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O bienalsão paulo
FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO
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FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO
DIRETORIA
Luis Terepins • presidente
Andreas Ernst Mirow
Flavia Buarque de Almeida
João Livi
Justo Werlang
Lidia Goldenstein
Renata Mei Hsu Guimarães
Rodrigo Bresser Pereira
Salo Kibrit
CONSULTOR
Emilio Kalil
instalação na 32aBienal.
Alicia Barney, Valle de Alicia [Vale de Alicia], 2016. Vista da
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Nlinistério da Cultura, Bienale Itaú apresentam
INCERTEZA VIVA
7 - li dez 2016
DIAS DE ESTUDO
Pesquisas para a 32a Bienal em
Santiago, Chile
Acra, Gana
Lamas, Peru
Cuiabá
São Paulo
a No pata
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SUMÁRIO
135 Quase um prólogo: Da máquina de roubar almas à máquina de registrar memórias Naine Terena
161 Tecnologias para a organização: Engajando modos de vida e ativismo Ben Vickers, entrevista por Isabella Rjeille
169 As alianças afetivas - Entrevista com Ailton Krenak, por Pedro Cesarino
189 Cosmologias de inícios e fins (e meios também): Notas sobre Dias de Estudo - Santiago Lars Bang Larsen
197 Imaginário baraditiano: Figurações do sujeito, da história e da tecnologia na obra de Jorge Baradit Macarena Areco Morales
227 Créditos
232 Agradecimentos
240/ cartaz Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal] Rikke Luther
Corpo terra - Tempo lua:
Reflexões sobre o chão e a incerteza entre os
auéchua-lamas da Alta Amazônia peruana
A primeira vez que eu vi Ailton Krenak foi em um vídeo. Ele falava da arte
indígena de caminhar pela vida sem deixar no chão rastros de nossa pas-
sagem. Nos Dias de Estudo —São Paulo, o vi pessoalmente e o escutei falar
novamente sobre o chão; porém, sobre terremotos e incertezas de quando
a terra treme e afunda sob nossos pés. Foi uma feliz coincidência, pois eu
também havia preparado uma reflexão sobre o chão.
Na apresentação que fiz nos Dias de Estudo e neste texto há algumas
fotografias e comentários sobre os fazeres e a filosofia da pacha, palavra
que significa tempo, espaço e mundo entre o povo Quéchua-lamas da Alta
Amazônia peruana, no sopé andino. Esse foi um trabalho realizado com
os membros da Waman Wasi, organização sem fins lucrativos que acom-
panha as comunidades da região da província peruana de Lamas, desde
2002, e que, em abril de 2016, organizou a visita dos Dias de Estudo —
Lamas, Peru.
Enquanto preparava as fotos para a apresentação, apareceu em minha
página do Facebook uma caricatura assinada pelo pensador colombiano
Enrique González Ayerbe. O desenho mostra um camponês olhando com
desgosto para suas unhas, e nele está escrito: "Neste país a terra está nas
mãos dos que odeiam tê-la nas unhas". Então, decidi seguir o fio dessa
ironia e começar sinalizando os nossos paradoxos.
Nas comunidades quéchua-lamas que visitamos em abril, vive-se a
contraexemplo desses proprietários fundiários e de nós mesmos, habitantes
das cidades, que consideramos suja a proximidade com o chão e insistimos
em nos distanciar dele, lavando vigorosamente as unhas, nos sentando em
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ordensde nenhum político, mas obedecer
fielmenteaos astros. Uma planta
semeadaou uma árvore cortada na fase lunar
errada não produz nada útil
para os seres humanos. Por isso, aprender a
ler as fases da lua e os ciclos
de suas águas é fundamental para entender os
sinais do tempo, planejar e
pensar alternativas diante das incertezas e das
mudanças.
A incerteza, porém, não é algo novo em Lamas.
"Sempre houve in-
certezas",nos disseram. A questão é saber se movimentar
para lidar com
elas, pois a resposta à ansiedade gerada pela incerteza está
justamente na
possibilidadede circular e acionar as redes de parentesco
que se estendem
pelo território. As sementes, por exemplo, precisam se movimentar,
passar
de mão em mão para não estancarem. As mulheres também, elas saem de
casa levando suas sementes para criar filhos e plantas em outro lugar. O
casamento quéchua-lamas se baseia no que nós, antropólogos,chamamos
virilocalidade, isto é, depois de se casar, a mulher vai viver na comunidade
do marido. Desse modo, o matrimônio opera uma redistribuição constante
das pessoas e possibilita estabelecer os laços de ajuda e de fluxos de troca
que o atravessam. Como a região é montanhosa, ela abarca diversospisos
ecológicosque se situam entre os 500 e 2.500 metros de altitude. Algumas
comunidadesse encontram na parte baixa, na beira dos rios; outras, na
ladeira; e outras, ainda, bem acima. Então, o casamento faz se articularem
os diversos pisos ecológicos entre si. As mulheres que cresceram nas zonas
baixas e têm conhecimento dos cultivos, dos peixes, das aves, dos animais
vão viver nas alturas. Aquelas que foram criadas nas alturas, vão viver na
ladeira, e assim sucessivamente. Por meio desse deslocamentodas mulheres,
a região torna-se um território vivo.
Quando nas ladeiras não chove o suficientee os brotos de uma variedade
de feijãomorrem no chão, as famílias têm outras variedades mais resistentes
à seca que as salvam da fome. A diversidade é a chave para lidar com as
incertezas do dia a dia. E quando a situação piora e, apesar do uso de alter-
nativas, as plantas morrem, as famílias são salvas da fome por seus parentes
chove mais e há
que vivem em outros pisos ecológicos. Nas alturas, sempre
por
reservasde alimentos para sustentar os parentes nas áreas mais baixas
e serviçospossa
algum tempo, até que o clima mude e a troca de alimentos
continuar.
limitam aos momentos da cri-
Mas esses movimentos de alimentos não se
Sempre que alguém visita os
se climática. Acontecem de maneira corriqueira.
casa e volta para casa trazen-
parentes em outro lugar, leva para eles algo de
variadas e muito sofisticadas.
do alguma coisa de lá. Assim, as refeições são
trabalham choba
comunidade de Alto Pucalpillo
ACIMA: Feijão fava habitas. ABAIXO:Crianças da
choba, na horta escolar.
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outro de troca e da e do territôfio,
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intensos, como o trabÀjho de cargo e a cong(ruçÀocorn madcira,
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de cotnunicaçÀo que
o tempo e jnantém os
corpos e o territôrio
Uma semente é o início do tempo, como a
terna lua crescente, mas contém
também todas as incertezas, pois não se sabe
sc cla germinará, se ela criará
raízes no chão onde será semeada. Foram muitas as
violênciasdo passado
que se encarnaram nas formas da paisagem dc
Lamas, desde a época dos
relatosmíticos aos séculos da colonização europeia
e os subsequentesbooms
económicosda seringueira, da madeira, das drogas, do
petróleo e do garim-
PC).Apesar de tantas incertezas, indissociáveisda própria
temporalidade,
as mulheres e os homens quéchua-lamas lograram exorcizar as ameaças
constantes em sua história graças à sua admirável sintonia com o chão e o
que há ao redor. Hoje, a pior ameaça que eles enfrentam não é a mudança
e a imprevisibilidadedo clima, mas a imposição de uma fixidezque os con-
denaria a abrir mão dos fluxos de seu território. Porque a maioria das terras
indígenasainda não está oficialmente demarcada e, portanto, elas estão
sendoinvadidas, desmatadas, vendidas ou doadas em concessão pelo Estado
peruano, que, em tese, deveria protegê-las. Porque o fomento do agronegó-
cio na região, especialmente da palma africana, tem devorado a agrodiver-
sidadee deixado as famílias totalmente dependentes do mercado agrícola.
Os rios também são postos em concessão, e não é mais permitido pescar. As
montanhas da cordilheira Escalera agora pertencem a um parque de con-
servaçãoonde a caça, a pesca e a coleta de sal não estão autorizadas, e os
caminhantes à procura do conhecimento e da força espiritual guardada nas
pedras e nas cachoeiras da paisagem não podem mais circular livremente.
As incertezas de hoje residem na imposição da certeza do confinamento:não
mais fazer trocas de alimentos, nem entretecer os cabelos no choba choba,
nem juntar os casais nas grandes festas para que as mulheres possam levar
suas bagagens e seus conhecimentos de um piso ecológico a outro. A pacha
está sendo compartimentalizada, dividida por cercas, barragens e calendá-
rios que pouco têm que ver com o governo da luna terna. A pior incerteza
—aquela que não é viva, mas fixa —é a certeza de saber que, ao seguir assim,
não será mais possível colocar o chão e as sementes em movimento.
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32a Bienal de São Paulo : Incerteza Viva : Dias de Estudo. Pesquisas para
a 32a Bienal em Santiago, Chile; Acra, Gana; Lamas, Peru; Cuiabá e
São Paulo/ Organizado por Jochen Volz e Isabella Rjeille. — São Paulo :
Fundação Bienal de São Paulo, 2016.
240 pp.
Curadores: Jochen Volz, Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen,
Sofía Olascoaga.
ISBN: 978-85-85298-56-2
CDD-700.74