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Prólogo

Ofensa é o ato de proclamar palavras que têm a capacidade de afrontar quem as ouve. No
entanto, uma palavra pode ser usada de modo ofensivo, mas não ser recebida como tal, tudo
depende do seu recetor. Deste modo, a culpa de nos sentirmos ofendidos é apenas nossa.
Somos nós que interpretamos as palavras e que lhes damos significado. Elas não nos podem
magoar a não ser que pensemos haver alguma verdade por trás das mesmas e que essa verdade
não seja aquela que queremos que o ofensor proclame. Se eu me sentir ofendida quando
alguém me chama de parva é porque haverá uma parte de mim que acredita que isso seja
verdade, verdade sobre a qual não me sinto confortável em aceitar, daí fico ofendida.
Eu sou facilmente ofendida, talvez por considerar que existe bastantes verdades que não
quero aceitar, uma inúmera quantidade de coisas que não consigo dominar e um conjunto de
segredos que não estou preparada para confrontar. No entanto, já consegui desenvolver
algumas defesas, por exemplo, eu já aprendi a fazer piadas sobre o meu metro e meio de
altura antes que elas sejam feitas, sou a primeira a apontar o tamanho do meu nariz ou da
minha testa, tudo em mim está longe ser perfeito e eu sou a primeira a admiti-lo. Eu sei que
não sou atraente, tenho consciência da minha aparência física. A minha falta de atração não é algo
que me perturbe, eu não quero atrair. Se nada atraio, nada tenho de repelir e a vida solitária que tento
alcançar torna-se mais fácil deste modo. Mas, quando alguém comenta sobre algo do qual ainda não
consegui desenvolver essas defesas, é aí que a ofensa se cria.

Gorda é apenas uma palava que denota alguém que tem gordura, serve para caraterizar uma
pessoa, em si, não é ofensiva. E, apesar de ainda culpar a minha situação em todos os que a
disseram, fui eu quem a decidiu tomar como uma ofensa. A culpa é somente minha, apesar
de não a querer aceitar. Foi assim que também conclui que não sou boa a aceitar as
consequências das minhas ações. E a frase “tu não sabes fazer nada” que me foi continuada
repetida durante a minha infância parece estar correta, eu, deveras, não sei mesmo fazer nada.
Esse sentimento de incapacidade perpetuou-se até à minha vida adulta. A cada decisão errada
que cometo é essa a frase que circula na minha cabeça. Não será de espantar que desde a
primeira vez que a ouvi eu tenho tentado fazer de tudo para que não seja verdade. Eu fiz da
minha vida uma missão de provar que os meus pais estão errados, que as suas ofensas não
significam nada. Então, desde o momento que o meu tomou a decisão de me interromper
durante a minha conversa para comentar no quanto o meu peso estava a aumentar e eu, tendo
tomado tal comentário como ofensivo, que tento provar que ele não me conhece como pensa,
que eu sou uma pessoa independente daquilo que eles diz. E foi assim que eu desenvolvi o
meu distúrbio alimentar.
Capítulo 1 – A primeira ofensa

Enquanto criança eu aprendi a gozar comigo mesma antes que os outros o possam fazer,
assim, quando isso acontecesse, eu estaria preparada porque fi-lo primeiro. Aprendi este
método de autodefesa e parecia dar resultado, mas apenas englobava alguns aspetos da minha
aparência física. Quando um rapaz aleatório comentou sobre o quão estranhos os meus olhos
eram, eu não estava preparada e não soube reagir. Escondi-me na resposta que a minha amiga
lhe deu, ao ripostar que eu era bonita. Não consegui concordar com nenhum dos comentários,
eu não via qualquer problema com os meus olhos, daí não ter desenvolvida a autodefesa
relativamente aos mesmos, e tinha a certeza que não era bonita mas não me quis dar ao
trabalho de argumentar e sujeitar-me a ouvir outra comentário, ou melhor, outra ofensa sobre
a qual não me saberia defender. A proclamação que ele fez ainda murmura na minha mente
quando eu olho ao espelho. Palavras que não consigo abandonar e nas quais me apoio em
dias em que a minha autoestima sofre. Mas os meus olhos não são algo que eu consigo mudar,
apenas tive de aprender a me acomodar na sua repugnância.
Aos 16 anos, eu sou uma adolescente entusiasmada por estar a ter uma conversa que
considero de caráter intelectual com o meu pai, falo com gosto pela conversa até que o meu
pai me interrompe. Eu tento não me irritar e atentamente ouço o que ele tem a dizer de tão
importante que não conseguiu esperar que eu acabasse de falar. Ele olha-me de cima a baixo
e diz “estás mais gorda”. De tudo o que pensei que pudesse sair da boca dele, isso apanhou-
me despercebida. Foi a segunda vez em que as minhas autodefesas não foram boas o
suficiente para me protegerem. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, os meus
pensamentos tornam-se ensurdecedores, há quanto tempo não me peso? Estarei eu tão gorda que
incomodo o meu próprio pai? Eu tento calar a minha mente ao tentar continuar com a conversa que
me entusiasmava anteriormente, talvez eu possa voltar ao mesmo estado e esquecer o que acabou de
acontecer. Mas antes que eu pudesse sequer tentar dizer alguma coisa, o meu pai preenche o silencia
que preenchia o quarto enquanto a minha mente gritava - “Mas estás, não estás?” – ele diz. Estou
assim tão gorda que nem uma conversa cabe entre mim e o espaço que não ocupo?

Sem saber o que fazer de seguida, eu apenas me levanto e deixo a conversa para trás, subo
as escadas até ao meu quarto, sento-me na cama e olho em volta. A minha respiração torna-
se mais pesada e eu começo a chorar. Não entendo totalmente a razão pela qual as lágrimas
me lavam a cara mas não as consigo fazer parar. Há quanto tempo não me peso? Eu penso. Onde
está a balança? Será que tem pilhas? A necessidade de saber a veracidade do que o meu pai me disse
é superior a qualquer pensamento lógico que eu possa ter.
Para perceberem a razão do meu aumento de peso, é necessário saberem a minha situação atual. Estou
de férias de verão, sem quaisquer amigos com que eu possa conviver, o meu único entretenimento é
séries da Netflix que enchem o tempo que eu não sei de outro modo preencher. A solidão e tristeza
que sinto prendem-me à minha cama, o único conforto que tenho. Eu durmo por falta de vontade de
permanecer acordada e a outra única necessidade básica que satisfaço é comer para preencher o vazio.
Mas agora fui confrontada com as consequências da minha depressão: aumento de peso. Onde está a
balança? Merda, está no quarto dos meus pais, eu não vou voltar lá. Amanhã peso-me sem falta.
Talvez seria mais fácil dizer que foi aqui o começo do meu distúrbio alimentar, que houve um único
comentário que desencadeou o acumular de comportamento que se iriam suceder, mas no dia a seguir
eu já me tinha esquecido do que o meu pai me dissera. Afinal de contas, não foi a única ofensa, ou
comentário que eu tornei ofensivo, que ele me fez. A minha infância foi feito deles, talvez esteja
imune, quem me dera.
As férias de verão acabaram, finalmente, é altura de voltar a ter uma razão para viver, nem que isso
apenas seja ir à escola e aprender. Eu sempre gostei da escola, de estar na sala de aula a ouvir o que
o professor diz e a sentir que vou sair de lá com mais conhecimentos do que com que entrei. Mas
como em tudo o resto, eu fiz da escola uma competição. Eu tinha de ser a melhor e qualquer tipo de
fracasso não era aceitado. Quando eu tinha 10 anos, fiz os exames nacionais e não obtive o melhor
resultado da turma, foi dos dias em que mais chorei. Ninguém se lembra do segundo melhor, daquele
que quase conseguiu ganhar. É assim que eu me vejo, como aquela que tem capacidades, mas que
nada faz disso, sou boa, mas não o suficiente. E tive uma boa nota, mas não a melhor e a minha mãe
garantiu que eu soubesse isso. A única coisa que me restou foi chorar a minha desilusão até que ela
passasse.
Mas agora estou no secundário e deixo essas mágoas para trás, apesar de ainda me lembrar delas
frequentemente. É o meu último ano, os dois anteriores não correram lá muito bem, passei de um
extremo para outro, de uma das melhores alunas, para uma das piores. Eu sei que a culpa é minha e
que é potencial desperdiçado, mas a minha advertência à desilusão faz com que eu nem me esforce
para que não sinta o fracasso de não conseguir o que esperava. Eu não imagino um futuro, pelo que
não tenho nada para que lutar, resigno-me na minha situação decadente.
Eu vivo numa pequena aldeia, pelo que tenho de apanhar um autocarro para conseguir chegar à cidade
onde o meu secundário se localiza. Eu vou com a minha vizinha até à paragem todos os dias, nós
vivemos uma ao lado da outra, mas esta é a única altura em que nos vemos. O que é interessante,
tendo em conta que eu a considerava a minha melhor amiga quando era criança. Lá está, passou de
um extremo a outro, de melhor amiga, a mera vizinha. Ela é bastante magra, mas não é o tipo de
pessoa que se preocupe com isso, sempre o foi. Antes de chegarmos à paragem, encontramo-nos com
outra rapariga que nos acompanha, o seu nome é Ana. Gostava de poder dizer que é apenas uma
pessoa insignificante, mas terá impacto para aquilo que vos conto.
Passaram-se 3 meses desde a última vez que estive com ambas, mas os mesmos tópicos de conversa
permaneciam. A Ana referia mais uma nova dieta que tentava e eu tentava fingir que estava
interessada. Eu costumava achar que a Ana era confiante, sempre com amigos e namorados com quem
se pudesse entreter, mas, ultimamente, eu pergunto-me se isso será apenas uma maneira de encobrir
a solidão que sente. Talvez, sejamos mais parecidas do que penso. Eu sou do pensamento de que
quem tem demasiados namorados seguidos é incapaz de amá-los a todos, que muitos deles são apenas
para se sentirem amados por alguém, quando esse amor lhes falta noutras vertentes da vida. Que essas
pessoas não conseguem ser independentes e precisam de alguém que as valorize. Ou talvez eu apenas
esteja a arranjar desculpas para a razão pela qual eu nunca tive uma relação.
Chegámos, por fim, à paragem e a conversa sobre a sua aparência física continua. Eu pondero a
quantidade de tempo que ela passa a pensar nisso. É preciso um determinado nível de egocentrismo
para nos odiarmos, passar tempo suficiente a pensar em nós mesmos para podermos encontrar tudo o
que pensamos que há de errado connosco. Alguém que seja altruísta não tem esse problema, só os
outros lhe ocupam a mente. Mas lá estou eu a pensar em extremos de novo. Talvez todos, num certo
momento ou outro, tenhamos encontrado algo na nossa aparência que não nos satisfaça, mas só alguns
são capaz de aceitar isso. O que não é fácil, tenho em conta o ênfase que é colocado na aparência
física. Eu não julgo a Ana por se sentir como uma vítima nesta cultura, só queria que ela não se tivesse
contaminado tanto ao ponto de ter ajudado a passar esta febre para mim.
Eu perco-me nos meus pensamentos e quando dou por mim, a Ana está a dizer qualquer coisa. - “O
quê?” - eu digo.
- “Estava a dizer que o meu corpo mudou imenso desde que me juntei ao ginásio, as minhas pernas
estão bem mais musculadas” – ela toca nas pernas para reafirmar o seu ponto e volta a olhar para mim
– “Podes tocar” – ela diz. Eu não sei muito bem como negar aquele pedido desnecessário e então faço
o que ela me pediu – “Tens razão, estou bastante duras” – Eu só quero que esta conversa acabe. Antes
que o meu aborrecimento aumentasse, o autocarro chegou, finalmente.
A primeira aula que vou ter é educação física, sendo a primeira aula já sei o que deve acontecer,
vamo-nos medir, e a turma toda saberá o quão pequena eu realmente sou, e depois vamo-nos pesar.
Começo a recordar o que o meu pai me disse, já te devias ter pesado antes. Surge uma voz dentro de
mim que eu não reconheço, soa à voz do meu pai e diz-me como me irá ser provado que ele tem
razão. Ansiedade nasce dentro de mim por algo que eu nunca antes tinha receado. Eu lembro-me da
conversa da Ana e toco nas minhas pernas, olho para elas fixamente e a voz do meu pai continua na
mina cabeça. Estás mais gorda!
Quando chega o momento de me pesar, eu encontro-me em frente à balança e expiro, só para o caso
de o ar que estava a conter se note no número que vai prenunciado pela professora. Eu não entendo o
porquê de nos termos de pesar nas aulas de educação física, não há nada deveria haver nada de
relevante no meu peso que determine se eu serei competente nas aulas ou não. Mas aqui estou eu, em
frente à balança. Descalça, eu coloco um pé no topo da balança e sinto o seu frio que me sobe pelo
corpo, será o momento que irá determinar os meses seguintes. Tento-me lembrar da última vez que
me pesei, qual foi um número que eu vi. Preciso de ter um indicador para saber a verdade. 45kg, o
ano passado pesavas 45kg, qualquer número acima deste indicará o que te têm dito: estás gorda,
nojenta. Abro os olhos que nem reparei ter fechado e olho para trás, mas antes de puder ver o número,
ouço a voz da professora – “48,9kg”. Eu quero chorar. Os outros não deviam ter de olhar para a tua
repugnância, nem o teu pai te aceita deste modo.
Apenas um número, apenas um corpo a ocupar mais espaço, meras palavras que para quem as disse
nada significaram, mas tudo isto me asfixia. A minha autoestima é substituída pelo egocentrismo que
me faz esquecer de onde estou, do mundo à minha volta, de como tudo é mais importante que um
objeto de metal que quantifica a nossa atração à terra. Desejo que esta me pudesse engolir, fazer
desaparecer, não ter de enfrentar o que aí vem, pois foi neste momento, numa aula insignificante, em
frente a uma professora de quem nem sei o nome, que eu me torno no monstro que eu tento aniquilar
nos próximos 3 anos.
Pondero se houvesse uma única ação diferente, o futuro pudesse ser alterado ou se este será inevitável.
Caso a professora decidisse não nos pesar, se eu não tivesse apanhado aquele autocarro, faltado à
aula, nunca ter ido ao quarto do meu pai falar com ele, se tivesse acabado aquela conversa mais cedo.
Ou talvez, se eu não tivesse encontrado conforto na comida, se eu não sentisse um vazio dentro de
mim que não sei preencher, iria algo ser diferente? Ou apenas seria encontrada outra maneira de eu
ter de passar pelo inferno que neste momento foi criado? Provavelmente iria pesar-me noutra situação,
haveria outro alguém que comentaria o meu peso, o meu futuro não é algo que possa evitar. De
qualquer das maneiras, eu culpo o meu pai.
Capítulo II
Com a ideia do meu corpo como um problema na cabeça, eu chego a casa e procuro pela balança.
Encontro-a no primeiro sítio em que procuro, como se fosse atraída por ela. Levo-a para o meu quarto
e coloco-a ao lado da cama, para ser a primeira coisa que vejo ao acordar. Sento-me na cama e apenas
olho para aquele objeto e sinto de novo o impacto que teve em mim esta manhã. As palavras do meu
pai voltam a ecoar na cabeça e os meus pensamentos voltam-me a asfixiar. mas antes que eu pudesse
procurar por ar, a voz da minha mãe sobrepõe-se, ela chama-me para jantar. Obedeço ao seu
chamamento e desço as escadas, o resto da minha família já se encontra à mesa. Eu olho para o meu
pai e um suspiro deixa-me o corpo, até diria alguma coisa, mas se abrir a boca para falar será as
palavras do meu dele que declarei, a única coisa em que consigo pensar.
Durante o jantar, os meus pais falam entre si e eu fixo-me no meu prato, ignorando qualquer existência
de vida. Tento racionar comigo mesma, mas volto a lembrar-me da repugnância que o meu pai
transmitiu e como isso não me deveria definir. Coleto um bocado de comida no meu garfo e levo-a à
boca, fecho os olhos e saboreio-a, o seu conforto encobre-me e nada mais importa. Quando volto à
realidade, a minha mãe está a olhar para mim à espera de uma resposta para qual eu não sei a pergunta
- "O quê?" - eu digo.
- "Está bom o jantar?" - ela espera pela minha validação, como se só ela importasse.
-"Está ótimo, obrigada, mãe"
A minha irmã diz algo que eu já não ouço para que também se pudesse integrar na conversa, volto a
perder-me nos pensamentos até que o jantar acaba. Eu reparo nos meus pais, na minha irmã, como
nenhum deles é propriamente magro, no entanto, foi a mim que comentaram o peso. Nem reflito mais
sobre se o comentário do meu pai pudesse ser uma projeção daquilo que ele sente em relação a si
mesmo, ou o porquê de ter sido redirecionado para mim, tendo em conta que todos são mais pesados
que eu, talvez por nenhum deles se importar com isso e eu ser a mais frágil, o alvo mais fácil. Com
isto, deixo-me levar na negatividade que interpretei e volto a subir as escadas para ir até ao meu
quarto. No momento em que chego é como se não tivesse saído, como se o jantar com a minha família
nem tivesse acontecido, pois, de imediato, continuo com os pensamentos em que anteriormente me
afogava e olho uma última vez para a balança, como se estivesse a fazer uma promessa. Deito-me, só
quero que o dia acabe.
No dia seguinte acordo com a voz da minha mãe
- "Daniela, acorda!"
- "Estou acordada" - eu grito de volta enquanto me levanto. Fico uns minutos parada a olhar para o
vazio e começo-me a vestir, o meu pé bate em algo, olho para o chão. É a balança, à minha espera.
Durante um momento de lucidez eu ignoro o seu chamamento e continuo a vestir-me, desço as
escadas e na mesa da cozinha está o pequeno almoço à minha espera. Duas torradas e um copo de
leite. Como sem ressentimento, sem o meu pai a suspirar na minha cabeça, é como se as palavras dele
tivessem passado como o vento, estou grata por isso.
Enquanto lavo os dentes, a campainha toca, é a minha vizinha que espera por mim para irmos até à
paragem
- "Bom dia" - eu digo, ainda cansada
- "Bom dia" - ela responde - "temos de nos apressar que já estamos um pouco atrasadas". começamos
a andar apressadamente enquanto ela me falava de problemas que estava a ter com o namorado.
Mentalmente pergunto-me se as pessoas se questionam a razão pela qual eu nunca tive um namorado.
Se elas mesmas elaboram conclusões para a minha falta de atratividade ou se já esperavam que isso
fosse acontecer, tendo em conta que eu nunca me conformei às normas da sociedade, sempre sendo
um lobo solitário. Ou talvez saibam o que eu ainda não lhes disse. Que apenas me sinto atraída por
raparigas, conclusão a que cheguei à dois anos atrás e que me coloca um pouco em desvantagem no
“jogo do romance”. E apesar de não ser algo que de que tenho vergonha, ainda não o disse à maior
parte das pessoas, só há um conjunto de amigos que o sabe. Mas, tendo em conta o meu histórico,
talvez o resto das pessoas já desconfie Seria mais fácil para mim, não ter de passar pela fase
constrangedora de contar às pessoas e responder ao conjunto de questões que possam ter ou piadas
que irão fazer. A mais comum é que, pelo menos, nunca irei apanhar um susto ao pensar que estou
grávida. eu rio-me sempre como se fosse a primeira vez que o ouço, ninguém se queixa
- "E ele nem pediu desculpa!" - diz indignada
- "Realmente o que ele fez não está correto!" - seja lá o que for, as pessoas só falam para que
concordemos com elas.
Por fim, chegamos junto da casa da Ana e atravessamos a estrada para tocar à campainha, a porta
abre-se
- "Bom dia" - A Ana diz, sorridente
Caminhamos o pouco que falta até à paragem, a minha vizinha conta-lhe a história que me acabou de
contar, sem saltar sobre nenhum detalhe e transmitindo a mesma indignação que sentiu quando me a
contou há segundos atrás.
- "E ele nem pediu desculpa!"
A Ana dá-lhe um conselho melhor que a minha resposta e eu lamento a minha falta de capacidades
sociais até que o autocarro chega
Entro no autocarro e sento-me no primeiro lugar que vejo disponível, a Ana senta-se ao meu lado.
Como era esperado, ela fala do novo ginásio a que se juntou e como já consegue ver os seus efeitos
após um dia. Orgulhosamente, prediz o quão mais musculosas as suas pernas irão ficar. Nisto, ela
toca nas minhas pernas e diz:
- "Não são como as tuas que abanam todas" - ela agarra-me num pedaço de gordura que descansava
na minha pela e abana-o. Apanhada de surpresa, eu não tenho qualquer reação.
Ela está tão repugnada por ti quanto o teu pai. Ninguém quer olhar para o que te estás a tornar. Eu
sinto o que mais tenho sentido recentemente, o pesar dos meus pensamentos, a maneira como eles me
asfixiam. Mas as palavras que não me deixam respirar soam à voz dela, à voz do meu pai, à voz de
todos que, ultimamente, têm feito do meu corpo a sua prioridade. Será que ela não consegue ver que
comer foi a única maneira que arranjei para lidar com vazio? Parece que ninguém o entende! E
roubam-me da única coisa que me consegue consolar nos últimos tempos, como se me despissem da
única roupa que tenho, a única cama em que resto e o vazio volta, como um amigo de infância que
eu conheço tão bem.
Ela continua a falar, mas é as mesmas palavras que eu ouço. Consciente do espaço que o meu corpo
ocupa, eu movo-me para o lado só para o caso de estar a transbordar para o lugar dela.
Todos à tua volta querem que desapareças, há demasiado de ti, ninguém te quer
Sinto as lágrimas a crescerem nos meus olhos e eu foco-me na janela, vejo as árvores a passar e como
ninguém se queixa da sua existência. O que eu dava para ser uma árvore agora, para não ter ouvido
tudo o que me foi dito, coberta por folhas que pudessem esconder as lágrimas que me enchem a cara.
Levo a mão à bochecha, sem me importar que alguém veja, e afasto-as. A Ana parece não reparar e
continua a falar. Parece não se importar com aquilo que disse, ou da maneira que me possa ter afetado.
Parece nem ter essa consciência, como a culpa fosse somente minha, e da interpretação que eu dou a
palavras que nada significam para quem as disse.
Racionalmente, eu sei que a Ana é insegura, que passa tempo a olhar para as pernas dos outros com
medo que alguém olhe para as delas e pense o mesmo. Faz de tudo para evitar que isso aconteça, é
esse o comportamento que estou a aprender. Eu tenho de fazer algo que impeça que haja mais alguém
a comentar no quão gorda eu me estou a tornar, eu não aguento mais um comentário, uma ofensa,
também o quero evitar. Talvez me devesse juntar a um ginásio, mas os meus pais nunca irão concordar
com isso. Para além disso, haveria ainda mais gente a olhar para as tuas pernas, a abanarem
enquanto corres. Quais são as outras alternativas? Como é que eu posso perder peso? podes sempre
deixar de comer, mas não sou capaz de fazer isso, eu gosto demasiado de comida, mas talvez não a
mereças. Consegues só imaginar como todos irão reagir quando perderes peso? O quão importante
te tornarás? É neste momento, num autocarro, ao lado de alguém que não veria nos próximos anos,
junto a pessoas que eu não conheço, que eu faço uma decisão: não iria comer o almoço, não mereço
comer o almoço.
O autocarro para. Chegámos à cidade e agora ainda temos de andar mais 10 minutos até à escola. Eu
só quero que o dia acabe, que me posso deitar na cama, fechar os olhos e que tudo deixe de existir,
em vez disso, eu digo:
- "Estão entusiasmadas para o novo ano letivo?"
Nem tento prestar atenção às respostas, elas iriam continuar a falar sem reparar que eu não dizia nada.
E assim foi, até chegarmos à escola e termos ido por caminhos separados.
Dirijo-me em direção à sala onde iria ter matemática, a minha disciplina favorita e encontro-me com
a Carina, a única amiga que consegui criar durante os meus 3 anos de secundário. Comento em como
a Ana passa o tempo todo a falar do seu corpo, ou da quantidade de rapazes que estão atraídos por
ela. A Carina não tem resposta, ela não era o tipo de pessoa para falar dos outros, mas eu continuo de
qualquer das maneiras:
- "Eu acho que ela apenas fala para encobrir as suas inseguranças. Ninguém repara em tudo o que
está errado com os outros, se não passar muito tempo a pensar nisso. E para fazê-lo é porque tem
medo que isso esteja errada com ela"
- "Sim, eu acho que nós temos tendência s projetar nos outros aquilo que sentimos. Da mesma maneira
que tu sabes sempre quando alguém está mais triste" - ela diz, tentando não se focar demasiado na
Ana.
- "Achas que eu consigo dizer quando alguém está mais triste?" - senti as palavras como um elogio,
algo de que estava a precisar.
- "Sim, tu estás sempre a reparar isso nos outros, porque é a única coisa que consegues reparar em ti"
- "O que é que queres dizer com isso? Achas que eu sou egocêntrica?" - talvez o seu intuito não tenha
sido me elogiar
- "Não é bem isso. Mas tens de admitir que te focas demasiado na solidão, ou o que seja, que sentes
e não deixas mais nada entrar. Conheces os sinais que te deixam assim e, por isso, consegues mais
facilmente conhecê-los também nos outros. Nós somos seres previsíveis e reagimos às cenas de
maneira semelhante. Tem muito a ver com a cultura, na minha opinião. Por exemplo, nós
consideramos gorda como uma ofensa, não porque o seja, mas porque é isso que a cultura nos diz.
Mesmo que os teus pais te tenham ensinado de maneira diferente, é isso que ouves por todo o lado e,
inevitavelmente, acaba-se por implementar no nosso cérebro e reages de maneira negativa ao ouvi-
lo" - parece que me conseguiu ler os meus pensamentos.
Eu, cada vez mais curiosa, prossigo:
- "Então se alguém te chamasse gorda, consideravas isso uma ofensa?"
- "Por momentos, talvez. Mas iria prosseguir com o meu dia, sem deixar que isso me afete. Acho que
saber o que fazer com as emoções é que nos distingue. Há gente que por muito inteligente que seja,
não o é emocionalmente"
- "Esse tipo de pessoa sou eu, não é?" - não preciso que ela responda para saber a resposta. Se tivesse
inteligência emocional, não deixaria que meras palavras me afetassem, quando a pessoa que as disse
nem se lembra de o fazer
- "Desculpa" - a conversa acaba, sem eu ter oportunidade para lhe dizer o quão inteligente eu a
considero. Desde que a conheço nunca lho disso, espero que ela o saiba. Talvez também goste de
apontar as coisas boas nos outros porque tenho esperança que alguém o faça em mim. Mas em ti só
vêm gordura
A professora chega e nós entramos para a sala.
Capítulo III
Como estou no último ano do secundário, só tenho aulas de manhã, pelo que, quando chega a hora de
almoço todos vão para casa, no entanto, como a minha aldeia é a mais pequena não há nenhum
autocarro que eu possa apanhar. Fico, assim, na escola, sozinha, até que se faça tempo para apanhar
o único autocarro que me levará até casa.
Posto isto, quando chega a hora de almoço, eu estou sozinha no corredor, rodeada por pessoas que
falam entre si e ninguém me dirige o olhar. É sempre pior quando nos sentimos sozinhos entre
pessoas. Quando, realmente, estamos sozinhos, podemos sempre fingir que a escolha de o assim ser
é nossa, que somos o suficiente por nós próprios e que não precisamos de ninguém que disturbe a
nossa paz, pelo menos, é isso que eu me fui dizendo durante as férias de verão, enquanto ouvia a
risada do meus antigos amigos que entrava pela janela. Felicidade que sentiam sem mim, o quão
insignificante em me senti nesses momentos, ciente que a vida continua mesmo que eu não esteja lá.
Lembro-me vividamente das memórias que partilhamos durante a nossa infância comum, mas algures
entre esses tempos e os de adulto perdemos o contacto. Talvez seja isso que signifique crescer, deixar
a criança e a sua vida para trás que, por vezes, inclui as pessoas. Ou talvez isto seja apenas a desculpa
que eu arranjo para me puder acomodar na minha solidão. Ao ser rodeada por pessoas neste corredor,
é como se a solução para o meu problema estive a um braço de distância, mas eu não consigo lá
chegar. Não há nenhuma parte de mim capaz de se integrar numa conversa, de me focar em outro
alguém tempo suficiente para responder a uma pergunta. Nestes últimos 3 anos a minha vida tem sido
somente sobre mim, egoisticamente, sentido o que sinto ou a ausência disso. E assim continua, neste
corredor, enquanto tento decidir se devo ir até ao refeitório, pegar no tabuleiro e dirigir-me até uma
mesa, sentando-me sozinha, com o julgamento dos outros pegado a mim. Decido não passar por essa
humilhação, para além disso, lembro-me da promessa que tinha feito, hoje não iria comer ao almoço.
Parece ser uma decisão inocente na minha mente, mas serve de castigo por me ter descuidado este
verão. Em vez de comer vou para a biblioteca.
Sem saber o que fazer, tiro os livros da mochila e começo a estudar. Outra parte de mim que perdi
durante a adolescência, foi o meu gosto pelos estudos. Costumava ser das melhores alunas e definia-
me nisso. Lembro-me de uma das vezes que mais chorei foi no 4º ano quando recebemos as notas dos
exames e um dos meus colegas teve uma nota melhor que eu. Soube-o porque a minha mãe fez questão
de o mencionar e nesse momento em apenas existia em desilusão, expressa pelas lágrimas que saiam
dos olhos. Nesse momento, a minha mãe reconfortou-me, como se não tivessem sido as palavras dela
que me colocaram nessa situação. Parece ser habitual que as palavras dos outros ditem as minhas
ações. Saltei o almoço, em parte, devido a isso, foi a única maneira que consegui arranjar para calar
a voz ensurdecedora do meu pai que não me deixava o pensamento.
Agora sinto que os meus colegas de turma não confiam na minha inteligência, olham para mim como
se eu não estivesse realmente lá e há vezes em que eu nem tenho a certeza se existo. Não sei se haverá
algum propósito em tentar estudar agora. A boa aluna que fui, como tudo, encontrasse no passado
que eu não pareço conseguir esquecer. Enquanto procuro por material para escrever, lamento a pessoa
que fui e não consigo voltar a ser.
Tento esquecer isto tudo enquanto me foco no livro e nos seus exercícios. Faço-os com alguma
facilidade porque tinha aprendido sobre a matéria de manhã. Alguns momentos depois começo a
sentir a fome.
Mexo-me desconfortavelmente na cadeira até que consigo atenuar a dor no estômago. Seria mais fácil
ir comer e acabar com o desespero em que estou, mas pela primeira vez em meses há, finalmente,
algo que eu quero atingir. Eu quero provar que eles não me conhecem, eu não sou um vazio que eles
podem preencher com o que acham apropriado e ignorar a fome é a minha maneira de me revoltar
contra o que me foi dito. Então eu continuo sentada, a olhar para o livro incapaz de me concentrar,
mas com a ideia de que irei conseguir aquilo que quero se prosseguir tempo suficiente neste caminho.
Todos temos alturas na vida em que mentimos a nós próprios, esta é uma dessas situações. Não há
lógica nenhuma para o meu comportamento, mas a mentira que eu crio não me deixa ver isso. Talvez
porque me queira agarrar ao único objetivo que tenho, finalmente sinto que estou a lutar por alguma
coisa, o meu único objetivo, que me leva à autodestruição.
Mato as horas que passam naquela biblioteca a olhar para o livro sem entender as suas palavras,
começo a imaginar a comida que poderia estar a comer, em vez de estar aqui. Ainda só saltei uma
refeição e já não estou a aguentar, talvez não seja tão perseverante como penso. Claro que és, este é
o único caminho a tomar, pensa só no olhar de choque quando eles virem os resultados disto tudo.
Vale a pena. O meu único objetivo, tenho de lutar por ele, aguento o desconforto que se acumula.
Olho para o relógio, já só falta uma hora para puder apanhar o autocarro e ir para casa. Começo a
arrumar as coisas porque com a falta de energia que sinto, presumo que o caminho até à paragem sea
mais longo que o normal.
Quando chego a casa, não me apetece interagir com ninguém. Enquanto subo as escadas para o meu
quarto ouço a voz da minha mãe:
- “Hoje nem dizes nada?” – ela pergunta, habituada que a primeira coisa que eu faça ao chegar a casa
é ir-lhe contar sobre o meu dia, mas sinto-me demasiado exausta e, além disso, não aconteceu nada
durante o dia que valha a penas ser contado. Ignoro-a.
Chego ao meu quarto e deito-me na cama, há horas que esperava por este momento. Assim que o faço
sinto o vibrar do meu estômago, tenho de ir comer qualquer coisa. Levanto-me e a primeira coisa que
vejo é a balança, sinto o seu julgamento. Não devias ir comer. Eu não devia ir comer, mas não consigo
aguentar mais esta peça e desço as escadas enquanto penso no que será a minha refeição.
Na cozinha, a minha mãe está a fazer o jantar, eu dirijo-me em direção à primeira coisa comestível
que vejo
- “Não devias comer agora, está quase na hora de jantar, depois não tens fome.” – Ela diz, sem
consciência de que eu era capaz de a comer com a fome que tenho, mas obedeço-a, pouso a maçã que
tinha apanhado e volto a ir para o meu quarto.
Obedeço, também, ao chamamento da balança, descalço-me e coloco um pé em cima da mesma
quando me lembro que a roupa também pesa, deveria despir-me antes de me avaliar. Assim o faço,
apenas de roupa interior sinto a brisa que entra no meu quarto, mas ignoro o arrepio de frio e volto a
colocar um pé sobre a balança, respiro fundo e olho para baixo. 47kg. Parece que o meu plano está a
resultar, sinto-me concretizada e vitoriosa, apesar de só agora estar no início, mas isto deu-me a força
suficiente para aguentar a fome.
JANTAR
Dia seguinte: jantar na casa da minha avó!!

É como se eu tivesse sempre de estar em guerra com alguém e desta vez eu escolhi estar em
guerra com a cultura que rentabiliza ao propagar imagens de raparigas esqueléticas à espera que
eu compre os seus produtos para atingir a mesma imagem.

O que acontece com aqueles que desenvolvem um distúrbio alimentar é que nós
propositadamente adoecemos para que a nossa aparência física transmita aquilo que sentimos no
anterior. O meu distúrbio alimentar foi apenas uma maneira de pedir ajuda, eu não aprendi a
comunicar devidamente, mas tinha de o fazer de alguma maneira. E o que eu reparei foi que
quando partes de mim começaram a desaparecer foi quando fui mais notada. Era como um
ultimatum, ou me ajudam, ou eu continuo neste caminho auto destrutivo que possibilitou, pela
primeira vez, que alguém se preocupasse comigo.

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