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Cadernos IHU em formação é uma publicação em formato digital que oferece edições monotemá-

ticas, com debates de problemáticas atuais através da colaboração de especialistas de diversas áreas.
Este caderno busca reunir entrevistas e artigos produzidos na Revista IHU On-Line, no Notícias do
Dia do IHU, nos Cadernos IHU ideias, além de colaborações inéditas.
Cadernos IHU em formação

Agamben
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Vice-reitor
José Ivo Follmann, SJ
Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ

Gerente administrativo
Jacinto Schneider
Cadernos IHU em formação
Ano 9 – Nº 45 – 2013
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial
Prof. Dr. Celso Cândido de Azambuja – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Lucas Henrique da Luz – Unisinos
Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos
Dra. Susana Rocca – Unisinos

Conselho científico
Prof. Dr. Gilberto Dupas (") – USP – Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS – Doutor em Psicologia Social e Comunicação

Responsável técnico
Caio Fernando Flores Coelho

Revisão
Carla Bigliardi

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467
www.ihu.unisinos.br
Sumário

Apresentação: Giorgio Agamben. Um filósofo para compreender o nosso tempo


Márcia Rosane Junges........................................................................................................... 5

Compreender a atualidade através de Agamben


Entrevista especial com Rossano Pecoraro............................................................................. 7

Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben


Entrevista especial com Jasson da Silva Martins.................................................................... 12

O campo como paradigma biopolítico moderno


Artigo de Castor Bartolomé Ruiz........................................................................................... 15

Agamben e o horizonte biopolítico como terreno de escavação


Entrevista especial com Daniel Arruda Nascimento ............................................................... 20

Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo


Artigo de Castor Bartolomé Ruiz........................................................................................... 26

Totalitarismos e democracia e seu nexo político em Agamben


Entrevista especial com Edgardo Castro ................................................................................ 30

Homo sacer. O poder soberano e a vida nua


Artigo de Castor Bartolomé Ruiz........................................................................................... 33

Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito
Entrevista especial com Fabrício Carlos Zanin ....................................................................... 36

Agamben e a vida nua: produto final da máquina antropológica


Entrevista especial com Sandro de Souza Ferreira ................................................................ 40

Giorgio Agamben, controvérsias sobre a secularização e a profanação política


Artigo de Castor Bartolomé Ruiz........................................................................................... 43

Agamben leitor de Averroes e as condições de uma “política da inoperosidade”


Entrevista especial com Rodrigo Karmy Bolton ..................................................................... 47

Lampedusa: o estado de exceção que se tornou a regra


Entrevista especial com Flavia Costa ..................................................................................... 56
Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção
Entrevista especial com Edgardo Castro ................................................................................ 60

A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin...


Entrevista especial com Castor Bartolomé Ruiz ..................................................................... 62

O que resta de Auschwitz e os paradoxos da biopolítica em nosso tempo.


Entrevista especial com Oswaldo Giacoia Junior ................................................................... 68
Apresentação

Giorgio Agamben. Um filósofo para compreender o nosso tempo

Márcia Junges1

1
Nascido em Roma em 1942, Giorgio Agam- mação reúnem entrevistas especiais já publica-
ben é um dos filósofos mais instigantes da atua- dos pela IHU On-Line. Note-se que no Brasil há
lidade, autor de obras que refletem desde a esté- um particular florescimento em termos de produ-
tica até a política. Entre suas ideias destacam-se ção acadêmica e traduções das obras de Agam-
os conceitos de homo sacer, estado de exceção e ben. Nessa seara, o Instituto Humanitas Unisinos
vida nua, além de uma abordagem peculiar sobre – IHU publicou três edições da revista IHU On-
o messianismo, a partir da influência de Walter Line cuja inspiração partiu das problemáticas es-
Benjamin. Além do pensador da Escola de Frank- tudadas pelo filósofo italiano. Tratam-se da edição
furt Michel Foucault, Martin Heidegger e Aristóteles 343, de 13-09-2010, intitulada Biopolítica, estado
são basilares para a composição de sua filosofia. de exceção e vida nua. Um debate, disponível em
Suas proposições oferecem chaves importantes http://bit.ly/jDM2zU, e a edição 344, de 21-09-2010,
para a compreensão e o questionamento da época O (des)governo biopolítico da vida humana, ambas
que vivemos, num estilo peculiar de construção fi- surgidas no bojo do XI Simpósio Internacional IHU:
losófica, ora aparentemente de fácil compreensão, o (des) governo biopolítico da vida humana, realiza-
como é o caso de Profanações, ora hermeticamente do pelo IHU naquele ano. Em 2003 a edição 81 da
elaborada, como em O Reino e a Glória. IHU On-Line teve como tema central O Estado de
Agamben formou-se em Direito em 1965, exceção e a vida nua: A lei política moderna, dispo-
debruçando-se sobre o pensamento político de Si- nível para acesso em http://bit.ly/cH3OMb.
mone Weil. De 1966 a 1968, foi aluno de Martin A primeira entrevista desta edição dos Ca-
Heidegger, com quem estudou Heráclito e Hegel, dernos IHU em formação traz a contribuição do
e em 1974 transferiu-se para Paris, onde de 1986 filósofo Rossano Pecoraro (UNIRIO), para quem
e 1993 dirigiu o Collège International de Philoso- o pensamento de Agamben “ainda está se desdo-
phie. De 1988 a 2003, ensinou nas universidades brando, construindo, consolidando”. Uma de suas
de Macerata e de Verona. De 2003 a 2009, lecio- constatações é que “as categorias tradicionais da
nou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário política (soberania, estado, povo) desmoronaram,
de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Hoje dirige a tornando-se absolutamente ineficazes e inúteis para
coleção “Quarta prosa” da editora Neri Pozza, na a compreensão do mundo contemporâneo no qual
Università IUAV em Veneza. o centro é ocupado pela ‘máquina governamental’
Refletindo a partir de sua filosofia em pleno que rege as sociedades ocidentais, pelo ‘problema
desenvolvimento, os Cadernos IHU em for- da governamentabilidade’ que ilude os cidadãos e
camufla os ataques à liberdade e à democracia”.
1 Jornalista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, profes- De acordo com Jasson da Silva Martins
sora tutora do EAD Unisinos, e mestre em Filosofia por
(Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –
essa mesma instituição.

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UESB), para Agamben “o estado de exceção é a samento desse autor, devendo ser compreendido
norma das atuais democracias e está intimamente como uma “afirmação da própria subjetividade”.
ligada às práticas de governo, que, por sua vez, es- Na entrevista Governar no Ocidente é exercer o
tão ligadas ao governo da vida e a ‘normalização’”. poder como exceção, Castro menciona que os de-
“Manter o horizonte biopolítico para o seu ter- cretos-lei, leis de necessidade e urgência, poderes
reno de escavação é objeto de uma escolha pelo especiais delegados ou assumidos pelo executivo
filósofo italiano”, pontua Daniel Arruda Nascimento são demonstrações de que a exceção é sinônimo
(Universidade Federal Fluminense – UFF). E des- de governo no Ocidente.
taca: “somente demorando-se neste horizonte será Para Fabrício Carlos Zanin (Centro Universi-
possível decidir se as categorias políticas com as tário Luterano de Ji-Paraná – ULBRA), “Agamben,
quais estamos acostumados a compreender o mun- seguindo Heidegger em alguns aspectos, também
do habitado, hoje confusas a ponto de entrarem em nos possibilita a superação daqueles escândalos
zonas de ‘indiscernibilidade’, podem ser ainda usa- da filosofia (no direito), em especial nas suas pro-
das na compreensão do fenômeno político”. postas de uma nova ética (A linguagem e a morte:
A captura política do corpo fundamenta um seminário sobre o lugar da negatividade), uma
a política moderna, afirma Castor Bartolomé nova política (Homo sacer: o poder soberano e a
Ruiz (Unisinos), remetendo-se ao pensamento vida nua I), um novo direito (Estado de exceção) e
de Agamben. Práticas nazistas não inovaram a uma nova experiência (Infância e história)”.
barbárie, mas foram comedidas dentro da mais Agamben e a vida nua: produto final da má-
estrita legalidade jurídica, quando a exceção vi- quina antropológica é a temática analisada por
rou a norma, na tanatopolítica. Em outro artigo, Sandro de Souza Ferreira (FEEVALE), que afirma:
Ruiz afirma que o sacerdote de outrora tem sua “o que define a condição de homo sacer, portanto,
forma secular no tecnocrata, que impera junto não é tanto a pretendida ambivalência originária
de instituições sacralizadas como o Estado e o da sacralidade que lhe é inerente, mas ‘o caráter
mercado. Àqueles que não se enquadram na se- particular da dupla exclusão em que se encontra
cularização a alternativa é a profanação política, aprisionado e da violência a que se acha exposto’”.
retirando as coisas, instituições e pessoas de sua Rodrigo Karmy Bolton (Universidade do
égide inacessível. No artigo Giorgio Agamben, Chile) examina Agamben como leitor de Aver-
genealogia teológica da economia e do governo, roes e as condições de uma “política da inope-
o filósofo espanhol menciona que, na perspectiva rosidade”. A novidade da compreensão agam-
agambeniana, a filosofia política da soberania e a beniana do conceito de potência aristotélico
economia política do governo derivam-se da teo- consiste em ter encontrado em Averroes “a cha-
logia cristã, e a oikonomia teológica é a matriz da ve arqueológica para pensar em outra moderni-
economia moderna. Em Homo sacer. O poder so- dade”, destaca.
berano e a vida nua, Ruiz afirma que a vida nua, “A novidade da política moderna é que a ex-
expulsa da ordem pela exceção da vontade sobe- ceção se tornou a regra; isto é, aquilo que apare-
rana, está condenada ao banimento, e no artigo cia incluído mediante sua exclusão (o estado de
A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamen- natureza, o ‘animal’ no homem) aparece agora
tos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin o indiferenciado com respeito ao seu oposto: o es-
pesquisador assinala que “a exceção desmascara tado civil, o ‘humano’ no homem”, avalia Flávia
o soberano que tem o poder de decidir sobre a Costa (Universidade de Buenos Aires – UBA).
ordem e, como consequência, tem a potência de Na entrevista O que resta de Auschwitz e os
capturar a vida humana como vida sem direitos, paradoxos da biopolítica em nosso tempo, Oswal-
um homo sacer”. do Giacoia Jr (UNICAMP) acentua que “Agam-
Edgardo Castro (Universidad Nacional de ben situa a ética do testemunho no problemático
San Martín – UNSAN, Buenos Aires) analisou os limiar que se situa entre a superação do ressenti-
totalitarismos e a democracia e seu nexo político mento (a proposta de Nietzsche, que inaugura a
em Agamben. Ele advertiu, ainda, para o conceito ética do século XX) e a exigência moral da impos-
de “potência-do-não” e sua importância no pen- sibilidade do esquecimento”.

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Compreender a atualidade através de Agamben

Entrevista especial com Rossano Pecoraro

Por Márcia Junges e Greyce Vargas

Apresentação

Para o filósofo Rossano Pecoraro, o pensamento de Giorgio Agamben é muito


significativo para compreendermos a atualidade. Além, disso, explica, “trata-se de um
pensamento que ainda está se desdobrando, construindo, consolidando; que, certa-
mente, possui os seus alicerces, as suas perspectivas já suficientemente definidas, mas
que não deixa de ser algo a nós tão próximo e, portanto, bastante difícil de definir”.
Sobre o estado de exceção, um dos conceitos agambenianos mais conhecidos, Peco-
raro assinala: “A transformação em ‘regra’ e ‘paradigma político’ do nosso tempo do
estado de exceção se dá, antes de tudo, porque as categorias fundamentais da tradição
democrática ocidental entraram em crise ou perderam o seu significado (e alcance)
“originário”. Entre outros assuntos, o entrevistado, em entrevista concedida por e-mail
à IHU On-Line, analisa aspectos da mais recente obra de Agamben2, Nudità, re-
cém lançada na Itália.
Graduado em Filosofia pela Universidade de Salerno, Itália, Pecoraro é mestre e
doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
com a tese Infirmitas. Niilismo, nada, negação. É autor de, entre outros, Cioran,
a filosofia em chamas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004), Niilismo e (Pós)Moder-
nidade. Introdução ao pensamento fraco de Gianni Vattimo (Rio de Janeiro:
Ed. da PUC-Rio; São Paulo: Edições Loyola, 2005) e Niilismo (Rio de Janeiro: Zahar
Editor, 2007). É um dos expoentes da chamada “geração 89”, ou “pensamento pós-
89”, movimento intelectual que vivenciou os acontecimentos do ano que definiu os
horizontes do Século XXI.

2 Giorgio Agamben é um filósofo italiano. Formado em Direito, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil,
é responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin. Foi professor visitante na Università di Verona e na New York
University, antes de renunciar de entrar nos Estados Unidos da America, em protesto contra a política de segurança do ante-
rior governo norte-americano. Atualmente leciona Estética e Filosofia Teorética na Università IUAV em Veneza.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Qual é a importância do Com efeito, Agamben começa a se afirmar tarde
pensamento de Agamben para compreen- no cenário filosófico italiano, ou melhor, bastante
dermos a atualidade? recentemente: o primeiro livro importante, Homo
Rossano Pecoraro – Muito significativa. Esta- Sacer (lançado pela Ed. UFMG), é de 1995; O
mos diante de um dos maiores filósofos da nos- que resta de Auschwitz (lançado pela Boitempo
sa época. Autor de uma reflexão eficaz e original Editorial) de 1998; Estado de exceção (lançado
quando intui, enfrenta e tematiza mediante um pela Boitempo Editorial) de 2003 etc. Ele mesmo
método arqueológico, que herda de Michel Fou- repete em entrevistas e ensaios que a sua investi-
cault3 as crises, as tensões, a deriva conceitual, gação completa ainda não apareceu sob luz pró-
os curtos-circuitos e as possibilidades talvez, que pria, que as escavações e as pesquisas que vem
atravessam e caracterizam o presente. Há uma desenvolvendo estão longe de serem levadas a
bela imagem no livro Che cos’è il contempora- termo. Diante de um cenário deste tipo, o risco
neo, no qual Agamben, a partir de uma série de que se corre, em suma, é cair na banalidade e na
experiências (o atual e intempestivo, o antigo e o glamourização ou, o que dá no mesmo, na crítica
moderno, a luz e a obscuridade, por exemplo), fútil mais ou menos preconceituosa das posições
traceja “o contemporâneo” como algo, ou alguém, e das questões em jogo.
que não busca adequar-se ou coincidir com a sua De todo modo, não vou eximir-me de
época, na qual, é bom lembrá-lo, está intensa e responder e indicar algumas diretrizes gerais.
profundamente mergulhado, mas lhe diz “sim” e Neste sentido, uma maneira eficaz para tentar
a interroga mediante um anacronismo, um hiato, reduzir eventuais arbitrariedades e injustiças
um descolamento. e, portanto, para compreender a importância
da produção teórica de Agamben, é inseri-la
IHU On-Line – Quais são as maiores contri- no contexto contemporâneo da tão ultrajada,
buições desse filósofo à política e filosofia? sobretudo em âmbito brasileiro, “história da fi-
Rossano Pecoraro – Não é simples responder a losofia”. Desta forma, é possível perceber com
essa pergunta. E por várias razões. Antes de tudo, mais clareza e precisão o papel de Agamben, a
pelo fato de que Agamben, nascido em 1942, está retomada e o refinamento de conceitos-chaves
em plena produção teórica. Trata-se de um pen- – biopolítica, vida nua, estado de exceção, comu-
samento que ainda está se desdobrando, cons- nidade –, não apenas já delineados pela cons-
truindo, consolidando; que, certamente, possui os telação de autores à qual se refere (Heidegger4,
seus alicerces, as suas perspectivas já suficiente- Deleuze5, Foucault, Benjamin6, Hannah Arendt7,
mente definidas, mas que não deixa de ser algo
a nós tão próximo e, portanto, bastante difícil de
4 Martin Heidegger foi um filósofo alemão. É seguramente
definir. O que acabo de dizer não é nenhuma no- um dos pensadores fundamentais século XX quer pela re-
vidade para os cultores de coisas filosóficas com colocação do problema do ser e pela refundação da Onto-
um mínimo de rigor e honestidade intelectual. logia, quer pela importância que atribui ao conhecimento
da tradição filosófica e cultural.
Menos óbvio, creio eu, é acenar a uma outra difi-
5 Gilles Deleuze foi um filósofo francês. Para ele “a filoso-
culdade, ou seja, a escassez de sólidos comentá- fia é criação de conceitos”, coisa da qual nunca privou-se.
rios sobre a sua obra, daquilo que se costuma de- A sua filosofia vai de encontro à psicanálise, nomeada-
finir como “literatura crítica”, favorecida por um mente a freudiana, que aos seus olhos reduz o desejo ao
complexo de édipo.
dado bio/bibliográfico também pouco lembrado. 6 Walter Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradu-
tor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado com a
3 Michel Foucault foi um filósofo e professor da cátedra Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, foi fortemente ins-
de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de pirado tanto por autores marxistas como Georg Lukács e
France desde 1970 a 1984. Sua obras situam-se dentro Bertolt Brecht.
de uma filosofia do conhecimento. As suas teorias sobre o 7 Hannah Arendt foi uma teórica política alemã, muitas
saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa
modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado designação. Emigrou para os Estados Unidos durante a
por certos autores, contrariando a própria opinião de si ascensão do nazismo na Alemanha e tem como sua mag-
mesmo, um pós-moderno. num opus o livro “Origens do Totalitarismo”. O trabalho

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Carl Schmitt8 etc.), como discutidos a partir do mente ineficazes, inúteis, para a compreensão do
começo dos anos noventa do século passado por mundo contemporâneo no qual, e este é um pon-
outros importantes pensadores da atualidade (Ja- to de grande interesse, o centro é ocupado pela
cques Derrida9, Jean-Luc Nancy10, Roberto Espó- “máquina governamental” que rege as sociedades
sito11, Toni Negri12 e Michael Hardt13 etc.). É como ocidentais, pelo “problema da governamentabili-
se as urgências teóricas e práticas do nosso tempo dade” que ilude os cidadãos e camufla os ataques
tivessem provocado, de fato, uma espécie de con- à liberdade e à democracia. O arcano da política
vergência filosófica para uma série bem delineada declarou recentemente, “não é a soberania, mas o
de temas e problemas decisivos, cruciais. governo; não o rei, mas o ministro; não Deus, mas
Quanto às contribuições de Agamben, gosta- o anjo; não a lei, mas a polícia”.
ria de me manter em um plano mais geral, indican-
do algumas tendências, alguns movimentos da sua
reflexão que me parecem extremamente importan- Método arqueológico
tes. Em primeiro lugar, a constatação, trabalhada
desde o início com rigor e coerência, de que as ca- Em segundo lugar, é preciso destacar que
tegorias tradicionais da política (soberania, estado, o método arqueológico de Agamben, que não
povo etc.) desmoronaram, tornando-se absoluta- é precisamente o de Foucault, permite enfrentar
com a radicalidade necessária mais um ponto
filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, crucial da filosofia contemporânea, vale dizer, a
a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição labo- questão das dicotomias, dos pares conceituais,
ral, a violência, e a condição de mulher. das oposições que dominam a metafísica (um
8 Carl Schmitt foi um jurista, filósofo político e professor
universitário alemão. É considerado um dos mais signifi- exemplo por todos: democracia versus totalitaris-
cativos (porém também um dos mais controversos) espe- mo). A desconstrução, arqueológica e paradigmá-
cialistas em direito constitucional e internacional da Ale- tica, agambeniana da lógica binária subjacente
manha do século XX. A sua carreira foi manchada pela
sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu
transforma esses “conceitos” em algo mais con-
pensamento era firmemente enraizado na fé católica, ten- taminado, menos substancial e demarcado, em
do girado em torno das questões do poder, da violência, uma expressão “campos de tensões polares” que
bem como da materialização dos direitos. não só 1) ajudam a investigar e compreender a si-
9 Jacques Derrida foi um importante filósofo francês de
origem argelina, conhecido principalmente como criador tuação histórica na qual nos encontramos, como
da desconstrução. Seu trabalho teve um profundo impacto 2) possibilitam individuar “uma via de saída”. O
sobre a teoria da literatura e a filosofia continental. que de fato põe em xeque várias interpretações
10 Jean-Luc Nancy é um filósofo francês considerado um
que consideram a obra de filósofo italiano per-
dos pensadores mais influentes da França contemporânea.
11 Roberto Espósito é um eminente filósofo contempo- meada de um certo negativismo, ou pessimismo
râneo que tem trabalhado com o tema da biopolítica tardo-moderno.
no mesmo sentido “negativo” de Giorgio Agamben. O Por fim, um aspecto pouco explorado e de-
programa filosófico do italiano se define pelas noções de
“comunidade”, entendida como o que nos obriga, nos finido, que, porém, parece-me de extraordinária
une na dúvida, e a “imunidade”, intenção de autocon- importância. Ou seja, um novo pensamento da
servação que domina a sociedade atual. técnica, uma sua re-apropriação em um sentido
12 Roberto Espósito é um eminente filósofo contempo-
inaudito a partir das “relações” entre corpo e for-
râneo que tem trabalhado com o tema da biopolítica
no mesmo sentido “negativo” de Giorgio Agamben. O ma, biopolítica e vida nua.
programa filosófico do italiano se define pelas noções de
“comunidade”, entendida como o que nos obriga, nos IHU On-Line – Em que consistira o niilismo
une na dúvida, e a “imunidade”, intenção de autocon-
servação que domina a sociedade atual.
da beleza, ao qual se refere Agamben em
13 Michael Hardt um teórico literário e filósofo político Nudità?
estadunidense. Talvez sua obra mais conhecida seja Rossano Pecoraro – Devemos nos entender a
Império, escrita com Antonio Negri. A continuação de
respeito desse livro recém-lançado na Itália. Nudi-
Império, denominada Multidão, foi lançada em agosto
de 2004, e detalha a ideia de multidão como o sítio tà (Nudez) é uma coletânea, bastante diversifica-
potencial para um movimento democrático global. da do ponto de vista temático, de ensaios e textos

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curtos, alguns dos quais já publicados no passado baseados na aparência, na busca pela perfeição,
e que se concentram em argumentos como o su- na recusa do envelhecimento etc. Todavia, o culto
jeito e o impessoal, a calúnia na obra de Kafka, à beleza e ao corpo possui raízes, e razões, anti-
a fotografia, a dança, a práxis da arte... E prin- guíssimas; e os sinais do nosso tempo que nisso
cipalmente em dois temas de grande importân- insistem devem ser interpretados de uma forma
cia, decisiva contribuição talvez ainda por-vir de menos preconcebida, mais crítica e rigorosa. É o
Agamben à discussão contemporânea, vale dizer, que Agamben faz.
a “inoperosidade” e a “estética da existência”.
Quanto à expressão “niilismo da beleza”, ela IHU On-Line – A supremacia expressiva do
é usada quase de passagem e em um sentido bas- rosto não está sendo suplantada por uma
tante amplo, em um dos escritos, intitulado jus- obsessão do corpo pela forma perfeita, por
tamente Nudità, que compõem o livro. Niilismo, um padrão físico momentâneo?
aqui, designa a redução da beleza a pura aparên- Rossano Pecoraro – Na minha opinião, não se
cia. Trata-se de uma atitude, escreve Agamben, trata exatamente disso. Para Agamben, no ensaio
“comum a muitas belas mulheres”, que, median- que estamos examinando, a nudez de um corpo
te essa “redução”, esse “desencanto da beleza”, parece colocar em questão a supremacia do ros-
essa forma “especial de niilismo”, transfiguram a to; na verdade, porém, o corpo nu se põe “ele
sua beleza em pura aparência, em mero “valor mesmo como rosto” e por sua vez o rosto carrega,
de exposição”, cuja exibição dissolve toda ideia desvela e exibe a nudez do corpo. Como disse em
de que ela (a beleza) “possa significar algo que precedência, o que está em jogo é a tentativa de
não ela mesma”. Este niilismo, porém, denuncia não pensar mais em termos de lógica binária, de
também a presença de um fascínio singular, um oposições, dicotomias e substituições.
abismo de conteúdos no invólucro da aparência,
os segredos que se revelam na nudez quando ela IHU On-Line – É possível conectar as de Nu-
ao mostrar-se declara com desdém e impudência: dità com o conceito de vida nua? Por quê?
“Olhe então essa absoluta, imperdoável ausên- Rossano Pecoraro – Não sei. Não temos muitas
cia de segredo!”. A nudez, pois, que “como uma pistas para acompanhar essa reflexão ensaística
voz branca”, sem máculas, inocente, “não signifi- (isto é: prova, experiência de pensamento, ten-
ca nada e, exatamente por isso, traspassa-nos”. E tativa) sobre a nudez. De qualquer maneira, um
que, sobretudo, “desativa o dispositivo teológico” primeiro passo para possíveis conexões deveria
que afirma a distinção entre a graça e a corrup- ser estudar as relações entre uma das categorias
ção, deixando entrever destarte “o simples, inapa- fundamentais no “sistema” agambeniano, justa-
rente corpo humano”. mente a “vida nua”, a biopolítica e o anseio pela
possibilidade de uma “nova política”, o método
IHU On-Line – Nosso mundo é obcecado pela arqueológico e as ideias mais recentes que bus-
beleza? Que evidências demonstram isso? quei sintetizar na resposta à sua terceira pergunta.
Rossano Pecoraro – Não sei se há evidências
dessa obsessão. Há sim uma série de sinais que IHU On-Line – Como é possível que o esta-
atravessam a atualidade: as capas de jornais e re- do de exceção tenha se tornado uma regra
vistas, as tendências da moda e da propaganda, em nosso tempo?
a influência da “personalidade” e dos “ideais” Rossano Pecoraro – O pressuposto do “esta-
dos vários BBBs confinados nas casas espalha- do de exceção”, formulação diria “clássica” na
das pelo mundo, a Ge-stell (termo heideggeriano história das doutrinas políticas e das teorias do
de grande interesse, que traduzo, de acordo com direito com a qual Agamben se confronta a par-
Gianni Vattimo14, como “im-posição”) de padrões tir das obras de Carl Schmitt, é a máxima latina

14 Gianteresio Vattimo é um filósofo e político italiano, correntes filosóficas dos séculos XIX e XX: o hegelianis-
um dos expoentes do pós-modernismo europeu. Sua mo com sua dialética, o marxismo, a fenomenologia, a
proposta filosófica é uma resposta à crise das grandes psicanalise, o estruturalismo.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

necessitas legem non habet (a necessidade não IHU On-Line – Como o fenômeno do niilis-
tem lei) que “legitima” a suspensão do sistema mo nos ajuda a compreender os conceitos
jurídico em nome de um princípio “superior” de de estado de exceção e vida nua?
necessidade e urgência afirmado para enfrentar Rossano Pecoraro – O niilismo é outra grande
situações que ameaçam a integridade e a vida questão (talvez “a” questão) filosófica da contem-
do Estado. A transformação em “regra” e “para- poraneidade. Seria pouco útil, além de ineficaz,
digma político” do nosso tempo do estado de ex- entrar aqui e agora no mérito da história do con-
ceção se dá, antes de tudo, porque as categorias ceito de niilismo; das suas raízes; dos seus teóricos
fundamentais da tradição democrática ocidental e dos seus críticos. Bastará lembrar que se trata de
entraram em crise ou perderam o seu significa- algo que recebeu as definições mais variegadas,
do (e alcance) “originário”. Desta forma, abre-se sendo considerado, de fato, ora como fenômeno
um espaço enorme para o advento da “máquina de certa forma “positivo” – quando mediante um
governamental”, do domínio do poder executivo, trabalho de crítica e desmascaramento, através de
de um governo democrático que detém o mono- um lúcido diagnóstico do presente nos revela a
pólio da força (e da polícia) e cuja ação de contro- crise de fundamentos, o perigo de derivas autori-
le se exerce mediante um “decisionismo radical” tárias, a ausência de cada verdade, critério abso-
que leva ao esvaziamento dos outros poderes (le- luto e universal e, portanto, convoca-nos diante
gislativo e judiciário), ao fim da política e a uma da nossa própria liberdade e responsabilidade –,
práxis de governo marcada por medidas provisó- ora como movimento “negativo” quando, nessa
rias, decretos de urgências e assim por diante. Es- dinâmica, prevalecem os momentos aniquilado-
sencial, para compreender a visão de Agamben, res, os traços do declínio, do ressentimento, da
é refletir no fato de que este processo, ou seja, a paralisia; do “tudo-vale” e do perigoso silogis-
criação de um estado de exceção permanente é mo: se Deus (a verdade, o princípio etc.) está
“voluntária”, aceita pela grande maioria dos ci- morto então tudo é permitido. Creio que o itine-
dadãos e da opinião pública; ele não se impõe rário cultural e filosófico de Agamben pode ser
por vias subversivas ou golpistas, mas se insinua inserido na primeira trilha de significado. Deste
quase rasteiramente, de maneira absolutamente modo, a contribuição do niilismo para a compre-
legítima e democrática. ensão das noções essenciais do seu pensamen-
to torna-se, à luz de quanto dissemos até agora,
marcante e evidente.

11
Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben

Entrevista especial com Jasson da Silva Martins

Apresentação

“As correlações entre estado de exceção e biopolítica no pensamento político de


Giorgio Agamben” foi o tema apresentado pelo mestrando em filosofia Jasson da Silva
Martins durante o IV Colóquio Nacional de Filosofia da História, que aconteceu
de 27 a 29 de agosto de 2007 na Unisinos. Sobre o assunto, a IHU On-Line conver-
sou, por e-mail, como Jasson que fala sobre a importância do pensamento de Giorgio
Agamben, das relações de sua obra com Walter Benjamin e Foucault e, ainda, sobre
estado de exceção e biopolítica na obra do filósofo italiano.
Jasson da Silva Martins é graduado em Filosofia pela Unilasalle e, atualmente, é
mestrando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com
área de concentração em Sistemas Éticos. 2006.
Giorgio Agamben é autor, entre outros, dos seguintes livros: Ce qui reste
d`Auchwitz. (Paris: Payot & Rivages, 1999); Il tempo che resta. Un commento
alla Lettera ai Romani. (Torino: Bollati Boringhieri, 2000); L’aperto. L’uomo e
l’animale (Torino: Bollati Boringhieri, 2002); Homo sacer. O poder soberano e a
vida nua I (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002); Infância e história (Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2005); A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); e
Profanações (São Paulo: Boitempo, 2007).

IHU On-Line – Qual é a importância do IHU On-Line – O que significa isso?


pensamento de Giorgio Agamben para a Jasson da Silva Martins – Significa que o seu
filosofia e para a política contemporânea? pensamento e fazer filosófico dizem respeito, em
Jasson da Silva Martins – Acredito que a principal boa medida, à Europa. Se observarmos as suas
contribuição de Agamben gira em torno da redes- grandes questões, elas dizem respeito muito mais
coberta da filosofia política em nova chave de lei- aos europeus do que aos povos latino-america-
tura, melhor dito, com elementos históricos e con- nos. Eventos que aconteceram na América, por
junturais, mas, sobretudo, marcada pelos últimos exemplo, o genocídio de tribos indígenas no ter-
acontecimentos históricos. Igualmente cabe ressal- ritório dos Estados Unidos, a escravização dos
tar a importância de temas que ainda não foram negros e os regimes militares que ocorreram em
completamente “elaborados”, como a relação entre toda América Latina, não são tematizados por
direito/política, soberania/democracia, ciência/vida. ele. Considero importante ter isso em mente
Por fim, é importante “localizar” o pensamento de quando nos defrontamos com as suas reflexões
Agamben dentro do pensamento europeu. mais universalistas. Mas, sem dúvida, ele é um

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pensador-chave para nos ajudar compreender os que essa relação não salta aos olhos assim, sem
problemas conjunturais da nossa época. mais. É preciso “ler” sob um novo viés essas rela-
ções que tem se tornado comum na política atual,
IHU On-Line – Que tipo de relação pode- como um todo. Por exemplo: toda essa preocu-
mos fazer entre a obra de Agamben e Wal- pação (sobretudo aqui no estado do RS) com o
ter Benjamin? aumento do número de jovens que são vitimados
Jasson da Silva Martins – É sabido que Wal- pelo trânsito, bem como a estreita relação desses
ter Benjamin15 influenciou Agamben. Ele mes- acidentes com a bebida, não quer dizer que o go-
mo presta conta disso assumidamente. Acredito verno esteja preocupado com a nossa juventude.
que as grandes teses de Benjamin ganham uma Essa preocupação salta aos olhos pelos números
nova moldura, por assim dizer, dentro da obra de apresentados pelas estatísticas dos últimos anos
Agamben. Foi ele quem organizou as traduções (ou seja, cientificamente) e o posterior custo que
da obra de Benjamin na Itália. A principal contri- resulta de tais acidentes para os cofres públicos.
buição, muito presente, no pensamento do filó- Tudo isso confrontado com a imagem do Estado
sofo italiano, acredito que seja no tocante à vio- ou do país diante dos organismos internacionais
lência e ao direito. Agamben leva muito a sério a (ONU, Unesco, Banco Mundial, OMC, OMS...).
tese de Benjamin que versa sobre a origem e a le- Essa tem sido uma prática política corriqueira,
gitimação do poder, na perspectiva do soberano. no que diz respeito às políticas públicas (inclusão,
segurança e tantas outras) intimamente ligadas a
IHU On-Line – Que tipo de correlações um poder soberano que se respalda em alguma
você faz entre o estado de exceção e a bio- ciência (estatística, psiquiatria, economia, sociolo-
política, utilizando o pensamento político gia...), na qual é possível mascarar os verdadeiros
de Agamben? interesses do poder soberano, com ar de cientifi-
Jasson da Silva Martins – Eu diria que é uma cidade. Não estou levantando suspeita sobre ne-
relação quase inevitável hoje em dia, dado o pro- nhuma ciência, mas sobre a apropriação que o
gresso da técnica e a complexidade do Estado. Estado faz dos resultados dessas ciências ou de
Para Agamben, o estado de exceção é a norma seus métodos. Ou alguém, ultimamente, ouviu
das atuais democracias e está intimamente ligada o Lula falar outra coisa a não ser confrontar nú-
às práticas de governo, que, por sua vez, estão meros macroeconômicos? Isso mostra bem que
ligadas ao governo da vida e a “normalização” a população é levada em conta pelo estado de
[no sentido de Georges Canguilhem16. É evidente forma apenas secundária. A presença mais inten-
sa, a meu ver, de uma prática normalizadora é
a aparelhagem da Receita Federal, onde o fisco
15 Walter Benedix Schönflies Benjamin é um crítico
literário e ensaísta alemão. Em 1915, conhece Gerschom suga cada vez mais os contribuintes e cada vez
Gerhard Scholem de quem se torna muito próximo, quer fica mais difícil fugir das garras do Leão.
pelo gosto comum pela arte, quer pela religião judaica
que partilhavam. Em 1925, Benjamin constatou que a
IHU On-Line – A “profanação do impro-
porta da vida acadêmica estava fechada para si, tendo
a sua tese de livre-docência Origem do drama barroco fanável” é a tarefa das gerações futuras?
alemão sido rejeitada pelo Departamento de Estética da Como ela será, a partir do pensamento de
Universidade de Frankfurt. Nos últimos anos da década Agamben, executada?
de 1920, o filósofo judeu interessa-se pelo marxismo, e
juntamente com o seu companheiro de então, Theodor
Jasson da Silva Martins – Eu não diria que
Adorno, aproxima-se da filosofia de Georg Lukács. é das futuras gerações, pois o futuro dessas fu-
16 Georges Canguilhem foi um filósofo francês especialis- turas gerações é o hoje, o presente. E o que nós
ta em epistemologia e filosofia da ciência (em particular, temos? Nós estamos acordando dos arroubos de
biologia). Foi colega, na École Normale Supérieure, em
1924, de Jean-Paul Sartre, Raymond Aron e Paul Nizan.
Recebeu seu doutorado em 1943, durante a II Guerra trabalho principal de Canguilhem na filosofia da ciência
Mundial. Em 1955, foi nomeado professor na Universi- é apresentado em dois livros, Le normal et le patholo-
dade de Sobornne e sucedeu Gaston Bachelard como gique, publicado primeiramente em 1943, e depois La
o diretor das ciências do DES de Instituto de história. O connaissance de la vie, de 1952.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

maio de 1968, por incrível que pareça. Agora nós Jasson da Silva Martins – Precisamente sobre
(sobretudo no Brasil) podemos fazer um balanço o estado de exceção eu diria que Agamben está
de tudo àquilo que foi sonhado por aquela gera- mais próximo de Benjamin e em estreita apro-
ção. Como é possível saber disso? Observando ximação com as teses de um jurista importante,
os efeitos práticos que não estavam explícitos na- que é Carl Schmitt (4). Em sua obra Homo sa-
queles sonhadores e fundadores de partidos. E o cer (1995) ele faz uma retomada dos temas le-
que vemos? Basta olharmos para o PT, a título de vantados pelo filósofo francês, sob um viés mais
exemplo, um dos últimos guardadores da moral e político e filosófico e menos histórico e sociológi-
da eticidade. Ele foi gestado naquela efervescên- co. Debord18 e Deleuze19 eu não saberia avaliar
cia da década das revoluções. Seus fundadores a importância dentro do pensamento político de
ficaram inebriados com aquela bebida nova (sin- Agamben. Por outro lado, essa influência pode
cretismo de ideologias), que jorrava de diversas ser expressa em outras temáticas debatidas por
fontes, mas as fontes secaram. Resta-nos investi- Agamben (estética, hermenêutica, literatura...).
gar por quê? O pensamento de Agamben talvez No pensamento político, acredito que não é tão
nos peça mais cautela e mais acuidade, no julga- expressiva assim.
mento dos fatos e mais criticidade na compreen-
são dos fatos históricos. Não vivemos mais numa IHU On-Line – Em sua opinião, a política
época de efervescência. Hoje, os problemas são contemporânea é, necessariamente, uma
outros e requerem outra forma de abordagem e biopolítica?
nesse sentido é possível sim profanar o culto dos Jasson da Silva Martins – Eu estou inclinado a
nossos antigos ídolos (deuses). Como eu disse, é dizer que não. Mas se olharmos a prática política
uma tarefa dessa geração, para garantir a possibi- e como essa tendência tem crescido ultimamente,
lidade de existência de uma futura geração e isso acho que não está de todo errado quem disser
é urgente. que ambas estão bastante próximas. Isso é mais
visível quando a política deixa o debate de idéias
IHU On-Line – Utilizando-se das obras de de lado e passa a debater técnicas, em busca de
Agamben, quais são as áreas mais obscuras atingir metas. Isso é lastimável, mas está tão pró-
do direito e da democracia, atualmente? ximo de nós que é preciso muita acuidade para
Jasson da Silva Martins – Essa é uma questão fazer uma distinção mais rigorosa.
chave para Agamben ao remontar as teses ben-
jaminianas. A questão de fundo está colocada na
impossibilidade do direito limitar o poder sobera-
no nos estados democráticos e, com isso, perder saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções
modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado
a sua legitimidade. Isso ocorre porque a própria por certos autores um pós-moderno. Sobre o filósofo, a
conquista do poder é, por si, um ato que suplanta Revista IHU On-Line possui uma edição especial.
o direito e acaba por legitimá-lo. Ou seja, tanto 18 Guy Debord foi um dos pensadores da Internacional
Situacionista e seus textos foram a base das manifestações
o direito quanto a própria democracia vivem à
do Maio de 1968. A sociedade do espetáculo é seu
mercê da vontade do soberano, o que é algo bem trabalho mais conhecido. As teorias de Debord atribuem
pontual que Agamben vem discutindo nas suas a debilidade espiritual, tanto das esferas públicas quando
últimas obras. da privada, a forças econômicas que dominaram a
Europa após a modernização decorrente do final da II
Guerra Mundial. Ele rejeita o capitalismo de mercado do
IHU On-Line – O que há de Foucault17, no ocidente e o capitalismo de estado do bloco socialista.
conceito de Estado de exceção criado por Em sua análise, Debord desenvolve as noções de
Agamben? “reificação” e “fetichismo das mercadorias”, introduzidas
por Karl Marx em sua obra O capital, comprovando as
raízes históricas, econômicas e psicológicas da “mídia”.
17 As obras de Michel Foucault, desde a História da 19 O filosofo francês Gilles Deleuze dedicou-se à história
Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde da filosofia. A sua filosofia vai de encontro à psicanálise,
completar devido a sua morte) situam-se dentro de nomeadamente a freudiana, que aos seus olhos reduz o
uma filosofia do conhecimento. Suas teorias sobre o desejo ao complexo de Édipo.

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O campo como paradigma biopolítico moderno

Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

Giorgio Agamben, no capítulo 3 de sua obra biopolítica, o autoritarismo da soberania com as


Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua, táticas da governamentalidade dos sujeitos, é a
destaca que os estudos de Foucault sobre biopo- captura da vida humana na forma da exceção ju-
lítica conseguiram mostrar que a modernidade rídica que cria o homo sacer. Esta mostra a vigên-
inverteu a relação da política clássica com a vida cia, mesmo no estado de direito, da vontade so-
natural (zoe). Sua máxima de que: “por milênios, berana que reduz a vida humana a pura vida nua.
o homem permaneceu o que era para Aristóteles: A biopolítica moderna provoca um alargamento
um animal vivente, e além disso, capaz de exis- progressivo da soberania para além dos limites
tência política; o homem moderno é um animal do estado de exceção. Uma linha em movimento
em cuja política está em questão a sua vida de ser que se desloca cada vez mais para o controle da
vivente”. A modernidade capturou a vida natural vida humana em que vigora a vontade soberana
como um elemento útil e produtivo, e fez da po- e reduz aquela a pura vida nua.
lítica a arte de governo da vida humana. Este é o Agamben chama atenção para a contradi-
escopo da política moderna que cada vez mais é ção que habita o próprio estado de direito que
uma biopolítica. pensa ter abolido a vontade soberana quando na
Paralelamente aos estudos de Foucault, verdade ela permanece oculta, para ser utilizada
Hannah Arendt, que não utiliza o conceito de bio- quando for preciso, na figura jurídica do estado
política, constata que a vida humana se tornou o de exceção. Ainda Agamben mostra que na ori-
objeto a ser administrado na sociedade moderna, gem da política moderna, antes que os direitos do
suplantando a política como espaço de delibera- cidadão, está a captura política do corpo. O docu-
ção e auto-gestão dos sujeitos. Ainda Agamben mento do Habeas Corpus, de 1679, colocado na
destaca que os estudos de Hannah Arendt per- base da política moderna, significa o primeiro re-
cebem com clareza o nexo do domínio totalitá- gistro da vida nua como sujeito político moderno.
rio naquela condição particular da vida que é o A grande metáfora do Estado moderno, o Leviatã
campo. Os campos de concentração, longe de ser de Hobbes, cujo corpo é formado pelo corpo de
uma irracionalidade pontual do nazismo, repre- todos os indivíduos, deve ser lida sob esta luz.
sentam um paradigma da política moderna. Fou- Hannah Arendt compreendeu muito pers-
cault, de forma estranha, não analisou a atualida- picazmente que a figura dos refugiados políticos
de da soberania nas implicações biopolíticas dos apresenta de forma escancarada as contradições
totalitarismos modernos: fascismos e nazismo. Por biopolíticas da vontade soberana subsistente no
outro lado, Hannah Arendt não levou em conta Estado moderno. O refugiado deveria encarnar a
a definitiva derivação da política moderna numa figura por excelência dos direitos humanos. Con-
lógica biopolítica. tudo, o que se verifica é que sua mera condição
A pesquisa de Agamben se propõe transitar de ser humano, despojado dos direitos políticos
no vácuo que restou nestes dois pensadores mos- provenientes do Estado-nação, o torna vulnerá-
trando que o liame que vincula o campo com a vel a qualquer violência, frágil a todos os abusos.

15
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Desprotegido pela ausência do direito de um Es- não se derivam de sua condição natural de seres
tado-nação que o reconheça para além de mero humanos.
humano como cidadão seu, ele está exposto Segundo Agamben, estas distinções não são
como mera vida nua. meras restrições ao principio da igualdade demo-
crática, mas contem um coerente significado bio-
político pelo qual há uma necessidade permanen-
Tanatopolítica te de redefinir qual a vida humana que está fora
e dentro dos direitos do Estado-nação. Tal tensão
Agamben destaca que as sucessivas declara- reaparece constantemente nos momentos de cri-
ções dos direitos do homem nada mais são do se do Estado ou da sociedade, por exemplo na
que a inscrição da vida natural na ordem jurídico- figura do apátrida. Na primeira guerra mundial o
política do Estado-nação. A vida natural que no nexo entre a vida humana e os direitos do Estado-
regime anterior era indiferente, agora se torna o nação mostrou amplamente sua fragilidade e fez
fundamento da nova soberania do Estado-nação. aparecer a vontade soberana com poder de des-
Na origem da soberania moderna estaria a na- tituir de direitos a grandes parcelas da população,
ção. Esta por sua vez remete aos nascidos numa tornando-os apátridas refugiados abandonados
terra. É o sangue e o nascimento num território pelo direito e pelo Estado. Nessa condição eles
que constituem a soberania moderna do Estado- estavam prontos e vulneráveis para receber com
nação. Aqueles que não tiverem o sangue dos total impunidade todas as violências. Em breve
nacionais nem tiverem nascido no território estão período de tempo deslocaram-se 1.500.000 de
fora da soberania e, consequentemente, das ple- russos brancos, 700 mil armênios, 500 mil búlga-
nitudes dos direitos. Tal vínculo confere à sobera- ros, um milhão de gregos, centenas de milhares
nia moderna um caráter biopolítico pelo qual o de alemães, húngaros, romenos. A França foi, em
principal direito é aferido da vida humana natural. 1915, a primeira nação a decretar a desnaciona-
Quando os nazistas vinham a invocar como lização de todos os cidadãos de origem “inimi-
características do Estado ariano o sangue e a ga”. Em 1922, Bélgica retirou a nacionalidade
território, não estarão inovando uma biopolítica de todos os cidadãos que tinham cometido “atos
racista para o nazismo, mas estarão dando pros- antinacionais”. Em 1926, o regime fascista de Itá-
seguimento a uma lógica biopolítica inerente ao lia desnacionalizou a cidadãos “indignos da cida-
Estado-nação que no seu paroxismo se torna dania italiana”. Em 1933 a Áustria utilizou este
uma tanatopolítica. recurso de exceção jurídica. Os Estados Unidos,
Uma simples aproximação ao texto de 1789 durante a Segunda Guerra Mundial, aprisionou
da Declaração dos Direitos do Homem mostra a em campos de concentração mais de 120 mil ci-
contradição biopolítica persistente desde origens dadãos americanos de origem japonesa e alemã,
do Estado-nação. Já foi observada a distinção pelo mero fato de serem de tal etnia.
que a declaração faz entre direitos do homem e Quando o regime nazista decide desnaciona-
direitos do cidadão. Tal distinção remete ao que lizar a todos os judeus tornando-os pura vida nua,
já Sieyés denominou de direitos passivos e ati- e portanto matáveis por qualquer um sem puni-
vos. Os direitos passivos são próprios de todos os ção, o nazismo não inovou uma barbárie contra
cidadãos enquanto nascidos, pois eles advêm da a humanidade, senão que deu sequência a uma
sua condição natural de homens: direito à vida, prática comum do Estado moderno, só que em
igualdade, liberdade... Os direitos ativos são ad- proporções tantopolíticas antes nunca vistas. O
quiridos pela condição social: votar e ser votado, que aterroriza no nazismo não é sua barbárie, se-
ter direito a cargos públicos não seriam direitos da não tê-la cometido dentro da legalidade inerente
natureza. Segundo Sieyès nem as mulheres, que ao estado de exceção. O estado nazista não co-
como as crianças são incapazes, nem os traba- meteu um ato de ilegalidade jurídica, já que fez
lhadores que não pagam impostos, nenhum de- da exceção a norma, e da vontade soberana o
les têm direitos ativos de cidadania, já que estes modo de governo da vida humana. Tudo ampa-

16
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

rado no Estado de direito que lhe dava a prer- cia, até a barbárie extrema, a práticas comuns nos
rogativa inicial de decretar o estado de exceção Estados de direito ocidentais. Na atualidade nos
para tornar a vontade soberana lei absoluta. deparamos com o debate da eutanásia e ainda
com o direito à eutanásia, um direito do indivíduo
e, neste caso, um dever do Estado. Sem entrar
“Vida indigna de ser vivida” no debate ético da questão, Agamben analisa a
prática nazista da eugenia da população e seus
O refugiado e o apátrida continuam a mos- “sólidos” argumentos. Em 1920 edita-se a obra:
trar a lógica biopolítica que sustenta o Estado-na- Autorização do aniquilamento da vida indigna de
ção. Quando uma pessoa ou grupo populacional ser vivida, de Karl Binding e Alfred Hoche, que
se torna uma ameaça para a ordem, o Estado uti- servirá de base argumentativa para os programas
liza-se da exceção jurídica para separar os direitos de extermínio de pessoas consideradas deficien-
da cidadania da mera vida nua. Esta separação tes ou incapazes. O argumento que se invoca é
possibilita expulsar para fora do direito a vida que que o suicídio é um direito do sujeito que está
se pretende controlar na forma de exceção. Na fora do direito. É um ato soberano sobre a própria
exceção o direito suspenso torna a vida humana vida. No poder sobre a própria vida se manifes-
um homo sacer, exposto à fragilidade da violação ta plenamente a soberania o que torna o suicídio
sem que o direito possa ser invocado para pro- impunível. Daqui deduzem os autores a necessi-
tegê-lo. A figura dos refugiados, assim como os dade de autorizar “o aniquilamento da vida indig-
milhões de emigrantes clandestinos, é a expressão na de ser vivida”. Com esta expressão pretendem
de como opera o dispositivo da exceção no con- reconhecer que há muitas formas de vida que
trole da vida humana. Ainda a separação entre o perderam o valor de tal condição, pelas diversas
humano e a cidadania se torna mais contraditória degradações biológicas ou psicológicas possíveis.
no denominado direito humanitário. Este é um Isso torna essas vidas indignas de ser vividas e
direito ao qual se lhe nega expressamente a possi- suscetíveis de aniquilamento sem punição. Ainda
bilidade de ter um caráter político. Neste caso, as os autores dão um passo a mais ao afirmar que as
chamadas organizações humanitárias são instru- vidas sem valor, ou vidas indignas de ser vividas,
mentalizadas, em muitos casos, como meios para nem sempre os sujeitos têm autonomia para soli-
compensar as barbáries humanas dos interesses citar o direito do suicídio. É o caso dos deficientes
políticos. As últimas guerras do século XX e todas mentais, enfermos comatosos, anciãos de muita
as do século XXI foram feitas para defender os di- idade... Neste caso, o Estado e a sociedade pode
reitos humanos, quando na verdade se defendem assumir a autonomia dos sujeitos para si e lhes
interesses econômicos e políticos. Para compensar oferecer o seu direito de “não viver uma vida in-
as tragédias humanitárias provocadas pela OTAN digna de ser vivida”. Tal sequência argumentativa
e pelos Estados Unidos no Iraque, Kuwait, Afga- mostra a evidência que vincula a vontade sobera-
nistão, Líbia, etc., são convocadas organizações na do Estado com o poder sobre a vida, entanto
humanitárias a fim de dar assistência às popula- reduz a vida humana a mera vida natural tornado
ções atingidas. Nos campos de refugiados vigora as pessoas homo sacer. Foi esta lógica que levou
o direito de cuidar da vida nua, da sobrevivência, ao extermínio de aproximadamente 60 mil pesso-
mas se nega os direitos políticos das pessoas ali as, consideras vidas indignas de ser vividas.
encerradas para agir. Para Agamben, a integração entre política e
Agamben analisa o vínculo entre a soberania medicina é uma das características da biopolítica
e a vida humana nos Estados modernos a partir moderna. Tal implicação faz que a decisão sobera-
de vários exemplos, mas o estado nazista repre- na sobre a vida cada vez mais tenda a deslocar-se
senta a tentativa mais evidente de um estado bio- para outros âmbitos em que a política se torna
político. O que estarrece é perceber que o modelo um terreno ambíguo com a medicina, fazendo
biopolítico nazista manteve um escrupuloso prin- muitas vezes do médico um soberano sobre a
cípio jurídico em seus atos e ainda deu sequên- vida e morte dos outros. Neste ponto cabe pen-

17
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sar, por exemplo, a realidade brasileira em que exceção e a tornou uma vida nua, um homo sa-
diariamente muitos médicos devem decidir quais cer. O campo tem um estatuto jurídico paradoxal.
pessoas devem ficar fora das UTI (Unidades de Aparentemente é um território colocado fora do
Tratamento Intensivo) dos hospitais, por falta de ordenamento jurídico normal, quando na realida-
vagas, condenando-as a um grave risco de morte de representa a exterioridade interna da ordem
ou a uma morte certa. que o instituí a partir da vontade soberana. É uma
Conclui Agamben esta obra com um capítu- exterioridade da ordem social, porque a ela não
lo sobre O Campo como nómos do moderno. O pertence, mas sua existência revela a oculta inte-
autor defende a tese de que o campo, longe de rioridade do Estado em que continua vigente a
ser uma experiência pontual da barbárie nazista, vontade soberana como poder decisório sobre a
é uma figura jurídico-política inerente ao Estado vida humana e garantidora, em último extremo,
moderno. Esta seria uma outra diferença com da ordem que criou. Para Agamben, o campo
os estudos de Foucault, que considera a prisão inaugura um novo paradigma político, reflexo da
o paradigma da anatomo-política moderna. Se- política moderna em que a vida humana poderá
guindo Agamben, temos que considerar o campo sofrer, dependendo das circunstâncias e necessi-
como o espaço geográfico (ou demográfico) em dades, a suspensão parcial ou total de seus di-
que a exceção se torna a regra. Há um nexo entre reitos, o que irremediavelmente a colocará numa
a exceção jurídica e o campo. Quando se realiza forma de exceção e conseqüentemente em algum
a suspensão total ou parcial dos direitos sobre a tipo de campo. Uma vez que a política moderna
vida de algumas pessoas, elas automaticamente é cada vez mais uma biopolítica, ninguém está a
passam a viver num espaço em que a exceção salvo de num dado momento e por uma determi-
se torna sua norma de vida, é o campo. Como nada circunstância cair sob a exceção decretada
Walter Benjamin já agudamente diagnosticou na por uma vontade soberana e tornar-se homo sa-
sua tese VIII sobre a história: para os oprimidos cer. A potencial possibilidade que todos em algum
o estado de exceção é a regra. Neste ponto, as momento e circunstância de sermos homo sacer,
pesquisas de Agamben seguem as teses de Benja- faz Agamben afirmar que vivemos num estado de
min. O campo é o espaço em que ordenamento exceção permanente.
está suspenso e em seu lugar se coloca a vontade Ainda Agamben se pergunta pela genealogia
soberana. No campo a vontade soberana coinci- dos campos. Independente dos debates históricos,
de com a lei, já que lei é o arbítrio soberano. Nes- é chocante constatar que a existência do campo
se caso, a vida humana que cai sob a condição como figura jurídico-política está presente desde
da exceção se torna um verdadeiro homo sacer. É a origem do Estado moderno. Embora Agamben
uma vida nua sobre a qual vigora a vontade sobe- não faça menção, cabe destacar a concomitância
rana como lei absoluta e a exceção como norma que vincula o surgimento das nações modernas
de sua existência. com a escravidão como prática de Estado. A sen-
Hannah Arendt observou que nos campos zala é talvez a primeira experiência moderna de
emerge com todo vigor o domínio totalitário. A campo em que, a partir de uma política de Esta-
particular estrutura jurídico-política do campo do, (des)regulamentada pelas leis dos Estados, a
tende a realizar estavelmente a exceção. Neles a vida humana é reduzida à mais bárbara condição
biopolítica atinge o ápice de seu poder de contro- de homo sacer jamais implementada na história.
le sobre a vida humana, agora mera vida nua. O Foram mais de três séculos comercializando se-
campo representa uma zona de indistinção entre res humanos como política de Estado. As nações
o externo e interno, entre a suspensão da ordem modernas levaram ao ápice sua lógica biopolítica
e a ordem soberana, entre o lícito ou ilícito. No de utilizar a vida humana como recurso natural.
campo, a vida humana é captura pela exceção Mas ainda podemos identificar nas denominadas
jurídica na forma de uma exclusão inclusiva. Ela reservas indígenas criadas no século XVIII pelos
é excluída dos direitos fundamentais, mas está EEUU, após a sua independência e para segregar
capturada pela vontade soberana que decretou a as populações indígenas, o embrião jurídico do

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que serão a estrutura dos campos durante os sé- porém onde estavam abandonados já que nem
culos seguintes. Os EEUU, que proclamam a sua sequer comida suficiente tinham. Muitos morre-
independência a partir da afirmação do Estado ram de fome. Quando França decretou a guer-
de direito e dos direitos naturais de todos os cida- ra contra Hitler, utilizou os refugiados espanhóis
dãos, criaram as reservas como espaços em que para colocá-los na linha de frente nas primeiras
não vigoravam os direitos de cidadania nem se batalhas contra os nazistas. Cerca de 300.00 fo-
aplicava a constituição do Estado. As populações ram parar em campos nazistas, inclusive foram
indígenas que viviam nas reservas estavam fora prisioneiros republicanos espanhóis os primeiros
do direito, ainda se alguém (um cidadão norte que foram para o campo de Mauthausen marca-
americano) as matasse ou roubasse, não cometia dos com um triângulo azul, obrigados a construir
delito no sentido estrito da lei. Confinadas num o próprio campo. Mas o campo não deixou nunca
espaço geográfico em que o direito estava sus- de existir como o lado sombrio do Estado-nação.
penso, a vida dos indígenas se tornou plenamente A figuras recentes de Guantánamo, as cárceres se-
vulnerável. A conseqüência histórica é bem co- cretas da OTAN, os campos clandestinos criados
nhecida, o extermínio massivo dos indígenas e a por França na Argélia para expulsar os emigran-
limpeza étnica de um território que pode ser livre- tes clandestinos, os acampamentos palestinos ou
mente colonizado pelos cidadãos do novo Estado. iraquianos, as zonas administrativas em que são
Agamben constata que a realidade do cam- confinados todos os emigrantes ilegais capturados
po, como espaço onde a exceção controla a vida sem papeis, são exemplos muito próximos em
humana como norma, não tem cessado de existir que a figura do campo se recicla numa espécie de
ao longo dos tempos e até os momentos atuais. metamorfose onde permanece o essencial de si
Os espanhóis o utilizaram em Cuba para controlar mesmo: uma zona de exceção em que a vontade
as populações independentistas, os ingleses em soberana prevalece e a vida humana é reduzida a
África do sul contra os bôeres. Antes dos lager na- mera vida natural.
zistas a república do Weimar tinha criado campos A vigência do campo como figura potencial
para encerrar os prisioneiros políticos comunistas onde todos poderemos cair numa ou outra opor-
na Alemanha. França, ainda em 1939, recebeu tunidade, leva Agamben a sustentar uma afirma-
a avalanche de refugiados espanhóis que fugiam ção radical: “O campo, que agora se estabelece
do fascismo de Franco encerrando dezenas de firmemente em seu interior é o novo nómos bio-
milhares em campos onde lhes era proibido sair, político do planeta”.

19
Agamben e o horizonte biopolítico como terreno de escavação

Entrevista especial com Daniel Arruda Nascimento

Por Márcia Junges

Apresentação

“Manter o horizonte biopolítico para o seu terreno de escavação é objeto de uma


escolha pelo filósofo italiano: somente demorando-se neste horizonte será possível
decidir se as categorias políticas com as quais estamos acostumados a compreender o
mundo habitado, hoje confusas a ponto de entrarem em zonas de ‘indiscernibilidade’,
podem ser ainda usadas na compreensão do fenômeno político”. A afirmação é do
filósofo Daniel Arruda Nascimento em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
E completa: “A obra de Agamben permite o trânsito entre as reflexões que estão origi-
nalmente ancoradas na filosofia, na literatura ou nas ciências jurídicas, na política, na
economia ou na teologia, sem descuidar da fidelidade à questão dada”.
Daniel Arruda Nascimento é bacharel em Direito pela Universidade Federal Flu-
minense, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Trabalhou como pro-
fessor adjunto na Universidade Federal do Piauí de outubro de 2009 a abril de 2013,
tendo se integrado ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epis-
temologia, na Linha de Pesquisa Ética e Filosofia Política. Atualmente é professor na
Universidade Federal Fluminense. Daniel este no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
em 16-04-2013 apresentando a obra Homo sacer, dentro da programação do Se-
minário O pensamento de Agamben – Homo Sacer – O poder soberano e a vida
nua. É autor de Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio
Agamben (São Paulo: LiberArs, 2012).

IHU On-Line – Qual é a atualidade e espe- cimento, geralmente tratadas por nós, em nossos
cificidade da análise de Agamben sobre a ambientes acadêmicos cada vez mais especiali-
política na contemporaneidade? zados, como campos de estudo independentes.
Daniel Arruda Nascimento – Acredito que Embora seja nítido o incremento de esforços para
uma das características mais marcantes do modo unir diversas visões sobre um mesmo objeto de
de filosofar de Giorgio Agamben seja a possibili- pesquisa e até subverter a estrutura da raciona-
dade de trânsito entre diferentes áreas do conhe- lidade moderna, acompanhando uma realidade

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que de longe não pode ser compreendida en- diferentes meios, fruto de um interesse que não
quanto estática, estamos ainda ensaiando nos parou de crescer desde o fim do século passado,
distanciar da simples conjugação formal entre seja o indício mais evidente de que ela vem ocu-
ciências. A obra de Agamben permite o trânsito par um espaço lacunar.
entre as reflexões que estão originalmente anco-
radas na filosofia, na literatura ou nas ciências ju- IHU On-Line – Qual é a influência de Fou-
rídicas, na política, na economia ou na teologia, cault e Hannah Arendt no pensamento po-
sem descuidar da fidelidade à questão dada. Isso lítico de Agamben?
pode ser observado pela quantidade de referên- Daniel Arruda Nascimento – Para responder
cias mobilizadas pelo filósofo italiano, o que pode a esta pergunta não é possível deixar de observar
deixar à primeira vista perplexo o seu leitor. as indicações que o próprio filósofo se permite fa-
Penso ainda que outra característica deter- zer na introdução de Homo sacer: il potere sovra-
minante do modo de filosofar de Giorgio Agam- no e la nuda vita, publicado em 1995, livro que
ben seja digna de nota: ele se torna menos de- viria a alavancar o seu projeto filosófico e oferecer
pendente das noções e dos conceitos que alicia ao leitor os seus principais delineamentos. Embo-
do que uma parte considerável dos grandes ex- ra seja bastante provável que Giorgio Agamben
poentes da nossa tradição filosófica ocidental. Se tivesse já preparado um complexo de anotações
os seus livros orbitam em torno de algumas figu- que poderiam orientá-lo no futuro, o fato é que,
ras conceituais, elas podem ser abandonadas ou em uma pesquisa arqueológica, como é o caso
abordadas mediante outras expressões, sem que e como o admite o filósofo italiano no prefácio
percam a força da aparição inicial lá onde antes de Opus Dei: archeologia dell’ufficio, publicado
apareceram. Por isso temos a impressão que ele em 2012, acontece com frequência de a pesqui-
está sempre começando do zero a cada livro que sa conduzir o pesquisador para além do âmbito
publica, ou que está sempre buscando entender no qual a havia iniciado. As influências de Michel
um mesmo fenômeno por outros ângulos e com Foucault e Hannah Arendt são atestadas pelas re-
outras referências. ferências explícitas na introdução de Homo sacer:
il potere sovrano e la nuda vita, mas podemos
identificá-las em todo o percurso do desenvolvi-
Ressonância mento do seu projeto filosófico e, até, nos livros
lançados anteriormente (embora o diálogo com
No que concerne à atualidade e especifici- Martin Heidegger e Walter Benjamin fosse mais
dade da análise de Agamben sobre a política na permanente nos seus primeiros escritos). No que
contemporaneidade, traços da sua obra ainda em diz respeito a Foucault, a sua admiração e filia-
desenvolvimento podem ser enumerados. Pri- ção são confessadas sem reservas em Signatura
meiro, colocando-se no rastro aberto por Michel rerum: sul método (Torino: Bolalti Boringhieri,
Foucault, uma preocupação cada vez maior será 2008), publicado em 2008, o livro no qual Agam-
para ela a aproximação e o isolamento de certas ben pretende explicar o seu método de pesquisa.
estruturas de poder, mecanismos e dispositivos de A opção pela distinção de paradigmas será decisi-
domínio, invisíveis do ponto de vista panorâmico. va no seu pensamento político.
Segundo, nunca será para ela um esforço desne-
cessário enveredar por arqueologias que resga-
tem parentescos escondidos pelo tempo de uso e Referências e influências
nos auxiliem a identificar outros sentidos para as
palavras que hoje têm um peso para nós. Tercei- Por outro lado, uma carta escrita de próprio
ro, ela tem o condão de fazer-nos considerar com punho por Agamben no dia 21 de fevereiro de
novo ânimo os excursos que tanto o teológico e 1970 e endereçada a Arendt, quando o filósofo
o econômico lançam sobre o político e o jurídico. contava com apenas vinte e sete anos, revela a
Talvez, a ressonância encontrada por sua obra em dimensão da descoberta dos livros da autora na

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sua formação. Quase uma década antes que sua centro da cena política na modernidade. Cuida-se
produção bibliográfica conhecesse um ritmo in- neste terreno de escavações de não se deixar es-
tenso, o jovem escritor e ensaísta, assim apresen- tagnar no mero reconhecimento de uma ances-
tado por si mesmo, salienta que precisa expressar tralidade comum entre o homem e o animal. Uma
a sua gratidão e explica a Arendt que sente a ur- vez que a nossa cultura é definitivamente marca-
gência de trabalhar na direção apontada por ela. da pela distinção entre o homem e o animal e a
Cá entre nós, não é fabuloso ver como os autores nossa humanidade não foi obtida senão através
que servem de referência para as nossas pesqui- da suspensão da animalidade, o conflito político
sas também se permitiram encontrar referências originário consiste naquele conflito entre a hu-
e serem influenciados por outros que marcaram manidade e a animalidade do homem, conclui
inevitavelmente os seus caminhos? Agamben em L’aperto: l’uomo e l’animale (Bollati
Boringhieri, Torino 2002), publicado em 2002.
IHU On-Line – Qual é o nexo entre biopolí-
tica, politização da vida e animalização do
homem na obra do pensador italiano? Biologização da política
Daniel Arruda Nascimento – Retomando o
que disse anteriormente, a introdução de Homo No campo das ciências naturais, se a subs-
sacer: il potere sovrano e la nuda vita não deixa tituição de um mundo estático pela visão de um
dúvidas quanto à existência da articulação entre mundo em constante mudança e a substituição
Michel Foucault e Hannah Arendt na obra de das causas divinas ou finais por causas materiais e
Giorgio Agamben, ou entre biopolítica, politiza- aleatórias já haviam sido assimiladas por biólogos
ção da vida e animalização do homem, algo que da estatura de Charles Darwin, a consideração
proponho-me a analisar no projeto de pesquisa das linhas de descendência e da seleção natural,
que agora estou iniciando. Manter o horizonte como justificativa para que variações genéticas
biopolítico para o seu terreno de escavação é pudessem ser transmitidas para além da vida de
objeto de uma escolha pelo filósofo italiano: so- um indivíduo, permitiram não somente distinguir
mente demorando-se neste horizonte será possí- espécies, mas pensar a diferença entre elas.
vel decidir se as categorias políticas com as quais Contudo, do ponto de vista da biopolítica,
estamos acostumados a compreender o mundo a animalização constitui um caminho sem volta
habitado, hoje confusas a ponto de entrarem em da máquina antropológica instalada na nossa cul-
zonas de “indiscernibilidade”, podem ser ainda tura, a outra face de uma política que propugna
usadas na compreensão do fenômeno político. pela “gestão integral” da vida biológica. Para que
Mais: somente interrogando a relação entre vida possamos descobrir o que está em jogo na biopo-
e política, presente nas ideologias modernas mais lítica rejuvenescida do nosso século será preciso
distantes entre si, consolidada na contemporanei- retornar às indagações que orbitam em torno da
dade por discursos morais que nem ao menos se biologização da política.
preocupam em escondê-la, seremos capazes de
restituir o pensamento à sua vocação prática. IHU On-Line – Quais são as particularida-
Segundo o filósofo italiano, Foucault soube des da leitura de Kafka por Agamben?
resumir o processo através do qual a vida foi in- Daniel Arruda Nascimento – As referências à
cluída nos mecanismos e cálculos do poder es- literatura de Franz Kafka estão disseminadas por
tatal e observar como algumas técnicas políticas, toda a obra de Giorgio Agamben. O contato com
aliadas a tecnologias da subjetividade, tiveram as duas obras permite ao pesquisador perceber
como resultado a animalização do homem. Pa- que os romances e os contos do escritor checo
ralelamente, no que concerne à esfera da aproxi- iluminaram permanentemente a produção do fi-
mação filosófica, Arendt soube expor o processo lósofo italiano. Eu seria capaz de arriscar insinuar
que leva o homem, ocupado primordialmente que Agamben deixa os livros de Kafka sempre à
pela manutenção biológica da vida, a assumir o mão, retornando a eles quando precisa arejar um

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pouco ou para buscar alguma inspiração. Ainda checo para o desenvolvimento da obra de Giorgio
que as citações textuais do segundo pelo primei- Agamben são a publicação de Il giorno del Giudi-
ro não atendam a uma única carga de sentido, zio (Roma: Nottetempo, 2004), com dois artigos
mas variem ao longo dos anos e das publicações, que posteriormente integrariam o corpo de Profa-
exercendo funções estratégicas bastante diferen- nazioni, publicado no ano seguinte, e o definitivo
tes, podemos notar que a literatura de Kafka in- capítulo K., parte de Nudità (Roma: Nottetempo,
fluencia o modo pelo qual o filósofo italiano con- 2009), no qual o filósofo italiano se propõe con-
cebe a realidade e até mesmo, por um movimento fessadamente a lançar sua interpretação dos dois
contrário, encontrar nos ambientes kafkianos um mais conhecidos romances de Kafka, “O proces-
campo empírico ideal para a experimentação das so” (Der Prozess) e “O castelo” (Das Schloss).
suas teses. Desobrigados da intenção de esgotar
o elenco das referências mais importantes, pode- IHU On-Line – Em que medida o binômio
mos recuperar algumas dessas citações textuais. poder e violência é importante dentro das
Já em 1970, com a publicação de L’uomo senza obras de Agamben e qual é a influência filo-
contenuto (Milano: Rizzoli, 1970) e um capítulo sófica de Arendt nessa problemática?
intitulado L’angelo malinconico, o jovem e ain- Daniel Arruda Nascimento – Se tomarmos
da desconhecido Giorgio Agamben se reporta a questão tendo em mente o aporte teórico de
às imagens kafkianas para dizer que o castelo da Hannah Arendt, para quem o poder corresponde
cultura ocidental acumulada perde o seu signi- à habilidade humana para agir em conjunto e em
ficado e ameaça o homem contemporâneo que concreto e para quem violência pode ser entendi-
não pode mais nele se reconhecer: o homem con- da como a negação total ou parcial da vida hu-
temporâneo, suspenso no vazio entre o velho e mana, veremos que poder e violência não podem
o novo, entre o passado e o futuro, é jogado no ser conjugados como se fossem complementares,
tempo como em algo estranho que incessante- mesmo que nas formas mais frequentes da lin-
mente lhe escapa e, todavia, lhe impele à frente, guagem cotidiana nada seja mais comum do que
sem que ele possa nele encontrar o seu ponto de esta combinação. Temos a tendência a associar
consistência. o poder com os termos de comando e obediên-
cia, especialmente quando não é possível deixar
de perceber o papel hodierno que desempenha
Verdade e transmissibilidade a violência na contenção de toda contestação às
estruturas do poder instituídas. Nosso erro esta-
Em Infanzia e storia: distruzione dell’esperienza ria em acreditar que o recurso à violência seja
e origine della storia (Torino: Einaudi 1978), Kafka uma condição para o exercício do poder. Giorgio
aparece como aquele que testemunha um “esta- Agamben conhece evidentemente a distinção fei-
do de história” contraído e permanentemente ta por Arendt e não escreve como se a ignorasse,
sujeito ao evento messiânico, ou ainda entre os mas prefere consorciar-se à noção de poder tor-
poetas sensíveis à moderna defasagem entre a nada profana pela palavra de Foucault, à noção
verdade e a transmissibilidade. Em La comunità de poder enquanto rede conflituosa de forças. A
che viene (Torino: Bollati Boringhieri, 2001), de partir de então, a pesquisa proposta por ele deve
1990, Kafka surge como um lúcido observador abordar os pontos de interseção entre o modelo
do século XX. Em Homo sacer: il potere sovrano jurídico-institucional do poder, preocupado com
e la nuda vita, de 1995, Kafka será o desenhista a formação e a conservação do poder soberano,
exemplar da estrutura do bando soberano. Em e o modelo biopolítico do poder, preocupado
Quel che resta di Auschwitz: l’archivio e il testimo- com o “esmiuçamento” das técnicas políticas e
ne (São Paulo: Boitempo Editorial, 2008), Kafka das tecnologias de subjetivação que qualificam a
será o profeta da vergonha que sobrevive à morte conexão entre poder e vida. Notemos que entre
no campo de concentração. Outros dois indícios as páginas mais importantes do desenvolvimen-
incontestes da contribuição da leitura do escritor to do seu programa, após vincular o paradoxo

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da soberania a uma relação de dupla exceção, mo do que à primeira vista se pode contemplar?
estão aquelas que relacionam poder e violência, Se estes pontos de contato permanecem nas de-
direito e violência. A convergência entre poder, mocracias parlamentares que hoje nos abrigam, o
direito e violência parece ter sido a matriz ocul- que nos impede de cogitar que venham a apoiar
ta das muitas tentativas de justificação do prin- uma nova conversão em regimes totalitários?
cípio de soberania e, posteriormente, a matriz E se os totalitarismos não surgirem apenas
oculta da sustentação dos liames biopolíticos na forma de regime, de um sistema político, se
contemporâneos. esses pontos de contato puderem ser cristalizados
e permanecerem enquanto tais mesmo no interior
IHU On-Line – Por que Agamben afirma em de democracias parlamentares? Não estariam en-
Homo sacer que existe uma grande pro- tão estes cristais aptos a manter orifícios abertos
ximidade entre totalitarismos e regimes nos quais não mais será viável estancar o fluxo
democráticos? que corre?
Daniel Arruda Nascimento – Esta insinuação
surpreendente e aparentemente “indecente” sur- IHU On-Line – Como a ideia de campo
ge já na introdução de Homo sacer: il potere so- como paradigma político moderno pode ser
vrano e la nuda vita, no momento em que Agam- compreendida frente ao recrudescimento
ben diz existir uma “íntima solidariedade” entre dos totalitarismos no século XXI?
democracia e totalitarismo, cuja tese deverá ser Daniel Arruda Nascimento – Em determina-
enfrentada. Este é também o momento em que da altura de Homo sacer: il potere sovrano e la
o filósofo afirma que somente avançando sobre nuda vita, Agamben sublinha que uma das prin-
esta tese poderemos nos orientar diante das no- cipais conclusões, ainda que provisória, do seu
vas realidades e convergências imprevistas do fim programa filosófico é que o campo tornou-se
do milênio, deixando claro, como havia aludido o nómos do político moderno. Frisemos que o
em La comunità che viene, em 1990, que os regi- filósofo diz que estamos virtualmente diante de
mes totalitários não são coisa do passado. Obser- um campo toda vez que tal estrutura for criada,
vemos que o “fim do milênio” só ingenuamente uma estrutura de exceção na qual a distinção da
seria entendido aqui como o início do século XX: vida nua se torna nebulosa. Honestamente, já me
trata-se do final do século XX. Todavia, falta ao perguntei algumas vezes como deveríamos inter-
livro um capítulo dedicado exclusivamente à ex- pretar esta partícula “virtualmente”, um advérbio
plicação da advertência postada como se fora tor- que funciona aí mais do que nunca como um mo-
nar-se decisiva para o desfecho da primeira fase dificador do verbo. O que é virtual: ou não é real,
de seu projeto filosófico. A tese será, no contexto ou não possui efeitos reais, ou é distintamente
deste livro, atacada sempre lateralmente e perma- real, ou tem a sua realidade posta em dúvida. Se
necerá em aberto. não é simplesmente ilusório, o que é virtual está
presente na forma da potencialidade ou da facti-
cidade, isto é, se dizemos que alguma coisa está
Democracia e totalitarismo virtualmente diante de nós pode ser que apenas
nossa limitação sensorial nos impeça de compro-
No que diz respeito ao contexto histórico- var que aquilo que temos diante de nós está na
político, ainda precisamos compreender como iminência de romper a barreira do real. Por que o
foi possível que democracias parlamentares se virtual deveria ter um estatuto ontológico de me-
convertessem em regimes totalitários e regimes nor valor do que o real para nós?
totalitários se convertessem em democracias par- Costumamos concordar que o mundo da in-
lamentares, tudo isso com menos dificuldades do ternet é virtual quando muitas vezes ele se reveste
que era de se esperar. Esta ampla capacidade de de uma consistência, no que concerne aos seus
conversão não seria um indício de que há mais efeitos, muito maior do que qualquer outra coi-
pontos de contato entre democracia e totalitaris- sa tangível sob os nossos pés. Trata-se mais uma

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

vez de uma “zona de indiscernibilidade”, para ajudam a considerar a comunicabilidade entre es-
usar uma expressão persistente para Agamben. O paços que apresentam tal estrutura.
campo de concentração é o lugar onde se dá a Como não pensar nesses bolsões de miséria
mais absoluta condição inumana sobre a terra, é nos quais o trabalho escravo é visto como uma
o espaço que se abre quando a exceção começa solução compensadora? Como não pensar nos
a tornar-se a regra, é o espaço da transparente ambientes semelhantes a campos que resistem e
e absoluta exposição à morte. Estamos nós au- até proliferam no Brasil de hoje e nos países mais
torizados a indicar outros ambientes nos quais a civilizados, bem “abaixo do nariz” da sociedade
estrutura do campo se repete, se propaga, reper- politicamente organizada? Tudo isto pode nos fa-
cute? No livro que publiquei em 2012, Do fim da zer pensar que talvez os regimes totalitários não
experiência ao fim do jurídico: percurso de Gior- sejam uma realidade muito distante de nós e que
gio Agamben (São Paulo: LiberArs, 2012), ex- Theodor Adorno teve uma tenaz intuição ao en-
pressão da minha pesquisa de doutorado junto à fatizar que o objetivo de toda educação política
Unicamp, procuro invocar algumas imagens que deveria ser que Auschwitz não se repetisse.

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Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo

Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

Giorgio Agamben tem dado continuidade Agamben a genealogia teológica da economia


a suas pesquisas de filosofia política explorando amplia a abrangência da influência teológica para
temáticas clássicas, como a relação entre teologia além do mero direito público da soberania. A ge-
e política, e inovando questões, como a genealo- nealogia teológica da economia envolve a própria
gia teológica da economia e o governo moder- noção de vida humana e sua reprodução social. A
nos. Nas diversas obras o autor prioriza o método implicação dos modos de governo da vida huma-
arqueo-genealógico como marca de seu trabalho na na oikonomia teológica retroage a origem da
filosófico. política ocidental à noção teológica de economia
Na obra publicada em 2007, Il regno e la da salvação em que se encontram implicadas a
gloria. Per uma genealogia teológica dell’ eco- vida divina e a história da humanidade.
nomia e del governo, inicia afirmando que sua A noção teológica de economia da salvação
investigação se propõe mostrar que dois grandes concebeu desde seus primórdios que a teologia
paradigmas modernos, conexos e antinômicos ao é essencialmente uma oikonomia em que o ser
mesmo tempo: o da filosofia política da soberania humano criado a imagem e semelhança de Deus
e a economia política do governo, derivam-se da não é sujeito de uma política, mas parte de uma
teologia cristã. As teorias da soberania modernas economia. Porém a teologia econômica se dife-
derivam de uma teologia política que secularizou renciava do estoicismo porque pretendia preser-
o poder soberano de Deus e o transferiu para a fi- var o livre arbítrio das pessoas junto com a von-
gura do Estado mantendo intacto o paradigma da tade divina que rege o mundo. Para o estoicismo
transcendência, o que torna a soberania moderna a noção de providência se identifica com a ne-
uma teologia política. cessidade da natureza, enquanto para o cristia-
Além dos vínculos teológicos da soberania, nismo a economia da providência dever respeitar
Agamben desenvolve nesta obra a tese de que a a liberdade humana e articulá-la com o plano di-
noção moderna de economia deriva da oikoni- vino da salvação. Em qualquer caso e em última
ma teológica concebida como ordem imanente instância, conceber a história como uma teologia
divina e doméstica. Deste paradigma teológico econômica significa que a solução dos problemas
se deriva a biopolítica moderna, assim como a históricos não se resolve com meras opções e de-
economia política e as formas de administração cisões políticas, senão através de técnicas admi-
e governo da vida que proliferam por todos os nistrativas e formas governamentais.
âmbitos institucionais contemporâneos.
A questão da secularização da teologia polí-
tica moderna já tinha sido exposta anteriormente Governo da liberdade
pelo controvertido filósofo do direito Carl Schmitt
afirmando a tese, em 1922, de que: “Todos os A oikonomia teológica é a matriz da econo-
conceitos decisivos da moderna doutrina do Esta- mia moderna já que em ambas se desenvolvem
do são conceitos teológicos secularizados”. Para conhecimentos e métodos de governo da vida

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

humana. O termo grego oikonomia tinha o sen- des, gostos, expectativas, anseios, esperanças das
tido de governar a casa, entendendo o governo populações. Governar, para a economia políti-
como administração hierárquica da vida de todos ca moderna, é governar a liberdade dos outros.
os integrantes da grande oikos grega ou domus Isso significa saber administrar a sua vontade e
romana. Já Aristóteles diferencia entre a arte de dirigi-la a metas pré-estabelecidas. Essa é a boa
governar e administrar a oikos (oikonomia) e a arte de governo da economia política.
arte da cidadania na polis (política). Na oikono-
mia não há decisão livre das pessoas, senão ad-
ministração inteligente das vontades. Na ágora da Necessitarismo estóico
polis deve existir livre decisão dos sujeitos para
construir o destino coletivo. A política inventada A oikonomia teológica tomou dos estóicos a
pelos gregos se propunha diferenciar-se da oiko- noção de providência para tentar explicar a rela-
nomia neste ponto critico: na polis os sujeitos de- ção possível entre o governo divino do mundo
cidem livremente seu destino (política), na oikos e o respeito da liberdade humana. A noção de
as pessoas são governadas/administradas com in- providência divina foi apropriada pela economia
teligência (oikonomia). Na oikos rege o princípio política e transferida na forma de construção de
da desigualdade entre os componentes, enquanto técnicas de governo apropriadas que compatibi-
na polis vigora a isonomia entre todos os sujeitos lizem as tendências naturais das populações ou
cidadãos. “recursos humanos” implicados, com as metas
O termo oikonomia fez um longo percurso desejadas pelas instituições. O resultado deste
nos quatro primeiros séculos de teologia cristã deslocamento foi a produção em grande esca-
até ser ressignificado como oikonomia teológica. la de táticas utilitárias de fabricação de desejos,
Embora o novo sentido teológico continha novos controle de condutas, normalização de comporta-
significados, a oikonomia teológica manteve a mentos, padronização de subjetividades.
raiz originária de ser o conceito em que se arti- Os dispositivos das atuais sociedades de
cula a administração da vida, porém com novas controle se legitimam socialmente por serem par-
questões a respeito da liberdade humana e o pla- te das técnicas de eficiência institucional. Nos es-
no divino. Estas serão em grande parte serão as toicos a providência articulava a necessidade da
questões originárias da economia moderna. A oi- natureza através do que denominavam de efeitos
konomia teológica se colocou como sua questão colaterais previstos. A liberdade era necessária.
central a necessidade de compatibilizar o plano A teologia cristã não aceitou o necessitarismo
da salvação de Deus sobre o mundo (oikonomia) estóico querendo salvar a possibilidade do livre
com o respeito à liberdade humana e a sua natu- arbítrio das pessoas em colaboração com o plano
reza de ser livre. previsto por Deus para o mundo. A complexidade
A economia moderna também tem a mes- de articular a liberdade com um plano prévio fez
ma questão central no seu discurso. A pergunta surgir uma teologia econômica mais complexa.
sobre como governar a população respeitando
a natureza dos seus desejos é o objeto principal
da nova área do saber: a economia política. Esta A vida humana, entre o governo e a
manteve o marco teórico da teologia econômi- alteridade
ca do governo mudando Deus pelo Estado ou
mercado. A questão da oikonomia teológica de A economia é governo da vida. Esta afirma-
como Deus pode governar o mundo respeitando ção deixa em aberto a pergunta de que tipo de
a liberdade das pessoas, se transfere literalmente vida se fala, qual a vida humana que deve ser
para a economia política que se pergunta como governada? Em obras anteriores, Agamben re-
governar as pessoas a partir da sua natureza. Ou tomou as distinções que os gregos fizeram sobre
seja, como governar os desejos das pessoas, as os dois conceitos de vida: zoe e bios. Esta dis-
aspirações das sociedades, os medos, ansieda- tinção foi amplamente desenvolvida por Hannah

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Arendt na sua obra A condição humana. Os gre- sas questões e conceitos. Isso porque a própria
gos denominavam de zoe à mera vida biológica. definição de teologia implica aproximar o logos
As plantas, animas e seres humanos tinham em da divindade. Esta, por definição, permanece
comum a zoe. Em todos eles a zoe determina o inacessível na sua alteridade ao logos humano,
modo biológico de ser de cada indivíduo dentro caso contrário, seria um mero objeto de conhe-
da espécie e de cada espécie no conjunto da vida. cimento, como as outras coisas, encapsulado na
A zoe está regida pelas leis da natureza e sobre ela racionalidade humana. Esta condição de Alteri-
a vontade humana quase nada pode fazer, a não dade irredutível a conceito (própria também da
ser adaptar-se às leis naturais. Diferente da zoe, condição humana) torna a teologia, qualquer te-
a bios é a vida humana que podemos construir ologia, um exercício metafórico que tenta apro-
para além da mera vida natural imposta pela na- ximar a Alteridade divina em conceitos. O que
tureza. Bios é a vida propriamente humana que inexoravelmente leva a lacunas sempre a serem
se diferencia da mera vida animal, zoe. É a vida questionadas, por serem parte da condição sim-
dos valores, dos modos de subjetivação, relações, bo-lógica do ser humano.
personalidades, instituições, etc. A bios é a vida
construída pela ética e a política. A bios só pode
ser humana porque nenhuma outra espécie viva Potencialidade política da ruptura
pode construir uma vida própria além da mera messiânica
zoe imposta pela natureza.
É conveniente lembrar que a zoe era a vida Um segundo esclarecimento diz respeito ao
natural governada na oikos, enquanto a bios era método arqueo-genealógico utilizado por Agam-
a vida humana construída no espaço da polis. A ben e Foucault, entre outros. O método arqueo-
zoe era associada à noção de obediência hierár- genealógico não questiona a veracidade ou va-
quica, seja às leis da natureza, seja ao pater fa- lidade das verdades dentro do discurso. Ele não
mílias na oikos. Enquanto a bios era a vida dos se pergunta sobre a veracidade ou erro de uma
cidadãos livres. Era a vida livre que cada cidadão verdade dentro do discurso que a produz, neste
tinha possibilidade e direito a construir no espaço caso da teologia. Este método investiga os efeitos
da polis. de poder das verdades nos sujeitos e sociedades
Agamben lembra que o objeto principal da que as aceitam como discursos verdadeiros. Toda
economia teológica também é a vida humana. verdade, quando é aceita como tal, produz um
Porém o termo utilizado para a vida na econo- efeito sobre os sujeitos, instituições e sociedades
mia teológica não é nem zoe, nem bios, mas zoe que as acolhem como verdadeiras.
aionos (vida eterna). A utilização do termo zoe A pesquisa de Agamben pretende traçar os
aionos como objeto último da oikonomia teológi- efeitos de poder das verdades teológicas sobre
ca não pode ser nada inocente. Cabe a questão as instituições ocidentais, notadamente sobre as
de perguntar sobre que tipo de vida é zoe aionos. técnicas de governo desenvolvidas pelo discurso
Agamben não duvida em classificar a zoe aionos da economia política. Agamben não se pergun-
como uma vida a ser governada (neste caso pela ta sobre a validade ou não do discurso teológico
vontade divina) e cujo paradigma se associa mais cristão, ainda que em muitas ocasiões tenha se
ao modelo hierárquico da oikos que ao paradig- manifestado não cristão e como tal não partilha
ma isonômico da polis. da validade destas verdades.
Agamben apresenta amplamente e de forma No caso que nos ocupa da zoe aionos, a
irrefutável os vínculos oikonomicos da zoe aionos análise feita por Agamben sobre seu vínculo
na teologia cristã desenvolvida a partir do século com a oikonomia teológica é muito pertinente.
IV e que perduraram até tempos recentes. Porém Contudo cabe também matizar que há outra(s)
talvez seja conveniente lembrar que na teologia genealogia(s) possíveis do mesmo termo na pró-
cristã sempre coexistiram paradigmas diferen- pria teologia crista. Talvez não tenham sido te-
tes, inclusive controversos, a respeito das diver- ologias hegemônicas, como foi a da oikonomia

28
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

teológica, mas não se pode desconsiderar que a senta como critério ético-político de resistência e
zoe aionos era também o paradigma da teologia ruptura contra os dispositivos de controle. A zoe
messiânica que propugnava pela ruptura históri- aionos da teologia apocalíptica se deslocou para
ca tomando como referência a possibilidade de os movimentos sociais contemporâneos na forma
irrupção divina na história. Por exemplo, no livro de diversas categorias filosóficas como vidas in-
do Apocalipse, que é o livro por excelência da dignas (Foucault), a vida das vítimas (Benjamin),
teologia messiânica cristã, aqueles que sobrevive- etc. Os próprios movimentos sociais apresentam
ram à grande perseguição serão levados até as um leque amplo de opções sobre o modo de en-
fontes da vida (Apc, 7,17). No julgamento final tender a vida humana, desde a alternativa mes-
prevalecerá a justiça dos justos, estes têm seu siânica de puxar o freio da deste modelo preda-
nome no “livro da vida” (Apc. 20, 12). O livro dor da vida, como propunha Walter Benjamin,
da vida é objeto principal da teologia messiâni- à revolução armada de George Sorel ou Frantz
ca pois estão escritos os nomes dos justos. Estas Fanon. Benjamin entendia que: “cada instante é
grandes metáforas da vida na teologia messiânica a porta por onde pode entrar o messias”. Cada
matem uma tensão de contraste com a vida go- instante está aberto à possibilidade do novo, o
vernada da teologia econômica. inédito, a ruptura ou a revolução.
O conflito teológico a respeito da vida hu- Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cur-
mana se transferiu para os paradigmas políticos sos de graduação e pós-graduação em Filosofia
e econômicos modernos. Se a economia teoló- da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Uni-
gica é o paradigma da economia política, a teo- versidade de Comillas, na Espanha, é mestre em
logia messiânico-profética pode ser considerada História pela Universidade Federal do Rio Gran-
o paradigma dos movimentos de resistência. In- de do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela
clusive, como Foucault denominou alguns deles: Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor
movimentos de conta-conduta pastoral. Enquan- pelo Conselho Superior de Investigações Científi-
to a economia política se direciona a administrar cas. Escreveu inúmeras obras, das quais destaca-
a vida humana como recurso natural, zoe útil, os mos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo:
movimentos sociais continuam a reivindicar a po- Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder
tencialidade política da ruptura messiânica, em (do) simbólico e os modos de subjetivação (Por-
nome da vida. to Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do
Para os dispositivos econômicos, a vida se humanismo. A subjetividade e alteridade ante os
torna um objeto útil a ser administrado segundo a dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).
sua natureza. Porém a vida também se manifesta Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio In-
como alteridade irredutível a conceito e objetiva- ternacional IHU: o (des) governo biopolítico da
ção nas reivindicações dos movimentos sociais. vida humana, no qual Castor contribui com uma
Nesta segunda compreensão, a vida humana é reflexão intitulada A exceção jurídica na biopolí-
uma alteridade irredutível ao governo e controle tica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.
objetivadores; ela, enquanto alteridade, se apre-

29
Totalitarismos e democracia e seu nexo político em Agamben

Entrevista especial com Edgardo Castro

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto

Apresentação

“Que a democracia ou, ao menos, certas formas democráticas podem se tornar to-
talitárias não é simplesmente uma questão teórica, mas sim um exemplo histórico. Hitler
e Mussolini chegaram ao poder mediante mecanismos democráticos. Em outras pala-
vras, foram líderes consensualizados e com consenso”, afirma o filósofo Edgardo Castro
na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, “se entendermos
por totalitarismo, como defende Michel Foucault, a subordinação do Estado à vontade
do líder ou chefe, podemos entender como a democracia pode ser, em determinadas
circunstâncias, uma via de acesso a formas totalitárias de exercício do poder”. Sobre o
conceito de “potência-do-não”, Edgardo Castro menciona que, na perspectiva de Agam-
bem, o homem ode fazer certas coisas e escolher, inclusive, não fazê-las.
Edgardo Castro nasceu en 1962. É doutor em Filosofia pela Universidad de Fribur-
go, pesquisador do CONICET e professor da Universidad Nacional de San Martín. Tem
trabalhado como professor em diversas universidades argentinas, e é profesor convida-
do no Istituto Italiano di Scienze Umane de Nápoles, na Universidad Federal de Santa
Catarina e na Universidad de Chile. Suas publicações versam sobre a filosofia contem-
porânea, particularmente francesa e italiana. É um dos principais tradutores da obra
de Giorgio Agamben ao espanhol. Entre seus livros, destacamos Pensar a Foucault
(Buenos Aires: Biblos, 1995), Giorgio Agamben. Una arqueología de la poten-
cia (Buenos Aires: Unsam Edita, 2008), Diccionario Foucault (Buenos Aires: Siglo
XXI Editores, 2012) e Introduçâo a Agamben (Belo Horizonte: Autêntica, 2012). Em
2010 foi um dos conferencistas do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo bio-
político da vida humana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

IHU On-Line – Como podemos compreen- do como o acontecimento político dominante do


der que, para Agamben, lei e exceção se século XX – a produção sistemática e industrial
sobrepõem? de morte nos campos nazistas de concentração e
Edgardo Castro – Um dos pontos centrais do extermínio – teve como resguardo jurídico as leis
pensamento de Agamben é se interrogar sobre o de Nuremberg. Em outras palavras, o extermínio
funcionamento do sistema jurídico nas socieda- de milhões de pessoas por razões fundamental-
des contemporâneas. Nesse sentido, sem dúvida, mente biológicas foi, ao menos em parte, uma
é surpreendente que o que pode ser considera- operação legal.

30
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Este fato traz à tona o problema da relação Edgardo Castro – É uma pergunta interessan-
entre a lei e a aplicação da lei. Com efeito, como te, mas respondê-la de maneira adequada exige
assinala Agamben em Homo sacer I, a vigência que se escreva um livro, e bastante volumoso.
da lei pressupõe uma decisão sobre quando ela se A primeira coisa que eu diria, de todos os mo-
aplica e quando não, sobre qual é o caso normal e dos, é que, para introduzir a noção de potência-
qual, ao contrário, é a exceção, sobre o incluído e do-não ou de impotência, Agamben se refere a
o excluído. A tese de Agamben é que toda decisão uma tradição, o próprio Aristóteles e o aristotelis-
soberana pressupõe uma exclusão, uma exceção. mo averroísta, que pensavam em termos muito
Mas, na sociedade contemporânea, como mostra diferentes aos que servem para a Modernidade
a experiência histórica do nazismo, a zona de ex- – penso em Kant, por exemplo – para falar de
clusão é cada vez maior, a ponto de sobrepor-se liberdade ou de autonomia.
com a de inclusão. Em seu bunker, assediado pe- Em segundo lugar, eu esclareceria que a
las tropas soviéticas, Hitler, com efeito, decidiu potência-do-não ou a impotência não é uma no-
o extermínio do próprio povo alemão, para cuja ção negativa. Não é sinônimo de privação ou de
proteção ele havia previamente decidido extermi- carência. Potência-do-não ou impotência signifi-
nar os judeus, os ciganos, os deficientes etc. cam, na perspectiva de Agamben, que o homem,
posto que se trata sobretudo dele, não só pode fa-
IHU On-Line – Em entrevista à nossa revista zer determinadas coisas, mas também não fazê-las.
em 2010, o senhor afirmou que governar no Retomando o exemplo mais clássico, um arquiteto
Ocidente é exercer o poder como exceção. pode fazer uma casa (a casa refere-se a uma po-
Que exemplos dessa constatação poderiam tência), mas também pode não fazê-la. Nesse caso,
ser apontados nos dias de hoje? ele tem uma impotência, uma capacidade de não
Edgardo Castro – Pode-se entender em vários fazê-la. Quem não é arquiteto, ao invés, não tem
sentidos a tese, sustentada por Agamben, de que o nenhuma dessas capacidades. Como vemos, a im-
exercício do poder nas sociedades contemporâneas potência ou o poder-do-não é, em si mesma, uma
implica a decisão sobre a exceção, sobre, em última capacidade, uma das forma da potência.
análise, o que está em relação com a lei ao ser pos- Em terceiro lugar, levando em conta o que
to fora dela. Guantánamo e as zonas de retenção eu assinalava no início, isto é, que é preciso mar-
dos aeroportos, com as diferenças que existem en- car as diferenças, retomando um tópico clássico,
tre essas experiências, são exemplos disso. Trata-se, entre os Antigos e os Modernos, eu diria que as
em suma, de espaços que, por lei, estão fora da lei, noções de liberdade e de autonomia podem ser
onde aqueles que se encontram neles não são cida- interpretadas, embora não necessariamente, a
dãos, por fim, pois estão submetidos a uma vontade partir dessa capacidade que o homem tem de
que pode dispor deles, inclusive de sua vida, sem as passar ou não ao ato, de fazer e de não fazer. O
garantias que são reconhecidas aos cidadãos, como poder-do-não é, nesse sentido, uma afirmação da
a intervenção de um juiz, a publicização dos atos própria subjetividade.
que lhes concernem politicamente etc.
Outro exemplo também é a tendência que IHU On-Line – Que nexos podem ser observa-
pode ser vista como um dos desenvolvimentos dos entre totalitarismos e democracia? Como
da instituição jurídica do estado de exceção ou podemos compreender esse paradoxo?
de sítio a governar por decreto, isto é, quando o Edgardo Castro – Que a democracia ou, ao
Executivo assume as competências próprias do menos, certas formas democráticas podem se tor-
poder legislativo e inclusive do poder judiciário. nar totalitárias não é simplesmente uma questão
A prática dos decretos-leis, dos decretos de ne- teórica, mas sim um exemplo histórico. Hitler e
cessidade e urgência, não só por razões de uma Mussolini chegaram ao poder mediante mecanis-
ameaça bélica, mas também por razões econômi- mos democráticos. Em outras palavras, foram lí-
cas, certamente é frequente nos países ocidentais. deres consensualizados e com consenso.
Pois bem, se entendermos por totalitarismo,
IHU On-Line – Em que aspectos as noções como defende Michel Foucault, a subordinação do
de autonomia e liberdade deveriam ser Estado à vontade do líder ou chefe, podemos en-
reinterpretadas a partir do “poder-do-não”? tender como a democracia pode ser, em determi-

31
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nadas circunstâncias, uma via de acesso a formas um ano decisivo na sua obra. Com efeito, nesse
totalitárias de exercício do poder. A democracia, ano foi publicado Homo sacer. O poder soberano
com efeito, requer consenso para que o exercício do e a vida nua. Agamben retoma, nesse trabalho, a
poder seja legítimo; mas, quando essa legitimidade noção de biopolítica, reintroduzida por Foucault
prescinde da legalidade e, sobretudo, da divisão de em meados da década de 1970 e a qual, além
poderes que define o sistema republicano, então, o disso, ele também havia dedicado três de seus
consenso deixa de estar a serviço da democracia, cursos no Collège de France. Mas quando apare-
embora, aparentemente, mantenha algumas de ce o livro de Agamben, nenhum desses cursos de
suas formas, e abre espaço para formas totalitárias. Foucault haviam sido publicados. Agamben reto-
A partir dessa perspectiva, a relação entre ma essa noção de Foucault, que até então não
democracia e consenso passa, em última instân- tinha a importância que nós hoje lhe reconhece-
cia, pelo alcance e pelos limites ao consenso le- mos, e a interpreta à luz da noção schmittiana de
gitimante do exercício do poder. Em termos sim- exceção soberana. O conceito de vida nua (nuda
ples, nem sempre as maiorias têm razão, nem a vita), a vida da qual podemos dispor porque não
razão é sempre das maiorias. está protegida nem pelas leis dos homens nem
Pessoalmente, penso que a noção de hege- pelas dos deuses, transforma-se em um tópico fre-
monia não foi politicamente feliz. Os governos que, quente de pensamento político.
para obter o consenso, promovem a inclusão social A repercussão do livro, sem dúvida, contri-
e, ao mesmo tempo, a exclusão política, para al- buiu para que ele acabasse se tornando uma série
cançar precisamente a hegemonia, são dificilmente da qual apareceram outros seis volumes: O que
conjugáveis com uma democracia plena. resta de Auschwitz, sobre o problema do testemu-
nho dos sobrevivente do extermínio; Estado de
IHU On-Line – Em que medida o campo exceção (São Paulo: Boitempo, 2004), que estuda
como paradigma político moderno conti- precisamente as formas históricas e as dimensões
nua a ser uma categoria importante para filosóficas dessa instituição jurídica; (São Paulo:
compreendermos a política no Ocidente? Boitempo, 2011), que desloca a análise biopolí-
Edgardo Castro – É interessante notar como as tica da noção de soberania para as de governo
categorias espaciais, o campo ou a globalização, por e economia; O sacramento da linguagem (Belo
exemplo, passaram a ocupar o lugar que as categorias Horizonte: UFMG, 2011), sobre a noção de ju-
temporais frequentemente desempenharam no sécu- ramento e a relação entre linguagem e política. E
lo XIX e na primeira metade do século XX. O campo os mais recentes: Opus Dei: arqueologia do ofício
de concentração, esse espaço que por lei encontra-se (São Paulo: Boitempo, 2013) e Altíssima pobreza.
fora da lei, no qual por lei pode-se dispor da vida bio- Regole monastiche e forme di vita (Vicenza: Neri
lógica dos homens, sem ser obrigado a responder a Pozza 2011). A série não está concluída, e uma
responder perante qualquer lei, serve, precisamente, análise sobre a noção de uso parece necessária.
para mostrar de maneira paroxística o que está em Para além dessa série, há outros trabalhos do
jogo na categoria de soberania, isto é, dispor da vida autor, a meu ver muito relevantes. Pessoalmente,
dos homens, como se fosse vida nua (nuda vita, diz me interessam muito A linguagem e a morte (Belo
Agamben), vida exposta à morte violenta. Horizonte: Ed. UFMG, 2006), um seminário so-
bre a noção de negatividade, em que aparece a
IHU On-Line – Como podemos compreen- problemática da pós-história e, pela primeira vez,
der o projeto filosófico de Agamben? Quais a figura do homo sacer; e O tempo que resta (To-
são suas obras fundamentais e o que está rino: Bollati Boringhieri, 2000), sobre as concep-
no horizonte desse pensador para os próxi- ções do messianismo, a modo de comentário à
mos anos em termos de pesquisas? Carta aos Romanos de Paulo.
Edgardo Castro – A obra de Agamben ainda A obra de Agamben é ampla e variada, im-
está em curso e, às vezes, o percurso da investi- possível de classificar ou de ordenar com as cate-
gação, se for realmente uma investigação, não é gorias acadêmicas das disciplinas, de um grande
totalmente previsível. É claro que 1995 representa cuidado literário e, sem dúvida, apaixonante.

32
Homo sacer. O poder soberano e a vida nua

Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

A obra de Agamben faz uma incursão epis- O homo sacer é um conceito-limite do direito
têmica no direito e na política pelo viés da vida romano que delimita o limiar da ordem social e
humana. Ela tenta captar (e capturar) uma ten- da vida humana. Nele transparece a correlação
são muito pouco percebida pela qual o direito e entre a sacralidade e a soberania. Ambas são es-
a política ocidentais existem correlacionadas com truturas originárias do poder político e jurídico
a captura da vida humana. Neste ponto, Agam- ocidentais porque revelam os dois personagens
ben dissente de Foucault ao afirmar que a biopo- que estão fora e acima da ordem: o homo sacer e
lítica não é uma característica da modernidade, o soberano. O homo sacer não só mostra a fragi-
mas algo inerente à política ocidental desde suas lidade da vida humana abandonada pelo direito,
origens. Embora concorda com Foucault que a mas também, e mais importante, revela a existên-
modernidade expandiu a biopolítica de forma ca- cia de uma vontade soberana capaz de suspender
pilar ao tentar governar de forma útil e produtiva, a ordem e o direito. Tal poder só poder ser exer-
objetivando-a para tanto como um mero recurso cido desde fora da ordem e além do direito. O
natural. que homo sacer revela é a existência do soberano
Agamben afirma esta tese tomando como como figura essencial do direito ocidental e da
referência uma figura arcaica do direito romano, sua ordem política. O soberano existe porque tem
homo sacer. O homo sacer era uma figura jurí- o poder de decretar a exceção do direito, ou seja,
dico-política pela qual uma pessoa, ao ser pro- suspender o direito para decretar a existência da
clamada sacer, era legalmente excluída do direito vida nua. Só um poder soberano, que esteja fora
(e consequentemente da política da cidade). Tal da ordem e acima do direito, tem o poder de de-
condição de sacer impedia que ela pudesse ser le- cretar a suspensão do direito para os outros.
galmente morta (sacrificada), porém qualquer um Haveria uma coimplicação originária entre
poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso. a sacralidade da vida e o poder soberano. Esta
O homo sacer é a vida abandonada pelo coimplicação vai além da origem religiosa de nos-
direito. É o que Walter Benjamin denominou de sas sociedades (do direito e da política), que é in-
pura vida nua. questionável e muito pouco levada em conta nas
A particularidade do homo sacer é que ele nossas sociedades secularizadas. Tal coimplicação
é incluído pela exclusão e excluído de forma in- manifesta uma cumplicidade persistente entre a
clusiva. Esta figura paradoxal captura a vida hu- exceção soberana e a vida humana. A vida hu-
mana pela exclusão ao mesmo tempo em que a mana é captura dentro da ordem na medida em
inclui pelo abandono. É uma vida matável por que está presa à figura da exceção. Ou seja, a vida
estar fora do direito, mas por isso mesmo ela não humana existe dentro do direito sempre com a
pode ser condenada juridicamente. Está exposta ameaça potencial de ser decretada vida nua. A
à vulnerabilidade da violência por ser desprovida vontade soberana, que tem o poder de decretar
de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade a exceção, continua sendo constitutiva da ordem
se deriva de um ato de direito que a excluiu. moderna, inclusive do Estado de direito. Tal prer-

33
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

rogativa coloca a vida humana, todas as vidas é garantia plena da abolição da vontade sobera-
humanas, sobre a potencial ameaça da exceção. na, o direito protege a vida parcialmente, pois a
Isso quer dizer que, se por qualquer circunstância, cuida ameaçando-a. Nenhuma vida humana está
uma pessoa ou um grupo populacional represen- livre da exceção, exceto a vontade soberana, que
tasse uma ameaça, real ou suposta, para a ordem, já é uma exceção soberana. Todas as vidas, em
eles poderão sofrer a suspensão parcial ou total caso de emergência ou necessidade, estão vulne-
dos direitos para melhor controle de suas vidas. A ráveis ao estado de exceção. Nessa condição se
política da exceção jurídica foi e continua sendo manifesta a essência constitutiva do direito e da
amplamente utilizada pelo direito para contro- ordem, o poder soberano, e sua violência.
lar os grupos sociais perigosos para a ordem. A O homo sacer do direito romano revela a
questão é quem tem o poder de decidir quem é correlação que une a vontade soberana com a
perigoso e porque é perigoso. Quem tem poder ordem social e a forma como a vida humana é
de decidir a periculosidade de uma vida para a captura dentro da ordem. A vida humana é sa-
ordem é a vontade soberana. Já que qualquer cra entanto está presa à exceção soberana. Tal
um pode ser perigoso para a decisão soberana, relação torna a vida intrinsecamente frágil e per-
por qualquer motivo por ela determinado, todos manentemente vulnerável. O paradoxal é que tal
os seres humanos têm sobre si a possibilidade de ameaça provenha daquele que a protege, o direi-
que lhes seja decreta a exceção, e como tal redu- to e a ordem, uma vez que na origem de ambos
zidos à condição de homo sacer. permanece latente a vontade soberana.
A vida nua, expulsa da ordem pela exceção Embora Agamben não faça referência, po-
da vontade soberana está condenada ao bani- demos destacar a emblemática condição da fi-
mento. Ela é uma vida banida e, como consequ- gura de Caim como homo sacer. Uma narrativa
ência, uma vida bandida. A consequência da ex- sagrada que retrata muitos dos elementos políti-
ceção sobre a vida é o banimento. A vida banida co-teológicos do homo sacer. A narrativa expõe a
da ordem se torna uma vida bandida. O bando, tensão que conecta a vida humana com a vonta-
que também é uma figura jurídica do banimento, de soberana, neste caso divina. Deus é a figura da
se transforma socialmente numa vida banida. Os soberania por excelência: só ele pode ter o poder,
banidos são bandidos porque foram expulsos da a potência efetiva de criar a vida. Daí que toda
ordem e sobre eles se decretou uma exclusão in- vontade soberana tenda a incorporar uma for-
clusiva que os tornou vida nua. ma de poder divino sobre a ordem social. Caim,
após matar seu irmão, foi amaldiçoado, sofreu o
banimento divino: “agora, és maldito e expulso
Caim e o homo sacer do solo fértil que abriu a boca para receber de
tua mão o sangue do teu irmão” (Gen 4,10). Nele
Soberano é o que tem poder de vida e morte. opera o dispositivo da soberania sobre a vida que
A fórmula que identificava o poder soberano por só Deus tem, mas que a vontade da soberania
excelência, a do pater familias, vitae necisque po- política também reclama para si. Porém, no caso
testas (poder de vida e morte) é o paradigma da de Caim, a exceção que o torna banido é decor-
soberania política ocidental. Ele manifesta a im- rente de ter derramado o sangue do irmão. Ele,
plicação da vida nua na ordem soberana. A sobe- ao matar o irmão, assumiu para si o poder sobre a
rania existe pelo poder que tem sobre a vida nua. vida do outro. Poderíamos dizer que Deus decreta
Logo toda vida humana incorporada na ordem sobre ele uma exceção da exceção, o banimento
política existe numa relação de inclusão excluden- da soberania, a exclusão inclusiva de toda vio-
te, pela qual é incluída pelo direito mas poderá lência fratricida que opera como vontade sobera-
ser excluída pela exceção decretada pela vonta- na contra a vida do outro. Caim, que agiu com a
de soberana. Uma vez que a vontade soberana violência do soberano ao condenar seu irmão à
não pode ser eliminada da ordem social, já que morte, colocou-se como tal fora da relação ética
esta se origina daquela, nem o Estado de direito da lei, impôs a violência como nova ordem.

34
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Na realidade, o banimento divino dá sequ- banimento e à exceção. A vontade divina, que


ência à decisão soberana já tomada por Caim de é soberana sobre a vida por definição, protege
colocar-se acima da vida humana. Já que sobera- esta em todas as circunstâncias. Protege contra
no e homo sacer estão, por razões opostas acima os soberanos que a ameaçam; por isso decretou
e fora da lei, Caim ao agir com violência soberana o banimento de Caim como soberano da violên-
se colocou de fato como soberano da vida acima cia, mas também protege a vida dos banidos que
da lei, neste caso divina. Só que a lei divina é es- decidem abandonar sua condição de soberanos
sencialmente ética, não está referida à ordem mas dos outros.
existe na defesa da vida. A lei divina não defende Há uma relação explícita e estreita entre a
um direito, mas anula a necessidade de qualquer vida humana e a soberania divina, só que ela
direito, uma vez que se confunde com a ética. inverte a lógica da soberania política. Esta pro-
Uma ética que dispensa o direito. Nessas circuns- tege ameaçando pela exclusão-inclusiva da vida
tâncias Deus o condena a Caim a experimentar humana, já que a vida dos outros pode se tornar
as consequências da vontade soberana que ele uma ameaça para a ordem. A soberania divina
decretou, ou seja, a condição de ser homo sacer. não se sente ameaçada pela vida humana, mas
Ainda, a narrativa de Caim tem um outro defende a vida humana de todas as ameaças pos-
giro inesperado e contraditório para a vontade síveis, inclusive as do soberano. Em ambas sobe-
soberana do direito e a política. Conta a narra- ranias há um vínculo estreito que as conecta com
tiva que Caim tomou consciência de sua culpa, a sacralidade da vida, vínculo amplamente desta-
reconheceu sua condição de banimento. O que cado por Agamben. A sacralidade da vontade so-
está retratado exemplarmente no texto quando berana é decretada para obter o poder de banir as
Caim diz: “Vê, hoje tu me banes do solo fértil, vidas indesejáveis. Porém a sacralidade decretada
terei de ocultar-me longe de tua face e serei um pela vontade divina é para proteger a vida em
errante fugitivo sobre a terra: mas o primeiro que todas as circunstâncias possíveis. O homo sacer se
me encontrar me matará” (Gen 4,14). Quase to- torna frágil e vulnerável perante a vontade do so-
dos os componentes do homo sacer estão neste berano, porém sua sacralidade g arante a defesa
versículo. Porém a resposta de Deus a esta nova de sua vida perante a vontade Divina.
condição de Caim, a de um soberano banido e Professor dos cursos de graduação e pós-
arrependido, inverte a lógica da soberania sobre graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Ruiz
a vida banida, que a incluí pela exclusão. Em vez é graduado em Filosofia pela Universidade de
de manter as consequências do banimento e da Comillas, na Espanha, mestre em História pela
exceção sobre Caim, ou seja, a matabilidade de Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
sua vida sem consequências legais ou teológicas, UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade
Deus decreta: “Quem matar a Caim será vingado de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho
sete vezes. E Deus colocou um sinal sobre Caim Superior de Investigações Científicas. Escreveu
a fim de que não fosse morto por quem o encon- inúmeras obras, das quais destacamos: As encru-
trasse” (Gen 4,15). Deus decide proteger a vida zilhadas do humanismo. A subjetividade e alteri-
banida que renunciou a agir com vontade sobera- dade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis:
na sobre a vida dos outros. Estamos perante uma Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema
espécie de nova forma de ordem da vida. Caim, de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de
que foi banido por agir com violência soberana, é Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder. O poder
protegido pela mesma soberania divina que o ba- (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto
niu. Tem um sinal próprio que protege sua vida. É Alegre: Escritos, 2004) e Os paradoxos do ima-
uma segunda exceção da exceção. Uma exclusão ginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Leia,
das consequências nefastas do banimento sobre ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Interna-
a vida humana de quem renunciou a agir como cional IHU: o (des) governo biopolítico da vida
soberano dos outros. Uma espécie de suspensão humana, no qual Castor contribui com o artigo A
da vulnerabilidade da vida humana inerente ao exceção jurídica na biopolítica moderna.

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Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma
nova experiência, ética, política e direito

Entrevista especial com Fabrício Carlos Zanin

Apresentação

“Agamben, seguindo Heidegger em alguns aspectos, também nos possibilita a


superação daqueles escândalos da filosofia (no direito), em especial nas suas propos-
tas de uma nova ética (A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da
negatividade), uma nova política (Homo sacer: o poder soberano e a vida nua
I), um novo direito (Estado de exceção) e uma nova experiência (Infância e his-
tória). Então, o que pretendo é aproximar o novo começo de Heidegger, composto
de um novo pensar e um novo dizer, dessas novas propostas apresentadas por Agam-
ben.” A reflexão é do advogado Fabrício Carlos Zanin, em entrevista exclusiva, con-
cedida por e-mail à IHU On-Line. E ele completa: “Somente será possível pensarmos
uma nova ética, uma nova política, um novo direito e uma nova experiência se formos
capazes de encarar de frente e com coragem aqueles escândalos da filosofia (no direi-
to) e superarmos os dualismos e os fundamentos metafísicos que lhes dão unidade nas
relações lingüísticas entre metafísica e poder político”.
Graduado em Direito pela Unisinos, Zanin cursa o mestrado em Direito nesta
mesma instituição. Está redigindo a dissertação De volta de Siracusa e os escân-
dalos da filosofia (no direito): a linguagem soberana do (bio)poder e o poder
soberano da linguagem, cuja proposta é fazer uma releitura da teoria contratualista
de Hobbes, desde Agamben e passando por Heidegger. Está vinculado ao Instituto de
Hermenêutica Jurídica (IHJ/RS), no qual realizou alguns trabalhos, entre os quais um
no Grupo de Pesquisa sobre Direito, Filosofia e Psicanálise. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que aproximações são pos- Hermenêutica, constituição e concretização de


síveis traçar entre Agamben e Heidegger? direitos. Além disso, vincula-se também ao Grupo
Fabrício Carlos Zanin – Antes de responder, de Trabalho Estado e Constituição, sob orienta-
preciso fazer menção ao contexto em que serão ção do Prof. Dr. José Luiz Bolzan de Morais, e
dadas as respostas. A pesquisa sobre os pensa- ao Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos,
mentos de Martin Heidegger, de Giorgio Agam- coordenado pelo Prof. Dr. Lenio Luiz Streck. A
ben e de Thomas Hobbes vincula-se à disserta- dissertação tem como título De volta de Siracusa
ção de mestrado desenvolvida na Programa de e os escândalos da filosofia (no direito): a lingua-
Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, com gem soberana do (bio)poder e o poder soberano
financiamento da CAPES, na linha de pesquisa da linguagem. Esclarecendo quais são esses es-

36
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cândalos da filosofia (no direito), é possível uma negatividade), uma nova política (Homo sacer: o
resposta sobre as aproximações entre Agamben poder soberano e a vida nua I), um novo direito
e Heidegger. (Estado de exceção) e uma nova experiência (In-
fância e história). Então, o que pretendo é aproxi-
O primeiro escândalo da filosofia consiste na
divisão clássica (dualismo) da metafísica que nos mar o novo começo de Heidegger, composto de
vem de Platão, quer dizer, entre o mundo sensível um novo pensar e um novo dizer, dessas novas
e o mundo das idéias. Já o segundo escândalo da propostas apresentadas por Agamben.
filosofia – decorrente, de certo modo, do primeiro A dissertação tem como objetivo principal
escândalo da filosofia – envolve a divisão da uma releitura da teoria contratualista de Hobbes,
teoria do conhecimento entre um mundo interior desde Agamben e passando por Heidegger. Se
(sujeito) e um mundo exterior (objeto) e na eterna isso for possível, uma nova filosofia prática deve
problemática do acesso (metodológico) ao mundo ter como resultado a aproximação entre o Dasein
exterior. Desse segundo escândalo da filosofia, como ser-no-mundo (prático), pensamento de
duas repercussões são essenciais: a determinação Heidegger, e a nova interpretação da potência,
do sujeito (problema antropológico) e a busca pensamento de Agamben. Isso requer urgente-
de um método – ilusão da modernidade, na mente uma nova ontologia da potência que vá
sua busca por uma metodologia sistemática além dos clássicos conceitos aristotélicos de subs-
correta e rigorosa, composta de fundamentos e tância, ousia, essência, forma, matéria e potência
primeiros princípios rigorosamente definidos e ativa. Mas essas aproximações devem ser feitas
demonstrados. com muito cuidado e precaução, pois existem
Quanto ao escândalo da filosofia no direito, muitas diferenças entre esses pensadores, sobre-
pode-se afirmar e problematizar a relação exis- tudo entre Agamben e Heidegger.
tente entre metafísica e poder político. Qual é
a relação da filosofia com o Estado? Quais são IHU On-Line – E quais seriam as maiores
as tarefas da filosofia em momentos em que se diferenças entre o pensamento desses filó-
é preciso escolher entre democracia, stalinismo, sofos? Em que aspectos Agamben se dis-
comunismo, fascismo ou nazismo? Afinal, o que tancia de seu mestre?
resta à filosofia (e para o Estado) depois do Holo- Fabrício Carlos Zanin – É complicada a rela-
causto? A pós-modernidade, se entendida a partir ção entre Agamben e Heidegger e essa caracte-
das críticas de Heidegger e Agamben, foi a terapia rística foi a que me levou a estudá-los. Vou citar
que nos preparou a liberdade da ilusão de que o exemplo da obra de Agamben, A linguagem e
a filosofia pode servir de parâmetro e ser funda- a morte: um seminário sobre o lugar da negativi-
cional ou disponível como, por exemplo, para a dade, para que fique clara a complexidade das
justificação do Estado e de seus regimes políticos. diferenças entre eles. Nessa obra, Agamben vin-
Penso que Heidegger nos possibilita superar cula-se à crítica de Heidegger à metafísica, ao seu
esses escândalos da filosofia (no direito), princi- novo começo e ao seu novo dizer (linguagem po-
palmente a partir do novo começo que ele pro- ética), mas, ao mesmo tempo, faz uma “revisão”
põe depois da superação da metafísica e a partir e uma “correção” de Heidegger num aspecto: o
do novo pensar e do novo dizer (linguagem po- da negatividade que leva à sigética (silêncio). So-
ética) que nos oferece. Insistir nas interpretações mente a partir dessa revisão e dessa correção é
que Heidegger realiza da técnica, do niilismo e possível, segundo Agamben, a emergência “pela
dos poetas, é superar muitos mal-entendidos de primeira vez na sua simples clareza a figura do
péssimas interpretações sobre seu pensamento. ter do homem: o ter sempre caro como morada
Agamben, seguindo Heidegger em alguns aspec- habitual, como êthos do homem” (p. 111). A lin-
tos, também nos possibilita a superação daqueles guagem deve ser levada além da negatividade e
escândalos da filosofia (no direito), em especial da sigética até a infância do homem. Tenho dúvi-
nas suas propostas de uma nova ética (A lingua- das quanto ao distanciamento de Agamben com
gem e a morte: um seminário sobre o lugar da relação à Heidegger. Além disso, tenho dúvidas

37
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

quanto à concepção de Agamben com relação à to negativo da metafísica, para que a emergência
vinculação do pensamento de Heidegger como da experiência do êthos e da infância do homem
tentativa de superação da metafísica, mas que re- seja conquistada.
cai novamente no seu interior. Mas essas dúvidas A nova política apenas será possível se for
serão mais esclarecidas no decorrer de minhas realizada uma urgente revisão da teoria contratu-
pesquisas. alista a partir de uma nova ontologia da potência,
Uma outra diferença pode ser dita quanto que deve ser pensada além da relação entre os
ao pensamento de Heidegger e Agamben. Em escândalos da filosofia e seus reflexos no direito,
algumas obras, em especial Infância e história, ou seja, entre o poder soberano e vida nua bio-
Agamben parece seguir os caminhos de Heideg- política, unidos pelo estado de exceção. O campo,
ger ao afirmar que a questão do ser é inacessível como paradigma político da modernidade, é o
para as ciências – e isso é incontornável. Mesmo espaço biopolítico fundado pelo estado de exce-
dando seguimento a Heidegger, ele se distancia ção permanente, ou seja, que se torna regra. Na
do mesmo ao realizar a experiência limite da ci- era atômica sob o império da técnica (onto-teo-
ência lingüística. Ou seja, enquanto Heidegger tecno-logia), na era das emergências econômi-
se movimenta no nível ontológico, Agamben se cas do mercado capitalista globalizado e na era
movimenta no nível ôntico da ciência lingüística, do paradigma da segurança nacional contra o
mesmo afirmando que fazer a experiência desse terrorismo e a imigração, o estado de exceção é
inacessível é tomar conhecimento dos limites da permanente e planetário. O perigo do estado de
própria ciência lingüística. exceção e sua zona de indiferença indiscernível
A complicação tanto das aproximações é que a defesa da democracia e de sua gover-
quanto das diferenças entre Heidegger e Agam- nabilidade torna-se a suspensão da própria de-
ben é que são muito sutis; se num momento ocor- mocracia e daquilo que é condição para a mes-
re a aproximação, no outro ocorre a distância. ma: o exercício e a defesa dos direitos humanos
Afinal de contas, Agamben tem outras influências no interior do Estado de Direito Democrático e
que não apenas o pensamento de Heidegger. Constitucional. Assim, uma nova política apenas
Mesmo assim, estou convicto de que ambos nos é possível se recuperarmos bem no núcleo da
oferecem uma enorme carga conceitual passível biopolítica uma ontologia da potência.
de ser aplicada na difícil tarefa de pensarmos as Um novo direito somente será possível se,
relações (criadas e constituídas pela linguagem) enfrentando os desafios lançados à hermenêu-
entre metafísica e poder político. tica jurídica desde o estado de exceção, a dog-
mática jurídica tradicional se der conta de que a
IHU On-Line – Em que medida é possível mutação constitucional, ou seja, a constante luta
pensarmos no âmbito originário de uma entre o poder constituinte e o poder constituído,
nova experiência, uma nova ética, uma as lacunas jurídicas e a divisão entre lei e aplica-
nova política e um novo direito partindo ção são resultados de dualismos metafísicos que
dos pressupostos desses pensadores? se refletem na epistemologia positivista do direito;
Fabrício Carlos Zanin – Somente será possível dualismos que somente são “unidos” através do
pensarmos uma nova ética, uma nova política, fundamento do estado de exceção. Uma nova ex-
um novo direito e uma nova experiência se for- periência somente será possível se for superado
mos capazes de encarar de frente e com coragem os escândalos da filosofia (no direito), ou seja, o
aqueles escândalos da filosofia (no direito) e su- dualismo metafísico e o dualismo epistemológi-
perarmos os dualismos e os fundamentos metafí- co (determinação do sujeito e método). Somente
sicos que lhes dão unidade nas relações lingüísti- quando o transcendental for definido como expe-
cas entre metafísica e poder político. rimento de linguagem e for realizada uma crítica
A nova ética apenas será possível depois de da noção de subjetividade da modernidade uma
superar a inefabilidade e a sigética do fundamen- nova experiência será possível.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Quais são as maiores con- ca objetificante e contra a economia exploradora
tribuições de Agamben e Heidegger para a poderão não ser em vão, mas serão inadequadas.
compreensão da política contemporânea e
seus traços niilistas apáticos ou, no máxi- IHU On-Line – Agamben critica os EUA por
mo, reativos? usar o 11 de setembro como justificativa
Fabrício Carlos Zanin – As características com para o paradigma governamental de estado
as quais você analisa a política contemporânea, ou de exceção permanente. Como essa posi-
seja, de niilismo apático ou reativo vêm do pensa- ção se situa dentro de seu ideário político?
mento de Nietzsche. É razoável pensar que Heide- E de que forma essa crítica ajuda a quebrar
gger, na sua obra sobre Nietzsche (Nietzsche I), faz a hegemonia política americana?
uma análise muito perspicaz do niilismo europeu, Fabrício Carlos Zanin – Concordo com as crí-
vinculando-o à técnica. Por isso disse que a obra ticas de Aganbem aos Estados Unidos da Amé-
tardia de Heidegger, nas quais analisa a técnica, rica e também compartilho seu ideário político
o niilismo e os poetas são importantes para a expresso em sua teoria e suas novas propostas.
consideração de um novo começo, de um novo No entanto, penso que ele, assim como Negri, uti-
pensar e de um novo dizer, que têm, certamente, lizam as ações desse País apenas para comprovar
conseqüências no âmbito político, como Agam- suas hipóteses filosóficas que vão muito além de
ben comprova. Não é por acaso que Agamben, um único Estado-Nação. Tanto o estado de exce-
na sua obra A linguagem e a morte: um seminário ção, como o Império são conceitos que se vincu-
sobre o lugar da negatividade, afirme que tentar lam a muitos outros na tentativa de dar respostas
compreender a negatividade envolvida no fun- ao novo contexto de encruzilhada política depois
damento do niilismo é a única possibilidade de daquela terça-feira sombria de 11 de setembro de
superá-lo em direção de uma nova ética, de uma 2001. Claro que as diferenças entre eles também
nova política, de um novo direito e de uma nova são muito sutis.
experiência, como vimos anteriormente. A contri- Foi exatamente essa encruzilhada política a
buição de ambos para a política contemporânea que me fez pesquisar na dissertação a necessida-
diz respeito à advertência de que, se não formos de de um novo contrato social depois do fatídico
capazes de pensar além dos escândalos dualistas 11 de setembro, partindo de uma releitura de Ho-
da filosofia (no direito), não escaparemos do es- bbes a partir de Agamben e Heidegger. Os movi-
quecimento do ser, da vida nua, do homo sacer, mentos antiglobalização (econômica e financeira),
do campo, da biopolítica e do estado de exceção. municiados de uma nova ontologia da potência,
Além disso, ambos nos ensinam que as estrutu- não têm apenas a hegemonia estadunidense para
ras de opressão e de dominação, muito além de enfrentar. Existem lutas e demandas muito mais
nacionalismos, das ciências e da economia, têm próximas e locais com relação às quais eles deve-
uma codificação filosófica. E, se essa codificação riam dar mais atenção. Se bem que, atualmente,
filosófica não for combatida, todas as lutas con- as relações entre os níveis local, nacional e global
tra os nacionalismos excludentes, contra a técni- estejam emaranhadas e misturadas. Mas penso
que em cada nível existem lutas possíveis e que
umas se refletem nas outras.

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Agamben e a vida nua: produto final da máquina antropológica

Entrevista especial com Sandro de Souza Ferreira

Apresentação

Examinando o pensamento de Giorgio Agamben, o advogado e filósofo Sandro


de Souza Ferreira afirma que, a partir da instituição da máquina antropológica, o
homo é um animal constitutivamente antropomorfo, “uma máquina ou um artifício
para produzir o reconhecimento do humano”. Assim, não podendo “funcionar senão
que instituindo em seu centro uma zona de indiferença na qual deve produzir-se a ar-
ticulação entre o humano e o animal, entre o homem e o não-homem, entre o falante
e o vivente, o produto final da máquina antropológica não é nem uma vida animal
nem uma vida humana, mas tão somente uma vida separada e excluída de si mesma.
É o que Agamben vai chamar de vida nua”. As declarações fazem parte da entrevista
a seguir, concedida por Ferreira à IHU On-Line por e-mail. A inspiração para a entre-
vista veio a partir da comunicação Da máquina antropológica à vida nua: a filosofia de
Giorgio Agamben no rastro do homo sacer, que Ferreira apresentou no IV Colóquio
Nacional de Filosofia da História e do X Colóquio de Filosofia Unisinos, que ocorre-
ram nos dias 27, 28 e 29 de agosto.
Sandro de Souza Ferreira é formado em direito pela Unisinos, promotor de Jus-
tiça em Novo Hamburgo, professor de direito ambiental e de direito penal na Feevale.
É mestre em Filosofia na Unisinos, com a dissertação O próximo de Kierkegaard,
o outro de Lévinas e a condição animal. Possui inúmeros artigos técnicos pu-
blicados em periódicos e trabalhos apresentados em congressos ligados à Filosofia e
Medicina Veterinária. Na edição 191 da IHU On-Line, intitulada Por uma ética do
alimento. Sobriedade e compaixão, de 14-08-2006, concedeu a entrevista Os
animais e a questão da alteridade. O material pode ser acessado na página eletrô-
nica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line – Qual é a definição que Agam- ser evitadas ou superadas quanto ao pensamento
ben dá ao homo sacer? contemporâneo, através de vários materiais de
Sandro de Souza Ferreira – Inicialmente, e consulta e de apoio, tais como entrevistas, sinop-
antes mesmo de responder diretamente a essa ses de conferências, atas de eventos etc., além de,
questão, gostaria de fazer algumas considerações também, muitas vezes, correspondências e con-
preliminares que julgo importantes. Examinar tatos diretamente mantidos com os próprios pen-
uma obra ainda em construção, o pensamento sadores. Essas são algumas facilidades que não
de um filósofo ainda vivo, apresenta sempre al- podem ser desprezadas. Por outro lado, há que
gumas particularidades. A primeira delas é que se reconhecer, também, em tais situações, uma
muitas das dúvidas e das lacunas frequentemen- boa dose de risco, uma vez que um pensamen-
te apontadas nos grandes textos clássicos podem to em construção é sempre um pensamento em

40
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

construção e os resultados, embora possam ser dividido”. A condição animal foi subtraída – ou
previsíveis, comportam, no mais das vezes, enca- expulsa – do interior do homem como condição
minhamentos surpreendentes. É na esteira dessas de “possibilidade de se estabelecer uma oposição
facilidades e desses riscos que o pensamento de entre o homem e os demais viventes e, ao mesmo
Agamben deve ser estudado. O pensamento de tempo, de organizar a complexa – e nem sempre
Agamben é um pensamento em construção. E edificante – economia das relações entre os ho-
mais que isso: a própria série de reflexões Homo mens e os animais”. Essa cesura entre o humano
sacer é, ainda, uma séria incompleta. O plano e o animal se estabeleceu, nas palavras de Agam-
da obra Homo sacer, tal como idealizado por ben, “fundamentalmente no interior do homem,
Agamben, é o seguinte: o projeto iniciou com a que foi pensado como a articulação e a conjun-
publicação, em 1995, do volume I, Homo sacer: ção de um corpo e uma alma, de um vivente e de
o poder soberano e a vida nua; a primeira parte um logos, de um elemento natural e de um ele-
do volume II, intitulada Estado de exceção, foi pu- mento sobrenatural”. A cesura se dá através do
blicada em 2003; em 1998, ou seja, antes mesmo que Agamben chama de máquina antropológica,
da publicação dessa primeira parte do volume II, noção implicitamente sempre presente nas refle-
foi publicado o volume III, intitulado O que resta xões da série Homo sacer, e que é explícita e cla-
de Auschwitz. O arquivo e o testemunho. No mo- ramente detalhada no texto “O aberto. O homem
mento, ainda restam pendentes a publicação da e o animal” – texto esse que não se circunscreve
segunda parte do volume II e a publicação do vo- na série mas guarda, com ela, perfeita sintonia.
lume IV, com o qual Agamben pretende encerrar
a série e no qual, segundo suas palavras, “a inves-
tigação completa aparecerá sob sua luz própria”. Máquina antropológica

A máquina antropológica, conforme Agam-


A expulsão da condição animal do homem ben, é “constituída como que por uma série de
espelhos em que o homem, ao olhar-se, vê a pró-
Pois bem, respondendo agora a questão for- pria imagem deformada”. A partir da instituição
mulada. Sabe-se que a tradição filosófica sempre da máquina antropológica, “Homo é um animal
esteve indissoluvelmente ligada – embora nem constitutivamente antropomorfo, quer dizer, se-
sempre o reconhecesse – à dificuldade de definir melhante ao homem e Homo sapiens não é, pois,
a vida. É conhecida a distinção que faziam os gre- uma substância nem uma espécie claramente
gos entre zoé – a vida pura e simples, comum a definida; é, antes, uma máquina ou um artifício
todos os seres vivos – e bios – a maneira própria para produzir o reconhecimento do humano”.
de viver dos indivíduos. Quando Aristóteles, por Justamente porque não pode funcionar senão
exemplo, expõe as diferenças entre a vida con- que instituindo em seu centro uma zona de indife-
templativa – reservada ao filósofo –, a vida do rença na qual deve produzir-se a articulação entre
prazer e a vida política, não estava se referindo o humano e o animal, entre o homem e o não-ho-
a zoé. Em nenhum desses casos, a vida tomada mem, entre o falante e o vivente, o produto final
em conta por Aristóteles era a simples vida na- da máquina antropológica não é nem uma vida
tural, mas sim uma forma especial, qualificada e animal nem uma vida humana, mas tão somente
muito particular de vida. E não é que os gregos uma vida separada e excluída de si mesma. É o
negassem que a zoé pudesse constituir um bem que Agamben vai chamar de vida nua, ou seja,
em si mesmo. Entretanto, embora pudesse a vida “aquela que qualquer um pode tirar sem cometer
puramente natural constituir um bem em si, ela homicídio ou aquela que qualquer um pode levar
era excluída da vida na polis – e somente na polis à morte, em que pese seja insacrificável”.
era possível viver segundo o bem. Para Agam- Mais que a simples vida natural, portanto, a
ben, essa dificuldade de definir, precisamente, a vida nua é a vida exposta à morte. É justamente
vida, paradoxalmente, fez com que o indefinível essa zona vazia, essa zona de indiferença que habita
acabasse por ser “incessantemente articulado e o Homo sacer, aquele que nada mais é que vida

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nua. O Homo sacer pode receber a morte das mãos um poder legítimo e a violência pretensamente
de quem quer que seja sem que isso signifique, para originária que esta autoridade deve ter instaura-
o seu autor, a mácula do sacrilégio. “O Homo sacer do?”. As respostas a essas questões, para Derrida,
pertence a deus na forma da insacrificiabilidade e exigiriam um retorno a Montaigne e a Pascal,
está incluído na comunidade como possibilidade de para o exame daquilo que ambos chamaram
que se lhe dê morte violenta. É a vida insacrificável de o “fundamento místico da autoridade”. E as
a que, sem embargo, pode dar-se a morte”. O que conclusões de Derrida coincidem com as obser-
define a condição de Homo sacer, portanto, não é vações de Montaigne e de Pascal: “As leis não
tanto a pretendida ambivalência originária da sacra- são justas enquanto leis. Não se lhes obedece
lidade que lhe é inerente, mas “o caráter particular por serem justas, mas porque têm autoridade”.
da dupla exclusão em que se encontra aprisionado Daí que “a autoridade das leis não se assenta se-
e da violência a que se acha exposto”. Esta violência não no crédito que se lhes dá; crê-se nelas, tal é
“não é classificável nem como sacrifício, nem como o seu fundamento único”. E tal é “o fundamento
homicídio; nem como execução de uma condena- místico da autoridade. Não podem, por defini-
ção, nem como sacrilégio”. Daí que o Homo sacer ção, a origem da autoridade, a fundação ou o
é, ao mesmo tempo, “santo e maldito”, abarcando, fundamento, a posição da lei, apoiar-se senão
em alguns exemplos de Agamben, “os condenados em si mesmas”.
à morte, os confinados nos campos de concentra- Agamben destaca que essa ficção sobre a
ção e os que se enquadram na definição de vida qual se funda toda a regulamentação é a mesma
indigna de ser vivida”. que, aprisionada pela indecibilidade, constitui a
abertura para que se instaure o estado de exce-
IHU On-Line – Como esse conceito pode ção, em que “a norma exibe sua superação em
nos ajudar a compreender o sujeito pura força”. A partir de então não há mais que se
contemporâneo? falar, sequer, em força de lei, senão que, somente,
Sandro de Souza Ferreira – A série de refle- em força de XXX. Atos que não têm valor de lei e,
xões Homo sacer contém o pensamento político no entanto, adquirem força. “A força de lei flutua
de Agamben. E nesse sentido, passaria, também, como um elemento indeterminado, que pode ser
pela questão do sujeito. Mas Agamben não se de- reivindicado tanto pela autoridade estatal como
tém tanto nesse aspecto em particular. Mais que por uma organização revolucionária. O estado de
a questão do sujeito, Agamben parece dar mais exceção é um espaço anônimo no qual se põe em
importância à questão, para ele central, das ín- jogo uma força de lei sem lei e que se deveria,
timas e talvez indissolúveis ligações entre direito portanto, escrever força de XXX.”
e violência. Nesse passo, seu pensamento apro-
xima-se bastante das reflexões de outro filósofo IHU On-Line – A vida nua à qual o filósofo
contemporâneo, Jacques Derrida. A referência se refere pode ser entendida nos mesmos
de Agamben, aqui e no texto Estado de exceção, moldes que em Hannah Arendt?
ele o reconhece explicitamente, é “Força de lei: o Sandro de Souza Ferreira – Isso não fica claro
fundamento místico da autoridade”, célebre con- nos textos de Agamben. Hannah Arendt é uma
ferência proferida por Derrida no ano de 1989. filósofa bastante respeitada por ele, assim como
Nessa conferência, Derrida expôs a íntima ligação também o são, por exemplo, Walter Benjamin,
entre lei, direito e violência, a qual colocaria em Emmanuel Lévinas, Michel Foucault e Jacques
questão, inclusive, a própria possibilidade da jus- Derrida. A respeito da origem da expressão vida
tiça. O título da conferência já sugere as questões nua, Agamben não remete a Hanna Arendt, mas
de fundo colocadas por Derrida, na medida em sim a Walter Benjamin. Hanna Arendt, porém, é
que “a expressão força de lei é uma alusão direta invocada várias vezes ao longo dos discursos de
e literal à força que, do interior, vem lembrar-nos Agamben, geralmente com menções de aprova-
que o direito é sempre uma força autorizada”. E ção, o que já não ocorre com os discursos, por
as questões de fundo são: “Como distinguir entre exemplo, de Martin Heidegger e de Carl Schmitt,
esta força de lei e a violência que se julga sempre em relação aos quais Agamben deixa claro seus
injusta? E como distinguir entre a força de lei de pontos de distanciamento.

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Giorgio Agamben, controvérsias sobre a
secularização e a profanação política

Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

Secularização e teologia econômica tornando a teologia algo inerente a elas. Embo-


ra isso, para Schmitt, não significa que se possa
Agamben problematiza o conceito de secula- identificar uma identidade substancial entre os
rização que a modernidade vem implementando conceitos teológicos e a política moderna, mas
nos diversos dispositivos e instituições. A seculari- apenas uma espécie de relação estratégica entre
zação moderna tem vários matizes, por não dizer ambos. Para Schmitt, a secularização moderna
versões. Max Weber, por exemplo, desenvolveu é aparente porque o Estado, a soberania, a lei,
um determinado conceito de secularização. Ele entre outras instituições, reproduzem de forma
concebe a secularização moderna a partir do pro- secular o modelo teológico.
cesso de cooptação e translação efetuado pelo Agamben resenha outro debate a respeito da
capitalismo dos modos da ascese e disciplina dos secularização ocorrido na década de 1960, na Ale-
movimentos puritanos da reforma protestante manha, entre Hans Blumenberg, Karl Löwith, Odo
para as novas instituições produtivas. Para We- Marquard e Carl Schmitt. O pano de fundo des-
ber, o capitalismo secularizou o disciplinamento te debate foi a tese desenvolvida por Karl Löwith
religioso puritano em processos de eficiência pro- em sua obra Welgeschite und Heilgeschehen
dutiva. O autor percebe a secularização a partir (História mundial e acontecimento salvífico), na
da perspectiva da funcionalidade pela qual o ima- qual sustenta que a filosofia da história apresen-
ginário religioso da Reforma é incorporado nas tada pelo idealismo alemão, assim como a ideia
instituições sob a forma de valores e práticas dos de progresso desenvolvida pelo iluminismo, nada
modernos sujeitos produtivos. Estes agora são su- mais são do que secularizações da teologia da his-
jeitos seculares poupadores, disciplinados, cum- tória e escatologia cristãs. Blumemberg defende
pridores do dever, modelos de uma subjetividade a legitimidade e prioridade da categoria secula-
secularizada por um capitalismo que necessita rização como parte constitutiva da racionalida-
este tipo de subjetivação para conseguir atingir de moderna independentemente das influências
metas máximas de produção e lucro. teológicas. O paradoxal deste debate é que dois
Outra perspectiva de secularização é a que adversários filosóficos extremos como Löwith e
apresentou Carl Schmitt. Enquanto para Weber Schmitt terminam coincidindo, a contragosto de
a secularização produziu um “desencantamento” ambos, em que a teologia cristã se encontra assu-
do mundo porque retirou a presença divina dele, mida nas principais categorias racionais construí-
reduzindo-o a um efeito imanente das causas das pela modernidade. Agamben precisa que a
naturais, para Schmitt a secularização provocou escatologia da salvação mencionada por Löwith
um efeito inverso. A secularização, segundo esse como parte da filosofia do idealismo alemão re-
pensador, teria interiorizado as grandes catego- presenta uma porção do paradigma teológico
rias teológicas dentro das instituições modernas maior da oikonomia divina. Hegel é um autor que

43
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

assume conscientemente esta influência ao afir- aquilo que é essencial ao sagrado: a separação
mar a equivalência que há entre suas teses sobre das coisas do uso comum para outra esfera não
o governo racional do mundo e a doutrina teo- atingível pelas pessoas comuns.
lógica da providência. Esta correspondência teria Muitos dos conceitos que utilizamos são as-
levado Hegel a apresentar sua filosofia da história sinaturas de outros signos que incorporamos em
como uma teodiceia: “que a história do mundo nossas crenças e práticas sem perceber a sua ge-
[...] seja o efetivo devir do espírito [...] essa é a nealogia. Walter Benjamin utilizou a noção de
verdadeira teodiceia, a verdadeira justificação de “índices secretos” para tentar reconhecer a fun-
Deus na história”. ção estratégica e vital destas transferências de sig-
Schelling, outro filósofo representante do ide- nos que mantêm sua função semântica. As assi-
alismo alemão, torna explícita a relação entre sua naturas agem como elementos que correlacionam
filosofia e a economia teológica quando no final de tempos e âmbitos diferentes, permanecendo o
sua obra Philosophie der Offenbarung (Filosofia da significado delas. O método arqueogeneaológico
revelação), faz uma síntese de sua filosofia assimi- desenvolvido por Foucault e Nietzsche pretende
lando-a à figura de uma teologia da oikonomia. captar essas assinaturas presentes que passam
inadvertidas como sentidos comuns em épocas e
sociedades diferentes.
A secularização, uma assinatura Em sentido diferente, mas semelhante, a
desconstrução proposta por Derrida e a teoria das
Agamben contribui para o debate com uma imagens dialéticas exposta por Benjamin também
proposta na qual apresenta a secularização como pretendem ser métodos filosóficos que se desa-
uma assinatura. Entende-se o termo assinatura fiam a entender as mutações, deslocamentos,
no sentido em que Foucault o empregou. A assi- continuidades dos conceitos na história e nas cul-
natura é aquilo que num signo ou num conceito turas como assinaturas.
excede o próprio signo remetendo-o para outro A secularização seria uma assinatura moder-
significado não explícito no signo, mas a ele ine- na que transferiu para dentro das instituições con-
rente. A assinatura transfere, desloca os signos e temporâneas o aparato da sacralidade teológica
os conceitos de uma esfera para outra sem que se sem modificar seu sentido originário, ou seja, a
produza uma ruptura semântica. Quando alguém separação das coisas, pessoas ou instituições do
assina um documento transfere sua personalida- alcance das pessoas comuns. A tese de Agamben
de jurídica para o documento sem necessidade de mostraria que o objetivo formal da secularização
transferir a realidade física. A assinatura se torna era tornar acessíveis as instituições sociais ao
um signo do sujeito, porém diferente do sujeito povo, apagando o caráter de inatingíveis com que
que assina. A assinatura é o signo diferente no a marca da sacralidade as revestia. Ao sacralizar
qual se mantém a continuidade semântica do su- a monarquia ou os estamentos sociais, por exem-
jeito que assinou. Embora a assinatura seja dife- plo, a soberania e a estrutura social ficam fora do
rente do sujeito que assina, ela implica o sujeito alcance do poder do povo. A sacralização opera
como sujeito naquilo que assina. Ela é também como dispositivo que separa a realidade do poder
o sujeito, embora este não apareça fisicamente das pessoas, tornado o real algo fora do seu al-
na assinatura. A assinatura desloca o significante cance. A sacralização do real tem consequências
e o signo sem mudar o significado. A assinatura éticas e políticas graves porque retira das pessoas
da pessoa num documento não muda a pessoa, a potência do agir transferindo-a para outras ins-
mas transfere para o documento um conjunto de tâncias que não alcança.
responsabilidades próprias do signo de ser pessoa A tese de Agamben é que a pretensão da
juridicamente responsável. secularização de aproximar a realidade social e
No caso que nos ocupa, a secularização seria política do povo fracassou porque a secularização
uma assinatura que transferiu a noção do sagrado manteve intacto o dispositivo da sacralidade den-
para dentro das instituições modernas mantendo tro das instituições, só que agora de forma secu-

44
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lar. Uma das principais características do sagrado especiais são os tecnocratas. Embora as decisões
é que aquilo que é declarado sacro fica imediata- de muitas instituições afetem diretamente a vida
mente retirado do uso comum e passa a pertencer das pessoas comuns do povo, considera-se que
a uma outra esfera (sagrada) inacessível para as estas pessoas não estão preparadas para opinar, e
pessoas comuns. A esfera do sagrado é inaces- muito menos decidir sobre os objetivos, funciona-
sível para a pessoa comum; ela não tem acesso mento, metas e processos das instituições. Só téc-
nem possibilidade de intervir. Só as pessoas ade- nicos devidamente reconhecidos e titulados terão
quadas (sacerdotes) ou devidamente preparadas poder de fazê-lo. A maioria das instituições mo-
(tecnocratas) poderão manipular o espaço do sa- dernas secularizadas não são acessíveis à demo-
grado. A tese de Agamben é que a secularização cracia direta. Elas se mantêm à distância (do sa-
transferiu, na forma de assinatura, os dispositivos grado) como dispositivos (secular) que impedem
da sacralidade para dentro das instituições mo- o acesso direto do povo a seu funcionamento.
dernas: Estado, mercado, lei, autoridade, etc., Um exemplo muito próximo desta figura
aparecem como entidades secularizadas, porém a são os bancos centrais. Instituições literalmente
secularização lhes conferiu uma espécie de natu- blindadas contra interferências políticas da socie-
reza própria, uma essência natural a partir da qual dade, cujo estatuto jurídico político os preserva
estas instituições, agora secularizadas, parecem ter como espaços técnicos, embora haja uma influên-
leis próprias e normas inerentes à sua essência. O cia (política) direta. Eles decidem segundo supos-
presumido naturalismo das instituições modernas tos critérios técnicos, embora permanentemente
mantém nelas um tipo de transcendentalidade tomem decisões políticas que afetam o conjunto
que nada mais é do que a continuidade da velha da vida das pessoas, que por sua vez não podem
assinatura do sagrado. Muitas instituições moder- interferir, nem sequer de forma indireta, na di-
nas, ao serem naturalizadas, conseguem manter nâmica dessas instituições. São inúmeras as ins-
seu caráter de inacessibilidade para as pessoas tituições sociais que, aparecendo com a marca
comuns do povo. O naturalismo próprio de certa da secularização, permanecem inacessíveis para
secularização moderna propicia a continuidade as pessoas comuns, ainda que nelas se decida
da assinatura do distanciamento entre o povo e parte significativa de suas vidas. Quase todas as
muitas instituições. instituições internacionais (Banco Mundial Fundo
Monetário Inernacional, Organização Mundial do
Comércio), assim como uma parte significativa
O tecnocrata, operador dos novos espa- das instituições estatais, conservam a marca da
ços sagrados transcendência e a prerrogativa de que só espe-
cialistas podem opinar a respeito de suas decisões
A transferência do sagrado como assinatu- e forma de governo. Até as grandes instituições do
ra para a secularização moderna significa que Estado de direito como o parlamento, a lei e o go-
as novas esferas sociais e políticas construídas verno são, para a maioria do povo, instâncias de
pela modernidade continuam a manter a marca poder inacessíveis de fato. As formas corporativas
do inacessível para as pessoas comuns, criando, de governo têm a marca da sacralidade seculariza-
dessa forma, uma nova reserva de acessibilidade da. Os espaços modernos secularizados permane-
na qual só especialistas (técnicos) poderão opinar cem atravessados pela assinatura da sacralidade;
e decidir. Por este meio se preserva o funciona- neles não há espaço para a democracia real. A
mento das instituições das interferências políticas democracia é incompatível com a administração
diretas do povo. O tecnocrata é a forma secular biopolítica e as formas corporativas de governo.
do sacerdote. Os espaços sacralizados produzem As grandes instituições modernas perma-
a figura do técnico como sequência concomitante necem marcadas com a assinatura de instâncias
da separação do comum. O espaço sagrado só complexas com natureza imanente, que só espe-
pode ser acessado e manipulado por pessoas es- cialistas poderão compreender e governar. Embo-
peciais. Nas instituições seculares essas pessoais ra todas elas estejam capilarmente presentes na

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

vida cotidiana das pessoas, estas permanecem corresponderia a desmascarar os tecnocratas das
ausentes de suas decisões porque a secularização instituições corporativas mundiais, estatais, nacio-
moderna manteve o princípio de que só tecno- nais, como meros sujeitos de interesses e decisões
cratas especializados poderão tomar as decisões políticas que são. Eles não são neossacerdotes da
corretas a respeito das questões vitais. técnica moderna, mas sujeitos políticos com in-
teresses variados em torno dos quais giram suas
estratégias de governo. A política moderna trans-
Profanação política feriu para a tecnocracia a forma visível de gover-
no de instâncias anônimas de decisões, enquanto
Neste contexto, o modelo de secularização oculta a real condição dos interesses políticos que
atual contribui para legitimar as formas oligárqui- decidem as técnicas de governo.
cas de governo características dos modelos cor- A proposta de Agamben de fazer da profana-
porativos de gestão, possibilitando sua aceitação ção uma categoria política contém uma indiscutí-
social, tornando a inacessibilidade do povo algo vel dose de novidade e salutar provocação. Con-
“normal, natural” das instituições. tudo, seria conveniente lembrar que a profanação
O que resta por fazer? Talvez ser resto. O resto também tem sua genealogia.
é o que resta daqueles e daquilo que não se con- Ela também é uma assinatura. Por exemplo,
segue normatizar pela maquinaria biopolítica. O Sócrates e Jesus Cristo, entre outros, foram senten-
resto são os que restam como uma alteridade, um ciados à morte por serem profanadores. Sócrates
“afora” que não termina de ser assimilado aos mo- foi acusado formalmente de corromper a juventu-
delos de gestão utilitária da vida. Para este resto, de da polis transgredindo as leis sagradas. Jesus foi
Agamben propõe pensar a categoria de profana- sentenciado por profanar a lei sagrada, por profa-
ção. A profanação, que é uma categoria religiosa, nar o sábado, por profanar o templo, por querer
tornar-se-ia o contraponto político da seculariza- que a lei, o sábado e o templo (todas as instituições
ção. Não se trataria mais de uma profanação re- políticas mais significativas de sua sociedade) esti-
ligiosa, mas sim de uma profanação estritamente vessem a serviço das pessoas, e não o contrário. A
política. Profanar politicamente significa retirar a profanação tem uma rica genealogia a ser explora-
assinatura da sacralidade do modelo secularista da da em sua potencialidade ético-política.
modernidade que mantém esferas de poder e insti- Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cur-
tuições inacessíveis ao poder real do povo. sos de graduação e pós-graduação em Filosofia
Agamben desenvolve o conceito de profa- da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Uni-
nação em várias obras. Em síntese, poderíamos versidade de Comillas, na Espanha, é mestre em
dizer que profanar significar retirar as coisas, as História pela Universidade Federal do Rio Gran-
instituições, as pessoas, do âmbito do inacessível de do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela
para colocá-las ao alcance das decisões de todos Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor
os implicados. Profanar é conferir potência à ação pelo Conselho Superior de Investigações Científi-
humana. Profanação política significaria conferir cas. Escreveu inúmeras obras, das quais destaca-
potência política efetiva às pessoas comuns em mos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo:
relação aos espaços e decisões sociais em que es- Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder
tão implicadas. (do) simbólico e os modos de subjetivação (Por-
Profanar o Estado, o mercado, a medicina, to Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do
a lei, as corporações, etc., significaria retirar a as- humanismo. A subjetividade e alteridade ante os
sinatura de separação transcendental que ainda dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).
contêm para se tornarem aquilo que são, meras Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio In-
instituições políticas arbitradas por decisões e in- ternacional IHU: o (des) governo biopolítico da
teresses de todo tipo que afetam ao conjunto das vida humana, no qual Castor contribui com uma
pessoas. Profanar significaria, mais uma vez, re- reflexão intitulada “A exceção jurídica na biopolí-
tirar os mercadores dos templos, cuja assinatura tica moderna”, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

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Agamben leitor de Averroes e as condições
de uma “política da inoperosidade”

Entrevista especial com Rodrigo Karmy Bolton

Por: Márcia Junges / Tradução: André Langer

Apresentação

“A reflexão agambeniana está decisivamente orientada a traçar uma verdadei-


ra ‘arqueologia da potência’, onde o antigo e obscurecido legado das humanidades
árabes e islâmicas é decisivo”, argumenta Rodrigo Karmy Bolton na entrevista que
concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador, “enquanto pa-
radigma, o averroísmo constitui um pensamento que, ao contrário daquele dominante
que diz que os ‘homens pensam’, afirma que os homens ‘podem’ pensar, mas que
ainda não pensam”. E complementa: “em sua perspectiva, Averroes e o averroísmo –
essa breve passagem por Córdoba nos séculos XII e XIII – constituem uma peça chave
nesta ‘arqueologia da potência’ que permitiria desativar as formas contemporâneas da
‘máquina governamental’”. Bolton explica que o averroísmo abre uma possibilidade
para a política da inoperosidade, o que significa “destacar uma política do comum en-
quanto, através da noção de multidão, Dante segue Averroes em sua leitura da noética
aristotélica à luz da ‘espécie’ e não do ‘indivíduo’”. Em seu ponto de vista, “a leitura
que Agamben retoma a partir de Averroes e Dante permitirá abrir as condições para
uma ‘política da inoperosidade’, onde a imbricação entre imaginação, comunidade e
in-fância é decisiva”. A descoberta averroísta da in-fância, argumenta Bolton, pode
ser “um primeiro passo para pensar naquilo que Agamben chama de ‘filosofia’ ou de
‘política que vem’”.
Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidade do Chile, onde
leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Hu-
manidades. Suas linhas de trabalho incluem a angelologia e governamentalidade no
cristianismo e no islã, seguindo os trabalhos de Michel Foucault e Giorgio Agamben,
entre outros. É autor de Políticas de la interrupción. Ensayos sobre Giorgio
Agamben (Santiago de Chile: Editorial Escaparate, 2011), complicação de textos
do filósofo italiano. Rodrigo estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 23-10-
2013, quando profere a conferência A potência do pensamento: Giorgio Agam-
ben leitor de Averroes, parte integrante do evento O pensamento de Giorgio
Agamben: técnicas biopolíticas de governo, soberania e exceção, cuja progra-
mação completa pode ser conferida em http://bit.ly/WdV0ca.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Em que aspectos fundamen- Dessa maneira, o averroísmo oferece a


tais se dá a influência de Averroes sobre o Agamben ao menos três assuntos que a moder-
pensamento de Agamben? nidade teria tentado conjurar: em primeiro lugar,
Rodrigo Karmy Bolton – Em termos gerais, uma noética orientada à imaginação (que para
se poderia dizer que a questão fundamental que o averroísmo constitui o umbral de todo pensa-
Averroes e o averroísmo legam ao pensamento mento); em segundo lugar, a articulação de uma
de Agamben é a de um paradigma ontológico al- concepção do comum que coincide estreitamente
ternativo, que outorga ao conceito de potência, com a figura da potência (o que Agamben cha-
proposto por Aristóteles, um estatuto privilegiado. mará de “ser qualquer”); em terceiro lugar, uma
Enquanto paradigma, o averroísmo constitui um consideração do homem como um in-fante que,
pensamento que, ao contrário daquele dominan- como tal, desafia toda a antropologia. Imagina-
te que diz que os “homens pensam”, afirma que ção, comunidade e in-fância constituirão três
os homens “podem” pensar, mas que ainda não eixos que, na articulação de um paradigma on-
pensam. A tese que Averroes propunha em Gran tológico alternativo, o averroísmo oferecerá ao
Comentario al Tratado sobre el alma de Aristóte- trabalho de Agamben.
les era que o pensamento era uma potência sepa-
rada e exclusiva de todos os homens. Com isso, o IHU On-Line – Como um dos maiores co-
averroísmo situa um hiato irredutível entre a vida nhecedores e comentaristas de Aristóte-
do homem e o pensamento que, em 1978 (um les, qual é a ressonância de Averroes so-
ano depois da publicação de Estâncias – A pala- bre o conceito de potência desse filósofo
vra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Hori- italiano?
zonte: Ed. UFMG, 2007), Agamben denominará Rodrigo Karmy Bolton – Talvez, para
de in-fância. Ao contrário da reação tomista, que começar a responder a esta pergunta seja perti-
orientará todos os seus esforços para suturar este nente recordar um pequeno texto que Agamben
hiato, o averroísmo abrirá o campo da in-fância publica em 2004, A obra do homem, incluído
do homem realizando, graças à imaginação que em seu livro La potencia del pensamiento. Nes-
mediatiza a relação entre o homem singular e a te texto, Agamben coloca que desde Aristóteles
potência do pensar, sua potência comum a todos uma determinada tradição parece ter desprendi-
os homens. Neste sentido, teríamos que dizer que do duas teses sobre a política: em primeiro lugar
a reflexão agambeniana está decisivamente orien- – escreve –, que a obra do homem define a po-
tada a traçar uma verdadeira “arqueologia da po- lítica como uma “política da operosidade e não
tência”, onde o antigo e obscurecido legado das da inoperosidade, do ato e não da potência”;
humanidades árabes e islâmicas (os falasifa como em segundo lugar, que tal érgon se apresenta
Al Farabi, Ibn Bayya, Ibn Sina e, certamente, Ibn como uma “certa vida” que se define “pela ex-
Rushd; mas também seus místicos como Sohra- clusão do simples fato de viver, da vida desnu-
wardi e Ibn ‘Arabi) é decisivo. Neste sentido, ao da” (p. 472). Diante desta leitura de Aristóteles
contrário do “orientalismo” filosófico que insiste na que, com o cristianismo posterior, teria dado
solução fictícia de continuidade que haveria entre lugar ao desenvolvimento da “máquina gover-
a Grécia, Roma e a Europa (em particular a Ale- namental” contemporânea, Agamben descobre
manha e a França), à luz de Averroes e do aver- outra leitura presente em uma passagem de La
roísmo, Agamben introduz uma descontinuidade exposición a la República de Platón, escrito por
nesse circuito tão bem montado: Córdoba. Assim, Averroes, onde o cordobês afirma: “(...) como
em sua perspectiva, Averroes e o averroísmo – essa não possuímos esta parte teórica em sua per-
breve passagem por Córdoba nos séculos XII e XIII feição definitiva e em ato desde o começo, sua
– constituem uma peça chave nesta “arqueologia existência é potencial” (Averroes, p. 91). O inte-
da potência” que permitiria desativar as formas resse de Agamben afirma-se na ideia de que o
contemporâneas da “máquina governamental”. pensamento tem uma existência potencial.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Política da inoperosidade em outra modernidade: uma modernidade que


nasce com o gesto “averroísta” de Dante.
Desta forma, o averroísmo teria constituído Do meu ponto de vista – seguindo os traba-
o esteio de uma nova leitura da relação potência- lhos que desenvolvi no Centro de Estudos Árabes
ato que, colocando o acento na comunidade, da Universidade do Chile –, o que teria definido
na imaginação e na in-fância, permitiria situar o a modernidade em sua deriva governamental foi
lugar da potência para além da invisibilidade a a expulsão do averroísmo da Universidade de Pa-
que a leitura governamental de Aristóteles a teria ris em 1277. Penso que este acontecimento terá
condenado. Uma potência que já não se definirá seu eco tanto em Descartes, quando expulsa a
pelo ato, mas por constituir uma mediabilidade imaginação do processo do pensamento, como
ou uma receptividade absolutas. Assim, o aver- em Hobbes, quando substitui a multiplicidade do
roísmo, em seu silencioso comentário à noética comum (a guerra de todos contra todos) pela uni-
aristotélica, abrirá a possibilidade para uma po- cidade do Estado. Esta expulsão teria impedido
lítica da inoperosidade, já não da operosidade, a modernidade de articular um pensamento do
ali onde o pensamento assume uma “existência comum ou, o que é a mesma coisa, teria substitu-
potencial”. Mas, ainda mais: pensar uma política ído a potência comum pela soberania do sujeito.
da inoperosidade significará, por sua vez, desta- Assim, seguindo Augusto Illuminatti, poderíamos
car uma política do comum enquanto, através da dizer que os herdeiros do averroísmo podem ser
noção de multidão, Dante segue Averroes em sua encontrados tanto em Spinoza (onde a noção
leitura da noética aristotélica à luz da “espécie” da potência do pensamento assume a forma da
e não do “indivíduo”: “O tema da multidão em “substância”), como em Marx (onde este se arti-
Dante – escreve Agamben – retoma a teoria aver- cula como o General Intellect).
roísta da eternidade do gênero humano como Por esta razão, a importância da interpreta-
correlativa da unicidade do intelecto possível. ção agambeniana permite contar a história do
Dado que, segundo Averroes, a perfeição da po- nosso presente a partir de um lugar que teria fica-
tência de pensar do homem está ligada essencial- do obscurecido pelo orientalismo da célebre tra-
mente à espécie, e acidentalmente aos indivíduos dição filosófica e que encontrará seu murmúrio
singulares, sempre haverá ao menos um indiví- – porque não pode ser outra coisa que um mur-
duo – um filósofo – que realize em ato a potência múrio, isto é, um gesto que não é palavra, mas
do pensamento” (Agamben, p. 478). também não é silêncio – na Córdoba andaluza.
Agamben é muito preciso com a colocação Com isso, a leitura que Agamben retoma a partir
averroísta que permitirá tanto a Dante como a de Averroes e Dante permitirá abrir as condições
Siger ler a noética aristotélica à luz da “espécie”. para uma “política da inoperosidade”, onde a im-
Por esta razão, a potência do pensamento remete bricação entre imaginação, comunidade e infân-
a um verdadeiro poder comum que, enquanto re- cia é decisiva.
ceptividade absoluta que sobrevive a toda forma
que recebe, constitui a premissa para uma política IHU On-Line – Como podem ser compreen-
da inoperosidade. didas as categorias de potência do não e
potência do pensamento em Agamben?
IHU On-Line – Qual é a novidade da inter- Rodrigo Karmy Bolton – Para compreender o
pretação de Agamben sobre o conceito de que Agamben entende por “potência do não” (fi-
potencia aristotélico? gura ontológica que definirá a potência do pensa-
Rodrigo Karmy Bolton – Como assinalei, a mento) é preciso remeter-se às duas concepções
novidade da interpretação agambeniana sobre o de potência presentes em Aristóteles, que poderí-
conceito aristotélico de potência passa decisiva- amos chamar de “potência genérica” e “potência
mente por Averroes e pelo averroísmo. Sua “no- específica”. Já no Capítulo V do livro II (416 b)
vidade” reside em ter encontrado em Averroes e Aristóteles afirma que a sensação “depende de
no averroísmo a chave arqueológica para pensar um movimento sofrido e de uma afeição (...)”

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que, segundo o estagirita, constitui uma espécie seu télos na segunda. A potência do não será, en-
de “alteração”. À luz disso, Aristóteles indica que tão, um lugar irredutível à dialética entre potên-
a faculdade sensitiva não existe em ato, mas em cia e ato. É se é certo que, assim como o próprio
potência. No entanto, ele seguirá o raciocínio Agamben expressa em Homo Sacer I, esta dialé-
aristotélico, também o termo “potência” pode- tica constituiu o legado aristotélico para a teoria
-se dizer de dois modos, para o que a imagem da soberania, então a “potência do não” parece
do “homem sábio” será fundamental: o homem constituir sua desativação radical. Uma potência
sábio o é enquanto pertence à “classe de seres do não – que Avicena qualificava com a rubrica
capazes de serem sábios” e, portanto, será de- da “potência perfeita” – abre-se assim como um
tentor da potência genérica, enquanto todos os novo ponto de partida para uma política da ino-
homens poderão ser sábios graças à adequada perosidade que, seguindo as pegadas do averroís-
educação, assim como “chamamos sábio aquele mo, permite articular imaginário, comunidade e
que já possui a ciência da gramática” (417a 25) in-fância em uma mesma trama filosófica.
que levará consigo uma “potência específica” na Em relação à noção agambeana da potência
medida em que já traz consigo aquele saber que do pensamento é preciso recordar que no Gran
poderá ou não atualizar. Neste segundo sentido, Comentario Averroes esta é definida em analo-
Agamben retoma a noção de potência do não: o gia à diaphanés presente na teoria das cores de
homem é sábio, mas, como tal, poderá atualizar Aristóteles. À luz disso, a potência do pensamen-
ou não tal potência. to desenvolve-se em Averroes e no averroísmo
Neste mesmo sentido, retomando as consi- como um verdadeiro médium situado entre a
derações em torno da teoria das cores proposta subjetividade dos sentidos e a objetividade do
por Aristóteles (418b), Agamben fixa o olhar na mundo, entre um interior e um exterior. A potên-
diaphanés (transparência) como aquele médium cia do pensamento se desentulha, assim, como
situado entre a sensibilidade do sujeito e a mun- uma medialidade que não apenas não se dirige
danidade do objeto. Segundo Aristóteles, quando a um fim, mas que também não constitui um fim
este está em ato vê-se as cores, mas quando está em si mesmo. Como tal, o termo “pensamento”
em potência vê-se o escuro: “Este último – escre- designará um poder comum que deixa de lado
ve Aristóteles na mesma passagem – não é senão todo exercício individual de um determinado ór-
o transparente, mas não quando é transparente gão ou faculdade, para voltar-se como um verda-
em ato, mas quando o é em potência (...)” (418b, deiro experimentum àquilo que Walter Benjamin
30). Nesta perspectiva, Agamben comenta: “A podia consignar com o termo “língua pura”. Por
obscuridade é verdadeiramente a cor da potên- esta razão, Agamben escreve: “Pensar não signifi-
cia, e a potência é essencialmente disponibilidade ca somente ser afetado por esta ou aquela coisa,
de uma stéresis, potência de não ser” (Agamben, por este ou aquele conteúdo de pensamento em
p. 359). Desta forma, a potência do não se obser- ato, mas ser ao mesmo tempo afetado pela pró-
va na dimensão da obscuridade, que Agamben pria receptividade, fazer a experiência, em cada
infere da teoria aristotélica das cores, toda vez pensamento, de uma pura potência de pensar”
que a potência volta a ter lugar na irredutibilidade (Agamben, 18). Assumindo radicalmente a con-
da potência do não. cepção averroísta do pensamento como receptivi-
dade absoluta – isto é, como um ser de potência –
Agamben define este como a substância comum
Potência do não e desativação radical cuja atualização por parte dos indivíduos singula-
res implica em fazer a experiência não apenas de
Assim, a “potência do não” será uma terceira assumir este ou aquele conteúdo do pensamento,
figura que parece estar além da dialética simples mas também a de abrir-se à própria potência do
entre potência e ato, onde a primeira encontra pensar.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Abertura à “in-humanidade” seu “acho melhor não”, a potência do pensar se


mantém intacta em relação às formas que rece-
Como o próprio Aristóteles havia ilustrado be. Nesse sentido, Bartleby torna visível a “obs-
em De Anima, se poderia dizer que a potência do curidade” da potência, a irredutibilidade de um
pensamento é como a “tabuleta de cera sem ins- lugar que não se define apenas por estar isento
crição alguma” que, talvez, possa ser visualizada de toda forma, mas também por sua capacida-
na figura do monólito que aparece no filme 2001, de de atualizar-se ou não. O “acho melhor não”
Odisseia no Espaço, dirigido por Stanley Kubrick. visibiliza a obscuridade da potência do não. Isto
Com efeito, se notamos bem, o monólito repre- nos recorda um pequeno texto intitulado O anjo
senta em Kubrick o mesmo que em Aristóteles, tingido de púrpura – traduzido para o francês por
isto é, a abertura da potência do pensar. Todas Henry Corbin –, de um anônimo persa que diz
as formas vigentes implodem e são interrompidas seguir o místico Sohrawardi e que Agamben cita
por uma potência a partir de cuja receptividade em seu texto sobre Bartleby: o anjo Gabriel tem
o homem imagina seu princípio (o homínideo) e duas asas: a asa direita representa o poder ser
contempla seu final (a loucura do Hal 9000). O e a asa esquerda o poder não ser. À luz disso,
monólito de Kubrick não é senão a in-fância do torna-se imprescindível compreender a “asa es-
homem que sobrevive a toda forma que recebe, querda” do anjo Gabriel ou a “obscuridade” de
a todo ato que realiza. O que Aristóteles mostra Aristóteles como a “potência do não” que Agam-
com o símile da “tabuleta sem inscrição alguma”, ben destaca para abrir o campo da possibilidade.
Averroes com a potência do pensamento e Kubri- Bartleby responde, assim, a uma tradição que
ck com o monólito é, precisamente, a in-fância do não foi obscurecida no Ocidente, que atravessa
homem, isto é, o fato de que pensar significa tocar as humanidades árabes e islâmicas e que passa
o lugar da sua própria potência de pensar, que ser tanto pelos falasifa (filósofos) como pelos arifun
“humano” significa abrir-se à própria in-humani- (gnósticos), nos quais, talvez, a concepção acerca
dade e que, por isso, a filosofia parece estar longe da “potência do não” alcança seu mais profundo
de suturar a relação entre homem e logos, entre desenvolvimento.
vivente e forma, para conceber-se como uma ex-
periência que trabalha incessantemente com a IHU On-Line – Sob que aspectos a cate-
própria in-fância. Kubrick e Averroes coincidem goria de potência do não tem implicações
neste ponto: a potência do pensamento é, para com a autonomia e a liberdade do sujeito?
Averroes, um domínio que pertence à dinâmica Rodrigo Karmy Bolton – A potência do não
astral, assim como, para Kubrick, o monólito é não é liberdade se entendermos esta última no
um não-lugar que, no entanto, provém do espaço sentido moderno de uma soberania do sujeito.
exterior. Se a liberdade – inclusive como a pensa Hayek,
Que o pensamento seja sempre um “pensa- como “liberdade individual” – se articula hoje
mento de fora” talvez seja o legado que o aver- como o reduto através do qual se desenvolve a
roísmo deixa para o nosso tempo e que asso- máquina governamental da época neoliberal, a
ma à filosofia como um trabalho radicalmente potência do não vem interromper radicalmente
in-humano, posto que abre o homem à sua in- este desenvolvimento. Um exercício de “desdo-
humanidade (os astros em Averroes, o monólito bramento” ali onde se instala o mitologema da
em Kubrick). obra, uma abertura ao poder comum ali onde a
soberania individualiza, a premissa para uma po-
IHU On-Line – Nesse sentido, como pode- lítica da inoperosidade no momento da máxima
mos compreender a menção a Bartebly, es- operosidade da política moderna. Neste sentido,
crivão que deixa de escrever (“acho melhor a potência do não não apenas nos indica o limite
não”)? do nosso atual conceito de liberdade que, me pa-
Rodrigo Karmy Bolton – Precisamente, nada rece, nunca pode deixar de ser identificado com
mais averroísta que o gesto de Bartleby. Em a máquina governamental que lhe é constitutiva,

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mas também, se por acaso nos permitir pensar ou- Rodrigo Karmy Bolton – Antes de responder
tra formulação do político, orientado para o “uso” diretamente, permita-me fazer um rodeio. É do
em comum: as últimas referências de Agamben conhecimento de todos que o termo “biopolíti-
a este ponto remetem ao franciscanismo e a Lu- ca” foi um neologismo introduzido por Rudoph
crécio, mas teria que estendê-las, certamente, à Kjellen e retomado por Michel Foucault de 1974
questão do uso em Marx. até 1979. Mas em Agamben este termo experi-
menta um progressivo desuso desde a publicação
do primeiro tomo da saga Homo Sacer I (Homo
Metafísica da vontade sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2010), em 1995, no qual
Talvez, a pergunta que Agamben nos faz seja o termo “biopolítica” experimenta uma transfor-
esta: como pensar uma práxis orientada radical- mação que o amplia em um horizonte histórico-
mente para o uso em comum, de que modo a ontológico em relação ao uso mais restrito que
potência do não nos confronta com essa possibi- observamos em Foucault, até a publicação, em
lidade? Mais ainda: em que medida a noção de 2007 de O Reino e a Glória: uma genealogia teo-
“potência do não” nos permitiria pensar em outra lógica da economia e do governo: homo sacer, II
noção de “liberdade” em que esta não remeta à (São Paulo: Boitempo, 2011) onde, assim como
questão da apropriação, mas, talvez, à da des- ocorre em Foucault desde 1978, Agamben não só
apropriação como uma desativação radical do bi- usa o termo “biopolítica” apenas uma única vez
nômio político-jurídico capaz de distinguir entre a neste extenso livro, mas, também, começa a subs-
posse e a propriedade? tituí-lo pelo termo mais específico e próximo ao lé-
Em que medida a noção de “potência do xico agambeniano de “máquina governamental”.
não” permitiria uma liberdade des-apropriativa Assim, seguindo o percurso foucaulteano, parece
que prescinda inteiramente deste binômio e o haver em Agamben um progressivo abandono da
substitua afirmativamente pelo do uso livre e co- noção de “biopolítica” para substituí-la por aque-
mum? Finalmente, não seria a potência do não la de “governamentalidade” ou “comando”.
uma das premissas a partir de onde pensar de ou- À luz disso, o fio secreto da tradição filosófi-
tro modo o que Marx chamou de comunismo? O ca que desembarca na Córdoba muçulmana an-
próprio Agamben não abandona sua crítica inicial tes que na Europa cristã, parece constituir o ponto
já anunciada em O homem sem conteúdo (Belo de interrupção desta “matriz biopolítica” ou, caso
Horizonte: Autêntica, 2012), de 1970, onde co- queira, desta “máquina governamental”, na me-
loca em questão a “metafísica da vontade”. Em dida em que a potência assume um lugar diferen-
2011, quando concluía Opus Dei. Arqueologia do te que diz respeito a pensar em um novo estatuto
ofício (Homo Sacer, II, 5. São Paulo: Editora Boi- da ação. Uma ação isenta da soberania do sujei-
tempo, 2013), escreve: “O problema da filosofia to, quer esta última se articule como soberania,
que vem é o de pensar uma ontologia para além vontade, liberdade ou dever. Talvez a descoberta
da operatividade e do comando e de uma ética e averroísta da in-fância – que este compartilha com
uma política inteiramente liberados dos conceitos Sigmund Freud e sua concepção do inconsciente
de dever e vontade” (Agamben, p. 147). Neste – seja um primeiro passo para pensar naquilo que
sentido, como pensar, portanto, uma noção de Agamben chama de “filosofia” ou de “política que
liberdade que não esteja atravessada pela deri- vem”. Porque, segundo Agamben, esta matriz oci-
va litúrgica do “dever” e por aquela soberania da dental encontraria sua desativação na interrupção
“vontade”, em que medida a “potência do não” propriamente messiânica desta potência do não.
constituiria a premissa para isso? A in-fância abre o campo do possível ali onde a
máquina governamental projeta apenas o abjeto
IHU On-Line – Em que medida essas ideias do procedimento. Outra vez Kubrick meio a meio:
oferecem suporte para uma nova interpre- Hal 9000 (a máquina governamental) confrontada
tação sobre a ação e também sobre a po- com o monólito (a potência do não).
lítica para além de sua matriz biopolítica?

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IHU On-Line – Por que a diferença entre as implicaria em abrir as possibilidades para uma
ideias de potência e ato são, para Agam- “política da inoperosidade”. Se potência e ato se
ben, a matriz ontológica sobre a qual se resolvem na dialética poder constituinte e poder
sustenta a biopolítica no Ocidente? constituído, o fio “averroísta” de situar uma po-
Rodrigo Karmy Bolton – Porque teriam sido tência que não se resolve em ato, abre um terceiro
estas duas categorias ontológicas as que deram campo no qual “potência do não”, “vida feliz” ou
lugar à diferença que já aparece no pensamento “vida eterna” se desentulha como um novo para-
de Carl Schmitt: o poder constituinte e o poder digma político que já não se enfoca no “homem”,
constituído. Se o jurista não deixa de pensar na mas que, sobretudo, aponta para a in-fância do
dimensão aporética na qual se forja a origem e a homem.
forma, o poder constituinte e o constituído, a vio- No entanto, me atreveria a colocar um sinal
lência jurídica e o direito normativo, traduzindo de interrogação sobre o pensamento agambenia-
esta aporia para um campo de reflexão em que no, graças a algumas considerações feitas por Jac-
a noção de katechon, como “força que detém”, é ques Derrida no desenvolvimento de seus últimos
essencial, para Agamben trata-se de uma respos- seminários intitulados A besta e o soberano. Em
ta diferente: não se trata de manter essa solução seus diferentes momentos teóricos, Agamben insis-
de continuidade entre poder constituinte e poder te em que o homem é um animal isento de obra,
constituído e fixar-se para si uma dinâmica ka- inoperoso, um ser vivente que a nova antropolo-
techontica, mas de desativá-la com uma terceira gia biológica qualificaria de neotécnico. Com isso
figura, cuja arqueologia filosófica parece encon- Agamben segue muito de perto os trabalhos de
trar-se na diferença aristotélica entre a potência e Martin Heidegger referidos ao animal (em particu-
o ato. Com efeito, e como dissemos, é indispen- lar seu seminário de 1933), mas, com isso, parece
sável fazer passar Aristóteles pela rasura das hu- manter o “homem” como o único vivente neo-
manidades árabe e islâmica, porque parece que técnico, o único animal de potência. A pergunta
só ali este paradigma ontológico, sobre o qual se seria justamente esta: não poderíamos pensar que
assentou o Ocidente, encontrou outra leitura: a o que chamamos de vida sensível – isto é, aquela
potência não somente é inesgotável no ato, mas, vida que já em Aristóteles diz respeito àquela dos
além disso, é resolvida numa inoperosidade cons- animais – tem o modo da potência e que, por esta
titutiva, situando-se como um singular, como um razão, não apenas o homem assume o modo da
resto, cuja irredutibilidade desafia a dialética par- inoperosidade? Depois de tudo e assim como pôs
ticular-universal. Assim, esta potência que pode de relevo Derrida, a concepção de que o animal
não passar ao ato, porque, no fundo, esta potência se reduz à “reação” e o homem à “resposta” segue
pode o ato sem necessariamente realizá-lo e, as- sendo tão devedora do “humanismo” derivado
sim como o soberano presente no Trauerspiel pro- desde Aristóteles que nem o próprio Heidegger –
blematizado por Benjamin, abre-se inteiramente em suas três teses sobre o “mundo” (a pedra é sem
como uma potência que pode sua própria impo- mundo, o animal é pobre de mundo, o homem é
tência. Assim, poder o impoder não é outra coisa construtor de mundo) – teria podido conjurar. À luz
que fazer tremer o princípio da soberania sobre disso, Derrida denomina de animot uma “irredutí-
o qual se desenvolve a máquina governamental. vel multiplicidade viva de mortais” que, antes que
qualquer “espécie” ou “gênero” em que é possível
IHU On-Line – Em que aspectos uma rela- distinguir o humano do animal, se abre como um
ção entre potência e ato supõe outra forma “híbrido monstruoso”.
de pensar o poder?
Rodrigo Karmy Bolton – Como dizíamos, se
numa perspectiva agambeniana a relação potên- Irredutível multiplicidade
cia e ato constitui o paradigma a partir do qual
se teria tornado possível uma “política da opero- Talvez seja à luz disso que a questão da
sidade”, então pensar outra forma desta relação in-fância possa adquirir uma nova inteligência

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que permita indicar que a in-fância não é mais do não, talvez, volte a ser pertinente, mas para
que essa vida sensível em cuja medialidade se pensar para além de Maturana e Varela, mas tam-
joga a “irredutível multiplicidade” que desativa bém, como disse, de Agamben, no ponto em que
qualquer diferença entre homem e animal. Como a vida sensível e não apenas a “vida humana”,
dirá Emanuele Coccia, parafraseando as conside- não é mais que um fluxo capaz de ocorrer a toda
rações que Gregorio Magno fizera sobre os anjos: forma. Pensar a vida como in-fância ou a in-fância
os seres vivos se diferenciam em grau, mas não em como uma zona em que animais e humanos par-
natureza. No entanto, isto não significa defender ticipam do festim da “irredutível multiplicidade”.
uma tese darwinista, segundo a qual, a diferen-
ça entre homem e animal apaga-se inteiramente, IHU On-Line – Nesse sentido, qual é a rela-
ficando todos os seres vivos sub-rogados ao pa- ção entre a linguagem e a política que vem?
radigma mecanicista e “operoso” que este traz Rodrigo Karmy Bolton – A analogia que Agam-
consigo, mas, antes, trabalhar a tese derrideana ben faz entre linguagem e política já está presente
do animat como o lugar de uma in-fância que no próprio Aristóteles em Política (1253 a) quan-
é extensível a todos os seres vivos. O cachorro, do se identificava os homens como aqueles ca-
o gato, a formiga e o homem teriam um ponto pazes de distinguir o justo do injusto. No entanto,
“comum” que coincidiria com essa “irredutível a aposta agambeniana destaca como a tradição
multiplicidade” que se articula como uma potên- filosófica teria abordado o problema da inscrição
cia que excede os limites de “espécie”, “gênero” em função da produção de uma vida desnuda
ou “indivíduo”. que ficaria incluída na forma de uma exclusão.
Talvez, seja este o ponto que abre as condi- Neste sentido, uma outra concepção da política
ções para pensar o caráter “comum” do reino do que assume a irredutibilidade da in-fância, ne-
sensível, ali onde a potência do vivo não é mais cessariamente terá de colocar outra relação com
que relação com o outro de si. Quisera acrescen- respeito à relação do homem com a linguagem.
tar mais um ponto: o fato de que o vivo não seja Volto sobre Averroes e o averroísmo como
mais que “relação com o outro” implica em que condição para a política que vem ou, caso queira,
nunca estamos diante da “vida” como substân- como o umbral no qual se joga o nosso presente:
cia, nem tampouco da “vida” como função. Pelo se a relação do homem com a linguagem não se
contrário, implica em que o vivo não é mais que articula a partir da teologia econômica na qual
superfície radicalmente inoperosa. À luz disso, a se desenvolve a forma “pessoa”, mas a partir da
concepção que temos da vida sempre passa pela impessoalidade de uma in-fância, então, a rela-
consideração substancial ou funcional. Inclusive ção entre vida e forma, entre vivente e linguagem
quando, hoje, a teoria da autopoiesis, proposta acontece como uma possibilidade, mas nunca
por Maturana e Varela, chama a atenção pela no- como uma necessidade. O homem é tanto aquele
vidade de não pensar a vida como “substância”, vivente que pode pensar, como aquele que não
paga o preço de reduzi-la à dimensão da “função” pode. Neste sentido, se o dispositivo “pessoa”
assumindo seu caráter insubstancial, mas conde- defendido pela antropologia cristã sutura o hiato
nando-a ao equilíbrio proposto pelo paradigma in-fantil entre vivente e linguagem, a aposta pela
homeostático (a autopoiesis e o sistema fechado). in-fância o abre irremediavelmente. Com efeito,
Por isso, a fórmula de Maturana e Varela mantém este problema colocado por Agamben, já teve sua
a dimensão do “equilíbrio” (a autopoiesis) redu- disputa nos inícios da modernidade ocidental, no
zindo aquilo que Canguilhem – seguindo secreta- século XIII, quando o averroísmo terminou sen-
mente a deriva averroísta – considerou decisivo: do expulso da Universidade, em 1277. Até que
o “desvio”, o “erro”, a “interferência”. Como co- ponto a reação de Tomás de Aquino frente a
locou Foucault em seu texto-homenagem a Can- Siger de Brabant e a consequente expulsão do
guilhem, trata-se de pensar a vida como “aquilo averroísmo, assinala a modernidade com a im-
capaz de erro” e, neste sentido, como o que co- possibilidade de pensar no “comum” e a deriva
loca em jogo sua dimensão potencial. A potência in-fantil do homem?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

E, não obstante a expulsão do averroísmo, Retorno do averroísmo


me atreveria a dizer que este sobreviveu nos in-
terstícios do mundo, ao ponto de que hoje, dian- Neste sentido, diante da insistência na conti-
te das novas versões da teologia que se desen- nuidade, na operatividade e no programa da nova
volvem na forma da máquina governamental, deriva teológica, o retorno do averroísmo insiste
este experimenta um retorno. Mas um retorno na descontinuidade, na inoperosidade e na imagi-
não é nunca um retorno do mesmo, mas antes nação. E assim, se a teologia reivindica uma identi-
uma repetição na qual o averroísmo parece sur- dade imediata entre vivente e linguagem, graças à
gir com outras roupagens, que começam a abrir unidade sintética que lhe provê o dispositivo “pes-
o terreno para pensar a impessoalidade do co- soa”, o averroísmo, outra vez, desmonta aquilo
mum. Assim, se a teologia governamental toma que a teologia sutura. Por esta razão, penso que
hoje a forma da cibernética que tenta, por todos aquilo que hoje a academia chama de “pensamen-
os meios, reduzir o “desvio” entre emissor e re- to contemporâneo” não é outra coisa que uma re-
ceptor, ou da antropologia neoliberal, que insiste petição do averroísmo, que retornou para colocar
na capacidade operativa do indivíduo, o aver- o mesmo problema que colocava em tensão frente
roísmo retorna para insistir no “desvio” que se ao tribunal dos teólogos (tanto dos teólogos muçul-
abre entre vivente e linguagem e, portanto, na manos como dos cristãos): a insistência em que o
dimensão inoperosa e imediatamente comum pensamento é único e separado do homem ou, o
da existência. que dá no mesmo, que o homem é um in-fante e
que a filosofia não é mais que um trabalho com a
“morada in-fantil” da humanidade.

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Lampedusa: o estado de exceção que se tornou a regra

Entrevista especial com Flavia Costa

Por Márcia Junges e Patricia Fachin. Tradução Benno Dischinger

Apresentação

“A novidade da política moderna é que a exceção se tornou a regra; isto é, aqui-


lo que aparecia incluído mediante sua exclusão (o estado de natureza, o ‘animal’ no
homem) aparece agora indiferenciado com respeito ao seu oposto: o estado civil, o
‘humano’ no homem”, avalia a pesquisadora.
“O ocorrido dias atrás nas costas de Lampedusa, Itália, onde morreram cerca de
300 pessoas escapando de suas terras, assinala o nó do que está em jogo na ideia de
um ‘estado de exceção que se tornou a regra’”, menciona Flavia Costa, ao explicitar o
conceito abordado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (foto abaixo).
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a pesquisadora ex-
plica que o estado de exceção “é, neste sentido, o dispositivo que mantém unidos
violência e direito e, ao mesmo tempo, quando se realiza, o que rompe essa unidade.
Por outro lado, o estado de exceção aparece como o paradigma da política contem-
porânea, ideia que parte da tese benjaminiana, segundo a qual, em nossa época, ‘o
estado de exceção se tornou a regra’”.
Flavia assinala que Agamben chama a atenção para uma situação preocupante
e recorrente desde o começo do século XX, a qual “passa inadvertida para a maioria:
vivemos no contexto do que se tem denominado uma ‘guerra civil legal’”. E esclare-
ce: “O totalitarismo moderno se define como a instauração de uma guerra civil legal
através do estado de exceção, e isso ocorre tanto para o regime nazi como para a
situação em que se vive nos Estados Unidos desde que George W. Bush emitiu, em
13 de novembro de 2001, uma ‘military order’ que autoriza a ‘detenção indefinida’
dos não cidadãos estadunidenses suspeitos de atividades terroristas. Já não se trata de
prisioneiros nem de acusados, senão de sujeitos de uma detenção indefinida – tanto no
tempo como no modo de sua detenção –, que devem ser processados por comissões
militares, distintas dos tribunais de guerra. Nesse marco mais geral, basta observar em
cada nação a assiduidade com a qual os governos lançam mão de diferentes modali-
dades de exceção para impor, por exemplo, suas políticas de ‘ajuste’, para identificar a
atualidade enorme do problema”.
Flavia Costa é professora na Universidade de Buenos Aires – UBA.

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IHU On-Line – O que é o estado de exceção nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vi-
para Agamben? vemos é a regra. Devemos aderir a um conceito
Flavia Costa – A tese de Agamben é que o es- de história que corresponda a este fato”.
tado de exceção, esse momento que se supõe Do ponto de vista das afinidades históricas,
provisório, no qual se suspende a ordem jurídica é claro que Benjamin é, nos inícios do projeto de
precisamente para garantir sua continuidade, se Homo sacer, uma influência chave para Agam-
converteu durante o século XX em forma per- ben, enquanto Schmitt é a fonte “negativa”; isto
manente e paradigmática de governo. Agamben é, o que se propõe Agamben é tomar Schmitt para
utiliza aqui estado de exceção como um termo pensar contra Schmitt. É o jurista nazi que define
técnico para definir uma “totalidade coerente de ao soberano como detém, não tanto o monopólio
fenômenos jurídicos” – denominados, segundo da violência física, senão o monopólio da decisão
as diferentes doutrinas, estado de necessidade, sobre o estado de exceção. O soberano é quem,
decretos de necessidade e urgência, estado de por sua particular posição em relação com a lei,
emergência, estado de sítio etc. –, nos quais o po- relação de inclusão excludente ou exclusão inclu-
der político põe igualmente em suspenso a lei em siva, pode suspender a lei para garantir a própria
defesa da ordem constituída. O estado de exce- existência da lei.
ção constitui para Agamben, por um lado, o lugar A terceira influência que se fará cada vez
chave onde se põe em plena luz a ambiguidade mais forte ao longo desses anos é Michel Foucault
constitutiva da ordem jurídica, pela qual este pa- e, em particular, sua tese sobre a politização da
rece estar, “ao mesmo tempo, fora e dentro de si vida biológica na Modernidade, tese que Agam-
mesmo, simultaneamente vida e norma, fato e di- ben continuará e corrigirá, a seu modo, em dife-
reito”. O estado de exceção é, neste sentido, o dis- rentes etapas desta obra.
positivo que mantém unidos violência e direito e,
ao mesmo tempo, quando se realiza, o que rompe IHU On-Line – Como podemos compreen-
essa unidade. Por outro lado, como dizíamos, o der o paradoxo de que o soberano decrete
estado de exceção aparece como o paradigma da uma ordem que está fora ou mesmo acima
política contemporânea, ideia que parte da tese da lei, que inclua e exclua os sujeitos ao
benjaminiana, segundo a qual em nossa época “o mesmo tempo naquilo que podemos cha-
estado de exceção se tornou a regra”. mar de incluso excludente, ou exclusão
inclusiva?
IHU On-Line – Quais são os pensadores Flavia Costa – Vejamos, e desculpem esta res-
que o influenciaram na formulação desse posta longa: o chamado ‘paradoxo da soberania’
conceito? consiste em que o soberano se encontra ao mes-
Flavia Costa – Fundamentalmente os dois que mo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico.
ele mesmo menciona como fontes primárias de O que quer dizer isto? Que tem, por lei, a potes-
sua reflexão no volume Homo sacer II,1: Wal- tade de suspender a lei para poder garantir seu
ter Benjamin e Carl Schmitt (embora desde já funcionamento. Por um lado, a relação de exce-
sejam influências diferentes). Segundo a leitura ção, própria da soberania, constitui o dispositivo
que oferece o próprio Agamben do debate mais específico e a forma de relação entre direito e
ou menos secreto que ambos os pensadores ale- vida. A situação criada por esta exceção soberana
mães mantiveram sobre a questão do estado de introduz, entre o fato e o direito, uma zona de in-
exceção, foi Benjamin quem deu o pontapé ini- diferença, um umbral de indistinção: é nesse um-
cial com seu texto Para una crítica de la violencia bral, e a partir dele, que algo assim como “fato”
(1921), ao qual Schmitt teria respondido com seu e “direito” podem aparecer. Por isso diz Agamben
Teologia política (1922). E o diálogo ainda con- que a exceção é a estrutura político-jurídica fun-
tinuou, até a famosa Tese oitava de Filosofia da damental e originária.
história, na qual Benjamin, poucos meses antes Por outro lado, a produção própria deste dis-
de sua morte, assinala: “A tradição dos oprimidos positivo é a vida desnuda (nuda vita), isto é, aqui-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lo que produz quando captura a vida biológica mesmo tempo dentro e fora da lei, também o
dentro do direito. É importante recordar sempre homo sacer está numa posição de exterioridade-
que a nuda vita não é, em absoluto, num dado interioridade com respeito à lei: pertence (nega-
natural, senão uma produção minuciosa da bio- tivamente) ao divino enquanto é insacrificável
política. Ao incluir a vida do vivente, enquanto e está incluído (negativamente) na comunidade
vida desnuda, dentro do direito, mediante sua sob a forma da possibilidade de que seja mor-
exclusão (o poder produz, mediante a exceção, to impunemente. O homo sacer reúne, assim,
a cesura entre cidadania e vida desnuda), a po- de maneira paradigmática, as características da
lítica se torna biopolítica. E o estado de exceção, vida sujeita ao poder soberano, ao seu poder
enquanto cria as condições jurídicas para que de dar a morte. Por isso, pode dizer Agamben:
o poder disponha dos cidadãos enquanto vidas “soberano é aquele com respeito ao qual todos
desnudas, é um dispositivo biopolítico chave. os homens são potencialmente homines sacri, e
homo sacer é aquele com respeito ao qual todos
IHU On-Line – Quais são os nexos que po- os homens atuam como soberanos”.
dem ser estabelecidos entre o estado de ex-
ceção e o controle biopolítico? IHU On-Line – Qual é a atualidade do con-
Flavia Costa – Para Agamben, pelo que vínha- ceito de estado de exceção ante a situação
mos dizendo, a exceção, enquanto relação de ex- política de inúmeras nações em nossos dias?
clusão-inclusiva, é a estrutura originária que fun- Flavia Costa – Desde começos do século XX
da a biopolítica, e não só a biopolítica moderna. assistimos, segundo Agamben, a um fato preo-
Aqui Agamben retoma Foucault de “Direito de cupante, que passa inadvertido para a maioria:
morte e poder sobre a vida”, mas também o corri- vivemos no contexto do que se tem denominado
ge. A novidade da política moderna não consiste uma “guerra civil legal”. O totalitarismo moderno
tanto em ter se convertido em biopolítica: toda se define como a instauração de uma guerra civil
política era biopolítica já desde a Antiguidade. A legal através do estado de exceção, e isto ocorre
novidade da política moderna é que a exceção se tanto para o regime nazi como para a situação em
tornou a regra; isto é, aquilo que aparecia incluí- que se vive nos Estados Unidos desde que Geor-
do mediante sua exclusão (o estado de natureza, ge W. Bush emitiu, em 13 de novembro de 2001,
o “animal” no homem) aparece agora indiferen- uma “military order” que autoriza a “detenção
ciado com respeito ao seu oposto: o estado civil, indefinida” dos não cidadãos estadunidenses sus-
o “humano” no homem. E, neste mesmo sentido, peitos de atividades terroristas. Já não se trata de
a política (a politização da vida) é uma operação prisioneiros nem de acusados, senão de sujeitos
metafísica de primeira ordem, na medida em que de uma detenção indefinida – tanto no tempo
funciona como o umbral entre vivente e logos, como no modo de sua detenção –, que devem
entre vida desnuda e existência qualificada, entre ser processados por comissões militares, distintas
inclusão e exclusão. dos tribunais de guerra. Nesse marco mais geral,
basta observar, em cada nação, a assiduidade
IHU On-Line – Que imbricações são per- com a qual os governos lançam mão de diferentes
ceptíveis com a ideia de vida nua (homo modalidades de exceção para impor, por exem-
sacer)? plo, suas políticas de “ajuste”, para identificar a
Flavia Costa – Como recém mencionada, esta atualidade enorme do problema.
relação entre exceção soberana e nuda vita é ín-
tima. Poderíamos dizer que se trata de uma bi- IHU On-Line – Qual é o nexo que une a má-
polaridade, onde em cada um dos polos apare- quina governamental e a máquina antropo-
cem as figuras simétricas e opostas do soberano lógica no estado de exceção?
e o homo sacer. Assim como o soberano está Flavia Costa – Na máquina governamental do
incluído na lei como aquele que está constitu- Ocidente, que produz o político através da ar-
tivamente excluído, porque é capaz de estar ao ticulação de soberania e governo, o estado de

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

exceção constitui o dispositivo específico de atu- necessária, a única maneira que tem a maioria
ação do poder soberano, seja qual for o regime dos cidadãos desses países de chegar à Europa
ou o sistema político formal. Na máquina antro- é pondo-se nas mãos de bandos criminosos que
pológica dos modernos, que produz o humano traficam seres humanos”.
através da articulação [que é, ao mesmo tempo,
união e separação] entre o vivente e o cidadão, IHU On-Line – Há uma vinculação velada
entre a vida biológica e a vida qualificada, entre ou evidente entre estado de exceção e po-
o animal e o homem, o estado de exceção é o breza, seja nas favelas da América Latina
paradigma ou modelo da produção do inumano ou entre os refugiados que assomam à Eu-
a partir do humano. ropa diariamente?
Flavia Costa – Entendo que sim, existe este
IHU On-Line – Como podemos compreen- vínculo, não sempre evidente. De fato, Agamben
der as implicações de que o estado demo- nos dá pistas sobre isto quando, em Medios sin
crático de direito não conseguiu abolir ple- fin [Meios sem fim] (AGAMBEN, Giorgio. Mezzi
namente a vontade soberana? O que isso senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollti Bo-
significa em termos de persecução às “po- ringhieri, 1996) e logo em Homo sacer I (AGAM-
pulações perigosas” ou economicamente BEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e
improdutivas? a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
Flavia Costa – As implicações, creio eu, são cla- 2010), escreve sobre a figura do refugiado e sobre
ras, radicais e provavelmente esmagadoras: a ne- o povo como figuras-limite que revelam a fração
cessidade imperiosa de pensar uma política não biopolítica fundamental instaurada por meio da
soberana. relação de exceção, ou relação de bando-abando-
no. Em relação com o refugiado, isto é, o homem
IHU On-Line – Que exemplos atuais de desprovido de cidadania, ao romper a identida-
aplicação do estado de exceção são emble- de entre homem e cidadão, entre nascimento e
máticos na política ao redor do mundo? nacionalidade, põe em crise “a ficção originária
Flavia Costa – Embora não se trate da aplica- da soberania”, diz Agamben. Quanto ao povo,
ção, dentro de um Estado, de um regime de ex- trata-se de uma noção bipolar que designa, nas
ceção, creio que precisamente por isto mesmo línguas romanas modernas, tanto o Povo dos ci-
o ocorrido dias atrás nas costas de Lampedusa, dadãos como o povo dos pobres, os excluídos,
Itália, onde morreram cerca de 300 pessoas esca- os não documentados. Isto reflete o caráter dual
pando de suas terras, assinala o nó do que está do conceito de povo, que implica também que a
em jogo na ideia de um “estado de exceção que conformação de um corpo político se realiza sem-
se tornou a regra”, assim como a da “guerra civil pre por meio de uma cisão, na qual é possível
legal” estendida ao mundo inteiro. A informação reconhecer os pares categoriais nuda vita (povo)
publicada pela BBClondrina destaca, não sem e existência política (Povo), zoé e bios, exclusão
sua cota de cinismo: “Eritreia é um dos países e inclusão. Para Agamben, com efeito, “o projeto
mais isolados e politicamente mais repressivos da democrático-capitalista de pôr fim, por meio do
África. Muita gente quer ir embora dali. Na vizi- desenvolvimento, à existência das classes pobres,
nha Somália há problemas similares, agravados “não só reproduz em seu próprio seio o povo dos
pela guerra civil que começou em 1991 e da qual excluídos, senão que transforma em nuda vita to-
apenas agora parece estar saindo, graças a um das as populações do “Terceiro Mundo”. É toda
esforço multinacional. Também muitos somalia- uma definição e um verdadeiro desafio para o
nos querem sair. (...) Mas, sem a documentação pensamento político.

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Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção

Entrevista especial com Edgardo Castro

Por: Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Apresentação

Os aspectos aproximadores e distanciadores das filosofias de Agamben e Foucault


são o tema da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line pelo filósofo
argentino Edgardo Castro. “As relações entre Agamben e Foucault não são sempre
fáceis de discernir. Há entre eles continuidades e rupturas. É o jogo do pensamento”,
assinala. E continua: “Para Agamben, diversamente de Foucault, a produção da vida
nua não é um fenômeno moderno, senão tão velho como a existência do mesmo poder
soberano”. Por vida nua podemos compreender aquela vida colocada “fora da lei dos
deuses e das leis dos homens”. Para Agamben, os dois polos da máquina política do Oci-
dente são a produção da vida nua e sua administração, explica Castro. “A ideia de Agam-
ben é que, na política ocidental, lei e exceção se sobrepõem. Governar no Ocidente é,
por isso, exercer o poder na forma da exceção: os decretos-lei, as leis de necessidade e
urgência, os poderes especiais delegados ou assumidos pelo executivo”.
Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg, na Suíça. Lecio-
na no departamento de filosofia da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. De
seus livros, citamos Pensar a Foucault (Biblos: Buenos Aires, 1995), Betrachtungen
zum Thema Mensch und Wissenschaft (Fribourg: Presse Universitaire de Fribourg,
1996) e El vocabulario de Michel Foucault (Unqui: Prometeo, 2004).

IHU On-Line – Em nossos dias, como é um único conceito de biopolítica. Em todos eles,
que a vida é transformada em vida nua? sem embargo, se trata do mesmo fenômeno, da
Qual é a imbricação do poder com essa maneira em que a política se encarrega da vida
transformação? biológica da população. Foucault não fala, neste
Edgardo Castro – Durante a década de 1970 sentido, de vida nua, senão de vida biológica da
ou, mais precisamente, entre 1974 e 1979, uma população.
parte importante das investigações de Foucault Giorgio Agamben, ao menos em Homo Sa-
giraram em torno da biopolítica. Nestes anos cer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Hori-
Foucault ensaiava várias vias de acesso a esta zonte: Ed. UFMG, 2002), modifica esta ideia de
problemática: a partir da medicina, do direito, biopolítica. Na relação que define a biopolítica, a
da guerra e da economia. Por isso, não há nele relação entre política e vida, em lugar da política

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entendida num sentido amplo (o aparato estatal, Foucault de Nascimento da biopolítica vincula
mas também as práticas governamentais), vamos a biopolítica com a questão da economia e do
encontrar-nos com um conceito mais restrito, o de liberalismo. Apesar disso, o modo pelo qual ana-
soberania ou poder soberano. Em lugar da vida lisa tanto a noção de economia como a forma-
biológica da população, também vamos encon- ção do liberalismo difere notavelmente do modo
trar-nos com um conceito mais restrito, o de vida como o faz Foucault.
nua. O poder soberano produz vida nua. O que Pois bem, se tomarmos em conta este giro
é esta vida nua? A vida colocada pelo poder fora que se produz em Agamben, entre Homo sacer I
da lei dos deuses e das leis dos homens. A vida da e O reino e a glória, creio que podemos distinguir
qual podemos dispor sem necessidade de celebrar nele dois conceitos de biopolítica. Esquematica-
sacrifícios ou de cometer homicídio. Essa vida é a mente, biopolítica-soberana e bipolítica-econo-
que exemplifica, precisamente, a figura do homo mia-governo. O primeiro é, como dissemos antes,
sacer, o homem sagrado do direito romano. o que tem como objetivo a produção de vida nua,
Para Agamben, diversamente de Foucault, a vida exposta à morte. O segundo é o que tem
produção da vida nua não é um fenômeno como objetivo administrá-la. Estes dois conceitos
moderno, senão tão velho como a existência são, para Agamben, os dois polos da máquina
do mesmo poder soberano. Os campos de política do Ocidente.
concentração do século XX, neste sentido, não
trazem mais à luz, com todo o horror que isso traz IHU On-Line – Por que a vida nua é o funda-
consigo, esta implicação constitutiva de poder de mento da política ocidental?
vida e de morte. Edgardo Castro – Considerando a resposta
anterior, creio que a vida nua, finalmente, não é
IHU On-Line – A partir deste aspecto, quais para Agamben o fundamento da política ociden-
são as possíveis leituras biopolíticas de tal. Este fundamento está, antes, no que articula
Agamben? os dois polos da máquina política, o que constitui,
Edgardo Castro – Homo sacer I é, sem dúvida, segundo a formulação de O reino e a glória, o
um livro que retoma as investigações de Fou- arcanum imperii, o segredo melhor guardado do
cault, porém o faz de maneira crítica. O mesmo poder. Este fundamento é, então, a glória em seu
se poderia dizer de O reino e a glória (2007), duplo sentido, objetivo e subjetivo, o glorificado
porém em outro sentido. Este último trabalho, e a glorificação. Este conceito, marcadamente te-
escrito um pouco mais de uma década mais tar- ológico, de glória pode ser traduzido, em termos
de, sem deixar de ser crítico, está mais próximo mais modernos, por consenso. Soberania e go-
de Foucault. Aqui Agamben, como Foucault, en- verno, poder de expor a vida à morte e poder de
foca a biopolítica desde a perspectiva do gover- administrar a vida se fundem, então, no consen-
no, e não só da soberania. E, também como ele, so. A Agamben, neste sentido, interessa sublinhar
aqui o nexo entre totalitarismo e democracia.

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A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos
e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin

Artigo de Castor Bartolomé Ruiz

Giorgio Agamben, em sua obra Estado de respeito do estado de exceção como chave her-
exceção – Homo sacer II, desenvolve seu estudo menêutica para entender algumas consequências
sobre esta figura jurídico-política remarcando que genealógicas. Schmitt escreveu em 1921 sua obra
ela representa uma zona de indistinção que está Die Diktatur; nela faz uma distinção entre ditadu-
dentro e fora do direito. Nela a vida humana é ra comissária e ditadura soberana. Na ditadura
capturada como mera vida nua. Ao ser suspendi- comissária o estado de exceção visa defender ou
do o direito, a vida fica desprotegida como pura restaurar a constituição vigente e, para tanto, sus-
vida natural. Mas a captura da vida humana na pende seu efeito. Na ditadura soberana anula-se
exceção revela também a potência da vontade a ordem jurídica existente, mas em seu lugar não
soberana que tem o poder de suspender os di- fica o vazio do poder, a anarquia, senão que vigo-
reitos e, como consequência, a ordem jurídica. A ra o estado de exceção em que a vontade sobera-
exceção desmascara o soberano que tem o poder na é lei para a nova ordem.
de decidir sobre a ordem e, como consequência, Em 1922 Schmitt escreveu uma segunda
tem a potência de capturar a vida humana como obra Politische Theologie, na qual não mais re-
vida sem direitos, um homo sacer. laciona o estado de exceção com as diversas for-
Agamben destaca que o interesse contempo- mas de ditadura, mas introduz a decisão como
râneo por esta temática tem muito a ver com o figura política da soberania. Nos dois livros
eficiente papel político que desenvolveu na imple- Schmitt se propõe mostrar que o estado de exce-
mentação dos fascismos e do nazismo na Europa. ção pertence a uma forma de ordem jurídica e não
Ao que poderíamos acrescentar sua importância de anarquia. Embora reconheça que tal articula-
para a implantação das ditaduras latino-america- ção é controvertida, uma vez que aquilo que deve
nas de toda índole, em particular as que se impe- ser inscrito no direito, a exceção, é algo extrínseco
traram durante a segunda metade do século XX. ao próprio direito. Nessa última obra Schmitt des-
Agamben destaca que o debate contemporâneo taca a importância da decisão (soberana) como a
sobre o estado de exceção remete a dois auto- garantia última do direito e da ordem. Ao suspen-
res principais: Carl Schmitt e Walter Benjamin. der a ordem, a exceção revela um elemento formal
O paradoxal destas referências é que Schmitt é e jurídico: a decisão. Nessa obra a doutrina da ex-
um teórico do autoritarismo que contribuiu am- ceção se torna a base da teoria da soberania.
plamente para legitimar juridicamente o regime Walter Benjamin escreveu no ano 1921 seu
nazista, enquanto Benjamin é um radical militan- ensaio: Zur Kritik der Gewalt (Crítica da violência:
te antifascista que pagou com a própria vida seu crítica do poder). O ensaio foi publicado na re-
compromisso intelectual contra o nazismo. vista Archiv fUr Sozialwissenschaften und social-
Agamben destaca o diálogo explícito e en- politik, n. 47, da qual Schmitt era leitor assíduo e
coberto que ambos os autores sustentaram a também colaborador. O ensaio de Benjamin ini-

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cia com a ambiguidade do próprio título em que Embora Benjamin não mencione em seu
o termo Gewalt pode significar, indistintamente, ensaio sobre a Crítica da violência, 1922, o con-
poder e violência. Essa ambiguidade será man- ceito de exceção, sua tese questiona radicalmente
tida de forma deliberada (ou não?) ao longo de a de Schmitt na sua obra Die Diktatur, 1921, daí
toda a obra, de forma que o leitor é induzido a ler que seja legítimo pensar que a obra do ano se-
violência quando em muitos casos pode significar guinte Politische Theologie, seja uma espécie de
poder, e vice-versa. Ainda cabe questionar se a resposta não declarada ao ensaio de Benjamin.
unificação em Gewalt de poder e violência obe- Schmitt tenta mostrar que não é possível uma
dece ao princípio de que todo poder é violento e violência fora do direito, pois na exceção que sus-
toda violência é poder. Temos neste conceito o pende o direito a violência se encontra incluída
primeiro elemento de debate e questionamento por sua própria exclusão. Para Schmitt a vontade
pois nem todo poder é violento. Hannah Arendt, soberana concentra a potência de toda violência,
em sua obra Sobre a revolução, propôs-se a fazer negando a tese de Benjamin, segundo a qual é
distinções conceituais mostrando que o sentido possível uma violência pura, fora do direito e não
positivo do poder inerente à ação política. Fou- reconhecida como proveniente de uma decisão,
cault desenvolveu mais amplamente as pesqui- mas originária de uma ação humana inteiramente
sas sobre o poder mostrando que o poder deve anônima.
ser entendido como potência. Há muitas formas Em 1928, Benjamin escreve sua obra Origem
de poder como potência, inclusive pode ter um do drama barroco. Conserva-se uma carta de
sentido positivo: poder salvar, poder curar, po- Benjamin a Schmitt de dezembro de 1930 em que
der ajudar, poder ensinar.... O poder é inerente Benjamin afirma o reconhecimento e a influência
à relações humanas e não deve ser confundido que a obra de Schmitt teve no desenvolvimento
como a mera violência. Mas o ensaio de Benja- do conceito de estado de exceção na Origem do
min mantém deliberadamente a indistinção o que drama barroco. Agamben desafia a fazer uma lei-
obriga a todos os intérpretes a acrescentar mais tura crítica (quase irônica) do texto de Benjamin
esta dificuldade. como sendo uma resposta ao modelo de exceção
defendido por Schmitt. Benjamin em seu texto
introduz uma ligeira mais decisiva modificação a
Diferentes violências respeito da relação do soberano barroco com o
Benjamin faz nesse ensaio uma diferença en- estado de exceção. Para Benjamin, a concepção
tre violência que institui e conserva o direito, que barroca de soberania desenvolve-se a partir do
seria uma violência mítica, e a violência que de- debate sobre o estado de exceção e se atribui ao
põe o direito, que seria uma violência divina. Esta príncipe o cuidado de excluí-lo. O príncipe barro-
se traduziria politicamente por uma violência re- co tem como atribuição excluir o estado de exce-
volucionária. O direito não pode admitir que exis- ção e não decidir sobre ele. Isso altera nos funda-
ta uma violência fora do direito, por isso tende a mentos a concepção de Schmitt sobre a relação
deslegitimar toda violência contra a ordem como entre soberania e exceção. A tese de Benjamin é
ilegítima. Recordemos que a greve foi declarada, que o soberano não pode decidir sobre a exceção
ainda nos tempos de Benjamin, como uma vio- incluindo-a na ordem, mas excluindo-a de toda
lência inadmissível contra a ordem. Na atualidade ordem. Deve deixar a exceção fora da ordem.
ela está regulamentada por direito e se decretam Esta leve (e aguda) modificação de Benjamin
como ilegítimas outras formas de luta social (ocu- leva-o a formular uma teoria da indecisão sobera-
pação de terras, moradias, etc.) acusando-as de na. Se para Schmitt o que vincula a soberania à
violência fora do direito. O objetivo de Benjamin exceção é a decisão, Benjamin mostra que o so-
é provar que há uma violência (poder?) fora do berano barroco está permanentemente impossi-
direito que não se limita a criar novo direito nem bilitado de decidir. Desta forma tão sutil Benjamin
a conservá-lo, mas que pode instaurar uma nova estaria respondendo as teses de Schmitt na obra
época histórica. Politische Theologie, que por sua vez pretenderia

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criticar o ensaio de Benjamin Por uma crítica da direito) esses direitos, tornou-se a norma de sua
violência. vida. Para os excluídos a exclusão é seu modo
A conclusão de Benjamin é ainda mais extre- normal de vida. Vigora sobre suas vidas a suspen-
ma. O deslocamento sobre o paradigma da exce- são de determinados direitos fundamentais, o que
ção não mais conduzirá ao milagre, como preco- torna suas vidas vulneráveis e as condena a zonas
nizava Schmitt, mas que levará inexoravelmente de indignidade.
para a catástrofe. Tal catástrofe é decorrência de O que Benjamin (d)enuncia em sua tese
uma convicção escatológica do barroco. Um tem- VIII é que a exceção e a normalidade se torna-
po que produz um eschaton vazio, sem redenção, ram indiscerníveis. Exceção e regra se fundiram
e permanece imanente ao tempo. A escatologia ao ponto de agir de forma unitária. Nesse caso
que não tem um além redimido, mas que entrega a distinção entre violência e direito desaparece,
a terra a um céu vazio, configura o estado de ex- propiciando o aparecimento de uma zona de
ceção como catástrofe. O estado de exceção não anomia em que age uma violência sem roupagem
aparece mais em Benjamin como o limiar que jurídica. Benjamin desmascara a pretensão estatal
articula o dentro e o fora do direito e da sobera- de querer anexar-se a tal zona de anomia atra-
nia. Ele é uma zona de indeterminação em que vés do estado de exceção. Benjamin se propõe
a criação e a própria ordem jurídica são arrasta- pensar uma exceção que esteja livre do direito.
das para a mesma catástrofe. Na tese IX Sobre Uma zona de anomia em que a vida humana não
o conceito de história, Benjamin desenvolverá a caia nas malhas da violência soberana. O que ele
categoria de catástrofe. Enquanto a modernida- denomina de verdadeiro estado de exceção con-
de vê o progresso como uma lei inexorável dos tra o fascismo, poderia ser entendido como uma
vencedores, o anjo da história olha para trás e exceção da exceção. Uma suspensão da violên-
percebe que esse progresso está fabricado sobre cia sobre a vida humana exercida como violência
multidões de vítimas da história. “Onde vemos mítica do direito que a captura sob uma ordem e
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única”. O a mantém nela. Enquanto Schmitt se esforça ao
anjo gostaria de voltar e ajudar os vencidos da máximo por reinscrever toda violência no con-
história, mas um vento impetuoso (o progresso) texto jurídico, Benjamin procura assegurar uma
o impede. A leitura da história desde os vencidos “Gewalt pura” além do direito, que possibilitaria à
levará Benjamin a exclamar, na tese eficiente VII vida humana existir por si mesma sem submissão
dessa obra, que “nunca houve um monumento à violência institucional.
de cultura que não fosse também um monumento Esta tese de Benjamin aparece como o enig-
de barbárie”. ma da esfinge que, se não se decifra corretamen-
Um outro capítulo deste debate, o último e te, te devora. Apelar para o conceito de reine
decisivo para Benjamin, se encontra na VIII Tese Gewalt (poder ou violência pura) como recurso
sobre o conceito de história. Nela Benjamin afir- para defender a vida da violência e além do direi-
ma explicitamente: “A tradição dos oprimidos nos to, resulta quase um aforismo délfico. Agamben
ensina que o estado de exceção em que vivemos chama atenção para o conceito puro (reine). Para
se tornou a regra. Devemos chegar a um conceito Benjamin, o puro não reside na essência das coi-
de história que corresponda a este fato. Teremos sas, mas na relação que as constitui: “não origem
então como tarefa a produção de um estado de da criatura não está a pureza, mas a purificação”.
exceção efetivo; e isso fortalecerá nossa posição O que desloca o debate sobre a diferença entre
contra o fascismo”. A primeira parte da tese, que violência pura e violência mítica para uma rela-
o estado de exceção se tenha tornado regra, resul- ção com algo exterior. Tal relação foi delimitada
ta compreensível, especialmente no apogeu dos por Benjamin no início do seu ensaio Por uma
fascismos desse momento. Contudo, ela ainda crítica da violência, quando afirma que a crítica
tem uma outra leitura, para os excluídos sociais da violência há de ser definida em sua relação
que vivem privados de direitos fundamentais, a com o direito e a justiça. Para o direito, a violência
exceção que suspende de fato (ainda que não de está sempre envolvida na lógica de fins e meios.

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Para o jusnaturalismo a violência se legitima pelo A lei que vigora sem significado é ampla-
fim justo; para o positivismo a legitimidade da mente representada por Kafka em sua obra O
violência está nos meios pelos quais se torna legí- processo. Uma lei vazia, que vigora como lei mas
tima. Em ambos os casos, a violência é um meio que não se aplica como solução para a vida. A
para um fim: a defesa do direito e a ordem social. fórmula da exceção que suspende a aplicação da
Nessa lógica a vida humana fica capturada pela lei, mantendo a sua vigência, atinge diretamen-
ameaça da violência e portanto deve ser manter te a vida humana. O que se suspende da lei é
submissa ao direito e a ordem para não sofrê-la. aquilo que favorece a vida humana, os direitos
que possibilitam sua defesa e emancipação. É
uma lei vazia, que reconhece os direitos, mas que
Vida enclausurada
não os aplica. Kafka denuncia tal vazio como ele-
Schmitt pretende enclausurar a vida no di- mento constitutivo do sistema jurídico e Benjamin
reito; pretende identificar o direito com ordem, o estende para a compreensão do direito como
sendo a decisão soberana quem estabelece e ga- instrumento da imposição da ordem. A conexão
rante a ordem jurídica. Esta se baseia, em última desta problemática com a teologia aparece nítida
instância, no dispositivo da exceção que tem por na tese de São Paulo sobre a lei em relação à sal-
objetivo tornar a norma aplicável, suspendendo vação e vida. A lei, para São Paulo, é um artifício
provisoriamente sua eficácia. Benjamin se pro- que não consegue dar a plenitude da vida. Ela vi-
põe a pensar uma vida fora do direito, uma justi- gora sem significar. Representa um paliativo para
ça não mítica nem contaminada pela lei, que ele a vida, porém a vida para atingir sua plenitude, a
denominará de justiça divina. Que justiça é esta e salvação teológica, terá que se libertar da lei. São
como pode se relacionar com uma violência pura Paulo, principalmente na carta aos Romanos, é
que redime a vida de toda violência? A violên- enfático em afirmar que a lei existe como meio
cia divina, sem dúvida, faz referência à relação para culpar a vida. Sem lei não há culpa. A ver-
implícita da teologia com a política. Algo que a dadeira vida existe além da lei.
modernidade sempre quer esconder ou pretende Benjamin contra Schmitt se propõe a pensar
desconhecer. Os laços que vinculam ambas as di- uma vida além do direito, uma vida que não seja
mensões são muito mais estreitos do que pode- coagida pelo direito e que para viver em plenitu-
mos imaginar. No caso que nos ocupa, a exceção de possa até prescindir do direito. Este é o ver-
jurídica, temos que realocar o debate no campo dadeiro estado de exceção que ele preconiza. A
linguístico para entender seu real significado polí- verdadeira exceção (uma exceção da exceção)
tico e teológico. dispensaria o direito porque o tornaria desneces-
A exceção opera como dispositivo jurídico sário. Agamben destaca que é neste sentido que
político que suspende a lei deixando-a em vigor, Foucault também afirmaria a tese de que é neces-
porém sem validade. É uma lei sem valor mas sário pensar um novo direito livre de toda disci-
que vigora. Ela tem uma vigência sem significa- plina e de toda relação com a soberania. Como
do. Na exceção opera um dispositivo que reduz pode ser pensada uma vida sem direito? Agam-
a lei a uma vigência sem significado. Os direitos ben destaca que esta questão foi explicitamente
estão formulados e se consideram vigentes, po- formulada primeiramente pelo cristianismo pri-
rém não têm validade porque estão suspensos. mitivo, e depois pela tradição marxista. O cristia-
Ainda quando ocorre a exceção soberana, que nismo primitivo, especialmente o pensamento de
anula toda ordem jurídica, opera um mecanismo São Paulo, colocou a questão de viver numa or-
inverso, a lei, que não existe mais (não vigora) dem social (o império), porém com a urgência de
porque foi anulada, tem validade plena no ar- pensar a nova ordem (a Parusia). Na nova ordem
bítrio da vontade soberana. Na exceção plena a a vida humana estaria plenamente libertada da
vontade soberana é lei, nesse caso a lei que não lei. É uma ordem pleromática em que a salvação
vigora (porque não está formulada juridicamente) se realiza pela plenitude da vida e por isso mesmo
se aplica imediatamente no arbítrio soberano. torna desnecessária a lei. A vida plena suspende

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definitivamente a lei. Seria o estado de exceção sua própria decepção, uma vez que, em vez de
verdadeiro. São Paulo é ciente da tensão que su- manter a tensão do já sim mas ainda não, propos-
põe viver na ordem do império, com a lei, mas ta por São Paulo, assimilou-se à ordem imperial
na expectativa da nova ordem da vida salva, sem instalando-se dentro do poder com um aparato
lei. Por isso propõe uma relação agonística dia- jurídico próprio.
crônica com o império e a lei. Ele aconselha a Contudo, a tese que Benjamin se propõe a
todos os cristãos a viverem na ordem social numa pensar sobre a possibilidade de uma vida além
tensão do já sim mas ainda não. Estar na ordem do direito remete diretamente às potencialidades
sem se acomodar a ela. Esta é uma formula polí- teológicas da política. Há uma aposta messiânica
tica da compreensão messiânica da histórica. Na de Benjamin que pensa a história como possibili-
confiança de que a nova ordem virá, é necessário dade de ruptura a qualquer momento. Ele define
não se submeter docilmente à ordem do império. o messias como o instante em que a ruptura pode
Para tanto São Paulo ainda formula que a melhor acontecer. Não se resigna a uma concepção me-
forma de tornar inválida a lei do império para os cânica do progresso histórico e pensa a história
cristãos é superá-la com a vida. Os cristãos não como acontecimento. O que abre a possibilidade
devem se submeter às leis e serem obedientes de uma passagem para a justiça não é a anulação
porque estão decretadas; eles devem superá-las, do direito, mas a sua atual desativação de modo
ir além das leis, invalidá-las por práticas que as que possa dar lugar a um outro uso. A justiça di-
tornem fúteis e desnecessárias. Neste ponto São vina é a que consegue anular todo direito fazen-
Paulo aposta no amor como prática que supera do que a vida humana possa viver plenamente
a lei. Ainda está por se desenvolverem as poten- sem a violência da lei. A justiça divina é a exceção
cialidades políticas do amor como categoria que definitiva, a exceção da exceção. Ainda podemos
invalida a lei. pensar que se a exceção jurídica, tal e como a
formula Schmitt, tem por objetivo suspender a vi-
gência do direito para capturar a vida humana,
Um anão feio não é a mera norma, que regula o que pode ou
não ser feito, a que realiza a vida humana. Pelo
Agamben destaca que foi na tradição mar- contrário, a biopolítica moderna mostra que a
xista que esta problemática da verdadeira exce- norma é o instrumento pelo qual a vida é apre-
ção tornou-se um problema político central. O endida como objeto de adestramento utilitarista.
ideal da sociedade comunista em que cada um A vida normatizada é controlada como recurso
dá segundo suas possibilidades e recebe segundo produtivo e governada como bem útil a serviço
suas necessidades (fórmula literal das comuni- de outros fins. A exceção jurídica não se neutra-
dades cristãs primitivas nos Atos dos Apóstolos) liza com a norma, pois ambas capturam a vida
dispensa o Estado e seus dispositivos jurídicos humana, cada uma a seu modo, com o objetivo
de poder/violência (Gewalt). O anarquismo é a de instrumentalizá-la.
corrente política que mantém aceso o problema Embora Agamben não desenvolva o tema,
como um tema político de primeira ordem. Na cabe pensar na condição agônica do ser humano
tradição marxista o problema criado é que, para que lhe permite tensionar a realidade, aceitan-
se chegar à sociedade sem classes, que dispen- do sua contingência. Se a lei não é o que reali-
sa a violência do direito, pensou-se numa fase za a vida, a exceção é o dispositivo que permite
de transição através da ditadura do proletariado. condená-la a um controle extremo. Nesse caso, a
Justamente aquilo que se pretendia suspender, a potência teológico-messiânica da política a deixa
exceção, é proposta com fórmula política. A dita- inconformada com a submissão da vida à ordem
dura do proletariado é o estado de exceção pen- jurídica e torna inaceitável a exceção como dispo-
sado de forma transitória, embora historicamente sitivo de controle. Porém, cabe pensar em que a
nunca realizou tal transição. O que tornou a ex- verdadeira exceção, aquela que torna desneces-
ceção a regra de governo. O cristianismo viveu sário o direito para a vida, tem uma outra verten-

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te prática na gratuidade. Os atos de gratuidade menos gratuita é uma ação, mas tem que ser nor-
dispensam a lei. O que se faz de graça anula a matizada. A suspensão do direito pela gratuidade
norma que obriga a fazer. A gratuidade supera é o ato de poder (Gewalt) supremo que não nega
toda lei, suspende sua validade tornando-a des- vida, mas que a realiza. O poder da gratuidade é
necessária. As condutas de gratuidade desconhe- superior ao do direito no que se refere à realiza-
cem a lei porque sua relação não é com a norma ção da vida humana. Isso torna o poder (Gewalt)
mas com a vida. O específico da gratuidade é que da graça um poder puro porque está em relação
não cumpre a norma que manda fazer algo; pelo à vida humana, a vida do outro.
contrário, relaciona-se diretamente com a vida do Talvez este breve exemplo possa nos mostrar
outro. O que se faz de graça tem como referência que as potencialidades políticas da teologia não
direta a vida e não a lei. A lei não pode mandar estão ainda totalmente exploradas. Remetemos à
fazer de graça. A graça é que invalida toda lei. Ao metáfora que Benjamin utiliza em sua I Tese sobre
agir por e com gratuidade tem-se como referência o conceito de história, em que representa a teolo-
a relação com o outro, sua realização. A lei que gia como um anão feio e escondido debaixo do
pretender normatizar a gratuidade a anulará. A tabuleiro da história, que ninguém vê, mas que
essência da gratuidade é a dispensa total da nor- maneja os fios da política. O objetivo da teolo-
ma e do direito. A vida que se realiza pela gratui- gia na política não é sedimentar a ordem jurídica
dade realiza-se além do direito. De alguma forma que normatiza a vida, mas pensar a possibilidade
implementa a plenitude do direito porque o dis- de uma vida política que se realiza além da nor-
pensa, o torna desnecessário. Na medida em que matização biopolítica ou do controle violento da
a gratuidade diminui, o direito aumenta. Quanto exceção jurídica.

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O que resta de Auschwitz e os paradoxos
da biopolítica em nosso tempo

Entrevista especial com Oswaldo Giacoia Junior

Entrevista: Márcia Junges

Apresentação

Acredito que Agamben situa a ética do testemunho no problemático limiar que se


situa entre a superação do ressentimento (a proposta de Nietzsche, que inaugura a ética
do século XX) e a exigência moral da impossibilidade do esquecimento. Não se pode
querer que Auschwitz retorne eternamente, assim como não se pode mais ignorar que
o essencial de Auschwitznão tem cessado de se repetir; por mais que o ressentimento
pelo que aconteceu, sua condenação, e a exigência de manter viva a memória do
acontecido, se exerça sobre nós como uma demanda ética irrecusável”. A afirmação
é do filósofoOswaldo Giacoia Junior, na entrevista concedida com exclusividade, por
e-mail, à IHU On-Line.
De acordo com Giacoia, “as lembranças daquele que dá testemunho são o resga-
te do indizível, que, no entanto, contém a tenebrosa verdade da biopolítica de nossa
sociedade”. Nesse sentido, é fundamental recuperar a figura do muçulmano, contida
na obra O que resta de Auschwitz, do filósofo italiano Giorgio Agamben. O livro
é objeto de análise nesta quarta-feira, 21-08-2013, das 19h30min às 22h, na Sala
Ignacio Ellacuría e Companheiros, no evento O pensamento de Giorgio Agam-
ben: técnicas biopolíticas de governo, soberania e exceção, promovido pelo
Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A atividade é parte integrante do I e II Seminários
– XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos
e sociedades.
O campo de concentração, paradoxo político da modernidade, é o “espaço ideal
para a realização desse confisco e desse sequestro da vida pelo bio-poder”, comple-
menta Giacoia. “A figura política que concentra e expressa essa situação é o muçulma-
no, ou o “homo sacer” – que pode ser morto sem que sua morte constitua homicídio
ou sacrifício, o banido de toda esfera normativa de proteção, seja ela o direito divino
ou humano”.
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Oswaldo Giacoia Junior é
também mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Uni-
versidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

livre docente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona no


Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu pensamento
político, publicou, entre outros: Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São
Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª ed. São Leopol-
do: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e
a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e
Nietzsche & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2005). Recentemente publicou Nietzsche versus Kant: Um Debate a respeito de
Liberdade, Autonomia e Dever (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012) e Heide-
gger Urgente. Introdução a um Novo Pensar (São Paulo: Três Estrelas, 2013).

IHU On-Line – Qual é a importância do re- çulmano’ que chegou ao fundo do poço, que viu
lato e do testemunho pessoal dos sobrevi- a Górgona, e que, por causa disso, decaiu da con-
ventes do Holocausto em “O que resta de dição de acesso possível à linguagem, e não pode
Auschwitz”? mais falar.
Oswaldo Giacoia Junior – Acredito que a im- Nesse sentido, as lembranças daquele que
portância do relato tem a ver com o problema do dá testemunho são o resgate do indizível, que, no
testemunho. O que resta de Auschwitz se inicia entanto, contém a tenebrosa verdade da biopolí-
com uma reflexão acerca do estatuto e do signi- tica de nossa sociedade. No sentido de Agamben,
ficado do testemunho, bem como a respeito da essa importância revela também a condição do
questão acerca de quem são as verdadeiras teste- devir-sujeito, bem como a passagem da natureza
munhas. O problema é: quem é o sujeito do tes- à cultura, do inumano à humanidade pelo ter lu-
temunho? Acerca de que experiência fala aquele gar da linguagem.
que dá testemunho? Levar a sério essa questão é
penetrar no âmago desse livro de Agamben. IHU On-Line – Por outro lado, como pode-
mos compreender a importância do não
IHU On-Line – Nesse contexto, qual é a re- dito por aqueles que já não conseguiam
presentatividade do relato de Primo Levi e mais articular a linguagem?
quais são suas lembranças fundamentais? Oswaldo Giacoia Junior – Acredito que
Oswaldo Giacoia Junior – As lembranças fun- Agamben situa a ética do testemunho no pro-
damentais de Primo Levi são aquelas registradas blemático limiar que se situa entre a superação
em sua memória e articuladas em seu discurso do ressentimento (a proposta de Nietzsche, que
de sobrevivente; mas, ao escrever sua obra nessa inaugura a ética do século XX) e a exigência mo-
condição, reconheceu o dilema próprio à condi- ral da impossibilidade do esquecimento. Não se
ção de testemunha, ou seja, de assumir a pala- pode querer que Auschwitz retorne eternamente,
vra, paradoxalmente, no lugar daquele que viveu assim como não se pode mais ignorar que o es-
a experiência do terror em toda sua extensão e sencial de Auschwitz não tem cessado de se repe-
profundidade, mas que dela não pode testemu- tir; por mais que o ressentimento pelo que acon-
nhar. Primo Levi reconheceu que os sobreviven- teceu, sua condenação, e a exigência de manter
tes, relativamente aos prisioneiros que passaram viva a memória do acontecido, se exerça sobre
pela experiência radical em Auschwitz – a saber, nós como uma demanda ética irrecusável.
a sobrevivência do homem para além do não-hu- O testemunho é o território de uma nova éti-
mano, do “resto”, ou limiar indiferenciado entre ca, não prescritiva, não deontológica, mas nem
o homem e o não-homem – prestam testemunho por isso menos radical e exigente. Ao falar sobre
fala por delegação; eles não são as verdadeiras o inominável, ao nomear o indizível, pode-se dar
testemunhas, as testemunhas integrais – o ‘mu- voz àqueles que estão privados do acesso à lin-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

guagem, aos “homini sacer” de nosso tempo, aos ordenamento se aplica por desaplicação, se exer-
verdadeiros sujeitos da bio-política, que consti- ce por suspensão, e que, portanto, manter cativo
tuem o “resto” a partir do qual é possível um novo por exclusão. Esse é o sentido de exceptio, que
começo, uma renovação do quadro categorial da deriva de excapere.
política e uma retomada da noção filosófica de Sobre o banido, o poder soberano pode ser
vida boa. exercer em sua plenipotência, como direito de
fazer morrer ou deixar viver, ou, como em nos-
IHU On-Line – Como podemos compreen- sos dias, de fazer viver e deixar morrer. Esse é o
der a condição de estado de exceção à qual macabro cotidiano dos campos, que, para Agam-
os nazistas impuseram os prisioneiros, se- ben, constituem o paradigma da modernidade
res de linguagem e sujeitos éticos reduzi- biopolítica.
dos à vida nua?
Oswaldo Giacoia Junior – Penso que, para IHU On-Line – Como pode ser compreen-
Agamben, a vida nua do “homo sacer” é o re- dida a figura do “muçulmano” usada por
verso e a contraface necessária da soberania bio- Agamben nessa obra e qual é a origem des-
política, de que o nazismo é uma formação pa- sa expressão?
roxística. Esse poder soberano só existe e pode Oswaldo Giacoia Junior – Penso que a primei-
funcionar sob a condição de que a vida natural, ra parte da pergunta encontra-se contemplada na
a vida biológica (blosses Leben) se ofereça como resposta à questão anterior. Há várias explicações
campo de incidência de seus cálculos, decisões para a origem da denominação muçulmano, em-
e intervenções. Sobre formas qualificadas vida pregada nos jargão do campo de concentração
(bios, diferentemente de zoé), dotadas de signifi- de Auschwitz para designar o “morto-vivo”, o
cação política, e, por causa disso, protegidas por prisioneiro que chegou ao limite extremo da so-
prerrogativas de direitos e garantias jurídicas fun- brevivência, e que perdeu toda vontade de viver,
damentais, que fazem parte do status de cidada- a quem é indiferente tudo e todos que se encon-
nia, o poder totalitário não pode se exercer sem tram a seu redor. A associação mais frequente é
limites e em toda sua plenitude – ou seja, na in- com o conformismo e fatalismo, que a tudo se
tensidade que corresponde à noção de soberania. submete, incapaz de reação, ou com o homem
caramujo, dobrado e concentrado sobre si mes-
mo. Uma das explicações refere-se à postura in-
Paradigma da modernidade biopolítica clinada dos muçulmanos em oração, voltados
para a cidade de Meca, ou ao movimentar-se
Isso só pode acontecer lá onde a vida foi in- constante dos mesmos durante as preces. No en-
teiramente despojada de toda qualificação e sig- tanto, nenhuma dessas explicações, como é natu-
nificação jurídico-política, reduzida, na condição ral, encontra atestação unânime. De todo modo,
de mera vida, ao campo indiferenciado de inci- trata-se de uma vida destituída de todo predicado
dência da decisão soberana. O espaço ideal para propriamente humano e reduzida ao limite míni-
a realização desse confisco e desse sequestro da mo de um feixe de funções biológicas no limite
vida pelo bio-poder é o campo de concentração. do esgotamento. Essa figura corresponde àquilo
A figura política que concentra e expressa essa que resta do homem depois de ter sido despojado
situação é o muçulmano, ou o “homo sacer” – de todos os predicados que qualificam a condição
que pode ser morto sem que sua morte constitua humana, humanidade; ou seja, refere-se ao ex-
homicídio ou sacrifício, o banido de toda esfera trato meramente biológico e ao conjunto de suas
normativa de proteção, seja ela o direito divino funções em estado de extinção.
ou humano. A vida nua é a do banido, do sem lei,
daquele a quem o ordenamento jurídico-político IHU On-Line – Em que medida humano,
não concede nenhuma proteção e garantia, ou, inumano e vida nua se fundem na experiên-
como diz paradoxalmente Agamben, a quem o cia dos campos de concentração?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Oswaldo Giacoia Junior – O inumano, o mu- Zonas de indeterminação


çulmano é uma figura-limite, um paradoxo, uma
exceção encarnada. Continua a ser um homem, A segunda passagem diz respeito à extensão
mesmo desprovido de todos os atributos que dis- dessa atualidade: “Se isso é verdade; se, portan-
tinguem uma existência propriamente humana. to, a essência do campo consiste na materializa-
Se o campo de concentração é o espaço anômico ção do estado de exceção e na subsequente cria-
onde tudo pode acontecer, então o muçulmano, ção de um espaço para a vida nua enquanto tal,
como o que resta do homem no inumano, é su- então teremos que admitir que encontramo-nos
porte e o campo de incidência onde se concentra potencialmente em presença de um campo sem-
e decanta a soberania biopolítica, a tomada de pre que tal estrutura é criada, independentemente
posse integral da vida pelos dispositivos de poder. da natureza dos crimes ali cometidos, e quaisquer
O humano é aquele que pode enunciar e refletir que sejam sua designação e a topografia que lhe
essa experiência de uma voz privada de dicção é própria. Um campo é, então, tanto o estádio
e articulação, da mera foné. O humano é a tran- de Bari, no qual, em 1991, a polícia italiana ar-
sição da voz ao fonema articulado, da physis ao rebanhou provisoriamente imigrantes albaneses
logos, desse tensa unidade dialética entre o que é ilegais, antes de serem recambiados para a terra
mera vida animal e a cultura, pela mediação do deles, assim como também o velódromo de in-
ter lugar da linguagem. Sobre a base dessa ne- verno, que servia aos funcionários de Vichy como
gatividade radical, temos acesso ao processo de lugar de reunião para os judeus, antes que estes
devir sujeito, no elemento da linguagem. Essa, a fossem entregues aos alemães; assim como tam-
meu ver, é a raiz ontológico-antropológica da éti- bém o campo de refugiados na fronteira com a
ca do testemunho. Espanha, nos arredores do qual, em 1939, Antô-
nio Machado veio a morrer, e as zones d’attente
IHU On-Line – Qual é a gênese da afirma- nos aeroportos internacionais da França, nos
ção de Agamben de que o campo é o para- quais são retidos os estrangeiros que postulam o
digma político moderno? reconhecimento do status de fugitivos.
Oswaldo Giacoia Junior – Do texto intitulado Em todos esses casos, há um lugar de apa-
Meios sem Fins, destaco duas passagens de Agam- rente anódino (como o Hotel Arcades em Roissy),
ben que considero emblemáticas para a resposta a que efetivamente circunscreve um espaço no qual
essa pergunta. A primeira diz respeito à diferencia- o ordenamento normal está de fato suspenso, e
ção entre estrutura jurídica dos campos de concen- onde não depende da lei se lá são cometidas atro-
tração e a descrição historiográfica desse espaço cidades ou não, mas unicamente da decência e
biopolítico e dos acontecimentos que lá tiveram do entendimento ético da polícia, que age tempo-
lugar: “Ao invés de derivar a definição do campo rariamente como soberano (por exemplo, durante
a partir dos acontecimentos que lá se passaram, os quatro dias nos quais os estrangeiros podem
perguntaremos, antes: o que é um campo; qual é ficar retidos na zone d’attente, antes da interven-
sua estrutura jurídico-política; por que tais acon- ção dos funcionários da justiça). As também algu-
tecimentos puderam se passar ali? Isso nos levará mas periferias das grandes cidades pós-industriais
a considerar o campo não como um fato históri- e as gated communitties nos Estados Unidos da
co, como uma anomalia que pertence ao passa- América já se assemelham hoje a campos, nesse
do (mesmo que, em certas circunstâncias, ainda sentido, nos quais vida nua e vida política, pelo
possamos nos deparar com ela), mas, em certa menos incertos momentos, ingressam numa zona
medida, como a Matrix oculta, como o nomos do de absoluta indeterminação.”
espaço político, no qual sempre ainda vivemos.”

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Creio que podemos acrescentar que o mes- ben se esforça por compreender a gênese e a sig-
mo vale para o que ocorre em nossas prisões, fa- nificação do modernidade biopolítica, que vem
velas, assim como nas periferias de nossas capi- à luz sob a forma da regulamentação concentra-
tais mais ricas e desenvolvidas. cional e totalitária da vida individual e genérica,
acredito que esse nexo é de fundamental impor-
IHU On-Line – Quais são os maiores desa- tância. Tanto assim que Agamben reconhece, já
fios éticos após a experiência do nazismo no livro que inaugura o programa filosófico de
e dos outros totalitarismos do século XX? Homo Sacer (O Poder Soberano e a Vida Nua),
Oswaldo Giacoia Junior – Penso que uma das que sua obra prossegue nas pegadas de duas li-
contribuições mais importantes da obra de Agam- nhas de pesquisa originariamente independentes:
ben, no sentido de uma resposta a esse pergun- os estudos de Hannah Arendt sobre o totalitaris-
ta consiste na tentativa de repensar em toda sua mo e suas figuras, e as investigações de Michel
profundidade e extensão, nos termos de uma ar- Foucault sobre a biopolítica.
queo-genealogia, as bases em que se constituiu a
modernidade biopolítica e as alternativas que para IHU On-Line – Em que aspectos a solução
ela podemos criar. A reflexão filosófica sobre as re- final dialoga com a biopolítica e qual é a
lações entre ética, direito e política, sobre a moral atualidade desse conceito para compreen-
racional dos direitos humanos passa por essa exi- dermos a política hoje?
gência e pela responsabilidade que ela implica. Oswaldo Giacoia Junior – Numa época em
que a filosofia política se aproxima de maneira
IHU On-Line – Há um nexo entre o pensa- cada vez mais indiscernível de uma reflexão sobre
mento de Agamben e o de Hannah Arendt, o direito, o repto de Agamben que serve de insíg-
especificamente sobre a banalidade do mal? nia para o livro O Estado de Exceção – quare si-
Oswaldo Giacoia Junior – Parece-me que letis juristae im munere vestro? – concerne prima
aquilo que Arendt designava como banalidade facie aos juristas, mas de modo algum se limita a
do mal tem essencialmente a ver com o modo de eles, senão que se destina também a todos aque-
constituição, a essência e as formas de exercício les que se interessam pelo presente e pelo futuro
do poder totalitário. Nesse sentido, como Agam- humano na história.

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Temas dos Cadernos IHU em formação

Nº 01 – Populismo e Trabalhismo: Getúlio Vargas e Leonel Brizola


Nº 02 – Emmanuel Kant: Razão, liberdade, lógica e ética
Nº 03 – Max Weber: A ética protestante e o “espírito” do capitalismo
Nº 04 – Ditadura – 1964: A Memória do Regime Militar
Nº 05 – A crise da sociedade do trabalho
Nº 06 – Física: Evolução, auto-organização, sistemas e caos
Nº 07 – Sociedade Sustentável
Nº 08 – Teologia Pública
Nº 09 – Política econômica. É possível mudá-la?
Nº 10 – Software livre, blogs e TV digital: E o que tudo isso tem a ver com sua vida
Nº 11 – Idade Média e Cinema
Nº 12 – Martin Heidegger: A desconstrução da metafísica
Nº 13 – Michel Foucault: Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética
Nº 14 – Jesuítas: Sua Identidade e sua Contribuição para o Mundo Moderno
Nº 15 – O Pensamento de Friedrich Nietzsche
Nº 16 – Quer Entender a Modernidade? Freud explica
Nº 17 – Hannah Arendt & Simone Weil – Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX
Nº 18 – Movimento feminista: Desafios e impactos
Nº 19 – Biotecnologia: Será o ser humano a medida do mundo e de si mesmo?
Nº 20 – Indústria Calçadista: Quem fabricou esta crise?
Nº 21 – Rumos da Igreja hoje na América Latina: Tudo sobre a V Conferência dos bispos em Aparecida
Nº 22 – Economia Solidária: Uma proposta de organização econômica alternativa para o País
Nº 23 – A ética alimentar: Como cuidar da saúde e do Planeta
Nº 24 – Os desafios de viver a fé em uma sociedade pluralista e pós-cristã
Nº 25 – Aborto: Interfaces históricas, sociológicas, jurídicas, éticas e as conseqüências físicas e psicológi-
cas para a mulher
Nº 26 – Nanotecnologias: Possibilidades e limites
Nº 27 – A monocultura do eucalipto: Deserto disfarçado de verde?
Nº 28 – A transposição do Rio São Francisco em debate
Nº 29 – A sociedade pós-humana: A superação do humano ou a busca de um novo humano?
Nº 30 – O trabalho no capitalismo contemporâneo
Nº 31 – Mística: Força motora para a gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade
Nº 32 – Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade
Nº 33 – A família mudou. Uma reflexão sobre as novas formas de organização familiar
Nº 34 – A crise mundial do capitalismo em discussão
Nº 35 – Midiatização: Uma análise do processo de comunicação em rede
Nº 36 – O Universal e o Particular
Nº 37 – Mulheres em movimento na contemporaneidade
Nº 38 – As múltiplas expressões do sagrado
Nº 39 – Usinas hidrelétricas no Brasil: Matrizes de crises socioambientais
Nº 40 – Campanha da Legalidade: 50 anos de uma insurreição civil
Nº 41 – Memória e justiça: quando esquecer é imoral
Nº 42 – Rio+20: “Que futuro queremos?”
Nº 43 – A grande transformação no campo religioso brasileiro
Nº 44 – Tecnociência e saúde

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