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Colin Darch
Uma História de Sucesso que Correu Mal?
O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz
numa Perspectiva Histórica
SOBRE O AUTOR

O Dr. Colin Darch já se reformou, mas mantém posições honorárias de pesquisa no Human Sciences
Research Council, Cape Town, na Democratic Governance and Rights Unit, da Universidade de
Cape Town, e no Centre for African Studies, também na Universidade de Cape Town. Ao longo de
uma carreira de quarenta anos, trabalhou em universidades e centros de investigação na Etiópia,
Tanzânia, Moçambique, Zimbabwe e Brasil. Entre 1979 e 1987, trabalhou no Centro de Estudos
Africanos, Universidade Eduardo Mondlane. Depois de se reformar, em 2016, foi Professor Visitante
na Universidade Federal de Pernambuco, no Brasil, e, em 2017, ensinou na Universidade Pedagógica
em Lhanguene, Maputo. É autor de vários trabalhos sobre História de África e de Moçambique,
incluindo, mais recentemente, O Continente demasiado grande: reflexões sobre temáticas africanas
contemporâneas (Recife: UFPE, 2016), o Historical Dictionary of Mozambique (Scarecrow Press, a
publicar em breve), e, com David Hedges, Samora Machel: retórica política e independência em
Moçambique (Salvador: EDUFBA. No prelo).

Arte da Capa
Um comício da RENAMO no norte de Moçambique, 1994, Foto de Michel Cahen

Tradução:
António Roxo Leão

Aviso legal

Publicado por Friedrich-Ebert-Stiftung Moçambique


Avenida Tomás Nduda 1313, Maputo, Mozambique
Tel.: +258-21-491231, Fax: +258-21-490286
Email: info@fes-mozambique.org

©Friedrich-Ebert-Stiftung 2018

ISBN 978-989-20-8380-3

“O uso comercial de todos os meios de comunicação social publicadas pela Friedrich Ebert Stiftung
(FES) não é permitido sem o consentimento por escrito da FES. As opiniões expressas nesta publicação
não são necessariamente os da Friedrich Ebert Stiftung. ”
Colin Darch
Uma História de Sucesso que Correu Mal?
O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz
numa Perspectiva Histórica
CONTENTS

INTRODUÇÃO 5

O CONTEXTO HISTÓRICO 6

Mudanças Económicas 7

Adversários Políticos 8

O Acordo Geral de Paz 9

Conflito Renovado 10

CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS DO CONFLITO E DA PAZ EM MOÇAMBIQUE 12

“Reenquadramento” ideológico na Transição para a Independência 12

A Natureza do Conflito com a RENAMO, 1976-1992 14

O AGP como Tentativa de Estabilização e Reconciliação 16

Desarmamento Incompleto e Integração dos Militares 17

A Descentralização do Poder Político e da Administração 19

A “Maldição dos Recursos” e a Expectativa de Lucros Fabulosos 21

A “Parlamentarização” é Desejável ou Possível? 22

CONCLUSÃO: O REGRESSO AO CONFLITO E AS SUAS LIÇÕES 24

REFERÊNCIAS 27
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INTRODUÇÃO A degradação da imagem do país, especialmente


nos últimos cerca de cinco anos, foi, em grande
A opinião sobre os dezasseis anos devastadores parte, consequência de dois factores. São eles,
de conflito armado em Moçambique e o quarto primeiro, o regresso dramático ao conflito de
de século de paz que se seguiu, tem mudado baixa intensidade com a RENAMO, o principal
substancialmente ao longo do tempo. A partido da oposição, entre 2013 e 2016, quando
guerra entre o Governo da Frelimo e o grupo entrou em vigor um cessar fogo. O segundo
rebelde da RENAMO (Resistência Nacional factor foi, em Abril de 2016, a revelação de
Moçambicana)1 começou em 1976, pouco que em 2013-2014 tinham sido negociados
depois da independência, e terminou em 1992, empréstimos maciços secretos por elementos
com a assinatura do Acordo Geral de Paz das estruturas da segurança do estado e do
(AGP). Em meados dos anos 90, Moçambique partido no poder, em completo desrespeito
era generalizadamente visto como um exemplo pelas normas judiciais e democráticas em vigor
bem-sucedido de estabilização económica (a chamada “dívida secreta”).
e social numa sociedade pós-conflito (e.g.
FCO 1999; Manning 2002; Phiri 2012). Mas, Em Maio de 2016, assim que se descobriu a
na segunda década do século vinte e um, o existência da dívida secreta, a comunidade
país deixou de ocupar a sua anterior posição internacional, dirigida pelo Fundo Monetário
de “farol de esperança”, e de uma história Internacional (FMI), cortou uma parte
rara de sucesso demonstrando a eficácia de significativa da sua assistência económica.
modelos de reconciliação pós conflito que Na altura em que este artigo foi escrito, com
ajuda a produzir um crescimento económico as relações entre a comunidade doadora
sustentável. O processo de paz moçambicano e o Governo num impasse, o crescimento
e a sua expressão jurídica no AGP, está a ser económico continua lento e o FMI vai mantendo
questionado de novo, e a questão – impensável as suas exigências de divulgação total da
há dez anos – que está a ser colocada é “estará informação relativa a como foi negociada
a Paz a falhar em Moçambique”? 2 a dívida secreta, paralelamente a cortes na
despesa do Governo e a uma restruturação
1 A RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) é um significativa das empresas estatais ineficientes
híbrido político-militar. Teve origem nos anos 1970’, existentes.
como rebelião armada antimarxista contra a agenda
da Frelimo de transformação socialista radical. A
maior parte dos analistas acreditam a organização foi Neste contexto, este artigo tem como propósito
montada com o patrocínio de vários pequenos grupos analisar as raízes estruturais da actual situação
de dissidentes, e, depois de 1980, continuou a lutar e identificar os factores chave da história
com o apoio do regime de apartheid sul-africano.
Depois do acordo de paz de 1992, exigiu-se à RENAMO
de Moçambique pós-independência que
que se transformasse em partido, mas esta não foi contribuíram e, talvez, que determinaram a
totalmente desarmada. Na verdade, ao mesmo tempo actual crise político-económica continuada e
que funcionava como oposição parlamentar, mantinha desestabilizadora.
uma pequena, mas significativa, ala militar.

2 O surgimento de uma sublevação islâmica, denominada


Ansar al-Suna em Cabo Delgado, começando com um
ataque a Mocímboa da Praia em Outubro de 2017, pobreza e a desigualdade pelo fenómeno, este está
também constitui uma clara ameaça à paz. O governo ainda insuficientemente documentado para que
respondeu com violência considerável. No entanto, possa ser analisado pormenorizadamente neste artigo
embora algumas figuras locais tenham culpado a (Fabricius 2017; Hanlon 2018a).

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O CONTEXTO HISTÓRICO o movimento nacionalista FRELIMO3 viria a


lançar a luta armada de libertação nacional que
A história de conflito armado e instabilidade levaria à independência em 1975, ao fim de
violenta em Moçambique remonta a um dez anos de luta. Passados dois ou três anos,
passado distante e faz parte da herança do o conflito armado foi renovado mais uma vez,
colonialismo. Durante a maior parte do período quando o movimento RENAMO lançou a sua
colonial, de um modo geral, Portugal não rebelião contra o novo governo, uma rebelião
teve força suficiente para impor qualquer tipo que durou até 1992. Na sua primeira fase, o
de poder unitário e organizado sobre todo o conflito foi uma guerra de desestabilização
território do que viria a ser Moçambique. Na contra as políticas “comunistas” do governo
verdade, até ao início do século vinte, o Estado da Frelimo, ostensivamente apoiada pelo
colonial esteve numa constante competição, estrangeiro, com a RENAMO a praticar, como
normalmente armada, com várias entidades estratégia primária, uma campanha de terror
políticas locais africanas poderosas. Em finais contra as populações rurais, paralelamente
do século dezanove, a fragilidade de Portugal à sabotagem de infra-estruturas. Ao longo
levou à cessão de vastas áreas do centro e norte do tempo, porém, os rebeldes começaram a
a companhias concessionárias estrangeiras, explorar a insatisfação local relativa a políticas
chamadas Companhias Majestáticas (a do governo como o reassentamento forçado
Companhia do Niassa e a Companhia de em “aldeias comunais” e a construir uma base
Moçambique). As áreas sob controle destas de apoio popular, principalmente nas províncias
empresas comerciais eram notoriamente do centro do país. Em finais dos anos oitenta,
desprovidas de lei, já que o principal interesse tinha ficado claro para ambas as partes que
dos investidores era a exploração de recursos a guerra não seria vencida militarmente, e o
comerciais, não a imposição da lei e ordem para governo e os rebeldes sentaram-se à mesa para
além do que fosse minimamente necessário. A negociarem um fim mediado para a guerra.
chamada “resistência primária” da população Quando o Acordo Geral de Paz acabou por
africana (Ranger 1968a, 1968b) à luta ser assinado, em fins de 1992, foi finalmente
prolongada de Portugal para impor a sua lei estabelecido um sistema multipartidário e
só terminou em 1916-1918, quando a revolta abandonada a planificação centralizada da
do Báruè, na província central de Moçambique economia.
foi final e brutalmente suprimida pelo exército
português (Isaacman e Isaacman 1976: 156-
185). A campanha portuguesa no Báruè foi a
3 A palavra “Frelimo” – que já não é considerada uma
última de uma série de ditas “campanhas de abreviatura – tem origem no acrónimo FRELIMO
pacificação”, em finais de XIX, princípios de XX, (Frente de Libertação de Moçambique). Trata-se de
que finalmente impuseram o domínio colonial uma ampla frente constituída na Tanzânia em 1962,
com o objectivo de obter a Independência. A Frente
em todo o território.
manteve uma guerra de dez anos contra o poder
colonial, de 1964 a 1974, e a independência foi
Mas Moçambique não permaneceu “pacificado” finalmente alcançada em 1975. Em 1977, no seu
por muito tempo, mesmo contando as décadas Terceiro Congresso, o movimento passou a ser um
partido de vanguarda marxista-leninista, mas, mais
de opressão colonial como apenas uma paz
tarde, abandonou esta orientação ideológica sob
negativa: passados menos de cinquenta anos, pressão política e económica. O Partido Frelimo é
dominante em Moçambique e venceu todas as eleições
gerais multipartidárias desde 1994.

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Como podemos ver da descrição acima, os metrópole colonial. O sistema, envolvendo


períodos de paz foram raros numa perspectiva centenas de milhar de camponeses, expandiu-
histórica e longe de serem o estado normal das se durante o período do regime de Salazar, até
coisas em Moçambique. ao início dos anos 1960’.

Mesmo depois do fim da guerra em 1992, No entanto, no fim do período colonial, em


e já com o AGP em vigor, continuaram a ter meados do século vinte, o carácter da economia
lugar casos esporádicos de violência política interna da colónia transformou-se no sentido
(motins derivados do aumento dos preços dos da substituição de importações, à medida que
alimentos, assassinatos políticos). Apesar de o crescimento da população colona alimentava
tudo, durante cerca de vinte anos, o país parecia a procura de bens de consumo. Na altura da
ter alcançado uma forma viável, por mais que independência em 1975, essa economia ficou à
imperfeita, de resolução pacífica. Infelizmente, beira do colapso, dada a fuga generalizada dos
as condições materiais e políticas para novos colonos com competência técnica, juntamente
conflitos continuavam a existir – o partido da com actos de sabotagem cometidos pelos
oposição, a RENAMO, ainda controlava um colonos que partiam, e a já visível crise do
pequeno exército, uma quantidade inestimada capitalismo colonial. Nos primeiros nove anos
de armas e munições que nunca chegaram de independência, as políticas económicas
a ser entregues, a estrutura administrativa socialistas de Moçambique focaram-se no contar
continuava altamente centralizada num sistema com as próprias forças, na implementação
em que, na verdade, o vencedor arrecadava de programas que pudessem providenciar
tudo, e o aumento da exploração de recursos serviços de saúde, educação e alfabetização
minerais significativos criou, na elite, grandes de massas para a maioria da população, e
expectativas de acesso a rendas excepcionais. numa ampla recusa política em aceitar ajuda
externa, com a sua anexa perda de soberania e
probabilidade de aumento do endividamento.
Mudanças Económicas No entanto, a partida dos portugueses levou
ao desaparecimento da rede de cantinas4,
Desde finais do século dezanove que a essencial à comercialização agrícola nas zonas
economia se tinha caracterizado pelo aumento rurais, com efeitos desastrosos, e essa situação
da integração no sistema regional da África foi exacerbada a partir do final dos anos 1970
Austral, centrado na indústria mineira sul- pela guerra com a RENAMO, então guiada
africana, e pelo desenvolvimento dos portos e primariamente pelo regime de minoria branca
caminhos de ferro de Moçambique para servir da Rodésia, e, depois de 1980, pelo regime de
as necessidades dos territórios coloniais do apartheid sul-africano (Hanlon 1991). Após um
hinterland vizinho. A nível doméstico, o estado período inicial de crescimento económico lento,
colonial baseava-se no desenvolvimento das a guerra começou a ter um impacto directo – as
culturas agrícolas do algodão, açúcar, chá, caju, exportações caíram catastroficamente de 225
madeira e outras mercadorias, recorrendo a
4 As cantinas eram pequenas lojas de comércio geral,
métodos coercivos e opressivos de exploração normalmente propriedade de e operadas por colonos,
forçada da mão de obra – o trabalho forçado e espalhadas por todo o país, que cumpriam um
–, para obrigar os camponeses africanos a papel crucial na comercialização agrícola, fornecendo
produzirem culturas de exportação para a também sementes, tecidos, utensílios domésticos e
implementos agrícolas para as populações locais.

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milhões de dólares americanos, em 1980, para Adversários Políticos


menos de 19 milhões em 1984.
No entanto, apesar do estabelecimento, após
Nessa altura, Moçambique estava já a 1992, de uma democracia “multipartidária” no
caminho de se juntar ao Banco Mundial e âmbito de um sistema parlamentar funcional,
ao FMI, abandonando o projecto socialista os dois agrupamentos políticos continuaram
e liberalizando as suas políticas económicas, em grande medida presos aos seus passados.
com uma dependência cada vez maior O Partido Frelimo, que, enquanto movimento
da ajuda externa. As políticas adoptadas de libertação, conduziu uma luta armada
nessas condições eram dirigidas a agradar à contra o colonialismo português, insistiu, na
condicionalidade dos doadores, mais do que altura da independência, em ser reconhecido
aos eleitorados nacionais ou mesmo políticas como a única organização política legítima no
partidárias: como questionou Joe Hanlon, num país, e, pouco depois, em 1977, declarou-se
livro publicado na altura (1991), “Who calls um partido de vanguarda Marxista-Leninista.
the shots?” Mas a partir de finais dos anos Em 1991, no seu sexto Congresso, o partido
1990’, com o advento da paz e a descoberta abandonou o Marxismo, mas não conseguiu
de depósitos de recursos minerais de grandes sacudir o sentido de direito ao poder que adveio
dimensões, as circunstâncias mudaram: de ter derrotado o inimigo colonial que resultou
passou a ser possível atrair investimento para na independência. De modo semelhante, a
a exploração desses recursos. Estima-se agora RENAMO – cujo nome de Resistência Nacional
que Moçambique tenha reservas de carvão da Moçambicana parece constituir uma forma
ordem dos 23 biliões de toneladas (entre os de autodefinição apenas com relação ao seu
dez maiores a nível mundial) e reservas de gás arqui-inimigo – tem tido enorme dificuldade
natural da ordem dos 100 triliões de pés cúbicos em adquirir o jogo de ferramentas políticas
(entre os três maiores de África). Emergiu então necessárias a uma oposição parlamentar, e,
um novo padrão de crescimento capitalista em muitos casos, continuou a pensar e a
local, em que ocorreu um investimento maciço comportar-se como a força de guerrilha que
nalguns megaprojectos que vieram a revelar- começou por ser. Apesar disso, conceber a
se insustentáveis, com pouco impacto local a luta política posterior ao AGP como sendo
nível de infra-estruturas ou de emprego. Este meramente “um movimento socialista de
padrão, mantido ao longo do tempo, contém libertação contra uns rebeldes reaccionários
evidentemente as necessárias sementes sociais financiados por estrangeiros” é claramente
e culturais da “violência estrutural e indirecta” inadequado. Mesmo durante as negociações
que é um importante factor causal na actual de paz em Roma, no início dos anos noventa,
crise, e tem tido um papel criticamente ambos os lados se recusavam obstinadamente
importante na incapacidade de Moçambique em reconhecer a legitimidade do outro: a
em passar de uma paz meramente “negativa” Frelimo não conseguia aceitar que um grupo
a uma forma de paz positiva potencialmente de oposição pudesse existir por direito, ou se
próspera, no sentido que lhes deram Galtung e pudesse basear num apoio popular genuíno;
Jacobson (2000). pelo seu lado, a RENAMO não conseguia
chegar a reconhecer o Estado moçambicano
que tinha passado a ter existência jurídica
em 1975 (Della Rocca 2012). Embora ambas

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as partes se movessem relutantemente no menos algumas dessas províncias são também


sentido de uma aceitação mútua e tenham ricas em recursos, o que não será coincidência.
eventualmente acabado por assinar o AGP, Na altura em que este artigo foi escrito, este
a política pós-conflito continuou a basear-se “novo” conflito – a paz que falhou – pode ter
nestas desconfianças originais. ou não terminado permanentemente, com um
cessar fogo que começou por ser anunciado em
Subsequentemente, a liderança da RENAMO e Janeiro de 2017 e prorrogado indefinidamente
os seus apoiantes foram largamente excluídos do em Maio do mesmo ano.
acesso ao poder político, tanto a nível nacional
como local, bem como do acesso a renda.5 Em
Abril de 2013, portanto, na aproximação às O Acordo Geral de Paz
eleições presidenciais e legislativas de 2014, as
forças residuais da RENAMO, que nunca foram O processo que conduziu ao acordo de
totalmente desmobilizadas (sob o pretexto de paz moçambicano, em 1992, foi incomum
constituírem a guarda do seu líder), decidiram em vários aspectos. Primeiro, não foi um
“regressar à floresta” e começar uma extensa processo único, linear, mas consistiu na
campanha de ataques terroristas, no que foi, verdade em múltiplas iniciativas por parte de
na verdade, uma espécie de “propaganda vários potenciais intermediários, incluindo
armada”. Inicialmente, a RENAMO tinha actores estatais, religiosos e leigos, em que
duas exigências: a restruturação da Comissão um, a católica Comunidade de Sant Egidio,
Nacional de Eleições (CNE), o que acabou acabou por conseguir ganhar a confiança de
por ser concedido, e uma tardia renovação ambas as partes – o que, na altura era raro
do processo de integração dos soldados da – e intermediar um longo e pesado processo
RENAMO no exército nacional numa base de de negociação com muito drama entre os
igualdade, que não foi (Darch 2016). Os ataques participantes (Della Rocca 2012). Também em
continuaram mesmo depois das eleições, termos eleitorais formais, o AGP providenciou
que foram ganhas pela Frelimo, mas com a um enquadramento adequado: ao fim de uma
RENAMO a aumentar a sua percentagem de guerra de grande dimensão em 1992, seguiram-
votos. Subsequentemente, a RENAMO exigiu se cinco processos eleitorais multipartidários
a verificação de seis províncias do centro e do mais ou menos abertos, em 1994, 1999, 2004,
norte, onde reclamava ter recebido a maioria 2009 e 2014, todos ganhos por candidatos do
dos votos populares nas eleições nacionais.6 Pelo Partido Frelimo (admitidamente com resultados
rejeitados pela oposição), e com a RENAMO
5 O termo é usado no seu sentido técnico padrão para a ocupar todos ou quase todos os lugares da
denotar benefícios não-ganhos e excessivos, derivados oposição. Para além disso, durante grande
de actividades económicas não produtivas, incluindo
parte do período entre 1994 e 2013, foi
corrupção.
possível viajar livremente por todo o território
6 No sistema altamente centralizado em vigor em moçambicano, e houve um crescimento
Moçambique, os governadores provinciais são
económico impressionante, com o PIB a crescer
nomeados pelo Presidente da República. No entanto,
por um acordo alcançado em Fevereiro de 2018, de de cerca de 185USD para 405USD ao longo
futuro os governadores serão nomeados pelo partido do período de quinze anos. Embora uma
maioritário nas assembleias provinciais. Os presidentes parte desse crescimento possa ser atribuível a
de município, que antes eram eleitos directamente,
uma explosão de crescimento pós-conflito, a
serão agora escolhidos da mesma forma indirecta
(Hanlon 2018b). percepção de estabilidade política e uma gestão

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macroeconómica cuidadosa atraíram números – uma característica que poderá ter levado à
significativos de ajuda externa e investimento. saída de, por exemplo, Raul Domingos e Daviz
Resumindo, Moçambique era largamente tido, Simango da RENAMO.7 Este estilo de liderança
até há bem pouco tempo – pelo menos pelos não contribui muito para reforçar a capacidade
observadores internacionais – como um modelo de um partido parlamentar para desenvolver
de reconciliação e crescimento económico pós- políticas ou para responder com agilidade a
conflito. novas circunstâncias.

O AGP foi assim amplamente bem-sucedido no Ao fim de meses de confrontos, um acordo


pôr fim à guerra por um período prolongado. de “cessação de hostilidades” foi assinado
Mas o AGP não preparou uma base sólida em Setembro de 2014 para permitir que os
para processos que pudessem vir a constituir candidatos da RENAMO participassem na
uma paz positiva no seu sentido absoluto: não corrida às eleições de Outubro desse ano. As
apenas um fim ao conflito armado, mas uma tensões voltaram a crescer depois das eleições,
democratização do Estado, responsabilidade e com a RENAMO a acusar a Frelimo de fraude
transparência política, descentralização tanto e supressão violenta da oposição, e exigindo o
no sentido administrativo como político, e controle directo de seis províncias (inicialmente
uma vida melhor para a maioria dos cidadãos como “regiões autónomas”) onde teria,
moçambicanos. alegadamente, ganho uma pluralidade de
votos populares. Não se chegou a esclarecer
se essa exigência poderia ter sido satisfeita
Conflito Renovado no âmbito do quadro constitucional em
vigor, mas qualquer debate genuinamente
Em 2012, Afonso Dhlakama, aparentemente aberto que pudesse existir foi simplesmente
frustrado com o que então via como a congelado pelo assassinato, em Março de
intransigência do Presidente Armando 2015, do académico advogado constitucional
Guebuza, mudou o seu quartel general para Gilles Cistac, aparentemente por ter explorado
as montanhas da Gorongosa e permaneceu formas positivas para realizar a proposta (Darch
lá, pelo menos em parte por causa do que 2016). As questões da descentralização foram
parecem ter sido graves tentativas do exército consequentemente trazidas de volta à baila no
para o capturar ou matar. Dhlakama tinha sido período posterior às últimas eleições.
descrito pelo Presidente Joaquim Chissano,
numa entrevista de 2011, como alguém que
7 Uma figura de topo do Partido que teve um papel
“não conseguiu transformar a sua mentalidade chave nas negociações de paz que levaram ao AGP,
de líder de guerrilha para o Moçambique pós- Domingos foi o líder da bancada da RENAMO na
guerra. Ele nunca se reintegrou devidamente” Assembleia da República de 1994 a 1999, mas foi
(Vines 2013: 375) e o recente regresso à expulso em meados de 2000, formando depois o seu
próprio partido, que teve pouco sucesso. Simango,
floresta corrobora essa hipótese. Também se filho de um proeminente dissidente da FRELIMO,
diz que ele mantém o controle do seu partido foi eleito Presidente do Município da Beira em 2003
pessoalmente e ao pormenor. Durante as pela lista da RENAMO, mas, depois de ser removido,
sessões legislativas mantém-se em contacto com concorreu com sucesso para um segundo mandato
como independente. Em 2009, fundou o MDM
os deputados parlamentares por via telefónica (Movimento Democrático de Moçambique), que é
e não tolera iniciativas dos seus subordinados agora o terceiro maior partido.

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O dito “regresso à floresta” não foi originalmente A paz em Moçambique desde 1992, portanto,
determinado por cálculos eleitorais, embora numa análise mais atenta, não parece tanto ter
a percentagem de votos na RENAMO tenha falhado – no sentido dramático de um colapso
melhorado, após anos de declínio, mas esteve instantâneo e de um regresso imediato a um
provavelmente ligado à descoberta de recursos confronto generalizado, como aconteceu com
naturais, dado, principalmente, que estavam o MPLA e a UNITA após as eleições falhadas de
para ser assinados lucrativos contratos para 1992 em Angola. Parece antes ter-se tornado,
o gás natural. Parece também provável que a muito lentamente, insustentável no presente
resposta militar do governo ao novo conflito quadro do sistema administrativo politicamente
de baixa intensidade foi, pelo menos em parte, centralizado vigente, e em circunstâncias
facilitada pelo fortalecimento das “forças de económicas radicalmente diferentes. O resto
defesa e segurança” através dos notórios deste artigo explica esta assumpção em
empréstimos não declarados de cerca de termos históricos. Para entender os processos
dois biliões de dólares americanos que foram que levaram à presente situação é necessário
revelados ao público em Abril de 2016. examinar uma série de aspectos e momentos
determinantes na história de Moçambique pós-
É evidente que o conflito dos 16 anos que independência. São estes, primeiro, os efeitos
terminou em 1992, e o conflito que iniciou em a longo-prazo do “reenquadramento” coercivo
2013 (e que pode agora ter terminado, embora do discurso político que a Frelimo iniciou em
não tenha sido resolvido), são fundamentalmente 1975 e continuou pelos anos 1980’; segundo, a
diferentes, tanto nas suas origens como no seu natureza fluida e contestada dos dezasseis anos
carácter. As actuais circunstâncias requerem de conflito com a RENAMO e a sua importância
novas soluções, talvez de maior alcance que para entender o AGP; terceiro, o próprio AGP,
o AGP, que foi essencialmente um mecanismo visto não tanto como uma inovação mas como
de estabilização, apesar dos seus elementos uma tentativa de estabilizar relações de poder
radicais. O regresso da RENAMO à oposição e de propriedade existentes; quarto, o carácter
armada violenta antes das eleições de 2014, incompleto do desarmamento, desmobilização
teve lugar num novo contexto em que nenhum e integração militar após 1992-1994; quinto,
estado vizinho quis prestar apoio logístico. Até o carácter parcial da descentralização
que ponto terá o regresso a uma violência de administrativa; sexto, a expectativa da elite
baixa intensidade representado frustração pelos lucros da negociação dos recursos
para a RENAMO na sua própria capacidade de naturais e o seu impacto no processo político; e,
alcançar sucesso eleitoral, e, com esse sucesso, sétimo e último, a questão de se alguma forma
ter acesso a fontes de apadrinhamento? Até de “parlamentarização” é realizável, e, em caso
que ponto estaria Dhlakama a liderar o regresso afirmativo, se esta poderia providenciar uma
a uma propaganda armada, e, até que ponto solução para o que se poderia prever como
estava ele a responder a pressões internas (e, um cenário futuro, hipotético, de conflito
talvez, principalmente militares) do movimento? permanente.

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CARACTERÍSTICAS vizinhos – tinha como primeiro objectivo, não


ESTRUTURAIS DO CONFLITO E tanto a democracia, no sentido formal de
multiplicidade de partidos políticos disputando
DA PAZ EM MOÇAMBIQUE o poder em eleições regulares, mas antes a
pertença à comunidade de nações soberanas
“Reenquadramento” ideológico na em termos de total igualdade. Roger Southall
Transição para a Independência8 (2013) chamou a isto democracia para “povos”
como nações, em vez de para “povos” ou
Os movimentos de libertação nacional na África pessoas como indivíduos. O sucesso da Frelimo
Austral, incluindo a Frelimo, chegaram ao poder em conseguir vencer este tipo específico de
nos anos 1970’, 1980 e 1990, numa posição libertação garantiu inicialmente ao partido um
significativa de dominação política partidária, em alto nível de apoio popular, e a sua posição
ondas de apoio popular largamente derivado do como única organização política legítima
seu sucesso na expulsão do poder colonial e/ou significou que esse apoio não teve de ser
quebrando a supremacia dos colonos. Em 1974, testado eleitoralmente. Na verdade, a simples
a exigência central da Frelimo nas negociações ideia de que se pudessem realizar eleições
que conduziram aos Acordos de Lusaka – o competitivas foi descartada em absoluto.
acordo com os portugueses, garantindo uma No entanto, este domínio foi exercido numa
independência incondicional – foi bastante situação em que o partido no poder não tinha
explícita: reconhecimento como único estabelecido um controle total e efectivo sobre
representante legítimo do povo moçambicano, o aparelho do Estado – como claramente
e, assim, como a única organização política demonstra a posterior necessidade das várias
possível. A Frelimo conseguiu assim, de uma ofensivas ou campanhas. Estas campanhas,
posição hegemónica, ocupar todo o espaço no início dos anos 1980‘, centravam-se
político disponível, deslegitimar todas as outras em questões como legalidade, política e
posições políticas e formas de nacionalismo, e organização, e resultaram claramente da quase
exercer uma liberdade completa na composição visceral desconfiança da Frelimo em relação
do governo e a definição, não só da agenda ao aparelho da administração pública herdado
política, mas também daquilo que constituía dos portugueses. Moçambique também era
a moçambicanidade. A definição era muito ameaçado directa ou indirectamente por
simples e totalmente lógica: se se apoiava a interesses hostis ao seu projecto socialista e ao
Frelimo era-se moçambicano, se não, era-se seu apoio de princípio às lutas de libertação na
outra coisa qualquer. Rodésia e na África do Sul.

Olhando para trás, podemos ver que a luta de Tudo isto levou inexoravelmente a um aumento
libertação de Moçambique – como a dos países do controle central; a tomada das estruturas
administrativas do Estado pelo partido e a
8 O termo “reenquadramento” é aqui usado no
deslegitimação de formas alternativas de
sentido de um contexto de quadro retórico, em nacionalismo e oposição, cujos seguidores eram
que as assumpções básicas do discurso político são caracterizados, nem sempre injustamente,
coercivamente mudadas em direcção a conceitos da como infiltrados, o inimigo, xiconhocas (um
transformação socialista, não deixando “espaço”
para qualquer tipo de refutação sustentável (Darch e
personagem corrupto e oportunista de banda
Hedges 2013: 56-57). desenhada), e sabotadores. No entanto, mesmo

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

se concordarmos em que o objectivo primário durante a “Viagem Triunfal” – atravessando


da libertação não é, na maior parte dos casos, todas as províncias e apresentando os novos
uma democracia estruturada, é provável que o governadores provinciais da Frelimo (Darch e
momento real da libertação nacional contenha Hedges, no prelo) – são exemplos precoces,
em si o “momento democrático” tal como e, na verdade, há testemunhos de que os
definido pelo académico italiano Luciano discursos foram interpretados de formas
Canfora (2006; 2009), um momento em que diferentes por diferentes segmentos da
as relações sociais, políticas e de propriedade população. Os africanos parecem tê-los ouvido
existentes são ameaçadas pela vasta maioria como críticas impressionantemente francas ao
excluída (o “demos”), os que não têm discurso colonial, enquanto os portugueses os
propriedade nem poder. Era este provavelmente ouviram como ameaças e abertamente hostis
o caso em meados de 1975, quando a vasta (Rita-Ferreira 1988).
maioria dos pobres moçambicanos viu os
seus antigos senhores coloniais fugir, mas O processo de reenquadramento transcendeu
o momento passou. A Frelimo nunca viu a coerção retórica, podendo ser referido como
nenhuma razão para criar estruturas formais e uma encenação política. A Viagem Triunfal,
instituições que teriam constituído uma forma aparte as transmissões diárias dos discursos e
mais ampla e convencional de pluralismo. transcritas nos jornais, pode ser entendida como
uma espécie de inscrição espacial simbólica da
O processo a que chamei de reenquadramento moçambicanidade, com os novos governadores
noutro lugar (Darch e Hedges 2013) começou, apresentados como representantes de uma
com seriedade, pouco depois do golpe de nova fonte de poder. Outros eventos, como a
Abril de 1974 em Portugal, e mesmo antes da apresentação pública dos traidores no campo
independência formal, que teve lugar em 1975. da Frelimo em Nachingwea, no sul da Tanzania,
O propósito, explícita ou implicitamente, era criar em inícios de 1975, ou a identificação dos
uma nova forma de discurso e comportamento comprometidos, ou colaboradores do colonial-
político transformado. Na análise da retórica fascismo português, em Dezembro de 1978, e
política, reenquadrar descreve a tentativa de as subsequentes reuniões de Fevereiro e Maio
mudar pressupostos básicos sobre a sociedade de 1982, podem todos ser vistos como parte do
para um novo tipo de política – no caso de mesmo processo prolongado de definição do
Moçambique, a política de independência e que significava ser totalmente moçambicano,
transformação socialista. O discurso colonial nas novas circunstâncias da independência.
anteriormente dominante foi assim suplantado, A consequência inevitável deste processo
de tal forma que não houve nenhuma resposta coercivo de reenquadramento foi o crescimento
socialmente sustentável disponível para os que de um discurso em que qualquer oposição
discordavam de – ou se opunham a – políticas era representada em termos de sabotagem e
particulares. Este processo continuou pelos conspiração pelos inimigos do povo. Claro que
anos 80 adentro, e resultou na apropriação da não se pretende, com isto, dizer que o projecto
totalidade do espaço político disponível, como socialista moçambicano não estava realmente
antes referido. ameaçado por inimigos reais: é, antes, para
chamar a atenção para o impacto a longo-
Há muitos exemplos deste reenquadramento prazo de um discurso político quase totalmente
em funcionamento. A série de discursos feitos enquadrado nesse binário e mesmo em termos
por Samora Machel entre Maio e Junho de 1975, maniqueístas.

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Apesar da apresentação formal do pluralismo participação democrática – por outras palavras,


político e o fim da economia planificada a partir através do reconhecimento do status quo, por
de 1992, o discurso do movimento de libertação mais insatisfatório que pudesse ser. A resposta
vitorioso reenquadrado continua a informar da RENAMO, no “documento de 16 pontos”,
a política moçambicana contemporânea de afirmava a sua própria legitimidade política –
várias maneiras, até ao presente. Quando “A RENAMO é uma força política activa na
o antigo presidente Armando Guebuza arena política moçambicana” – e criticava os
testemunhou, em 28 de Novembro de 2016, “ataques verbais insultuosos” e a propaganda
perante a Comissão Parlamentar de Inquérito do governo como ilusões inúteis.
sobre as dívidas secretas, as suas observações
ilustraram implícita e exactamente este sentido Claramente, o conflito expôs as características
de direito imutável baseado nos sacrifícios feitos chave da guerra civil – foi disputado entre dois
no passado. Se tivéssemos de tomar a mesma grupos organizados, principalmente dentro do
decisão hoje, observou Guebuza, “faríamos território nacional de Moçambique, e, apesar
exactamente a mesma coisa hoje, em defesa da retórica do governo, foi realmente “uma luta
da pátria amada”, acrescentando que ele tinha entre dois partidos”. Historicamente, porém, é
tido um papel na luta de libertação e que tinha possível e desejável construir uma periodização
orgulho no seu patriotismo e nas suas realizações da guerra, mostrando como ela mudou ao longo
como presidente (Hanlon 2016: 3; Nhampossa do tempo de uma guerra movida primeiramente
2016: 2). O tom e as implicações são claros, os (mas não exclusivamente) pelos desígnios dos
sentimentos amplamente partilhados. governos minoritários da Rodésia e da África
do Sul para desestabilizar Moçambique, para
uma guerra em que a RENAMO desenvolveu
A Natureza do Conflito com a gradualmente a capacidade de tirar partido
RENAMO, 1976-1992 das políticas impopulares do Governo (e.g. o
programa das aldeias comunais) e manter uma
Presentemente, o termo “guerra civil” é acção militar mais ou menos por conta própria.
amplamente usado no discurso académico Uma percepção da natureza fluida e contestada
e popular para descrever o conflito armado do conflito como ele na realidade foi ao longo
dos dezasseis anos, entre o governo de do tempo, em agudo contraste com a rigidez
Moçambique e a RENAMO. Na altura, porém, analítica das posições e dos protagonistas, é
a caracterização do conflito foi uma questão essencial para entender a complexidade do(s)
controversa, quanto mais não fosse como processo(s) que acabaram por levar ao AGP.
resultado da recusa de ambos os lados em
conceder a mínima legitimidade ao oponente. Esta inflexibilidade da análise da Frelimo à
É significativo que, embora o chamado transformação da natureza do conflito com
“documento de 12 pontos” tenha circulado a RENAMO foi a consequência lógica do
informalmente pela Frelimo em Junho de 1989, processo de “reenquadramento” já descrito,
como gambito de abertura no processo de paz, que visou estabelecer a Frelimo como única
insistia em que o conflito era “uma operação de expressão legítima possível da aspiração
desestabilização que não devia ser confundida política nacional. A Frelimo foi logicamente
com uma guerra entre dois partidos”, continuava incapaz de reconhecer o movimento RENAMO
argumentando que a mudança constitucional sequer como movimento, menos ainda como
e legal só poderia acontecer através de uma articulando qualquer tipo de legitimidade

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de um sentimento político. O grupo foi O livro La cause des armes [A causa das armas],
consistente e invariavelmente referido como publicado em 1990 pelo antropólogo francês
apenas “bandidos armados”. Isto não era Christian Geffray, teve o efeito de iniciar um
uma posição totalmente irracional. A RENAMO acalorado debate académico sobre o carácter
tinha sido originalmente criada e apoiada pelos da guerra. Para resumir o seu argumento em
serviços secretos rodesianos como MNR ou termos extremamente esquemáticos, no que se
Mozambique National Resistance (mesmo o refere às origens da guerra, Geffray atribuiu um
nome, nessa fase, era em inglês). Tinha sido papel muito mais importante à insatisfação dos
constituído oportunisticamente a partir de vários camponeses com as políticas do governo e aos
dissidentes e outros que tinham razões para ataques aos sistemas de crenças locais. O papel
não gostarem do projecto socialista da Frelimo. da Rodésia e, depois, da África do Sul, recebeu
Depois da independência do Zimbabwe, o papel muito menos ênfase: o que era importante era
de apoio e direcção foi assumido pelo regime uma dinâmica interna e local.
de apartheid sul-africano, mas o carácter básico
da RENAMO continuou a ser o mesmo durante Tudo isto é, claro, uma história académica
muito tempo. antiga, mas é importante reconhecer que a
simples aceitação do termo “guerra civil” pode
A posição da Frelimo não mudou ao longo dos servir para obscurecer pontos significativos
anos 1980’. Em Março de 1982, o Presidente sobre o desenvolvimento do conflito ao longo
Machel, numa memorável frase de desdém, do tempo e sobre como este terminou. Estes
caracterizou a relação entre o regime sul-africano pontos têm implicações para a situação actual
e os seus agentes da RENAMO como sendo – primeiro, que múltiplos interesses regionais
análoga à existente entre o dono do realejo e internacionais estavam em jogo no contexto
e o seu macaco (National Forum Committee da finda Guerra Fria; e, segundo, que estes
1985: 47). Seguiu-se, portanto, como insistiu afectaram profundamente a forma como a
Sebastião Mabote9, num discurso de Agosto paz foi finalmente negociada. Regionalmente,
de 1985, que o conflito não podia ser descrito as partes interessadas incluíam não só a então
logicamente como uma “guerra civil” porque África do Sul do apartheid, mas também o
não tinha resultado de uma dinâmica interna Zimbabwe e a Tanzânia, aliados regionais de
moçambicana, tendo antes sido determinado Moçambique, e Estados conservadores como
pelos interesses dos proprietários que tinham o Kenya e o Malawi. Os grandes poderes – os
sido expropriados pelas nacionalizações de Estados Unidos e a União Soviética – viam a
finais dos anos 1970’ (FBIS 1985). Assim, o África Austral como um terreno em disputa.
conflito apenas poderia ser visto como uma Portugal também foi envolvido como antigo
agressão ou desestabilização – a posição poder colonial, com um interesse continuado
assumida em 1989 no documento de 12 em Cahora Bassa, e com o seu governo
pontos. O discurso político agora dominante, constantemente pressionado por grupos
a visão “reenquadrada” da essência do Estado organizados de ex-colonos (os “espoliados do
moçambicano independente, não deixava Ultramar”).
espaço retórico ou conceptual sequer para a
possibilidade de formas legítimas de oposição. A partir deste alargado contexto internacional
fluía não apenas um “processo de paz”, mas
9 Um antigo comandante da guerrilha que, na altura, uma matriz complexa e fluida de iniciativas de
era Chefe do Estado Maior do Exército moçambicano.

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paz, tendo começado já em 1984, com uma quando a RENAMO quis enfatizar a seriedade
gama de possíveis intermediários, de onde, no do conflito então ainda em curso, em Outubro
fim, emergiu uma única solução. O processo de 2013, a ameaça que foi feita foi a de pôr fim
de concordar em um intermediário em quem aos Acordos de Roma, o que era visto como a
ambos os lados confiassem foi longo. Em finais verdadeira referência.
de 1988, os sul-africanos sugeriram um papel
de mediação para os Estados Unidos, mas a O sistema político que emergiu após o AGP pode
ideia foi rejeitada pela RENAMO, e também talvez ser melhor entendido, não como uma
não foi apoiada pelo Governo. (FBIS 1989). Os democratização radical e abandono do quadro
contactos iniciais com a RENAMO, levados a do discurso político dominante da Frelimo, mas
cabo por líderes religiosos com o apoio discreto uma reconfiguração que abriu espaço para
do Presidente Joaquim Chissano, tiveram lugar compromissos institucionais como eleições livres
no Kenya, em meados de 1989. No entanto, o e uma multiplicidade de partidos políticos, mas
Governo da Frelimo não confiava no presidente que não mudou fundamentalmente o mapa
do Kenya, Daniel Arap Moi, que, de qualquer vigente do poder. A nova legislação eleitoral,
forma, não conseguiu persuadir nenhuma das por exemplo, impôs exigências estritas para o
partes a falarem entre si. Outras tentativas de registo de partidos e um patamar mínimo para
mediação, envolvendo o homem de negócios a representação na Assembleia (Parlamento),
Tiny Rowland e os malawianos, falharam por de forma a dificultar que os pequenos partidos
razões semelhantes (Vines 1998). Já, por seu pudessem fazer mais do que participar nas
lado, o Zimbabwe e o seu Presidente Robert corridas eleitorais. Isso resultou, na prática,
Mugabe eram vistos pela RENAMO como num sistema binário em vez de multipartidário,
firmes aliados da Frelimo e, assim, incapazes com o acesso à participação política excluído
de agir como intermediários honestos. Mas o para todos menos os dois partidos (armados).
verdadeiro ponto delicado era a velha recusa Para além disso, enquanto os deputados eleitos
do Governo em negociar directamente com a estavam ligados a regiões geográficas (as listas
RENAMO. provinciais dos partidos), não havia nenhum
mecanismo que obrigasse a prestar contas a
comunidades ou a bases eleitorais específicas.
O AGP como Tentativa de Esta disposição tem a vantagem – de um ponto
Estabilização e Reconciliação de vista partidário – de limitar a possibilidade
de figuras políticas constituírem bases locais de
No fim, o AGP foi produzido em Roma, entre poder, o que acabou por acontecer em anos
os representantes do Governo e da RENAMO, recentes, com a eleição directa dos presidentes
com a mediação da Comunidade Católica de dos municípios. O exemplo mais notável foi
Sant’Egídio. O texto em si consistiu em sete o sucesso da candidatura de Daviz Simango
protocolos e quatro anexos, cobrindo inter alia como presidente independente do município da
o reconhecimento dos partidos políticos, a lei Beira, em 2008. A notícia em Janeiro de 2018
eleitoral, a integração dos militares e o cessar- de que o Governo e a RENAMO acordaram na
fogo. O AGP foi, talvez mais que as revisões nomeação dos governadores provinciais pela
da Constituição de 1990 e 2004, uma pedra liderança dos partidos, em vez do voto popular,
de toque da política moçambicana em mais tende a suportar a visão de que ambos os
de vinte anos. É revelador o facto de que, partidos se opõem àquilo que pode representar

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uma perda significativa para o seu próprio pela lei da maioria do que por uma democracia
controle central (Hanlon 2018: 1-2). política” (2013: 69). O projecto revolucionário
da Frelimo foi sempre um projecto em que a
Desta forma, a sequência de cinco eleições desconfiança em relação ao carácter do Estado
nacionais – todas vencidas pela Frelimo – colonial (herdado) se combinou com a teoria
funcionaram basicamente para fazer com que marxista, apoiando a ideia da supremacia do
os já poderosos reforçassem a sua detenção do partido. Numa situação em que manter ou
poder. Como esperado, a frustração e a desilusão ganhar o poder é visto como algo a alcançar
públicas com a capacidade do processo eleitoral a qualquer custo, existe pouca tolerância para
para promover mudança ou mesmo bem-estar a oposição e poucas oportunidades para a
têm-se manifestado esporadicamente sob a reconciliação – incluindo a mútua aceitação dos
forma de revoltas e protestos populares contra resultados eleitorais.
as subidas de preços e de abstencionismo às
eleições, para não falar da adopção de uma Moçambique ainda não conseguiu operar a
forma degradada de revolta armada por parte mudança para um sistema em que os adversários
da RENAMO. políticos são vistos como coparticipantes no
âmbito de um sistema estável e flexível em
Neste sentido, embora o AGP tenha sido um que as diferenças sejam debatidas e resolvidas
sucesso, em 1992, no pôr fim à guerra e ao – por outras palavras, para uma aceitação de
criar um novo quadro jurídico no âmbito uma ideia nova e amplamente democrática de
do qual as duas principais forças políticas unidade nacional. Uma declaração recente de
pudessem funcionar, teve muito menos sucesso Afonso Dhlakama numa entrevista, é, a este
em alcançar uma reconciliação em sentido mais respeito, pouco encorajadora, pela sua total
lato. Isto não pretende dizer que não tenham recusa de abandonar os ressentimentos do
sido criados e implementados programas sérios passado:
e inovadores – por exemplo, para a reintegração
social das crianças instrumentalizadas nas suas 1. Lembre-se que eu nunca perdi as
comunidades de origem (ver, e.g., Honwana eleições. Sempre fui roubado e a
2002). No entanto, uma reconciliação mais RENAMO sabe disso. Considero-me
alargada no sentido social e quase teológico Presidente da República desde 1994.
de deixar os ressentimentos do passado num O que já fiz por este país e pelo
espírito de perdão recíproco, revelou-se muito meu partido, sem querer vangloriar-
mais difícil de alcançar. Isto deve-se, talvez, me, sinto que estou acima de um
à percepção popular de um pacto com o Presidente da República (Dhlakama
Diabo em que o igualitarismo do período 2018).
revolucionário que se seguiu à Independência,
com a sua concomitante limitação da
liberdade individual, foi substituído por formas Desarmamento Incompleto e
hipotéticas de liberdade política acompanhadas Integração dos Militares
de um aumento agudo da desigualdade
social e económica. Tal como anteriormente O regresso à luta armada em 2013 foi
mencionado, Southall argumentou que, na possibilitado pela anterior e continuada
África Austral, “a luta pela libertação era mais incapacidade de desarmar completamente a

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RENAMO em 1992-1994 e de implementar A relativa serenidade da ONUMOZ – e,


na totalidade a componente militar do AGP. na verdade, da própria Frelimo – sobre o
Em parte, isto pode ser atribuído a atitudes da carácter incompleto do desarmamento, como
ONUMOZ, a missão de paz das Nações Unidas parte do processo de DDR (desarmamento,
que funcionou desde 1993 até ao fim de 1994. desmobilização e reintegração) revelou-
A missão foi, de um modo geral, considerada se deslocada. Os esconderijos revelaram-se
um sucesso, “apesar de certas deficiências maiores do que as estimativas iniciais, em
(a incapacidade de desminar, um processo circunstâncias em que a confiança entre as
de desarmamento inadequado, uma gestão partes e entre a população e o governo se
atabalhoada da desmobilização)”, numa talvez tinha erodido (Littlejohn 2015). A recolha das
irónica avaliação do Foreign Office britânico armas pode não ter sido, de um ponto de vista
(FCO 1999: 4). militar da RENAMO, uma estratégia irracional,
porém, dada a imediata rejeição do Governo
Só a 26 de Outubro, um dia antes do início (talvez seguindo o exemplo de Angola) da
da votação em 1994, é que Aldo Ajello – que ideia de partilha do poder por um governo
aparentemente nunca realmente acreditou de unidade nacional, apesar de alguma
que o desarmamento fosse uma prioridade pressão internacional (Africa Confidential
para a ONUMOZ – avisou que ainda havia 1994). Tentativas subsequentes e muito mais
grandes quantidades de armas e munições recentes de desarmamento foram bastante
escondidas em várias partes do país e recusou- mais problemáticas: por exemplo, a RENAMO
se a responder quando lhe perguntaram se ele, recusou considerar a desmobilização durante
pessoalmente, confiava em que essas armas as conversações da primeira metade de 2014,
não viriam a ser usadas outra vez (Savana e ainda tinha um pequeno exército após as
1994). Ajello, o antigo Presidente Joaquim eleições de Outubro desse ano.
Chissano e Teodato Hunguana, quadro superior
da Frelimo, todos disseram publicamente Nos anos que se seguiram, tiveram lugar vários
acreditar (retrospectivamente) que se tratou esforços para o desarmamento, incluindo mais
de uma oportunidade perdida, e pesquisa de 20 missões colectivamente conhecidas como
subsequente revelou que o erro de avaliação Operação Rachel, realizada em cooperação
foi ainda mais grave do que se pensou na com uma unidade especializada da polícia sul-
altura, principalmente porque as quantidades africana, que recolheu mais de 50 mil armas,
envolvidas eram muito maiores do que as entre 1995 e 2008. Outras campanhas incluíram
estimativas anteriores (Vines 2013: 200, 381; a TAE (Transformação de Armas em Enxadas),
Littlejohn 2015: 23). No entanto, parece ter organizada pelo Conselho Cristão, que
sido acordado entre a ONUMOZ e o Governo, recolheu cerca de 8000 armas, e a FOMICRES
com o exemplo ainda recente do colapso do (Força Moçambicana para a Investigação de
processo de paz angolano, após as eleições Crimes e Reinserção Social) que surgiu de uma
não supervisionadas de 1992, que insistir em reorganização da TAE em 2006 e recolheu uma
que a RENAMO se submetesse a um processo quantidade muito menor de armas. Apesar dos
rigoroso e cabal de desarmamento corria o esforços destas várias missões e campanhas,
risco de ser uma pressão demasiado forte. cedo ficou claro que a maior parte das armas e
munições em esconderijos ainda não tinha sido
recuperada (Littlejohn 2015).

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Estreitamente relacionado com o fracasso do factores juntos – a disponibilidade de armas


desarmamento, esteve o fracasso também e a insatisfação de uma ou outra natureza
da integração completa dos dois exércitos em relação às forças armadas – constituíram
de acordo com o previsto no AGP. Tinha a maior parte dos meios e pelo menos parte
sido acordada a criação de um exército com do motivo para o relançamento da violência
35,000 soldados vindos do lado do Governo política.
e 15,000 do lado da RENAMO – na altura, o Numa entrevista em finais de 2017, Dhlakama
peso numérico das duas forças juntas era de adiantou uma justificação de segurança
cerca de 110,000. No entanto, o processo foi para exigir paridade nas forças armadas. Ele
dificultado pela baixa moral e falta de disciplina, argumentou que os ataques de Setembro
com motins intermitentes de ambos os lados. de 2015 a um cortejo em que ele viajava, e
O novo exército acabou por conseguir recrutar a uma das suas residências no mês seguinte,
um efectivo de pouco mais de 12,000 soldados, mostravam que o Presidente Nyusi não
dos quais 8,600 eram do Governo e 3,600 da controlava completamente o exército e as
RENAMO. A integração foi dificultada porque forças de segurança e que havia militares que
muitos dos soldados da RENAMO não tinham seguiam uma agenda secreta. A integração
qualificações básicas. Os oficiais de nível médio total dos militares da RENAMO numa base
eram em maior número do que o indicado, e o de paridade seria, assim, uma necessidade
efectivo acabou por cair para 11,500 no total. (Dhlakama 2018).
Nos anos que se seguiram, apesar da nomeação
de Mateus Ngonhamo, da RENAMO, como
Vice-Chefe do Estado Maior, alegou-se que o A Descentralização do Poder
Governo estava preocupado com a lealdade Político e da Administração
futura de um exército constituído por um
número significativo de rebeldes, e os antigos A Constituição promulgada em 1975 descreve
quadros da RENAMO foram deliberadamente explicitamente a nova república como sendo
marginalizados. Claro que a RENAMO se o fruto da luta guiada pela Frelimo (Artigo 1).
queixou daquilo a que chamou de reformas Os artigos 2 e 3 continuam no mesmo tom,
compulsivas e de uma falta generalizada de enfatizando a supremacia do movimento de
acesso a posições de topo. Em 2013, o antigo libertação: o poder pertencia ao povo unido
comandante da RENAMO de mais alta patente e dirigido pela Frelimo, que era descrita como
no exército era um Major-General. a força dirigente do estado e da sociedade.
Todos os verdadeiros patriotas deviam apoiar
A questão da implementação incompleta do o partido. Estas formulações eram corolários
acordo militar do AGP veio ao de cima em 2013, lógicos do processo de “reenquadramento”
como uma das duas principais exigências da acima descrito, e um reconhecimento implícito
RENAMO, juntamente com uma reorganização do fraco controle da Frelimo sobre o aparelho
da comissão de eleições – muito possivelmente de estado herdado, contra o que o movimento
porque as altas patentes militares eram vistas apenas podia justapor a sua limitada
como uma possibilidade de abrir caminho experiência de administração nas antigas zonas
para aceder a benefícios dos recursos, mais do libertadas. Tanto a Constituição como a nova
que qualquer vontade prática de reconfigurar Lei da Nacionalidade foram aparentemente
as forças armadas. Apesar disso, estes dois aprovadas mesmo antes da independência, na

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7ª Reunião do Comité Central na praia do Tofo, da posição revolucionária na “luta entre duas
em Inhambane, em Junho de 1975, mas pouco linhas”, em 1968-1970. O receio que a Frelimo
se sabe sobre esta reunião ou os processos que tinha de uma fragmentação étnica, regional ou
produziram estes dois instrumentos judiciais: ideológica e a necessidade de a evitar, foi uma
parece, certamente, não ter havido debate constante política, reflectida, por exemplo, em
público. áreas específicas com a da política da língua.
É fácil de ver que o tema da unidade nacional
O quadro constitucional assim estabelecido é uma corrente inquebrável que atravessa o
resultou naturalmente num alto grau de controle discurso da Frelimo em geral e, especialmente,
centralizado da administração nas províncias, de Samora Machel, desde os anos sessenta.
distritos e localidades. Os funcionários locais do
estado (que acumulavam o papel de secretários Já antes da conclusão do AGP, em 1994,
locais do partido) eram nomeados pelo – e houve uma tentativa de legislar alguma forma
prestavam contas ao – governo central, num de devolução de poder e controle de recursos
sistema que não lhes exigia a prestação de para o nível local (Lei 3/94). O AGP não tratou
contas às comunidades que governavam. Por explicitamente, nem adequadamente, a
exemplo, ao abrigo do Decreto Presidencial questão do sistema centralizado de governo e
nº 1/81 de Fevereiro de 1981, o governo administração, nem as desigualdades regionais
nomeou directamente 99 administradores e provinciais no acesso aos recursos e de
distritais e, num segundo decreto, estabeleceu controle de políticas. O sucesso da RENAMO
os poderes específicos e as responsabilidades nas eleições de 1994, quando obteve 38%
dos governadores provinciais. Uns meses antes, do voto popular e 112 dos 250 assentos da
em Outubro de 1980, o Presidente Machel assembleia legislativa, alarmou a Frelimo e fez
tinha convocado uma primeira reunião de com que o partido se tornasse mais cuidadoso,
administradores distritais de todo o país, e, reduzindo ainda mais o ritmo da mudança.
num longo discurso, sublinhou que a primeira Em meados dos anos noventa, foi aprovada
responsabilidade de cada um deles era o partido legislação que possibilitava uma devolução
e o estado, por outras palavras, da periferia selectiva de poderes específicos a autoridades
para o centro. locais eleitas: houve alguma resistência com
fundamentos constitucionais. Ficou claro que
As práticas altamente centralizadas da Frelimo elementos conservadores da Frelimo estavam
em finais dos anos 1970’ e durante os anos preocupados com aquilo a que chamaram de
1980’ não eram apenas consequência de “federalização pela porta de trás” e perda de
considerações práticas de um controle apertado. controle, muitas vezes acomodada no discurso
A descentralização parece atingir o coração da familiar da “unidade nacional”. Em 1997,
concepção ideológica que a Frelimo tem de foram criados alguns Conselhos Municipais,
Moçambique como um Estado unitário, em si alguns mais acrescentados em 2007 e
uma ideia cujas origens se podem encontrar já novamente em 2013. Na segunda iteração das
nos anos da luta armada (Darch 2016: 320-321). eleições locais, em 2003, a RENAMO conseguiu
Os componentes chave da grande narrativa ganhar o controle de cinco municipalidades.
dessa luta são que a Frelimo foi criada a partir Deve igualmente reconhecer-se que a relativa
da unificação de movimentos nacionalistas autonomia alcançada beneficiou a Frelimo a
rivais, e forjada num grupo coeso pela vitória nível local, libertando os lobistas do poder local

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

do controle central que antes se justificava em pesadas e (possivelmente) petróleo. Tem corrido
nome da unidade nacional. Em 2003, alguns muita tinta em debates em torno da ideia de
poderes mais específicos foram devolvidos ao que existe uma relação inversa entre a riqueza
governo local. em recursos naturais e um desenvolvimento
socioeconómico amplo nos países pobres, um
A descentralização de funções administrativas conceito conhecido como a “maldição dos
ao nível local, juntamente com a recursos”. Os grandes indicadores estatísticos
responsabilidade pela prestação de serviços apontam por vezes um crescimento substancial
não foi, inicialmente, acompanhada de uma em termos macroeconómicos; mas isso não
suficiente descentralização das finanças, quer revela necessariamente se, de um modo
em forma de subsídio directo do centro, quer geral, houve uma redução da pobreza ou
permitindo a aplicação e cobrança de impostos se a desigualdade económica entre classes
locais. No entanto, isto já começou a funcionar, sociais, ou entre regiões geográficas, diminuiu.
com a aprovação de legislação sobre finanças Na verdade, pode ver-se o resultado oposto,
municipais em 1997, reformada em 2008, causado pelo influxo de investimento directo
principalmente na forma de transferência de estrangeiro, aumentando os preços internos,
fundos das províncias para os distritos, mas não a a criação de uma escassez de capital e mão
partir do centro (Weimer e Carrilho 2017: 75-76). de obra, à medida que os novos sectores de
recursos absorvem tudo o que está disponível,
A contestação política em torno da e a ausência de benefícios de maior impacto na
descentralização continua. O modelo em vigor economia como um todo.
é ineficiente e faz efectivamente discriminação
entre municípios, onde os cidadãos são Os investimentos de grande-escala na
eleitores, e os distritos, onde os cidadãos são exploração de recursos minerais teve início dos
súbditos da administração e, quase certamente, anos 1990’, durante os mandatos do Presidente
como consequência, numa posição mais fraca Joaquim Chissano, que era visto como
na concorrência por recursos financeiros e tecnocrata na sua orientação política, com
humanos, investimento, infra-estruturas, etc. poderes significativos de tomada de decisão
A descentralização continua a ser um conceito a passarem para estruturas burocráticas, em
altamente problemático e contestado, a abordar vez de funcionários do partido em si. Alguns
com cuidado. Embora a democracia local seja dos projectos importantes foram a MOZAL
claramente honesta, existe o perigo real de (um projecto de fundição de alumínio em
fragmentação, como o indicam as repetidas Moçambique, da australiana BHP Billiton) e os
exigências de divisão e autonomização de projectos do gás natural de Temane e Pande
regiões por parte da RENAMO. (incluindo o gasoduto Temane-Secunda) a
cargo da SASOL. A exploração dos depósitos
de carvão de Moatize também foi renovada,
A “Maldição dos Recursos” e a inicialmente pela mineira brasileira Vale e, mais
Expectativa de Lucros Fabulosos recentemente, pela japonesa Mitsui. Estes
“megaprojectos” foram alvo de críticas ao
Os recursos naturais de existência reconhecida longo dos anos, por não terem gerado receitas
actualmente em Moçambique, consistem em fiscais, novas infra-estruturas, oportunidades
gás natural, carvão, energia hidroeléctrica, areias de emprego ou qualquer tipo de benefícios

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

marginais, sequer para as comunidades à renda, é pouco provável que a situação se


vizinhas. altere.

Sob a direcção do Presidente Armando O apelo à unidade também foi mobilizado na


Guebuza, porém, as expectativas de um boom “legalização” das dívidas secretas (elas próprias
económico iminente derivado do gás e do uma consequência das expectativas levantadas
carvão subiram rapidamente, quanto mais não pelos recursos). Tal como Macuane, Buur e
fosse como consequência da retórica optimista Monjane afirmaram persuasivamente,
do presidente e do governo sobre a redução
da pobreza, criação de emprego e medidas de 2. A garantia do Estado... é mais do
segurança social, levando à possibilidade de que apenas uma garantia da dívida,
Moçambique subir a escada do desenvolvimento é também o que permitiu que a
para uma posição de rendimento médio. guerra civil acabasse, enquanto
Aparentemente, a Frelimo não tinha aprendido os belicistas da elite da Frelimo
a lição, depois da “década da vitória sobre o no poder eram protegidos das
subdesenvolvimento”, sobre os riscos de se obrigações financeiras. A iniciativa
estar a emitir cheques de cobrança difícil. também permitiu a continuidade da
Para todos os efeitos, como Macuane, Buur e tendência para manter a “unidade
Monjane sustentam (2017), a agora enraizada nacional” organizada em torno da
expectativa de uma prosperidade futura continuada dominação do Partido
baseada nos recursos, com grandes retornos Frelimo, não apenas como único
financeiros, tem tido um impacto significativo governo legítimo do país, mas
não tanto na terminologia ideológica real do também como garante continuado
partido no poder, como no seu significado e da paz... (2017: 23).
conteúdo. O enfoque na unidade nacional,
com as suas raízes nos perigos do sectarismo Podemos assim começar a ver que a questão
durante a luta contra os portugueses, reforçado da paz não pode ser considerada isoladamente
até certo ponto pelos termos do AGP e a política das características político-económicas
dos vinte anos que passaram, vem agora ajudar actuais (e históricas) da estrutura do Estado
à construção de redes de “apadrinhamento e moçambicano.
clientelismo” que excluem conscientemente a
oposição enfraquecida e que são concebidas
para a enfraquecer ainda mais. A “Parlamentarização” é Desejável
ou Possível?
A “Frelimo” pode agora ser vista como
funcionando, até certo ponto, como uma Uma Constituição é considerada – pelo menos
coligação ou rede horizontal, ao mesmo tempo pelos legalistas que vêem a lei como um
que os partidos excluídos não conseguem fenómeno social e não apenas como um sistema
exercer nenhuma força no quadro das de pensamento fechado e autorreferenciado
instituições políticas existentes a nível nacional, – como um mapa do poder. Quais são
como o Parlamento. Na ausência de uma as perspectivas para uma reconfiguração
descentralização significativa, também não têm institucional que possa restaurar a confiança
oportunidades a nível local. Enquanto as redes popular no processo político?
da Frelimo continuarem a controlar o acesso

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

O termo “parlamentarização”, no sentido A falta de confiança não se centra só na


que lhe deu Charles Tilly (1997), descreve um Frelimo. A RENAMO tem um record de má
processo político talvez idealizado, em que gestão do partido, e, quando no poder a nível
a legislatura assume um papel cada vez mais local, não conseguiu fazer uma prestação de
importante para influenciar e funcionar como serviços adequada. Afonso Dhlakama, passadas
um controle sobre a tomada de decisão do décadas como líder, mostrou que ele próprio
executivo, ao exercer um “controle significativo não estava à altura da tarefa de transformar a
sobre ... as decisões do governo”. Importante, RENAMO num partido político moderno, e é
a legislatura também começa a constituir um generalizadamente visto como continuando a
mecanismo de “protecção dos cidadãos contra ver a política como uma forma de combate e o
actos arbitrários do Estado”. À medida que o partido como uma espécie de milícia. A oposição
processo avança, a confiança popular na eficácia foi notavelmente ineficaz como oposição
da legislatura (e, por extensão, no Estado) parlamentar, e nunca chegou realmente a
aumenta e é menos provável que os cidadãos ameaçar a posição hegemónica da Frelimo. Esta
descontentes recorram a meios violentos para fraqueza teve o efeito de criar a oportunidade
afirmar os seus direitos. A prática da política para o surgimento do MDM, um terceiro partido,
popular muda, assim como o exercício de uma mas, mais importante, bloqueou – e é provável
cidadania ampla e em base de igualdade. que continue a bloquear – a emergência de
uma “parlamentarização” efectiva, em que
Neste sentido, a parlamentarização ainda não se os cidadãos vejam a oposição como um meio
enraizou em Moçambique, como demonstrado eficaz para canalizar a discordância, limitar
por vários indicadores. Quando o sentimento a corrupção, influenciar políticas e bloquear
popular sobre algum aspecto da vida de todos acções arbitrárias do Estado.
os dias atinge uma certa temperatura, o efeito
não são manifestações populares ou a pressão
parlamentar, recorrendo-se antes a protestos
violentos – e.g. as revoltas sobre o preço
dos alimentos no período de 2008 a 2014
(Brito e outros 2015; Brito 2017). O recurso
da RENAMO à propaganda armada é em si
um forte indicador. Se se medir a afluência
às urnas, também parece que os cidadãos
moçambicanos não acreditam que as eleições
“multi”-partidárias venham a fazer grande
diferença nas suas vidas. A afluência às urnas
caiu firmemente ao longo das três primeiras
eleições gerais, de um máximo de 88 por cento,
em 1994, para 68 por cento em 1999, e 34 por
cento em 2004. As duas últimas eleições foram
marcadas por uma ligeira subida, para 44 por
cento em 2009 e 48 por cento em 2014.

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

CONCLUSÃO: O REGRESSO AO vida, os assassinatos de figuras políticas, como


CONFLITO E AS SUAS LIÇÕES Gilles Cistac, em Março de 2015, Mahamudo
Amurane, do MDM, em Outubro de 2017,
Era propósito deste artigo examinar algumas dois funcionários do Partido Frelimo no Dondo,
características estruturais sociais, políticas e no mesmo mês, José Naitele da RENAMO,
económicas do estado moçambicano desde a em Dezembro de 2017 – entre outros casos
independência, e também as escolhas chave – são manifestações desta desconfiança num
feitas ao longo do tempo por actores chave ambiente de intimidação e suspeita.
dessa estrutura. O enfoque incidiu sobre
as formas como os objectivos e a ideologia Terceiro, discussões legalistas mas não triviais
do movimento de libertação estavam mal sobre a implementação das disposições do AGP
equipados para lidar com a mudança das funcionaram como causa e como consequência
pressões políticas, sociais e económicas nas da falta de confiança e da intolerância.
arenas interna, regional e internacional, e, O propósito do AGP – pôr fim à guerra e
em grande medida, predispuseram os actores providenciar um quadro político amplamente
políticos moçambicanos para recorrerem ao estável – significou que, realisticamente,
conflito como forma de encontrarem uma as suas disposições não podiam servir de
solução (imposta). marcos de viragem para o desenvolvimento
de comportamentos e práticas democráticos,
Os pontos chave da análise das duas décadas parlamentarização, ou “justiça e reconciliação”.
de sucesso de Moçambique na manutenção Estes objectivos, essenciais para uma paz
de uma paz negativa, lado a lado com a positiva, exigiam mais confiança, altruísmo e
incapacidade mais lata de desenvolver os ambição do que o geralmente disponível no
elementos necessários de uma paz positiva sistema na altura. Na verdade, essencialmente, o
e igualitária, em que não existam formas AGP trancou um sistema bipartidário em vez de
estruturais de violência, podem ser resumidos um sistema multipartidário, uma situação que
da seguinte forma. Primeiro, a ausência precisa claramente de mudar. Para além disso (e
generalizada de tolerância política, mesmo quarto), a disponibilidade continuada de armas
após o fim da guerra: os membros de e munições para a RENAMO, juntamente com
“outros” agrupamentos políticos em sistemas uma incapacidade generalizada de completar o
democráticos funcionais são geralmente processo de “Desarmamento, Desmobilização
considerados opositores, mais que inimigos, por e Reintegração” (DDR), significou que as
terem os mesmos fins em vista – prosperidade, condições objectivas para um retorno à guerra
pleno emprego, desenvolvimento social e tinham estado presentes desde sempre,
económico, etc. – mesmo que seja provável apesar das tentativas de negociar uma solução
que haja discordância quanto aos meios para mediada.
os atingir. Segundo, estreitamente relacionado
com a ausência de tolerância, é o elevado nível Quinto, apesar do sucesso da organização de
de falta de confiança e, consequentemente, uma série de eleições presidenciais, legislativas
violência – que não melhorou com as políticas e municipais em condições difíceis, o processo
das duas administrações de Guebuza – de descentralização avançou a passo de
entre os actores políticos, tanto indivíduos caracol. O sistema de listas partidárias usado
como partidos. A fuga de Dhlakama para nas eleições significa que as figuras políticas
a Gorongosa, em 2013, receando pela sua não podem construir bases locais de apoio,

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

e, inversamente, os eleitorados locais – por 2. Repensar as bases e as regras do jogo


ausência de qualquer tipo de eleitorados do sistema político-administrativo,
geograficamente definidos – não têm ligação os serviços públicos, o sistema de
orgânica aos seus supostos representantes. impostos, a economia, o sector da
Uma governação responsável passa a ser uma justiça, o sistema eleitoral, etc., e as
quimera. Na verdade, do recente acordo sobre a inter-relações entre eles;
nomeação dos governadores provinciais, ficou 3. Fazer adendas à Constituição de
claro que ambos os principais partidos querem 2004, reflectindo os resultados dos
evitar o desenvolvimento de dinâmicas políticas processos 1. e 2.;
locais genuínas e reter o controle central sobre 4. Investir numa cultura de cidadania
os seus próprios quadros. baseada nos direitos humanos
universais de tolerância, respeito
Sexto, mas de forma alguma menos pelo próximo e reconhecimento de
importante, é o impacto e a contestação da que o egoísmo individual e colectivo
“caça à renda” protagonizada por grupos e a exclusão ou marginalização
restritos das elites políticas. Enquanto continuar política são importantes causas de
a competição pelo acesso a benefícios dos conflito e guerra (IESE et al 2016).
megaprojectos com pouco impacto sobre as
infra-estruturas ou o emprego, permanece Sem entrar numa discussão detalhada destas
altamente improvável que as razões básicas quatro condições, que são simultaneamente
do descontentamento popular sejam tratadas. razoáveis e apelativas, parece-me que estas – e
Finalmente, e estreitamente relacionado com outras propostas semelhantes para a mudança
os comportamentos da elite, vem o facto de – dependem fortemente da ideia ainda por
o crescimento económico, embora sustentado provar de que a actual crise é intolerável para
a níveis elevados por longos períodos após o a elite política. Elas provocam uma questão
AGP, não ter conseguido produzir benefícios chave que deveria ser considerada à luz de
concrectos (uma paz próspera e positiva) ao um entendimento histórico das raízes do
grosso da população, principalmente nas zonas actual discurso político, ideologia e prática
rurais do norte (onde os fundamentalistas moçambicanos, nomeadamente: porque
islâmicos começaram a lançar ataques em fins haveria a elite política de concordar com essas
de 2017). mudanças? De que forma seria mais vantajoso
aceitá-las do que recusá-las – por outras
Num artigo publicado conjuntamente pelo palavras, como haveria o custo político de
IESE, o CIP, a Fundação MASC e o OMR, em manter o status quo ser pior do que os riscos
Outubro de 2016, os autores identificaram de adoptar um novo e imprevisível sistema
várias condições chave para uma hipotética constitucional?
assembleia constituinte, para criar condições
para uma paz sustentável em Moçambique. Uma resposta hipotética, dada a intransigência
Foram elas: do Presidente Nyusi e da Frelimo relativamente
ao confronto com o FMI e a comunidade
1. Negociação do cessar-fogo e doadora sobre a suspensão da ajuda por causa
reestruturação das forças de da “dívida secreta” (Nyusi 2017), é que alguma
defesa e segurança, em condições combinação de um grande choque eleitoral
apartidárias; em 2019, a perda de controle de estruturas

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

provinciais e talvez mesmo uma quási-secessão,


e expressões populares de descontentamento
podem mudar as contas inesperada e
irrevogavelmente. A queda de Robert Mugabe
no Zimbabwe e a renúncia prematura de Jacob
Zuma na África do Sul, ambas demonstraram
que os velhos sistemas podem realmente ser
abanados de formas impensadas e imprevistas.
Fica por se saber se esse processo poderia ser
tão limpo e democrático como as propostas do
IESE-CIP-MASC-OMR parecem sugerir.

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Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica

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challenges. Maputo: IESE.
economy of Mozambique twenty years

28
Série da FES “Paz e segurança “ No. 30

Sobre a Série “África Paz e Segurança” da FES Como fundação política comprometida com os
A falta de segurança é um impedimento importante valores da democracia social, a Friedrich-Ebert-
ao desenvolvimento e a democracia em África. A Stiftung (FES) tem como objectivo fortalecer as
existência dos conflitos violentos e prolongados interacções entre a democracia e a política de
bem como a falta de responsabilização pública do segurança. Neste contexto a FES organiza diálogos
sector de segurança, em muitos países, apresentam políticos sobre desafios de segurança e respostas
desafios para a cooperação na área de política de adequadas ao nível nacional, regional e continental.
segurança. A emergente Arquitetura Africana de A publicação FES da Serie “África, Paz e Segurança”
Paz e Segurança oferece o quadro institucional para tem como objectivo contribuir para este diálogo,
promover a paz e a segurança no continente. garantindo o acesso alargado à análises relevantes.
A Serie está sendo publicada pela Rede de Política
de Segurança da FES em África.
Sobre este estudo
A opinião sobre os dezasseis anos devastadores O artigo de Colin Darch na Série Paz e Segurança
de conflito armado em Moçambique e o quarto trata as raízes estruturais da actual situação e
de século de paz que se lhe seguiu, tem mudado identifica factores chave da história de Moçambique
substancialmente ao longo do tempo. A guerra entre pós-independência que contribuíram para a actual
o Governo da Frelimo e o grupo rebelde RENAMO crise política e económica. O autor afirma que a paz
começou em 1976, pouco depois da independência, em Moçambique, mais do que falhar no sentido
e terminou em 1992, com a assinatura do Acordo dramático de um colapso súbito desde a assinatura
Geral de Paz (AGP). Em meados dos anos 90, do AGP, parece antes ter-se tornado insustentável
Moçambique era generalizadamente visto como um no quadro do sistema político administrativo
exemplo bem-sucedido de estabilização económica centralizado vigente e em circunstâncias económicas
e social numa sociedade pós-conflito. Mas na radicalmente diferentes. Revisitando as características
segunda década do século vinte e um, a história de estruturais do conflito – como o reenquadramento
sucesso de Moçambique começou a esboroar-se, ideológico e os pontos brancos do Acordo de Paz que
quando um conflito armado de baixa intensidade prestavam mais atenção à estabilidade instantânea e
entre seguidores do principal partido de oposição, menos à reconciliação e democratização do estado –
a RENAMO, e as forças do governo se reacendeu Darch demonstra que as condições necessárias para
em 2013, e a revelação das chamadas “dívidas uma possível parlamentarização do conflito são,
secretas”, afectaram as relações com a comunidade ainda agora, difíceis de alcançar. Mas o aumento das
doadora internacional, resultando num grave golpe pressões internas, tal como as recentes mudanças na
para a economia do país. região da África Austral, poderá alterar a economia
política da razão e abrir janelas para uma ulterior
consolidação da paz no país.

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