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As transgressões de Patti Smith: indústria da música e gênero

Resumo:
A cantora Patti Smith fora uma figura transgressora na indústria da música quando ela
lançou seu primeiro álbum, Horses, em 1975. Durante um período em que as mulheres na
música não possuíam muita oportunidade para serem desafiadores em termos de gênero
através da sua arte, Smith foi inovadora por se vestir com roupas masculinas, dessa forma,
expandindo as barreiras de gênero na indústria da música. Para demonstrar isso, o artigo
propõe uma pesquisa sobre o passado de Smith assim como da indústria da música e do
movimento punk.
Palavras chaves: Patti Smith; indústria da música; transgressão; punk; gênero.

Abstract:
The singer Patti Smith was a transgressor figure in the music industry when she
released her first album, Horses, in 1975. During a time where women in music didn’t had
much opportunity to be defiant in terms of gender through their art, Smith was
groundbreaking for dressing herself in man’s clothes, therefore expanding gender boundaries
in music industry. To demonstrate that, this article propose a research into the background of
Smith as well as the music industry and the punk movement.
Key words: Patti Smith; music industry; transgression; punk; gender.

O seguinte artigo se dedica a tentar expor algumas das formas que a cantora e poetisa
Patti Smith promoveu uma ruptura histórica e estilística com a indústria musical americana na
década de 1970 com o seu álbum de lançamento. Para demonstrar essa ruptura, é necessário
um apanhado histórico do passado da indústria musical, assim como da própria Patti, a fim de
demonstrar como o meio em que ela estava inserida a influenciou para que ela o subvertesse e
expandisse.
Mais conhecida como “A madrinha do Punk”, Smith pavimentou o caminho para uma
geração de bandas nova-iorquinas com sua fusão de rock e poesia. Mas ela também foi
revolucionária por sua fusão de gêneros: ela questionava as formas de gêneros se vestindo –
não só ela mesma, mas sua música – de maneira masculina. Smith fundiu seu jeito de se vestir
mais masculinizado com sua música, suas letras e sua postura em palco contribuindo para
uma maior flexibilização das ideais convencionais de gênero. (Willa Davis, 2007, p. 12)
Segundo o escritor inglês Dave Thompson em sua biografia, Dancing Barefoot, sobre a
cantora: “Patti Smith’s greatest influence emanates from the years during which she was still
shaping herself and her career.”1 (Thompson, 2011, p. viii) ou seja, o início de sua carreira,
época em que lançou seu primeiro disco.
Patricia Lee Smith nasceu em 30 de dezembro de 1946, 18 meses após o final da
segunda Guerra Mundial, em Chicago, Ilinois. E fora neste clima pós-guerra que Patti
experenciou sua infância com sua família em Nova Jersey. Filha de Grant e Beverly Smith,
Patti era a mais velha de dois irmãos, com seu destino traçado por uma carreira de professora
de artes até que o real chamado da arte falou mais alto e Patti tomou a decisão de que ela era
quem estava no controle de traçar as rédeas de seu futuro. (Thompson, 2011, p. 1)
Em sua autobiografia Só Garotos, Smith expressa alguns detalhes e ocasiões
marcantes de sua infância, com um inconfundível tom de ternura e nostalgia, ela relembra a
primeira vez que sua mãe a ensinou a rezar, por exemplo. Em inúmeras entrevistas, a artista
destaca a boa relação que sempre teve com sua família, ainda que tenha sido regrada, tal
relação a ensinou sobre diferenças de perspectivas. Sua mãe era uma fiel Testemunha de
Jeová enquanto seu pai era um convicto ateísta, dessa forma Patti crescera em uma casa que
estimulava o diálogo com respeito, além de seus pais também serem apreciadores da arte e
incentivarem a leitura a seus filhos. Patti disse a Terry Gross: “I wasn’t a disturbed child. I
actually had a happy childhood. I loved my brother and sister. We were inseparable. They
thought the world of me.”2 (Thompson, 2011, p. 4)
Ela também contou a Jeff Baker do site OregonLive.com que:
My mother was creative and my father was a very compassionate
man. . . There were people who were anti-Semitic and, of course, if you were
homosexual, that was a taboo subject. My mother opened the door to
anybody it was closed to elsewhere. I lived in a very poor but energetic
household that was filled with religious dialogue and civil rights, all kinds of
things.3 (Thompson, 2011, p. 5)

Por vir de uma família muito pobre, que as vezes não tinham nem o que comer, Patti
não era o tipo de pessoa que se apegava a bens materiais, mas sim a ideias. Seu apetite voraz
por livros se manifestou desde seus anos iniciais e segundo sua autobiografia, fora sua mãe
lhe ensinou a ler e logo se debruçava em obras como Little Women de Louisa May Alcott e
Alice no País das Maravilhas, além de Platão, Aristóteles, a Bíblia e até revistas UFOs, o que

1
A maior influência de Patti Smith emana dos anos durantes os quais ela ainda estava formando a si mesma e
sua carreira. (Tradução livre feita pela autora)
2
Eu não era uma criança perturbada. Na verdade, eu tive uma infância feliz. Eu amava meu irmão e minha
irmã. Nós éramos inseparáveis. Eu significava o mundo para eles. (Tradução livre feita pela autora)
3
Minha mãe era criativa e meu pai era um homem de muita compaixão.... Haviam pessoas que eram
antissemitas e, claro, se você era homossexual, isso era um assunto tabu. Minha mãe abria a porta para todos
que as outras estivessem fechadas. Eu vivi numa casa muito pobre, mas energética que era preenchida com
dialogo religioso e direitos civis, todos os tios de coisas. (Tradução livre feita pela autora)
pudesse encontrar que a atraísse nos livros que seus pais mantinham. (Thompson, 2011, p. 5)
“Eu era absolutamente fascinada pelos livros. Queria ler todos, e as coisas sobre as quais eu
lia criavam novos anseios. ” (Smith, 2010, p. 10). Essa carga literária teve um influente peso
na formação de Patti quando criança, alimentando sua imaginação e instigando ideias em sua
cabeça.
Portanto os primeiros indícios de que Patti não seria alguém que se conformaria aos
tradicionais parâmetros comportamentais designados ao sexo feminino na cultura norte
americana apareceram em sua infância. Thompson nos revela que quando criança Patti criou
sua própria gangue mirim só de garotos chamada Cool Cats e foi a líder do bando até
descobrirem que ela era uma menina. Em sua obra Só Garotos ela dá um exemplo bem
ilustrativo, contando da vez que sua mãe a pegou sem camisa como os outros garotos num dia
quente de verão e a repreendeu dizendo que ela já era uma “mocinha” e, portanto, não podia
mais andar sem camisa em público. Astuta desde criança, Patti retrucou com veemência e
anunciou que: “eu nunca viraria outra pessoa senão eu mesma, que eu era do clã de Peter Pan
e a gente não crescia”. (Smith, 2010, p. 13)
Ou seja, Patti tinha uma visão bem forte de si mesma, entre esses exemplos, vários
outros relatos de infância demonstravam o desejo dela de sempre estar em uma posição de
comando e destaque entre seus colegas, além de sua inclinação por preferir se portar mais
como um menino, preferindo brincar de quartel general invés de bonecas. Ao analisar as
tarefas domesticas as quais sua mãe estava atada, Patti sentia-se pesarosa e mal por sua mãe,
ela diz em sua autobiografia que todas aquelas tarefas “femininas” pareciam contrarias a sua
natureza, como as características mais reconhecidas da figura feminina dos anos 1950, batom
vermelho e perfumes intensos, a revoltavam e despertavam em seu interior um anseio rebelde
por viagens. Sonhava “Em fugir e me alistar na Legião Estrangeira, mudar de patente e
percorrer o deserto com meus homens. ” (Smith, 2010, p. 13)
Porém aos 14 anos, a cantora se tornara uma adolescente magricela e ridicularizada na
escola. Sua maneira de lidar com isso, como ela expressa em Só Garotos foi mergulhar: “nos
livros e no rock and roll, a salvação adolescente de 1961. ” (Smith, 2010, p. 14). E no verão
de 1966, aos 19 anos, Smith engravidou – sendo uma ironia com sua própria vida. “Não me
escapou a ironia de que eu, que nunca desejara ser garota nem crescer, precisasse encarar essa
prova. Fui humilhada pela natureza” (Smith, 2010, p. 17). Devido a sua idade, sua condição
financeira e psicológica inapta para criar uma criança, Patti deu à luz a seu filho e o doou a
um casal que a ajudara no processo de pré-natal.
Um dos maiores disparadores de criatividade e inspiração em sua vida surgiu quando
ela encontrou ao acaso o livro Illuminations de Arthur Rimbaud4.

[...] por ele que eu escrevia e sonhava. Ele se tornou meu arcanjo, livrando-
me dos horrores mundanos da vida fabril. Suas mãos haviam esculpido um
manual do céu e nelas rapidamente me agarrei. Conhecê-lo trouxera
insolência aos meus passos e isso não podia ser tirado de mim. Joguei meu
exemplar de Illuminations em uma mala xadrez. Nós fugiríamos juntos.
(Smith, 2010, p. 20)

E de fato fugiriam para Nova York juntos, Rimbaud e sua obra ajudariam Patti a tomar
a decisão de largar seu emprego fabril sem registro em Nova Jersey e sua carreira de
professora, com a certeza de ser uma artista de fato. Mas antes que seja possível prosseguir, é
necessário que se faça a análise das circunstâncias que envolviam Smith num âmbito ainda
para além de sua força de mudança e como esses agentes exteriores a influenciaram.
É através da interpretação de Steve Chapple e Reebee Garofalo sobre a indústria
musical no livro Rock & indústria de 1977, que se pode entender melhor que as influências
masculinas de Patti não estavam somente associadas a seu gosto pessoal por figuras
emblemáticas e fora do padrão, mas também a toda a estrutura de uma poderosa indústria.
Smith era uma jovem cujos heróis eram homens, com a exceção de algumas mulheres
no decorrer da História que também ultrapassaram as barreiras de gênero, como, por exemplo,
Joana D’arc. Patti queria se parecer com Keith Richards, fumar como Jeanne Moreau, andar
como Bob Dylan e escrever poesias como Arthur Rimbaud. (Willa Davis, 2007, p. 11)
Segundo Chapple e Garofalo em Rock & Indústria, a indústria musical está
indiscutivelmente intrincada ao tecido do negócio financeiro norte-americano, desse modo, a
evolução da música não poderia estar separada da política dos industriais e nem do poder dos
mesmos. E tem sido justamente esse poder dos industriais que tem determinado quem
gravaria ou não músicas e como isso seria pago. (Chapple e Garofalo, 1977, p. 14) Essa
indústria começou a ganhar força por volta da década de 1920 com o advento dos discos e sua
indústria cresceu juntamente com a ascensão da música popular, construindo em volta de si
uma complexa estrutura de apoio vinculada a rádios a fim de vender seu produto. (Chapple e
Garofalo, 1977, p. 16.)
O público alvo da indústria musical nos seus primórdios era a população branca classe
média norte-americana, essa orientação direta moldou na indústria certos preconceitos que
dificultou muito para que o público negro e os artistas negros tivessem seu espaço ali.

4
Jean Nicolas Arthur Rimbaud foi um poeta francês do século XIX.
(Chapple e Garofalo, 1977, p. 21) Porém a Segunda Guerra Mundial forçou uma mudança de
orientação por parte da indústria, criando plenas condições para a expansão do Rhythm and
Blues. A população negra se viu com mais oportunidades de empregos após tantas baixas em
decorrer da guerra, o que gerou nessa camada populacional, maior concentração de renda, isso
automaticamente os incluiu na categoria de possíveis compradores de discos, assim sendo, um
novo mercado surgiu gerando a demanda que os artistas negros precisavam para terem a
oportunidade de gravarem suas músicas. (Chapple e Garofalo, 1977, p. 55)
Entretanto, por mais que a indústria musical tivesse um novo mercado, seus líderes
ainda tinham enorme relutância em assinar músicos negros e divulgar a musicalidade afro-
americana, que para eles era de qualidade inferior. Esse desdém em relação ao Rhythm and
Blues transpassava para seus interpretes que muitas vezes foram enganados e roubados pelas
grandes gravadoras. Mas o que os donos das gravadoras não esperavam era que rapidamente
esse estilo musical desprezado se tornaria o favorito dos jovens brancos de classe média, que
passaram a ouvi-los em rádios para negros e a comprar os álbuns desses artistas. “Com o
crescimento das estações de rádio dirigidas por negros, que podiam igualmente ser ouvidas
pelos jovens brancos, a música de Rhythm and Blues começou a alastrar no mercado branco. ”
(Chapple e Garofalo, 1977, p. 54)
Embora os anos 1950 nos Estados Unidos tenham sido popularmente representados
como uma década plena, onde todos os americanos usufruíam do melhor que american way of
life podia oferecer, esse recente clima de plenitude pós-guerra na verdade ocultava um modo
de vida pouco compensador e sem espírito, que encontrou no Rhythm and Blues e
consequente no Rock ‘n’ Roll, a energia vital que lhes faltavam. (Chapple e Garofalo, 1977, p.
54)
Outro grupo social que segundo os autores era tratado com descaso pela indústria
musical norte americana foi o das mulheres, o sexismo está “[...] presente na estrutura da
indústria da música através não só das letras como das próprias instrumentações”. (Chapple e
Garofalo, 1977, p. 354) A realidade legada às mulheres nessa indústria desde seu início por
volta dos anos 1920 era reproduzir uma imagem de amante passiva e apaixonada além de
estar atrelada a música Pop, única plataforma em que elas eram aceitas para serem cantoras,
pois até mesmo o rock em seus estágios primários, era um advento masculino que ainda não
estava pronto para aceitar o sexo feminino num mesmo patamar.
No panorama do mercado de singles, as artistas ocupavam por volta de um terço das
posições nas tabelas dos mais vendidos até o início do Rock’n’roll em 1955, grande parte
dessas artistas, como dito antes, eram representantes do gênero Pop como Doris Day,
Rosemary Clooney e Patti Page. (Chapple e Garofalo, 1977, p. 356) Em 1958 essa proporção
caiu bruscamente e apenas 8% dos singles mais vendidos eram cantados por mulheres. Como
um reflexo da indústria, o rock dos anos 1950 era composto quase exclusivamente por
homens, onde as mulheres não cantavam, mas eram o tema mais recorrente das canções,
sendo quase sempre representadas como seres não dotados de personalidade desenvolvida e
extremamente dependentes de uma figura masculina. (Chapple e Garofalo, 1977, p. 357)
Segundo Chapple e Garofalo essa longa recusa da aceitação das mulheres em posições
criadoras do rock pode, talvez, ser atribuída “ao fato de a sociedade masculina atuar no
sentido de evitar que as mulheres alcancem posições que lhes deem iniciativa sexual.”.(
Chapple e Garofalo, 1977, p. 356) Portanto, as mulheres que cresceram nesse período de
formação da indústria musical tiveram dificuldades em encontrar figuras femininas
independentes na música, criando um vácuo cultural de representatividade onde, as mulheres,
por não terem heroínas próprias, careciam de modelos emancipados dos homens. (Chapple e
Garofalo, 1977, p. 361) E foi nesse contexto que Patti viveu seus anos de formação, tendo
acesso majoritário a modelos masculinos de emancipação do status quo com o rock e se
baseando neles para moldar sua personalidade.
Sinais de que essa escassez de mulheres no rock estava para mudar vieram com os
anos 1960 e as mulheres que tiveram maior proeminência no gênero musical entre o período
de 1964 a 1970 foram, provavelmente, Grace Slick, Janis Joplin e Aretha Franklin, que eram
as representantes de grupos musicais compostos por homens, assim como Smith viria a ser.
(Chapple e Garofalo, 1977, p. 367) Dentre elas, Janis foi a que mais teve influência sobre
Patti, pois era: “um símbolo de rebelião para a juventude branca da classe média, que se
afastava dos caminhos seguidos pelos seus pais. ” (Chapple e Garofalo, 1977, p. 368),
exatamente o plano que ela pretendia executar.
Desse modo, considerando as circunstâncias em que Patti estava submetida ao se
inserir no mundo do rock em 1974, suas ações podem ser consideradas transgressoras. Para se
fazer ser notada ela teve que imitar seus ídolos rebeldes masculinos e, definir ela mesma
contra as ‘limitações’ da feminilidade, algo bem diferente de todas as propostas de cantoras
femininas de sucesso até aquele momento. (Willa Davis, 2007, p. 19)
Segundo Ken Goffman e Dan Joy em sua obra Contracultura através do tempo, a
década de 1970 nos EUA eram comumente vista como uma consequência direta da cooptação
dos movimentos contraculturais dos anos 1960, “[...] quando os sonhos de paz e amor, ou a
revolução anarco-comunal, foram abandonados” (Goffman e Joy, 2004, p. 339). O rock
hegemônico de acordo com esses autores, havia se tornado uma “fraude com presunção e
competência musical. ” (Goffman e Joy, 2004, p. 355), transformando as músicas em
arrastadas demonstrações de proficiência instrumentalistas para sustentar uma letra fraca.
Com isso, enquanto os californianos ainda estavam relutantes em se separarem do movimento
hippie, em Nova York esse movimento não podia estar mais em oposição com o sentimento
geral, abrindo margem para a origem do movimento contracultural mais expoente da década,
o punk.
Nesse cenário o rock passou de contracultura dos anos de 1960 para se tornar o estilo
musical mainstream até meados de 1975. Essa subia do estilo ao centro do gosto popular
americano fez com que alguns músicos jovens sentissem que o espirito rebelde do rock estava
se perdendo em meio a músicos pretenciosos, grandes gravadoras e shows monumentais
(Starr e Waterman, 2006, p. 207). Desse descontentamento surgiu o punk rock, sua era de
ouro foi bem curta, de 1975 a 1978 segundo os autores Starr e Waterman no livro American
Popular Music, porém sua influência se estende até os dias de hoje. O punk era não só um
gênero musical mas um estilo cultural, uma atitude definida pela: “rebellion against authority
and a deliberate rejection of middle-class values—as it was a musical genre.”5 (Starr e
Waterman, 2006, p. 208)
Dessa forma o punk era uma epitome do rock como um símbolo de rebelião, uma
tradição que havia começado nos anos 1950 quando adolescentes brancos num EUA
segregacionistas cooptaram a energia e a sexualidade do Rhythm & Blues para irritar seus pais
e, continuaram assim pela década de 1960 com bandas como o The Who. Para muitos fãs, o
punk rock representava uma virada em direção aos autênticos primórdios do rock’n’roll e para
longe do pomposo e autocentrado rock que invadia os EUA em 1970. O berço desse
movimento de contracultura fora Nova York em meados de 1970 e entre as influências
musicais mais importantes do estilo estavam o Velvet Underground, The Stooges e o New
York Dolls. (Starr e Waterman, 2006, p. 209)
Goffman e Joy destacam como a sexualidade havia se tornado parte intrínseca da
década de 1970, devido a fatores como a permissividade dos anos 1960 e “a necessidade de
explorar a moralidade anticonvencional” (Goffman e Joy, 2004, p. 343). Ao se posicionar
contra os valores tradicionais da sociedade da época o punk podia acolher toda forma de
excluídos, como viciados, prostitutas, drags, etc. Isso fez com que, segundo Lucy O’Brien em
sua obra She Bop II de 2002, o “Punk gave women permission to explore gender boundaries,

5
[...] rebelião contra as autoridades e uma deliberada rejeição dos valores da classe média - como um gênero
musical. (Tradução livre feita pela autora)
to investigate their own power, anger, aggression – even nastiness [..]and within this scene
women formed their own kind of subculture. ”6 (Lucy O'Brien, 2002, p. 133)
Consequentemente, as mulheres não estavam mais limitadas aos papéis de acessórios
como musas, namoradas ou groupies, ao contrário, elas agora tinham espaço para chefiarem
bandas e dessa mudança, muitas outras se infiltraram na indústria, permitindo que mulheres
ocupassem cargos até então exclusivamente masculinos como a empresária de Patti, Jane
Friedman (Helen Reddington, 2012 p. 157). Para as mulheres subir num palco e se portar fora
dos padrões já era um ato transgressor, a partir de então, elas foram dadas a liberdade de
rejeitar o ideal tradicional de feminilidade projetado pela sociedade norte americana e
consequentemente no mundo de acordo com a expansão do punk e seus ideias. Como a autora
Lucy O’Brien continua descrevendo em seu livro: “Women felt free to express difference. [...]
In a asymbolic sense, women were destroying the established image of femininity,
aggressively tearing it down.”7 (Lucy O'Brien, 2002 p. 134)
Assim sendo, Smith se mudou para Nova York em 1967, instigada por seu
desligamento do estilo de vida classe média de seus pais e por sua vocação pelas artes,
contudo as primeiras semanas foram difíceis, até ela conseguir um emprego e um lugar para
morar. Trabalhou em livrarias e publicou artigos sobre rock em revistas como Cream,
Crawdaddy, Circus e Rolling Stone, geralmente o pagamento era ínfimo, mas Patti ganhava
os discos dos quais fazia resenhas para as revistas.
Também morou com Robert Mappelthorpe no famoso Hotel Chelsea enquanto
perseguiam juntos uma vida de artista. (Smith, 2010, p. 114) Porem nunca possuíam muito
dinheiro antes de alcançarem fama internacional, Robert não era contratado para empregos
fixos e só as remunerações de Patti não eram suficientes, então sempre tinham que fazer
decisões cruciais como comer ou comprar suprimentos artísticos, o que, segundo Patti, nunca
a abalou ao extremo, pois suas referências artísticas eram homens que haviam vido em
condições paupérrimas em certos momentos de suas vidas, como Rimbaud, Baudelaire, Allen
Ginsberg e Willian Burroughs, em prol de sua arte e seu estilo de vida. Quando seu
companheiro Robert se via desiludido com a condição financeira deles, Patti o consolava

6
Punk deu permissão as mulheres para explorar as barreiras de gênero, para instigar seu poder próprio, raiva e
agressão - até sordidez [...] e com essa cena as mulheres formaram seu próprio tipo de subcultura. (Tradução
livre feita pela autora)
7
As mulheres se sentiram livres para se expressarem diferentemente. [...] Num sentido assimbólico, as
mulheres estavam destruindo a imagem estabelecida para feminilidade, agressivamente destruindo-a.
(Tradução livre feita pela autora)
dizendo para ele não se preocupar que: “o compromisso com a grande arte é a própria
recompensa. ” (Smith, 2010, p. 39)
Durante todo esse tempo em que morou em Nova York Patti nunca deixou de produzir
seus poemas e até mesmo uma exposição de seus desenhos na Gotham Book Mart em 1973.
Sua paixão pela poesia aos poucos foi se tornando sua marca inicial na cidade e conseguinte
um reconhecimento de outros artistas, que viram nela o mesmo talento que dos poetas que ela
tanto admirava.
Smith em Só Garotos, relembra constantemente como Robert não era só grande parte
de sua inspiração, como também seu fã mais leal e, quem mais desejava ver sua arte ganhar
destaque, dessa forma, ele se propôs a arranjar uma leitura para ela em uma casa de poesias.
Em 1971 ele a introduziu para Gerard Malanga que tinha uma leitura agendada na famosa St.
Mark’s Church, esse concordou em deixar que Patti abrisse seu recital. A St. Mark’s Church
era conhecida por sediar o Poetry Project que era um fórum organizado por Anne Waldman e
muito disputado entre os poetas de todo os EUA por já ter contado com nomes como Robert
Creeley, Allen Ginsberg e Ted Berrigan. (Smith, 2010, p. 116)
Com um recital agendado, Patti agora precisava preparar sua apresentação, quais
poemas leria e como os leria. Poucas pessoas estariam preparadas ou conscientes da mudança
profunda que Smith promoveria com sua leitura tanto para a poesia quanto para a música, pois
seu amigo, Sam Shepard, sugeriu que Patti introduzisse música em sua poesia, instigada pela
ideia, ela foi direto falar com Lenny Kaye8, seu companheiro de Chelsea que tocava guitarra.
Para ela essa leitura significava muito mais do que apenas a chance de promover sua arte, seu
objetivo: “[...] não era simplesmente ler bem ou garantir minha presença. Era deixar minha
marca na St. Mark. Fiz isso pela Poesia. Fiz por Rimbaud, e fiz por Gregory. Eu queria
infundir o mundo da escrita com a urgência e o ataque frontal do rock and roll. ” (Smith,
2010, p. 116) e Lenny (com quem ela tocaria pelos próximos 40 anos) era a pessoa perfeita
para acompanha-la nessa afronta. Segundo a jornalista Lisa Robinson em 1973: “Patti was
moving toward both a rock ’n’ roll audience and a rock ’n’ roll sensibility [...]”9 (Thompson,
2011, p. 83)
Após o sucesso de sua ousada leitura na St. Mark’s Church, muitos amigos de Patti
insistiram que ela deveria montar uma banda, e indo nessa direção, em 1974, Smith e Kaye se

8
Lenny Kaye é um nova-iorquino nascido em 27 de dezembro de 1946, foi sobrinho do compositor Larry Kusik.
9
Patti estava se movendo em direção tanto a uma audiência rock'n'roll quanto uma sensibilidade rock'n'roll
[...] (Tradução livre feita pela autora)
juntaram ao tecladista Richard Sohl10 e o guitarrista do Television, Tom Verlaine para gravar
seu primeiro single Hey Joe/Piss Factory (Lucy O'Brien, 2002, p. 129), Piss factory11
descrevia as experiências de Smith na fábrica que ela trabalhara em Nova Jersey e a versão de
Hey Joe12 que Smith propôs era bem diferente de todas as suas predecessoras. Ela manteve o
cerne da letra original mas alterou a introdução e o desfecho da história contada na canção,
transformando a história machista de morte e traição de Joe na história de perseguição policial
contra Patty Hearst. Smith havia se encontrado com Jimi Hendrix em 1970 no seu novo
estúdio o Electric Lady e para ela, que carregava uma mistura de admiração e misticismo em
relação a Hendrix, não havia outra opção que não fosse gravar sua versão de Hey Joe no
estúdio dele. (Thompson, 2011, p. 92)
A história de Hearst contada na música de fato aconteceu, ela tinha 19 anos e era
herdeira de uma fortuna advinda de jornais que sua família possuía, quando foi sequestrada
pelo grupo radical de esquerda chamado Symbionese Liberation Army, mas durante o tempo
em que ficou cativa, acabou por acreditar na luta do grupo e se juntar a causa deles, após
armarem um assalto a banco juntos, Hearst e o grupo radical passaram a serem procurados
pelo FBI. Após essa façanha Hearst viraria um símbolo da juventude rebelde norte-americana
que não aceitava as injustiças do seu sistema. (Thompson, 2011, p. 90)
Ao inserir Hearst em Hey Joe Smith transforma uma música que romantizava a
violência contra as mulheres numa música que glorificava a violência perpetrada por
mulheres, ao fim da canção, Hearst era agente de sua própria libertação, assim como Smith,
que conseguiu validar sua inserção num ambiente tão masculino quanto o rock através da sua
releitura de Hey Joe. (Smith, 2010, p. 149)
De todos os postos conquistados pelo single, o que mais deixou Patti e os outros
músicos orgulhosos de seu trabalho fora ouvi-lo na jukebox do Max’s Kansas City, porem
para a surpresa deles, Piss Factory era mais popular que Hey Joe, sinal que eles interpretaram
como um incentivo a se focarem mais em trabalhos próprios. (Smith, 2010, p. 150) O que
começou com uma leitura de poesias acompanhada do som da guitarra de Lenny agora tinha
evoluído para uma banda quase completa, com um single gravado. A esse ponto Patti já não
tinha dúvidas que seu caminho de poetisa a havia levado ao rock e sua vocação ali estava na
música que ela tanto apreciava.

10
Richard Arthur Sohl nasceu em 1953 na cidade de Nova York.
11
Patti Smith - Piss factory, 1974, Electric Lady Studios.
12
Patti Smith – versão Hey Joe, 1974, Electric Lady Studios.
Após a gravação do single, a banda colocou um anuncio no Village Voice procurando
um baterista e um baixista, afinal Tom Verlaine não podia tocar com eles por já tocar com o
Television. Mas infelizmente, a maioria dos entrevistados eram homens que pareciam já saber
o que queriam fazer e como gostariam de soar, mas principalmente, nenhum deles estava
interessado em ter uma mulher como líder (Smith, 2010, p. 151). Como Thompson também
ressalta: “Too many guitar players would spend their audition talking to either Kaye or Sohl,
either ignoring Patti or, at best, treating her as some kind of adornment to the main
business.”13 (Thompson, 2011, p. 103)
Afinal, Smith ocupava uma função de gênero incomum no rock. Definitivamente a
líder da banda e não apenas a vocalista, algo que, como visto na análise acima sobre a
indústria musical, até então era extremamente raro vindo de mulheres. Patti é extraordinária
por assegurar sua autoridade, sua sexualidade e sensibilidade sem uma sexualização
convencional mas através de mecanismos de inversão de gênero. Ao invés de se retratar como
a amante passiva e apaixonada, ela geralmente exorta os ouvintes a se conscientizarem atraves
de suas letras e sua performace. De acordo com Smith: “There are masculine and feminine
rhythms in me. We’re all made up of opposites, and they often crucify us, but I deal with that
by accepting the bad stuff.”14 (Willa Davis, 2007, p. 12), ou seja, ela não iria se portar de uma
maneira que não a representasse de fato.
Embora a maioria dos músicos entrevistados ainda não estivessem preparados para a
revolução que Patti instigava com sua posição de autoridade na banda, Ivan Kral 15 e Jay Dee
Daugherty16 estavam preparados e ao participarem da audição para respectivamente baixista e
baterista, foram chamados a se juntar a banda, ambos segundo Patti, eram respeitosos e a
admiravam como artista.
Agora que a banda estava completa e havia sido intitulada Patti Smith Group, eles
precisavam ir atrás de lugares para tocarem, as ideias iniciais, sem dúvida, eram os
estabelecimentos nova-iorquinos Max’s Kansas City e CBGB & OMFUG17, dois
estabelecimentos muito importantes para o nascimento do Punk. Patti, Kaye, Kral e Sohl eram
todos frequentadores assíduos tanto do Max’s quanto do CBGB, e variavam entre estarem

13
Muitos dos guitarristas passavam sua audição inteira conversando com Kaye ou Sohl, ignorando Patti ou no
melhor dos casos, tratando-a como um tipo de adornamento para a negócio central. (Tradução livre feita pela
autora)
14
Tem ritmos masculinos e femininos em mim. Nós somos todos feitos de opostos, e ele frequentemente nos
crucificam, mas eu lido com isso aceitando as coisas ruins. (Tradução livre feita pela autora)
15
Ivan Král nasceu em Praga em 1948 e se mudou com seus pais para Nova York em 1963.
16
Jay Dee Daugherty nasceu em 1952 na cidade de Santa Barbada, Califórnia e se mudou para Nova York em
1974, pouco tempo antes de se juntar ao Patti Smith’s Group.
17
CBGB & OMFUG era uma sigla para “Country, Bluegrass, Blues & Other Music for Urban Gourmandizers”
tocando no palco ou serem telespectadores das outras bandas em cena. (Thompson, 2010, p.
103)
O Max’s Kansas City era uma restaurante/casa noturna fundada por Mickey Ruskin
em dezembro de 1965 que possuía um glamour obscuro e sua cena social era focada em Andy
Warhol e sua trupe, outras figuras renomadas que por ali passavam eram Bob Dylan, Grace
Slick, os integrantes do Velvet Underground, etc (Lieberfeld, 2012, p. 192). Também poderia
ser considerado uma área de testes para talentos locais e, o grupo de Patti conseguiu ser
agendado para tocar no Max’s por quatro noites consecutivas entre 12 a 15 de julho de 1974.
(Thompson, 2011, p. 94)
Já o CBGB era uma casa de shows inaugurada por Hilly Kristal em 1973 e que
rapidamente ganhou popularidade no undergroug nova-iorquino. Localizado na mesma rua de
Manhattan em que William Burroughs morava, ele era outro frequentador assíduo dessa casa
de shows, “CBGB was the neighborhood—the artists and poets and musicians—and we all
inspired each other. ”18 (Thompson, 2011, p. 87). Um ano após sua temporada de
apresentações no Max’s, Patti e sua banda assinaram uma nova temporada de shows, mas
dessa vez no CBGB e, como feito no verão passado no Max’s, a banda dividiria a noite com o
Television, fazendo entradas alternadas de quinta a domingo. Segundo Patti essa “[...] isso
ajudou a definir a narrativa interna que ligava as várias correntes do nosso trabalho. ” (Smith,
2010, p. 151)
Conforme se passou a temporada de shows no CBGB, ficou mais claro para Patti e seu
grupo que eles estavam prontos para se afirmarem como uma banda de rock and roll, portanto
decidiram que deveriam se propor a gravarem um álbum, saíram então em busca de uma
gravadora, mas segundo Lucy O’Brien todas as gravadoras que Patti tentou a recusaram a
princípio, com exceção da Arista de Clive Davis, que decidiu dar uma chance ao grupo multi
rítmico e aos vocais flexíveis de Smith, no dia 1 de maio de 1975, Clive Davis ofereceu a
Smith um contrato de gravação com a Arista Records e sete dias depois, ela assinou. (Smith,
2010, p. 153)
A Arista era o novo selo lançado por Clive Davis, ex chefe da Columbia Graphophone
Company (Thompson, 2011, p. 108), que era o resultado da fusão de várias empresas
pioneiras da produção de gravações e de fonógrafos, fundada por Charles Tainter e Chichester
Bell (Chapple e Garofalo, 1977, p. 22). De acordo com arquivos públicos, Clive ofereceu a
Patti 750 mil dólares por sete álbuns, mas tão importante quanto esse acordo era a promessa

18
CBGB era a vizinhança – os artistas e os poetas e os músicos – e nós inspirávamos uns aos outros. (Tradução
livre feita pela autora)
de que ele a apoiaria como uma artista e não apenas uma máquina de fazer hits. (Thompson,
2011, p. 109). Nas cinco semanas que se seguiram a assinatura do contrato Patti e seu grupo
gravou e remixou seu primeiro álbum, Horses. (Smith, 2010, p. 154) Produzido por John
Gale, o álbum era composto por oito músicas, entre elas, clássicos como Land, Break it up,
Free Money e uma versão de Gloria de Van Morrison. (Lucy O'Brien, 2002, p. 114)
Smith admitiu que na época em que essas gravações foram realizadas ela entendia
muito pouco sobre estar num estúdio e como gravações funcionavam, o que a fazia suspeitar
de tudo que fosse imposto sobre seu trabalho, dificultando a função do produtor, seu medo era
que “because I was so conscious of how I perceived rock ’n’ roll. It was becoming
overproduced, overmerchandised, and too glamorous.”19. Porem ao perceber que Cale, estava
do seu lado e não tentando arruinar seu álbum, Patti se tornou mais receptiva as ideias dele.
(Thompson, 2011, p. 120) E por fim, John e sua produção sem restrições foram responsáveis
pelo som cru do album, além de uma sensação de chiaroscuro.
Quanto a capa do álbum, não havia dúvidas segundo Patti de quem seria o artista por
traz dela, seu amigo Mappelthorpe faria um retrato dela para Horses, sua “espada sonora
embainhada por uma imagem de Robert” (Smith, 2010 p. 154). A única ressalva que ela tinha
quanto a direção artística dele era que ela iria usar sua camisa branca que a lembrava uma
imagem de Baudelaire ela gostava. Patti diz que: “I wasn’t thinking that I was going to break
any boundaries. ”20 (Thompson, 2010, p. 123), porem sua ação após o lançamento estava fora
de seus domínios e mesmo sem ter sido intencional como ela clama, tiveram seu impacto
garantido. Segundo Thompson, o que Patti estava vendendo não era apenas sua arte, mas um
estilo de vida (Thompson, 2011 p. 121).
Nessa foto da capa, Patti encara a câmera, rosto pálido e sem maquiagem contornado
por seu cabelo escuro curto, jaqueta de couro preta jogada sobre o ombro num estilo Frank
Sinatra, fundo branco como sua camisa. Em resumo sua figura transmite uma imagem
ambígua, andrógena, em relação ao gênero de Patti e definitivamente revolucionário em
termos de capas de álbuns de cantoras até então. Por fim, Robert queria usar uma sombra que
saia do canto da janela e formava um triangulo de luz atrás dela (Smith, 2010, p. 154.).
De acordo com Smith: “I had all these ideas. I'd have seven different poems I'd want to
put on seven different tracks, sometimes I only wanted three words from one. I was creating a

19
[...] porque eu estava tão consciente de como eu percebia o rock’n’roll. Estava se tornando super produzido,
comercializado e demais e muito glamuroso. (Tradução livre feita pela autora)
20
Eu não estava pensando que eu ia quebrar quaisquer barreira. (Tradução livre feita pela autora)
sort of William Burroughs cutup. ”21 (Lucy O'Brien, 2002 p. 115), seu estilo de escrita nesse
álbum era uma mistura de Jim Morrison, Lou Reed e poesia Beat e simbolista francesa, ou
seja, a essência da qual Patti era composta, as músicas que preenchem Horses são um reflexo
íntimo de sua compositora. Lenny Kaye foi o único membro da banda a receber crédito
completo por co-escrever as músicas com Patti em Horses (Thompson, 2011, p. 137).
Na época do lançamento de seu primeiro álbum, Patti e seus companheiros de banda
se viam como conservadores das tradições do rock de ser um efetivo perturbador do status
quo: “We imagined ourselves . . . with a mission to preserve, protect, and project the
revolutionary spirit of rock and roll. We feared that the music which had given us sustenance
was in danger of spiritual starvation . . .. We feared it floundering in a mire of spectacle,
finance, and vapid technical complexity”22 (Thompson, 2011, p. 245).
E de fato foram, Smith foi a primeira pessoa na cena Punk a conseguir um contrato
com uma gravadora. Em 1970 só três dos álbuns do Top 50 da Billboard eram de mulheres
segundo Chapple e Garofalo, portanto quando Horses, em 1975, conseguiu aparecer no Top
50, o primeiro álbum punk a atingir esse reconhecimento, eles atingiram sua missão de
preservar e proteger o espirito rebelde do rock’n’roll. A revista NME23 anunciou que Horses
era um primeiro álbum melhor que o dos “Beatles, Rolling Stones, and Bob Dylan. ”24 (Willa
Davis, 2007, p. 44). Foi com inovações que Patti cumpriu sua missão de revitalizar o rock
através de um retorno a suas raízes rebeldes.
É possível notar que em Horses ao invés de permitir a guitarra todo o poder da sua
banda, como havia sendo perpetrado o rock naquela época, Smith focou-se em seus vocais e
em suas letras como a parte mais poderosa de sua música. Ela se via em sua banda como não
apenas a vocalista, mas: “I’m another instrument in the band. ”25 (Willa Davis, 2007, p. 13).
Lenny Kaye relembra em seus depoimentos para o livro Mate-me por favor de Legs McNeil e
Gillian McCain, como o som da banda tinha o ímpeto de ser controverso e uma ligação direta
com o Velvet Underground, além do mesmo senso destrutivo dos Stooges ao mesmo tempo
que traziam uma carga literária como Rimbaud. (McNeil e McCain, 1997, p. 390)

21
Eu tinha todas essas ideias. EU tinha sete poemas diferentes que eu queria colocar em sete faixas diferentes,
as vezes eu só queria três palavras de um deles. Eu estava criando uma espécie de cutup como William
Burroughs. (Tradução livre feita pela autora)
22
Nós imaginávamos a nós mesmo... com a missão de preservar, proteger, e projetar o espirito revolucionário
do rock’n’roll. (Tradução livre feita pela autora)
23
New Musical Express é uma revista britânica de música publicada semanalmente desde março de 1952.
24
Beatles, Rolling Stones e Bob Dylan. (Tradução livre feita pela autora)
25
Eu era outro instrumento na banda. (Tradução livre feita pela autora)
Horses dividiu a indústria musical norte americana quando foi lançado nos EUA, as
vozes mais influentes da crítica musical pareceram agradadas. Patti e sua banda estavam
ultrapassando fronteiras das quais o rock nunca tinha passado muito perto, produzindo um
álbum de qualidade e inovador (Thompson, 2011, p. 123). Sua capa se tornou uma das
imagens mais reverenciadas da história do rock, aparecendo em uma alta posição na lista da
revista Rolling Stone das 100 melhores capas de álbuns. Conforme Thompson destaca, essa
imagem também definiu a forma como Smith era vista pela audiência e seus fãs, através da
cena punk que estava desabrochando na época, uma cena que iria “embrace her, both
musically and visually, as one of its most crucial, vibrant figureheads. ”26 (Thompson, 2011,
p. 123) O jornalista inglês Charles Shaar Murray escreveu para a NME que Horses:
It brought rock ’n’ roll back from the abyss of overextended soloing
with a basic four-piece band fronted by a lyricist with something to say. [...]
First albums this good are pretty damn few and far between, [...] It’s better
than the first Roxy album, better than the first Beatles and Stones albums,
better than Dylan’s first album, as good as the first Doors and Who and
Hendrix and Velvet Underground albums. [...] it’s strange, askew and flat-
out weird. It’s neurotic and unhealthy and dank, a message in a bottle sent
from some place that you and I have only been to in the worst moments of
selfdoubting defeated psychosis.[...] is what happens when the fuses blow
and the light goes out.27 (Thompson, 2010, p. 124)

Patti descreve numa entrevista em 1978, que sua banda: “We’re a feminine band
[...]”28 (Willa Davis, 2007, p. 12), uma afirmação de que sua fachada masculinizada dividia o
espaço com sua feminilidade, mostrando como ela renegava conotações específicas e pré-
estabelecidas de gênero, abarcando características variadas de ambos.
Quando Horses foi lançado em 1975, Smith tomou um passo realmente transgressor
ao misturar uma pose feminina com um look masculino na sua capa, entre seu corte de cabelo
bagunçado e suas roupas largas, não havia muito que deixasse claro o seu gênero sexual,
como definido pela sociedade (Willa Davis, 2007, p. 11). Ao invés de aceitar ser forçada em
uma categoria de gênero identitário restrita que separa masculinidade de feminilidade, Patti
era capaz de experienciar ambos ao se vestir de maneira masculinizada. Mesmo sua música

26
Incluiu ela, tanto musicalmente quanto visualmente, como uma das figuras mais cruciais e vibrantes.
(Tradução livre feita pela autora)
27
Trouxe o rock'n'roll de volta do abismo dos solos estendidos com uma básica banda de quatro integrantes,
liderada por uma compositora com algo a dizer. [...] Primeiros álbuns tão bons quanto esse são bem raros e
distantes entre si, [...] É melhor que os primeiros álbuns do Roxy, dos Beatles e dos Stones, melhor que o
primeiro álbum do Dylan, tão bom quanto o primeiro do Doors, do Who, do Hendrix e do Velvet Underground.
[...] é estranho, torto e para lá de estranho. É neurótico e insalubre e úmido, uma mensagem numa garrafa
enviada de um lugar que você e eu só estivermos nos piores momentos de autodúvida derrotada por psicose
[...] é o que acontece quanto os fusíveis explodem e as luzes se apagam. (Tradução livre feita pela autora)
28
Nó éramos uma banda feminina. (Tradução livre feita pela autora)
possuía uma forma revestida em que ela muitas vezes escrevia de uma perspectiva masculina
(Willa Davis, 2007, p. 12). Como destacado em She Bops II, “Smith was fighting labels,
petrified of being cut down to size and exiled to what she felt was a gender ghetto. To her the
route to rock freedom was male, but in twisting it to suit her vision she created something
peculiarly intense and female.”29 (Lucy O'Brien, 2002 p. 116)
Por fim é possível concluir que Patti Smith, ao montar sua banda e se expor ao mundo
de maneira andrógena, gerou uma ruptura histórica e estilística com a indústria musical na
década de 1970, época em que as mulheres ainda não tinham muita participação ativa nesse
ramo. Foi um choque de valores que ela não planejava, como visto acima, sua intenção não
era subverter gênero, porem ela o fez mesmo assim.
Apenas seguindo seus ídolos e se esforçando para se parecer com eles, Patti promoveu
uma liberdade a mulheres de poderem se vestir e portar como homens, rejeitando seu papel na
sociedade como inteiramente femininas e incapazes de fazer o que os homens faziam na
música. Ela mostrou com seu álbum de lançamento, Horses, que era capaz de chefiar uma
banda e produzir um álbum de rock de qualidade que seria lembrado por mais de quatro
décadas após seu lançamento. Segundo Goffman e Joy, Patti era uma grande exceção no punk
por terem trabalhado de maneira brilhante “a tradição erótica/psicodélica de Jim Morrison e
os Rolling Stones”. Patti sempre desejou ir além dos clichês, inclusive do punk, atingindo um
novo nível de intensidade que a fez uma presença querida em seu meio profissional.
O fato de que esses homens que tocavam com Smith baseassem suas identidades numa
banda não só nomeada, mas chefiada por uma mulher revela quão poderosa Patti era
independente de seu gênero. “There’s not anyone in this band that doesn’t accept…the bend
of the knee, the humility that comes with working with her, because she is the best. We feel
very honoured to work with her.”30 (Willa Davis, 2007, p. 17)
Em uma combinação de devoção a Rimbaud, espirito rebelde e apenas referências
rebeldes masculinas na música, Smith expandiu as fronteiras do possível para mulheres no
cenário musical. Sua atitude inovadora serviria de exemplo para muitas pessoas, tornando-a
uma influência cultural imprescindível não só para fãs de punk, como para a indústria musical
num geral. “As an artist, I don’t feel any gender restrictions. When I’m performing, it’s a

29
Smith estava lutando contra rótulos, petrificada de ser reduzida de tamanho e exilada para o que ela sentia
era um gueto de gênero. Para ela a rota para a liberdade do rock era masculina, mas ao inverte-la para servir
sua visão ela criou algo particularmente intenso e feminino. (Tradução livre feita pela autora)
30
Não tem ninguém nessa banda que não aceite... a reverencia, a humildade que vem com trabalhar com ela,
por que ela é a melhor. Nós nos sentimos honrados de trabalhar com ela. (Tradução livre feita pela autora)
very—for me—transcendent experience. I can’t say I feel like a male or a female. Or both.
What I feel is not in the human vocabulary.”31 (Willa Davis, 2007, p. 20)
Ao longo de sua carreira Patti nunca abandonou sua vocação para arte, lançou mais 12
álbuns, publicou vários livros e também arquitetou inúmeras exposições de arte, acumulando
prêmios como o National Book Award por sua autobiografia Só garotos em 2010 e sendo
introduzida ao Rock and Roll Hall of Fame em 2007.

31
Como uma artista, eu não sinto nenhuma restrição de gênero. Quando estou fazendo uma performance, é
uma experiência - para mim- transcendental. Não posso dizer que me sinto um macho ou uma fêmea. Ou os
dois. O que eu sinto não está no vocabulário humano. (Tradução livre feita pela autora)
Referências bibliográficas

Patti Smith Group. Horses. Nova York: Arista, 1975. “Gloria”, “Redondo Beach”,
“Birdland”, “Free Money”, “Kimberly”, “Break It Up”, “Land” e “Elegie”.

THOMPSON, Dave. Dancing barefoot: The Patti Smith Story. Chicago: Chicago Review
Press, 2011.

GOFFMAN, Ken e JOY, Dan. Contracultura através do tempo: Do mito de Prometeu à


cultura digital. Tradução: Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2007.

MCNEIL, Legs e MCCAIN, Gillian. Mate-me por favor: Uma história sem censura do punk.
Tradução: Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 1997, pp. 386-391.

CHAPPLE, Steve e GAROFALO, Reebee, Rock & indústria: História e política da indústria
musical. Tradução: Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Caminho, 1977.

SMITH, Patti. Só garotos. Tradução: Alexandre Barbosa de Souza. Primeira edição, São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.

O'BRIEN, Lucy. She Bop II: The Definitive History of Women in Rock, Pop and Soul. Nova
York: Continuum, 2003, pp. 132-178.

REDDINGTON, Helen. The Lost women of rock music: Female Musicians of the Punk Era.
Segunda edição, Reino Unido: Equinox Publishing, 2012, pp. 158-177.

STARR, Larry e WATERMAN, Christopher. American Popular Music: The Rock Years.
Edição, Nova York: Oxford University Press, 2006, pp. 196-230.

WILLA DAVIS, Rebecca. Rip “Her” To Shreds: How the Women of 1970s New York Punk
Defied Gender Norms. Senior Thesis in American Studies, Barnard College, Columbia
University, 2007.
LIEBERFELD, Daniel. Artistic apprenticeship and collaboration: looking back with Keith
Richards and Patti Smith. The Sixties: A Journal of History, Politics and Culture, 2012, p.
187-195. DOI: 10.1080/17541328.2011.625724

Prêmio National Book: Disponível em


<http://www.nationalbook.org/nba2010.html#.WeDXptGQzIU> e acesso em 13/10/2017.

Introdução ao Hall da Fama do Rock’n’Roll: Disponível em


<https://www.rockhall.com/inductees/patti-smith> e acesso em 13/10/2017

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