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6º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Niterói: PPGSD-UFF, 18 a 20 de Outubro de 2016, ISSN 2236-9651, n.6

A CULTURA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL E A


REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE
LEI “GABRIELA LEITE”

ESPERIDIÃO, Rhanna Rosa Alves


Mestranda em Antropologia pela UFBA
105
rhanna.roberto@gmail.com

CARINHANHA, Ana Míria dos Santos Carvalho


Doutoranda em Sociologia e Direito pela UFF
ana.miria.scc@gmail.com

RESUMO
O presente estudo pretende promover um análise descritivo-reflexiva, de abordagem qualitativa, sobre
os fundamentos da regulamentação da prostituição no Brasil, proposta pelo deputado Jean Wyllys, do
Partido Socialismo e liberdade, através do Projeto de Lei 4211/2012, também chamado “Gabriela Leite”.
A metodologia utilizada para categorização e análise dos fundamentos do Projeto de Lei será a teoria
fundamentada nos dados (grounded theory), formulada pelos sociólogos americanos Glaser e Strauss. A
fundamentação do projeto é centrada sob quatro aspectos principais que consideram a perspectiva da
autonomia dos sujeitos em situação de prostituição; da fiscalização da atividade por parte do Estado, da
saúde dos trabalhadores e trabalharas do sexo e dos direitos trabalhistas desses profissionais. Ao analisar
essas categorias levantamos outros questionamentos que precisam ser debatidos para a consecução de
um projeto mais humano e igualitário.

Palavras-chave: Prostituição; Regulamentação; Projeto de Lei 4211/2012; Brasil.

ABSTRACT
This study aims to promote a descriptive and reflective analyses, from a qualitative approach, about the
elements of the prostitution regulation in Brazil, the law project 4211/2012 also known as “Gabriela
Leite” a proposal made by the congressman Jean Wyllys, from “Socialismo e Solidariedade” party in
Brazil ((PSOL). The methodology used to make data categorization and principals analysis was the
Grounded theory, formulated by American sociologists Glaser and Strauss. The project grounding is
focused in four mains aspects: the autonomy of the individual working in the prostitution world, the
control of the activity by the State, the health of the sex workers and Work Rights. With the analysis of
this aspects, other inquires submerged, and they also need to be debated in order to procure a law project
that is humane and more equal.

Key-words: Prostitution; Regulation; Bill 4211/2012; Brazil.

A CULTURA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL E A REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE


LEI “GABRIELA LEITE” - ESPERIDIÃO, Rhanna Rosa Alves; CARINHANHA, Ana Míria dos Santos Carvalho
6º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO
Niterói: PPGSD-UFF, 18 a 20 de Outubro de 2016, ISSN 2236-9651, n.6

INTRODUÇÃO
O presente artigo resulta da pesquisa analítica acerca dos discursos parlamentares que
fundamentaram o Projeto de Lei nº 4.211/2012, que visa a regulamentação da prostituição no
Brasil, conhecido como Projeto de Lei Gabriela Leite.
O acirramento da repressão policial no contexto ditatorial na década de 1980 foi estopim
para o início de uma organização dos movimentos sociais em defesa dos direitos das prostitutas. 106
Ainda que a atividade não fosse mais considerada ilegal desde o Código Penal de 1940,
observava-se uma ofensiva policial excessiva em relação às prostitutas, que culminou na
realização do I Encontro Nacional, bem como na criação da Rede Brasileira de Prostitutas
(LENZ, 2014).
Em 2003, após uma aproximação da organização de prostitutas com o poder legislativo,
o deputado Fernando Gabeira apresentou o projeto de descriminalização de aspectos ainda
ilegais do negócio do sexo. A proposta foi arquivada, mas em 2011, o deputado Jean Wyllys
propôs um projeto com objetivos semelhantes e diferenciando prostituição de exploração
sexual, o Projeto de Lei denominado Gabriela Leite (LENZ, 2014). A retomada deste Projeto
inclui não só a descriminalização das casas de prostituição, mas também a diferenciação entre
prostituição e exploração sexual e a previsão de aposentadoria especial para prostitutas.
Falar acerca da prostituição frente à possibilidade de regulamentação é sair da zona de
conforto e entrar nos pontos de encontro (e desencontro) dos discursos morais que legitimam
ou não a opressão de gênero tanto pelo Estado quanto pela sociedade.
Neste contexto de discussões, é importante destacar que o Brasil se encontra em um
momento de produção de Megaeventos, tais como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e que a
questão do turismo sexual ainda é pouco discutida. Neste sentido, sem pretensão de
esgotamento do tema, o presente trabalho pretende responder: Como se fundamenta o Projeto
de Lei nº 4211/2012?

1. MULHER, PROSTITUIÇÃO E TRABALHO


A necessidade de relativizar a máxima “a prostituição é a profissão mais antiga do
mundo” nos é apresentava por diversas pesquisadoras, tais quais Carole Paterman (1988, apud
CAPELA, 2013), contrária à prostituição enquanto prática, quanto Margareth Rago (2011, apud
AFONSO E SCOPINHO, 2013), defensora da ideia de que a prostituição é uma profissão e por
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esta razão deve incluir todos os direitos garantidos ao trabalhador. Ambas as autoras afirmam
não ser correta a associação do termo prostituição às práticas sexuais ilícitas realizadas nos
primórdios da humanidade.
Para Rago (2008):
o discurso simplista de que a prostituição é “(...) a profissão mais antiga do
mundo (...)” faz parte de uma postura prejudicial, uma vez que naturaliza um
fenômeno que na realidade “(...) é cultural e histórico, não necessário e 107
insolúvel”. A autora ressalta a importância de situar e discutir historicamente
a prostituição a fim de problematizar a experiência, por mais dolorosa e difícil
que possa ser. Para ela, existem “maneiras de se aproximar dessas realidades,
enfrentá-las e, quem sabe, encontrar novos elementos para lidar e responder a
elas de uma maneira mais eficaz e construtiva”.

Sustentar tal pensamento é dizer que a prostituição, enquanto trabalho e prática


moderna, não pode ser dimensionada como um fenômeno existente nas conhecidas histórias da
Grécia Antiga e romanas. Aquele modelo era de escravidão sexual e não da prostituição, na
acepção do termo em que se pretende discutir hoje. Portanto, é adotada a perspectiva, segundo
Rago (2008), de que a prostituição é um fenômeno essencialmente urbano; que visa o
oferecimento de serviços sexuais mediante uma economia de trocas; e que, principalmente, está
inserida num sistema de codificações morais, em que há valoração da família nuclear, da união
sexual monogâmica e heterossexual, da virgindade, da fidelidade feminina e que direciona
muito especificamente as sexualidades que tentam se afastar deste arquétipo da família
burguesa.
Ao olhar para a construção da inserção das mulheres no mercado de trabalho no Brasil,
Saffioti (2013) afirma que a relação entre os sexos e, por conseguinte, a posição da mulher na
família e na sociedade em geral fazem parte de um sistema de dominação muito maior. Tal
afirmação resulta da análise de como se organizava e distribuía o poder na sociedade escravista.
Na sociedade escravocrata brasileira formaram-se certos complexos sociais justificados
hoje em nome da tradição. À luz desta tradição procurar-se-á encontrar explicações para a
vigência, ainda hoje, dos mitos e preconceitos através dos quais a sociedade atual tenta justificar
a exclusão da mulher de determinadas tarefas, e a sua manutenção em outras, tidas
tradicionalmente como ocupações reconhecidamente femininas.
Saffioti (2013) fala que neste primeiro período de desenvolvimento do capitalismo
comercial no Brasil conformou-se uma estrutura social exótica em que o sistema de castas,
herança feudal-europeia combinada com a exploração de trabalho escravo, possui um
fundamento tanto econômico como pecuniário, o que tornava a liberdade negociável. Para as
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mulheres escravizadas havia um reflexo determinante: a miscigenação, ou seja, a exploração


sexual de mulheres negras por homens brancos não era impedida, no entanto os casamentos
inter-raciais, sim. A cor, portanto, funcionava como demarcação da condição moral e
econômica dos indivíduos. Ao se referir à nova posição da mulher, após o aparecimento do
modo de produção capitalista, declara Saffioti (2013, p.230):

108
O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente
adversas à mulher. No processo de individuação inaugurado pelo modo de
produção capitalista, a mulher contaria com uma desvantagem social de dupla
dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das
capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da
supremacia masculina e, portanto, estrutural, à medida que se desenvolviam
as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada
das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de
produção.

A mulher negra ocupava tanto uma função dentro do sistema produtivo de bens e
serviços quanto um papel sexual. Neste sentido, a utilização da mulher negra escravizada como
mero instrumento do prazer do seu senhor gerava a reificação desta mulher e o fruto destas
relações criou um foco de tensões sociais e culturais no Brasil, pois os filhos extraconjugais
nasciam mulatos (DELPRIORI, 2004).
Verifica-se, com isto, que existia uma objetivação material das mulheres negras com
relação aos senhores, e, por outro lado, as funções de esposa e mãe dos filhos legítimos cabiam
à mulher branca. Essa afirmação das funções diferentes destinadas às mulheres negras e às
mulheres brancas dizem respeito ao modo patriarcal com que famílias se constituíram no Brasil
e que conferia graus de liberdade distintos a homens e mulheres. A estas últimas, o casamento
era a única carreira. E é evidente que a manutenção da castidade destas mulheres da camada
senhorial só foi possível diante do comércio do corpo de tantas outras.
Hoje nas grandes cidades, assim como antigamente, é na camada de economia mais
instável que encontramos o maior recrutamento para a prostituição (DELPRIORI, 2004).
É evidente, ainda, que, se num primeiro momento, a exploração da mulher negra
decorria da sua condição de escrava, a partir do fim do século XIX, tem-se a prostituição como
um dos resultados deste processo marginalizador, que neste novo marco da mão de obra livre,
revela tanto a natureza comercial desta exploração de um gênero sobre o outro, mas,
principalmente, como a exploração de uma classe sobre a outra.

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Com o desenvolvimento urbano-industrial, embora as famílias não tenham perdido o


caráter nuclear, a família urbana ajusta novos papeis às mulheres, principalmente, que passa a
socializar a partir da instrução nas escolas. A Igreja ainda funcionava como reguladora do
comportamento social feminino. A mulher-mãe-esposa, arquétipo de Maria, será totalmente
dessexualizada e purificada e aparece em oposição à Eva, a mulher sensual, pecadora, razão da
perdição do homem. 109
A lógica médico-higienista, segregacionista das mulheres públicas, invade o submundo
da prostituição para classificar as mulheres como degeneradas e alheias à zona da normalidade
sexual e social. Sob a justificativa do combate às doenças venéreas é que se estuda e medicaliza
a sexualidade da mulher, que se aborda o problema da prostituição e que se instituem e
distinguem os padrões de comportamento da mulher honesta e casta, e também da vagabunda.
Para além da dimensão simbólica do termo enquanto fator de exclusão, a lógica
higienista e eugenista (RAGO, 1985) buscou responder a demandas sociais através de teorias e
técnicas que buscavam eliminar os marginalizados e não acabar com a marginalização (RAGO
apud DELPRIORE).
Em 1890, através dos artigos 277 e 278 do Código Penal, o lenocínio passou a ser
criminalizado pelo grande número de denúncias contra a exploração de mulheres por bandos
organizados (DELPRIORE, 1997). Apesar da ofensiva legal, a conivência das autoridades
políticas, o silêncio e a cumplicidade das próprias meretrizes traficadas tornava ineficaz a
punição dos rufiões (RAGO, 1991).
Com a plena instauração da ordem burguesa na Belle Époque (1890-1920), o
rompimento com o modelo escravista, a modernização e a higienização do país - sob os moldes
de “civilização” parisiense - foi preciso adequar o comportamento dos homens e mulheres das
camadas populares através da disciplinarização não só do tempo e do trabalho, devido à nova
configuração do trabalho como sendo livre, mas também de regramento das outras esferas da
vida (SANTANA, 2012).
A implantação dos moldes da família burguesa era essencial para o regime capitalista,
na medida em que se passou a calcular o custo da reprodução do trabalho através da
“contribuição invisível”, não remunerada, do trabalho doméstico das mulheres. Além disso, a
honra e o casamento para as mulheres pobres, muitas como chefes femininas e com relações
informais de convivência, eram tidas como atentados à moralidade desta nova sociedade que se
conformava.
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Desta forma, o reforço da ordem privada como lugar destinado às mulheres era um
pressuposto. A rua, portanto, simbolizava o espaço do desvio, das tentações, devendo as mães
pobres, segundo médicos e juristas, exercer a vigilância constante sobre as filhas, já que a ideia
de moralidade indicava progresso e civilização. No entanto, a necessidade de sobrevivência não
permitiu que tal orientação fosse seguida, já que estas mulheres pobres precisavam trabalhar e
transitar pelas ruas, o que implicava uma maior criminalização delas (DELPRIORE, 1997). 110
É de se notar que a liberdade sexual das mulheres populares parece confirmar a ideia de
que o controle intenso da sexualidade feminina se ligava com o regime de propriedade privada.
Rachel Soihet (DELPRIORE, 1997) afirma que a autonomia das mulheres pobres no Brasil,
ainda que precária, é indiscutível. Viviam muito mais como autônomas do que como
assalariadas. Era a arte do improviso da sobrevivência através da lavagem de roupas, do
trabalho doméstico, da feitura de doces, ou da prostituição.
No contexto da Ditadura do Estado Novo, por volta de 1940, houve uma política de
confinamento da prostituição. Alessandra Teixeira (2012, p. 72) afirma que:

os dispositivos de controle social destacaram-se, no interior desse novo


modelo de ordem social, como instrumental ideal para dar suporte prático a
arcabouço ideológico que o sustentava, com o que as detenções correcionais
não apenas são colocadas no centro deste projeto, mas ganham, também no
âmbito discursivo, um maior grau de oficialidade e o estatuto
instrumentalizador e profilático do regime.

Neste período, o Código Penal Brasileiro de 1940 passa a definir a forma como o Estado
deveria enfrentar a prostituição: não a partir da sua criminalização, mas impedindo a existência
de casas de prostituição e incentivadores. Da década de 40 até meados dos anos 60, os “jogos
de azar” estiveram fortemente ligados às zonas de médio meretrício (TEIXEIRA, 2012, p. 85).
O balé era a forma de driblar a fiscalização e possibilitar que as “artistas” ficassem pelo caminho
com os clientes, já que a ordem moral pressupunha o confinamento. Os circuitos, promovidos
por indivíduos de alto nível econômico (cafetão profissional) conseguiam clientela selecionada
(de poder aquisitivo) e mascaravam, pelo artifício de espetáculos, a finalidade verdadeira dos
estabelecimentos: a prostituição (PEREIRA, 1976).
Nesta trama de tolerâncias, extorsões e repressão foi se desenhando, no discurso oficial
e na política de segurança pública, uma estratégia aberta de guetificação, separação territorial
do submundo da prostituição, de modo que ele pudesse ser melhor controlado, limpando-se,
principalmente as áreas mais abastadas. Tal ideia torna-se bastante eficaz para caracterizar o

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tratamento dado pelas políticas repressivas e o jogo que se estabelecerá entre o tolerado, o
permitido e reprimido nesse sítio de ilegalismos das classes populares (PEREIRA, 1976).
Dessa forma, enquanto a preocupação das autoridades centrava-se nas mulheres do
trottoir, lançando-as à cadeia, conforme exigia a opinião pública, o comércio sexual se
fortalecia e se desenvolvia no país. O Capítulo V e os respectivos Artigos 227-231 do Código
Penal Brasileiro vigente (Decreto-lei n° 2.848, de 7-12-1940), referentes aos crimes contra os 111
costumes, cuidando de atividades ligadas ao aliciamento, favorecimento, manutenção de casa
de prostituição, rufianismo e tráfico de mulheres, usualmente eram aplicados pelas autoridades
para a detenção de profissionais do sexo, embora a prostituição em si mesma não constitua
crime no Brasil (ANGELO, 1982).
Ao aderir à Convenção de Lake Sucess em seu Decreto nº 46.981, de 8 de outubro de
1959 o Brasil considera “que a prostituição e o mal que a acompanha, isto é, o tráfico de pessoas
para fins de prostituição, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e põem
em perigo o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade(...)” (BRASIL, 1959).
O governo fluminense, por sua vez, ao avaliar o regime de escravidão a que se
submetiam as prostitutas e os altos lucros concentrados nas mãos de estrangeiros
administradores de prostíbulos, proibiu a cafetinagem e organizou a “República do Mangue”,
em que o cargo de gerente era conferido à própria prostituta, em caráter rotativo. Criou-se uma
zona oficial, onde as meretrizes trabalhavam em bordéis sob a gerência de uma prostituta de
confiança da polícia (PEREIRA, 1976). Havia, portanto, uma espécie de tolerância misturada
com confinamento e invisibilidade destas mulheres:
Essa dinâmica social não necessariamente era caracterizada pela corrupção ou pela
extorsão [policial], mas se inseria mais nos termos de uma tolerância, de um modo específico
de gerir diferenciadamente os ilegalismos, no qual as forças de ordem imiscuíam-se nesse
universo (TEIXEIRA, 2012).
Afirma a socióloga Alessandra Teixeira (2012) que a base da permissividade das
polícias está nas origens das instituições de policiamento. Nos anos 1960, na cidade de São
Paulo, a ilegalidade concentrava-se em regiões específicas da cidade, como o quadrilátero da
Boca do Lixo, no centro da capital paulista. Nesses locais, funcionava o esquema da
“mercadoria política” em torno da prostituição.
A mercadoria política é o 'acerto', o preço pela liberdade, o dispositivo que se estabelece
com o agente que deveria aplicar a lei, mas que cobra para se omitir de aplicá-la”. Os crimes
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giravam em torno da exploração da prostituição em si, do jogo e do pequeno tráfico de drogas.


“Nos anos 60, as prostitutas tinham que pagar a 'caixinha' para os policiais para continuar
exercendo a profissão nas ruas” (TEIXEIRA, pag. 27).
A extorsão e corrupção policial apesar de já existirem na história do controle social em
São Paulo, cresceram ao ponto do Secretário de Segurança Pública, em 1963, publicamente
reconhecer a prática denominada “caixinhas” mensais (TEIXEIRA, 2012, p. 93). É neste 112
cenário de crise da Polícia Civil que se acentuarão as transformações do aparato repressivo do
Estado, através da militarização e posterior criação da Polícia Militar no ano de 1970.
Durante o regime militar, as prostitutas eram presas, mesmo sem previsão legal
expressa, sob a modalidade de averiguação e por estarem cometendo o crime de “vadiagem”.
A repressão não só era exercida pelos militares, mas por policiais civis e outros. Relatos
confirmam que as prostitutas eram obrigadas a manter relações sexuais com carcereiros e
policiais para receberem um pouco de água.
Ainda que lentamente, com o processo de redemocratização as práticas arbitrárias
passaram a perder o respaldo oficial diante de uma maior abertura ao debate público e a
reconquista progressiva da liberdade de imprensa. É neste período em que as mulheres em
situação de prostituição aparecem no cenário nacional.
De acordo com Gabriela Leite (2006), em 1979, em protesto contra a violência policial,
organizou-se a primeira passeata de prostitutas brasileiras, na Praça da Sé, em São Paulo. O
reconhecimento público da auto-organização das prostitutas é recente e ocorreu a partir dos
anos 80. Porém, as políticas de organização Nacional e Internacional da prostituição tem
história entre as autoridades governamentais (sanitárias e policiais) e também religiosas.
Neste mesmo período, com a eclosão da AIDS (1980-90) “estreitou-se” a relação
governo-prostituta para controle do “grupo de risco”. Em 1987, quando realizaram o seu
primeiro encontro nacional, de acordo com Gabriela Leite (2006): “o nosso lema, lembrando
Cartola, era: as rosas já falam. Passados quase 20 anos desse primeiro encontro, as putas
desfilam a nossa moda pisando em rosas. Parafraseando mais uma vez Luiz Melodia: “De passo
a passo, passo!” (LEITE, 2006).
No fim da década de 1980 é que Gabriela Leite (2013) passa a assumir o posto de
referência no ativismo pela visibilidade e regulamentação da atividade das “putas”, como
costumava chamar, afirmando a sua identidade e negando o “politicamente correto”.

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Com o retorno dos movimentos sociais à cena política neste período, este grupo
socialmente invisível entra firme na luta por seu reconhecimento. Com o jornal Beijo da Rua
como bandeira, as prostitutas reivindicam sua legitimação na esfera pública. Os exemplares
produzidos até 1993 do periódico lançado em dezembro de 1988 estão guardados na
Coordenadoria de Publicações Seriadas da Fundação Biblioteca Nacional (LENZ, 2014).
Em 2003, como dissemos acima, fora apresentado um projeto de descriminalização de 113
aspectos ainda ilegais relacionados à prostituição. Essa proposta foi arquivada. Novamente, em
2004, foi apresentado um projeto de lei pelo ex-Deputado Eduardo Valverde que pretendia
regulamentar a atividade (PL 4244/2004), mas, que foi retirado pelo próprio deputado. Já em
2011, o deputado Jean Wyllys retomou o projeto de regulamentação, que foi denominado
Gabriela Leite. Desde 2012, o projeto passou somente por uma discussão na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias (CDHM), em que o relator rejeitou a proposta. Atualmente, este
projeto aguarda a formação da Comissão Especial. Em 2015 houve um arquivamento
meramente regimental, com a troca de legislatura, mas o projeto foi desarquivado em seguida
e continua tramitando.

2. METODOLOGIA
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa indutiva qualitativa, que utiliza a Teoria
Fundamentada nos Dados (TFD), teoria sociológica desenvolvida por Glaser e Straus
(LAPERRIÈRE, 1997), como metodologia principal. Esse método consiste numa “abordagem
de pesquisa qualitativa com o objetivo de descobrir teorias, conceitos e hipóteses, baseados nos
dados coletados, ao invés de utilizar aqueles já predeterminados”. A partir de um conjunto de
procedimentos de coleta e análise de dados, procede-se à fragmentação e codificação de acordo
com os incidentes e fatos, para possibilitar, posteriormente, chegar-se à categorização e
atribuição de conceitos. Desta forma, há uma ordenação de categorias, de maneira a identificar
a categoria central, que, por sua vez, precisa ser testada para verificar se esta representa as
experiências dos sujeitos.
Na TDF, a análise é composta por três etapas interdependentes, não lineares, uma vez
que o movimento é circular. São denominadas de codificação aberta, codificação axial e
codificação seletiva. O processo de codificação visa a redução dos dados em categorias de

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análise, as quais, permeadas pelo processo de codificação, são fundamentais para se chegar à
teoria.
O percurso analítico deste trabalho se deu com: a leitura do Projeto de Lei; a
identificação dos diferentes argumentos utilizados em prol da regulamentação da prostituição;
a categorização e problematização destes argumentos em suas diferentes nuances; bem como a
sua relação com os institutos jurídicos em questão; também uma análise crítica sobre os 114
possíveis efeitos da implementação do Projeto de Lei nº 4211/2012.

3. FUNDAMENTAÇÃO DO PROJETO DE LEI 4211/2012


Expusemos acima como a prostituição tem sido concebida em nossa sociedade e
tentamos desconstruir alguns dos paradigmas morais e relacionais imbrincados no histórico
desta prática, principalmente no contexto brasileiro. Tentaremos a partir de agora analisar o
quadro legal do projeto de lei 4211/2012, especificamente no que concerne à sua
fundamentação. Ou seja, tentaremos lançar um olhar crítico sob a representação social daqueles
que idealizaram o projeto de lei, observando os sentidos que atribuem à prostituição e às
questões adjacentes que estão imbrincadas à prática.

3.1 Autonomia
No projeto de Lei 4211/2012, a mulher em situação de prostituição é entendida como
agente de sua própria vontade, desta forma, proibir a atividade significaria interferir na
liberdade de escolha individual.
Neste sentido, o argumento principal para a propositura da alteração do Código Penal
através deste projeto de lei é a distinção entre prostituição e exploração sexual. A partir do
entendimento que a prostituição é a disposição voluntária do próprio corpo, nas modalidades
individual ou cooperada, enquanto meio de trabalho, sendo o agente da prostituição o único
beneficiário dos rendimentos, na modalidade individual (diretamente remunerado). A
prostituição é, segundo esse entendimento, não criminosa e profissional. De acordo com o
projeto de lei Gabriela Leite (PL 4211/2012, p.4): “O profissional do sexo é o único que pode
se beneficiar dos rendimentos do seu trabalho. Consequentemente, o serviço sexual poderá ser
prestado apenas de forma autônoma ou cooperada, ou seja, formas em que os próprios
profissionais auferem o lucro da atividade”.
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Já a exploração sexual, por outro lado, é considera uma atividade criminosa, que ocorre
nos casos em que: a) a obtenção de lucro por terceiros é igual ou superior a cinquenta por cento
do valor em questão; b) quando não há pagamento da prestação voluntária; c) mediante ameaça
ou grave violência, independente da maior idade ou da capacidade civil da vítima. Nestes casos
ocorrerão os chamados crimes contra a dignidade sexual da pessoa.
Importante ressaltar que a compreensão da atividade da prostituição enquanto 115
profissão descriminaliza a ação de “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de
alguém que nele venha a exercer a prostituição”, o que seria compreendido enquanto ação
solidária com alguém que entra no país para trabalhar. Contudo, continuaríamos criminalizando
todos os modos de exploração sexual. In verbis (PL 4211/2012, p.6):

A “facilitação” da entrada no território nacional ou do deslocamento interno


de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual deve ser
criminalizada conforme proposta dos artigos 231 e 231-A. Optou-se pela
retirada da expressão “prostituição” porque a facilitação do deslocamento de
profissionais do sexo, por si só, não pode ser crime. Muitas vezes a facilitação
apresenta-se como auxílio de pessoa que está sujeita, por pressões econômicas
e sociais, à prostituição. Nos contextos em que o deslocamento não serve à
exploração sexual, a facilitação é ajuda, expressão de solidariedade; sem a
qual, a vida de pessoas profissionais do sexo seria ainda pior. Não se pode
criminalizar a solidariedade. Por outro lado, não se pode aceitar qualquer
facilitação em casos de pessoas sujeitas à exploração sexual, principalmente
se há vulnerabilidades especiais expostas nos incisos abaixo transcritos.

3.2 Falso Moralismo


O texto do Projeto de Lei parte do argumento de que a prostituição é uma atividade
antiga e que é preciso admitir que ela continuará existindo. Afirma ainda que existe uma
condenação moral simultânea à prostituição, por um lado, e que, por outro lado, existe uma
demanda social que sustenta a existência da atividade. Nos termos do PL 4211/2012, p.3: “É de
um moralismo superficial causador de injustiças a negação de direitos aos profissionais cuja
existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de
contradição causadora de marginalização de segmento numeroso da sociedade. ”
No projeto de Lei são citadas ainda outras experiências de regulamentação da
prostituição, como por exemplo a alemã, e até mesmo projetos anteriores ao atual (PL 98/2003
e PL 4244/2004). A prostituição, enquanto fenômeno social complexo, passa por uma avaliação
moral que é tida de modos diferentes por cada sociedade e essa compreensão pode ser

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modificada, ou reconfigurada, mais rápida ou lentamente, fácil ou dificilmente, mesmo em


nossa sociedade como a nossa, patriarcal e machista.
Trazendo a carga da representatividade do sujeito oprimido (acredita que a prostituta é
favorável à regulamentação), no caso, a profissional do sexo, apresenta-se a partir deste
argumento de autoridade para legitimar-se, afirmando conhecer de quem se fala: “ (...) e com
reivindicações dos movimentos sociais que lutam por direitos das profissionais do sexo. ” 116
Segundo o projeto, a fim de que possamos superar o moralismo superficial que é causa
de injustiça e de negação de direitos, apesar de uma condenação moral da sociedade se faz
necessário admitir que a prostituição existe. A própria sociedade que condena a prostituição é
a sociedade que a fomenta. Nesse caso “existe uma suposta contradição que marginaliza as
mulheres”.
Sendo, portanto, uma atividade que perdura no tempo, a sua regulamentação não visa o
aumento do número de profissionais do sexo, mas somente a institucionalização da atividade,
o que pode trazer inúmeros benefícios para as profissionais, para os usuários e para a sociedade.
Os movimentos sociais que lutam em prol da regulamentação da prostituição buscam, na grande
maioria das vezes, a conquista de direitos sociais das profissionais do sexo.

3.3 Fiscalização
Diante da percepção de que o atual modelo não cumpre a função de tornar visível a
existência da prostituição e, por conseguinte, a conversão desta visibilidade em garantia de
direitos, é que ele se sustenta. A leitura da prostituição fundamenta-se na ideia de que a falta de
regulamentação é mais uma forma de exclusão social (marginalização/estigma), que a
regulamentação é a forma mais eficiente de reduzir a condição de vulnerabilidade destas
mulheres (redução de danos/visibilidade/fiscalização).
O PL abarca a prática da vida das mulheres em situação de prostituição e o Estado-
regulamentador como sendo a principal resposta para a situação de prostituição e capaz de
reduzir as variadas formas de violação da dignidade das profissionais do sexo (intervenção
estatal para garantia de direitos).
Também admite que, no atual sistema, as prostitutas permanecerão invisibilizadas em
condições de trabalho degradantes, devido, principalmente, à falta de fiscalização estatal. Além
disso, que o silêncio do Estado reforça as arbitrariedades policiais, a culpabilização das

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mulheres pelas violências sofridas e não é capaz de garantir, de fato, os direitos trabalhistas e o
acesso à justiça como aos demais trabalhadores.
Além disso, existe a afirmação no texto de que a própria regulamentação da
prostituição ajuda no combate à exploração sexual e isso se dá através da fiscalização das casas
de exploração e controle do Estado sobre o serviço. Com isso haveria uma prevenção e punição
da exploração sexual. – inclusive - que não há prostituição de menores, e sim exploração, 117
conforme o PL Gabriela Leite, p.4: “Como demonstrado, não existe prostituição de crianças e
adolescentes. Muito pelo contrário, essa prática se configura como abuso ou exploração sexual
de crianças e adolescentes e se tipifica como crime severamente punido pelo Código Penal. ”
Ao fazer referência aos Megaeventos, afirma que:

A regulamentação da profissão do sexo permitirá alto grau de fiscalização


pelas autoridades competentes, além de possibilitar e até mesmo incentivar o
Poder Executivo a direcionar políticas públicas para esse segmento da
sociedade (como a distribuição de preservativos, mutirões de exames médicos,
etc). (PL 4211/2012).

3.4 Regulamentação de direitos trabalhistas


Outra justificativa para a proposição da regulamentação da prostituição é uma medida
garantista que seria decorrente deste processo de desmarginalização da atividade, qual seja, a
concessão de aposentadoria especial, conforme o artigo 57 da Lei 8.213/1991.
Desta forma, a concessão antecipada de aposentadoria teria como fundamento o
envelhecimento precoce na profissão; e a falta de oportunidades na carreira, que acaba cedo.
O projeto admite a prostituição em dois formatos: autonomamente ou de maneira
cooperada. No entanto, não desenvolve o modo de funcionamento desta cooperação.
No entanto, a regulamentação também abrange as chamadas casas de prostituição: “As
casas de prostituição, onde há prestação de serviço e condições de trabalhos dignas, não são
mais punidas, (...).”

3.5 Saúde
A fundamentação do Projeto de Lei explicita que a regulamentação é uma medida de
redução os danos da profissão, para conferir maior visibilidade a estas mulheres que são alijadas
do acesso à justiça e à saúde devido à hipocrisia da sociedade que permanece marginalizando-
as e promovendo injustiças sociais.

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Define a proposta como necessária para o direcionamento das políticas públicas para
este segmento da sociedade, através da distribuição de preservativos e mutirões médicos, e
indica a regulamentação como uma forma de garantir a dignidade das profissionais e redução
da vulnerabilidade delas, na medida em que a marginalização é diminuída.
Neste sentido, in verbis PL Gabriela Leite, p.7: “Por exemplo, as leis e os costumes
legalmente tolerados, que falham em proteger mulheres e meninas da violência, aprofundam as 118
desigualdades entre gêneros e aumentam a sua vulnerabilidade ao HIV.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos identificar as diferentes categorias analíticas supracitadas na fundamentação


do Projeto de Lei “Gabriela Leite”, nos moldes em que foi proposto, contudo, é possível
perceber também a existência de algumas lacunas e incongruências no projeto que precisam ser
discutidas.
A negação da historicidade do fenômeno da prostituição é ponto controverso no que se
refere à naturalização de opressões. Além disso, é preciso admitir que o contexto social e
histórico brasileiro apresenta contingências que podem ser relativizadoras da noção de
autonomia na escolha da atividade da prostituição. Estas contingências históricas relacionam-
se diretamente com o modo como as mulheres negras foram violentadas duplamente através da
escravidão, primeiramente a partir da exploração do trabalho (domesticamente), e em segundo
plano a escravidão sexual (elas eram propriedades dos seus senhores).
A regulamentação legal traz condições legais para que as casas de prostituição sejam
fiscalizadas, mas parte de um pressuposto de autonomia da vontade que não se verifica na
sociedade.
Outro ponto controvertido no discurso é o de que “o exercício da atividade do
profissional do sexo deve ser voluntário e diretamente remunerado (...)”, que “o profissional do
sexo é o único que pode se beneficiar dos rendimentos do seu trabalho”, prevendo o serviço
prestado de forma autônoma ou cooperada e ao mesmo tempo a lacuna ou admissão de casas
de prostituição que possam retirar até 50% dos lucros auferidos pelo trabalho e esta modalidade
não ser considerada exploração sexual.
No que diz respeito à questão da fiscalização, é preciso reconhecer que mesmo no campo
da ilegalidade a atividade não é fiscalizada (nem para o fechamento das casas de exploração),
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e não há como pressupor que a regulamentação implicará uma fiscalização consequente. Existe
uma cultura da prostituição que é maior do que a própria regulamentação da atividade e é
preciso trabalhar sob a própria cultura da prostituição, elementos do machismo, racismo e do
patriarcado que estão diretamente relacionados com a atividade e com a exploração sexual. A
linha é tênue entre e precisa ser verificada com bastante sensibilidade em sua complexidade.
É preciso considerar também, no que diz respeito à realização de grandes eventos, que 119
o Brasil sediou e sediará, as questões relacionadas ao turismo sexual. Não podemos ignorar os
discursos higienistas que entendem as prostitutas como foco de disseminação de doenças, que
se preocupam mais com as demandas externas do que com as prostitutas em si e sua condição
de vida.
Questiona-se, ainda, se a regulamentação não pode trazer uma seletividade formal e
informal e entre as próprias garotas, fazendo com que algumas permaneçam na informalidade.
Neste sentido, sem respostas ainda estabelecidas, encaminha-se para o questionamento se
este modelo de regulamentação não seria a transição de um modelo de exploração não
autorizada para um modelo de exploração institucionalizada? O que não significa dizer que a
situação atual é satisfatória. Por outro lado, compreende-se que a institucionalização poderia,
sim, gerar melhorias na qualidade de vida das prostitutas. É preciso, portanto, repensar os
moldes nos quais o projeto se encontra proposto, para que possamos lançar um olhar mais
complexo acerca da prostituição e para que as prostitutas possam se beneficiar de maneira mais
completa com a lei.

REFERÊNCIAS
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mestrado]: Brasília. UNB; 2013. p.214.

CAPPI, R. Pensando as respostas estatais às condutas criminalizadas: um estudo empírico dos


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OLIVEIRA, M. Q. Prostituição e trabalho no baixo meretrício de Belo Horizonte – O trabalho na


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RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
________________ Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São
Paulo, 1890 – 1930. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1991.

SAFFIOTI, H. I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. 3.ed. São Paulo: Expressão 120
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_______________ Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cad. Pagu,


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TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre


gestão de ilegalismos na cidade de São Paulo. [tese de doutorado]- São Paulo, USP, 2012.

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