
paixões, homogeneizar os homens. A individualidade é
diluída no meio do rebanho (Oliveira, A.O. A Crítica de
Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima).

E, citando o próprio Nietzsche em Além do Bem e do


Mal, argumenta Érico,

Nessa perspectiva, a exigência kantiana para atribuir o


predicado de moral a uma ação configura-se como um
pacto tácito com a tradição cristã que eleva o instinto de
sobrevivência ao patamar moral. Escreve Nietzsche: “[…] é
tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, ‘como
são possíveis os juízos sintéticos a priori?’ com esta outra:
“por que é necessária a crença em tais juízos?” e de compre-
ender que semelhantes juízos devem ser tidos por verdadeiros
para a conservação dos seres de nossa espécie; mas isso não
impede que “eles também poderiam falsos!” (Oliveira, A.O.
A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mí-
nima).

Pensando numa separação kantiana entre moral e direito: a


moral está na esfera da autonomia, uma definição/motiva-
ção interna (e uma ação interna) em busca de um fim (que
é desinteressado); já o direito está na esfera da heterono-
mia, da coação/motivação externa e da verificação. É assim
que o imperativo kantiano é exposto da seguinte maneira:

Imperativo categórico (moral): Age de tal modo que


a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mes-
mo tempo como princípio de uma legislação univer-
sal. (na Crítica da Razão Prática);

Imperativo jurídico: Age externamente de tal maneira


que o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liber-
dade de todos, Age externamente de tal maneira que

8
o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade
de todos. (no Fundamentos de uma Metafísica dos
Costumes).

A diferença entre os dois imperativos está situada na dife-


rença entre liberdade interna e liberdade externa. Enquanto
o imperativo categórico precisa de um compromisso com
a transcendência da moral como natureza ontológico do
homem, o imperativo jurídico é verificável, pode ter como
avalista, os próprios homens ou a lei, como indica Oliveira.

Desta forma, a solução pautada no imperativo para garan-


tir a multiplicidade das perspectivas morais, sem a anu-
lação dos interesses dos indivíduos, estaria fundada
nos seguintes imperativos:

Imperativo categórico: age de tal modo que teu


interesse (motivo de tua ação) possa ser preser-
vado.

Imperativo jurídico: age de tal modo que tua ação


nunca se torne um valor absoluto.

Essa é, segundo Oliveira, a única maneira de garantir


que nenhum valor seja universalizado e que haja con-
dições mínimas para a da multiplicidade das perspec-
tivas. É o jeito da moral em Nietzsche conseguir apro-
veitar a filosofia kantiana para preservar aquilo que ela
nega: a potência criativa dentro de sua esfera tão bru-
talizada pela decadência.

Referências

Friedrich Nietzsche, O Anticristo;

9
Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra;
Érico de Andrade Oliveira, A Crítica de Nietzsche à Mo-
ral Kantiana: Por Uma Moral Mínima.

Mark Hix, Head Shot.

10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25

Você também pode gostar