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FES
Colin Darch
Uma História de Sucesso que Correu Mal?
O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz
numa Perspectiva Histórica
SOBRE O AUTOR
O Dr. Colin Darch já se reformou, mas mantém posições honorárias de pesquisa no Human Sciences
Research Council, Cape Town, na Democratic Governance and Rights Unit, da Universidade de
Cape Town, e no Centre for African Studies, também na Universidade de Cape Town. Ao longo de
uma carreira de quarenta anos, trabalhou em universidades e centros de investigação na Etiópia,
Tanzânia, Moçambique, Zimbabwe e Brasil. Entre 1979 e 1987, trabalhou no Centro de Estudos
Africanos, Universidade Eduardo Mondlane. Depois de se reformar, em 2016, foi Professor Visitante
na Universidade Federal de Pernambuco, no Brasil, e, em 2017, ensinou na Universidade Pedagógica
em Lhanguene, Maputo. É autor de vários trabalhos sobre História de África e de Moçambique,
incluindo, mais recentemente, O Continente demasiado grande: reflexões sobre temáticas africanas
contemporâneas (Recife: UFPE, 2016), o Historical Dictionary of Mozambique (Scarecrow Press, a
publicar em breve), e, com David Hedges, Samora Machel: retórica política e independência em
Moçambique (Salvador: EDUFBA. No prelo).
Arte da Capa
Um comício da RENAMO no norte de Moçambique, 1994, Foto de Michel Cahen
Tradução:
António Roxo Leão
Aviso legal
©Friedrich-Ebert-Stiftung 2018
ISBN 978-989-20-8380-3
“O uso comercial de todos os meios de comunicação social publicadas pela Friedrich Ebert Stiftung
(FES) não é permitido sem o consentimento por escrito da FES. As opiniões expressas nesta publicação
não são necessariamente os da Friedrich Ebert Stiftung. ”
Colin Darch
Uma História de Sucesso que Correu Mal?
O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz
numa Perspectiva Histórica
CONTENTS
INTRODUÇÃO 5
O CONTEXTO HISTÓRICO 6
Mudanças Económicas 7
Adversários Políticos 8
Conflito Renovado 10
REFERÊNCIAS 27
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macroeconómica cuidadosa atraíram números – uma característica que poderá ter levado à
significativos de ajuda externa e investimento. saída de, por exemplo, Raul Domingos e Daviz
Resumindo, Moçambique era largamente tido, Simango da RENAMO.7 Este estilo de liderança
até há bem pouco tempo – pelo menos pelos não contribui muito para reforçar a capacidade
observadores internacionais – como um modelo de um partido parlamentar para desenvolver
de reconciliação e crescimento económico pós- políticas ou para responder com agilidade a
conflito. novas circunstâncias.
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O dito “regresso à floresta” não foi originalmente A paz em Moçambique desde 1992, portanto,
determinado por cálculos eleitorais, embora numa análise mais atenta, não parece tanto ter
a percentagem de votos na RENAMO tenha falhado – no sentido dramático de um colapso
melhorado, após anos de declínio, mas esteve instantâneo e de um regresso imediato a um
provavelmente ligado à descoberta de recursos confronto generalizado, como aconteceu com
naturais, dado, principalmente, que estavam o MPLA e a UNITA após as eleições falhadas de
para ser assinados lucrativos contratos para 1992 em Angola. Parece antes ter-se tornado,
o gás natural. Parece também provável que a muito lentamente, insustentável no presente
resposta militar do governo ao novo conflito quadro do sistema administrativo politicamente
de baixa intensidade foi, pelo menos em parte, centralizado vigente, e em circunstâncias
facilitada pelo fortalecimento das “forças de económicas radicalmente diferentes. O resto
defesa e segurança” através dos notórios deste artigo explica esta assumpção em
empréstimos não declarados de cerca de termos históricos. Para entender os processos
dois biliões de dólares americanos que foram que levaram à presente situação é necessário
revelados ao público em Abril de 2016. examinar uma série de aspectos e momentos
determinantes na história de Moçambique pós-
É evidente que o conflito dos 16 anos que independência. São estes, primeiro, os efeitos
terminou em 1992, e o conflito que iniciou em a longo-prazo do “reenquadramento” coercivo
2013 (e que pode agora ter terminado, embora do discurso político que a Frelimo iniciou em
não tenha sido resolvido), são fundamentalmente 1975 e continuou pelos anos 1980’; segundo, a
diferentes, tanto nas suas origens como no seu natureza fluida e contestada dos dezasseis anos
carácter. As actuais circunstâncias requerem de conflito com a RENAMO e a sua importância
novas soluções, talvez de maior alcance que para entender o AGP; terceiro, o próprio AGP,
o AGP, que foi essencialmente um mecanismo visto não tanto como uma inovação mas como
de estabilização, apesar dos seus elementos uma tentativa de estabilizar relações de poder
radicais. O regresso da RENAMO à oposição e de propriedade existentes; quarto, o carácter
armada violenta antes das eleições de 2014, incompleto do desarmamento, desmobilização
teve lugar num novo contexto em que nenhum e integração militar após 1992-1994; quinto,
estado vizinho quis prestar apoio logístico. Até o carácter parcial da descentralização
que ponto terá o regresso a uma violência de administrativa; sexto, a expectativa da elite
baixa intensidade representado frustração pelos lucros da negociação dos recursos
para a RENAMO na sua própria capacidade de naturais e o seu impacto no processo político; e,
alcançar sucesso eleitoral, e, com esse sucesso, sétimo e último, a questão de se alguma forma
ter acesso a fontes de apadrinhamento? Até de “parlamentarização” é realizável, e, em caso
que ponto estaria Dhlakama a liderar o regresso afirmativo, se esta poderia providenciar uma
a uma propaganda armada, e, até que ponto solução para o que se poderia prever como
estava ele a responder a pressões internas (e, um cenário futuro, hipotético, de conflito
talvez, principalmente militares) do movimento? permanente.
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Olhando para trás, podemos ver que a luta de Tudo isto levou inexoravelmente a um aumento
libertação de Moçambique – como a dos países do controle central; a tomada das estruturas
administrativas do Estado pelo partido e a
8 O termo “reenquadramento” é aqui usado no
deslegitimação de formas alternativas de
sentido de um contexto de quadro retórico, em nacionalismo e oposição, cujos seguidores eram
que as assumpções básicas do discurso político são caracterizados, nem sempre injustamente,
coercivamente mudadas em direcção a conceitos da como infiltrados, o inimigo, xiconhocas (um
transformação socialista, não deixando “espaço”
para qualquer tipo de refutação sustentável (Darch e
personagem corrupto e oportunista de banda
Hedges 2013: 56-57). desenhada), e sabotadores. No entanto, mesmo
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de um sentimento político. O grupo foi O livro La cause des armes [A causa das armas],
consistente e invariavelmente referido como publicado em 1990 pelo antropólogo francês
apenas “bandidos armados”. Isto não era Christian Geffray, teve o efeito de iniciar um
uma posição totalmente irracional. A RENAMO acalorado debate académico sobre o carácter
tinha sido originalmente criada e apoiada pelos da guerra. Para resumir o seu argumento em
serviços secretos rodesianos como MNR ou termos extremamente esquemáticos, no que se
Mozambique National Resistance (mesmo o refere às origens da guerra, Geffray atribuiu um
nome, nessa fase, era em inglês). Tinha sido papel muito mais importante à insatisfação dos
constituído oportunisticamente a partir de vários camponeses com as políticas do governo e aos
dissidentes e outros que tinham razões para ataques aos sistemas de crenças locais. O papel
não gostarem do projecto socialista da Frelimo. da Rodésia e, depois, da África do Sul, recebeu
Depois da independência do Zimbabwe, o papel muito menos ênfase: o que era importante era
de apoio e direcção foi assumido pelo regime uma dinâmica interna e local.
de apartheid sul-africano, mas o carácter básico
da RENAMO continuou a ser o mesmo durante Tudo isto é, claro, uma história académica
muito tempo. antiga, mas é importante reconhecer que a
simples aceitação do termo “guerra civil” pode
A posição da Frelimo não mudou ao longo dos servir para obscurecer pontos significativos
anos 1980’. Em Março de 1982, o Presidente sobre o desenvolvimento do conflito ao longo
Machel, numa memorável frase de desdém, do tempo e sobre como este terminou. Estes
caracterizou a relação entre o regime sul-africano pontos têm implicações para a situação actual
e os seus agentes da RENAMO como sendo – primeiro, que múltiplos interesses regionais
análoga à existente entre o dono do realejo e internacionais estavam em jogo no contexto
e o seu macaco (National Forum Committee da finda Guerra Fria; e, segundo, que estes
1985: 47). Seguiu-se, portanto, como insistiu afectaram profundamente a forma como a
Sebastião Mabote9, num discurso de Agosto paz foi finalmente negociada. Regionalmente,
de 1985, que o conflito não podia ser descrito as partes interessadas incluíam não só a então
logicamente como uma “guerra civil” porque África do Sul do apartheid, mas também o
não tinha resultado de uma dinâmica interna Zimbabwe e a Tanzânia, aliados regionais de
moçambicana, tendo antes sido determinado Moçambique, e Estados conservadores como
pelos interesses dos proprietários que tinham o Kenya e o Malawi. Os grandes poderes – os
sido expropriados pelas nacionalizações de Estados Unidos e a União Soviética – viam a
finais dos anos 1970’ (FBIS 1985). Assim, o África Austral como um terreno em disputa.
conflito apenas poderia ser visto como uma Portugal também foi envolvido como antigo
agressão ou desestabilização – a posição poder colonial, com um interesse continuado
assumida em 1989 no documento de 12 em Cahora Bassa, e com o seu governo
pontos. O discurso político agora dominante, constantemente pressionado por grupos
a visão “reenquadrada” da essência do Estado organizados de ex-colonos (os “espoliados do
moçambicano independente, não deixava Ultramar”).
espaço retórico ou conceptual sequer para a
possibilidade de formas legítimas de oposição. A partir deste alargado contexto internacional
fluía não apenas um “processo de paz”, mas
9 Um antigo comandante da guerrilha que, na altura, uma matriz complexa e fluida de iniciativas de
era Chefe do Estado Maior do Exército moçambicano.
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paz, tendo começado já em 1984, com uma quando a RENAMO quis enfatizar a seriedade
gama de possíveis intermediários, de onde, no do conflito então ainda em curso, em Outubro
fim, emergiu uma única solução. O processo de 2013, a ameaça que foi feita foi a de pôr fim
de concordar em um intermediário em quem aos Acordos de Roma, o que era visto como a
ambos os lados confiassem foi longo. Em finais verdadeira referência.
de 1988, os sul-africanos sugeriram um papel
de mediação para os Estados Unidos, mas a O sistema político que emergiu após o AGP pode
ideia foi rejeitada pela RENAMO, e também talvez ser melhor entendido, não como uma
não foi apoiada pelo Governo. (FBIS 1989). Os democratização radical e abandono do quadro
contactos iniciais com a RENAMO, levados a do discurso político dominante da Frelimo, mas
cabo por líderes religiosos com o apoio discreto uma reconfiguração que abriu espaço para
do Presidente Joaquim Chissano, tiveram lugar compromissos institucionais como eleições livres
no Kenya, em meados de 1989. No entanto, o e uma multiplicidade de partidos políticos, mas
Governo da Frelimo não confiava no presidente que não mudou fundamentalmente o mapa
do Kenya, Daniel Arap Moi, que, de qualquer vigente do poder. A nova legislação eleitoral,
forma, não conseguiu persuadir nenhuma das por exemplo, impôs exigências estritas para o
partes a falarem entre si. Outras tentativas de registo de partidos e um patamar mínimo para
mediação, envolvendo o homem de negócios a representação na Assembleia (Parlamento),
Tiny Rowland e os malawianos, falharam por de forma a dificultar que os pequenos partidos
razões semelhantes (Vines 1998). Já, por seu pudessem fazer mais do que participar nas
lado, o Zimbabwe e o seu Presidente Robert corridas eleitorais. Isso resultou, na prática,
Mugabe eram vistos pela RENAMO como num sistema binário em vez de multipartidário,
firmes aliados da Frelimo e, assim, incapazes com o acesso à participação política excluído
de agir como intermediários honestos. Mas o para todos menos os dois partidos (armados).
verdadeiro ponto delicado era a velha recusa Para além disso, enquanto os deputados eleitos
do Governo em negociar directamente com a estavam ligados a regiões geográficas (as listas
RENAMO. provinciais dos partidos), não havia nenhum
mecanismo que obrigasse a prestar contas a
comunidades ou a bases eleitorais específicas.
O AGP como Tentativa de Esta disposição tem a vantagem – de um ponto
Estabilização e Reconciliação de vista partidário – de limitar a possibilidade
de figuras políticas constituírem bases locais de
No fim, o AGP foi produzido em Roma, entre poder, o que acabou por acontecer em anos
os representantes do Governo e da RENAMO, recentes, com a eleição directa dos presidentes
com a mediação da Comunidade Católica de dos municípios. O exemplo mais notável foi
Sant’Egídio. O texto em si consistiu em sete o sucesso da candidatura de Daviz Simango
protocolos e quatro anexos, cobrindo inter alia como presidente independente do município da
o reconhecimento dos partidos políticos, a lei Beira, em 2008. A notícia em Janeiro de 2018
eleitoral, a integração dos militares e o cessar- de que o Governo e a RENAMO acordaram na
fogo. O AGP foi, talvez mais que as revisões nomeação dos governadores provinciais pela
da Constituição de 1990 e 2004, uma pedra liderança dos partidos, em vez do voto popular,
de toque da política moçambicana em mais tende a suportar a visão de que ambos os
de vinte anos. É revelador o facto de que, partidos se opõem àquilo que pode representar
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uma perda significativa para o seu próprio pela lei da maioria do que por uma democracia
controle central (Hanlon 2018: 1-2). política” (2013: 69). O projecto revolucionário
da Frelimo foi sempre um projecto em que a
Desta forma, a sequência de cinco eleições desconfiança em relação ao carácter do Estado
nacionais – todas vencidas pela Frelimo – colonial (herdado) se combinou com a teoria
funcionaram basicamente para fazer com que marxista, apoiando a ideia da supremacia do
os já poderosos reforçassem a sua detenção do partido. Numa situação em que manter ou
poder. Como esperado, a frustração e a desilusão ganhar o poder é visto como algo a alcançar
públicas com a capacidade do processo eleitoral a qualquer custo, existe pouca tolerância para
para promover mudança ou mesmo bem-estar a oposição e poucas oportunidades para a
têm-se manifestado esporadicamente sob a reconciliação – incluindo a mútua aceitação dos
forma de revoltas e protestos populares contra resultados eleitorais.
as subidas de preços e de abstencionismo às
eleições, para não falar da adopção de uma Moçambique ainda não conseguiu operar a
forma degradada de revolta armada por parte mudança para um sistema em que os adversários
da RENAMO. políticos são vistos como coparticipantes no
âmbito de um sistema estável e flexível em
Neste sentido, embora o AGP tenha sido um que as diferenças sejam debatidas e resolvidas
sucesso, em 1992, no pôr fim à guerra e ao – por outras palavras, para uma aceitação de
criar um novo quadro jurídico no âmbito uma ideia nova e amplamente democrática de
do qual as duas principais forças políticas unidade nacional. Uma declaração recente de
pudessem funcionar, teve muito menos sucesso Afonso Dhlakama numa entrevista, é, a este
em alcançar uma reconciliação em sentido mais respeito, pouco encorajadora, pela sua total
lato. Isto não pretende dizer que não tenham recusa de abandonar os ressentimentos do
sido criados e implementados programas sérios passado:
e inovadores – por exemplo, para a reintegração
social das crianças instrumentalizadas nas suas 1. Lembre-se que eu nunca perdi as
comunidades de origem (ver, e.g., Honwana eleições. Sempre fui roubado e a
2002). No entanto, uma reconciliação mais RENAMO sabe disso. Considero-me
alargada no sentido social e quase teológico Presidente da República desde 1994.
de deixar os ressentimentos do passado num O que já fiz por este país e pelo
espírito de perdão recíproco, revelou-se muito meu partido, sem querer vangloriar-
mais difícil de alcançar. Isto deve-se, talvez, me, sinto que estou acima de um
à percepção popular de um pacto com o Presidente da República (Dhlakama
Diabo em que o igualitarismo do período 2018).
revolucionário que se seguiu à Independência,
com a sua concomitante limitação da
liberdade individual, foi substituído por formas Desarmamento Incompleto e
hipotéticas de liberdade política acompanhadas Integração dos Militares
de um aumento agudo da desigualdade
social e económica. Tal como anteriormente O regresso à luta armada em 2013 foi
mencionado, Southall argumentou que, na possibilitado pela anterior e continuada
África Austral, “a luta pela libertação era mais incapacidade de desarmar completamente a
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7ª Reunião do Comité Central na praia do Tofo, da posição revolucionária na “luta entre duas
em Inhambane, em Junho de 1975, mas pouco linhas”, em 1968-1970. O receio que a Frelimo
se sabe sobre esta reunião ou os processos que tinha de uma fragmentação étnica, regional ou
produziram estes dois instrumentos judiciais: ideológica e a necessidade de a evitar, foi uma
parece, certamente, não ter havido debate constante política, reflectida, por exemplo, em
público. áreas específicas com a da política da língua.
É fácil de ver que o tema da unidade nacional
O quadro constitucional assim estabelecido é uma corrente inquebrável que atravessa o
resultou naturalmente num alto grau de controle discurso da Frelimo em geral e, especialmente,
centralizado da administração nas províncias, de Samora Machel, desde os anos sessenta.
distritos e localidades. Os funcionários locais do
estado (que acumulavam o papel de secretários Já antes da conclusão do AGP, em 1994,
locais do partido) eram nomeados pelo – e houve uma tentativa de legislar alguma forma
prestavam contas ao – governo central, num de devolução de poder e controle de recursos
sistema que não lhes exigia a prestação de para o nível local (Lei 3/94). O AGP não tratou
contas às comunidades que governavam. Por explicitamente, nem adequadamente, a
exemplo, ao abrigo do Decreto Presidencial questão do sistema centralizado de governo e
nº 1/81 de Fevereiro de 1981, o governo administração, nem as desigualdades regionais
nomeou directamente 99 administradores e provinciais no acesso aos recursos e de
distritais e, num segundo decreto, estabeleceu controle de políticas. O sucesso da RENAMO
os poderes específicos e as responsabilidades nas eleições de 1994, quando obteve 38%
dos governadores provinciais. Uns meses antes, do voto popular e 112 dos 250 assentos da
em Outubro de 1980, o Presidente Machel assembleia legislativa, alarmou a Frelimo e fez
tinha convocado uma primeira reunião de com que o partido se tornasse mais cuidadoso,
administradores distritais de todo o país, e, reduzindo ainda mais o ritmo da mudança.
num longo discurso, sublinhou que a primeira Em meados dos anos noventa, foi aprovada
responsabilidade de cada um deles era o partido legislação que possibilitava uma devolução
e o estado, por outras palavras, da periferia selectiva de poderes específicos a autoridades
para o centro. locais eleitas: houve alguma resistência com
fundamentos constitucionais. Ficou claro que
As práticas altamente centralizadas da Frelimo elementos conservadores da Frelimo estavam
em finais dos anos 1970’ e durante os anos preocupados com aquilo a que chamaram de
1980’ não eram apenas consequência de “federalização pela porta de trás” e perda de
considerações práticas de um controle apertado. controle, muitas vezes acomodada no discurso
A descentralização parece atingir o coração da familiar da “unidade nacional”. Em 1997,
concepção ideológica que a Frelimo tem de foram criados alguns Conselhos Municipais,
Moçambique como um Estado unitário, em si alguns mais acrescentados em 2007 e
uma ideia cujas origens se podem encontrar já novamente em 2013. Na segunda iteração das
nos anos da luta armada (Darch 2016: 320-321). eleições locais, em 2003, a RENAMO conseguiu
Os componentes chave da grande narrativa ganhar o controle de cinco municipalidades.
dessa luta são que a Frelimo foi criada a partir Deve igualmente reconhecer-se que a relativa
da unificação de movimentos nacionalistas autonomia alcançada beneficiou a Frelimo a
rivais, e forjada num grupo coeso pela vitória nível local, libertando os lobistas do poder local
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do controle central que antes se justificava em pesadas e (possivelmente) petróleo. Tem corrido
nome da unidade nacional. Em 2003, alguns muita tinta em debates em torno da ideia de
poderes mais específicos foram devolvidos ao que existe uma relação inversa entre a riqueza
governo local. em recursos naturais e um desenvolvimento
socioeconómico amplo nos países pobres, um
A descentralização de funções administrativas conceito conhecido como a “maldição dos
ao nível local, juntamente com a recursos”. Os grandes indicadores estatísticos
responsabilidade pela prestação de serviços apontam por vezes um crescimento substancial
não foi, inicialmente, acompanhada de uma em termos macroeconómicos; mas isso não
suficiente descentralização das finanças, quer revela necessariamente se, de um modo
em forma de subsídio directo do centro, quer geral, houve uma redução da pobreza ou
permitindo a aplicação e cobrança de impostos se a desigualdade económica entre classes
locais. No entanto, isto já começou a funcionar, sociais, ou entre regiões geográficas, diminuiu.
com a aprovação de legislação sobre finanças Na verdade, pode ver-se o resultado oposto,
municipais em 1997, reformada em 2008, causado pelo influxo de investimento directo
principalmente na forma de transferência de estrangeiro, aumentando os preços internos,
fundos das províncias para os distritos, mas não a a criação de uma escassez de capital e mão
partir do centro (Weimer e Carrilho 2017: 75-76). de obra, à medida que os novos sectores de
recursos absorvem tudo o que está disponível,
A contestação política em torno da e a ausência de benefícios de maior impacto na
descentralização continua. O modelo em vigor economia como um todo.
é ineficiente e faz efectivamente discriminação
entre municípios, onde os cidadãos são Os investimentos de grande-escala na
eleitores, e os distritos, onde os cidadãos são exploração de recursos minerais teve início dos
súbditos da administração e, quase certamente, anos 1990’, durante os mandatos do Presidente
como consequência, numa posição mais fraca Joaquim Chissano, que era visto como
na concorrência por recursos financeiros e tecnocrata na sua orientação política, com
humanos, investimento, infra-estruturas, etc. poderes significativos de tomada de decisão
A descentralização continua a ser um conceito a passarem para estruturas burocráticas, em
altamente problemático e contestado, a abordar vez de funcionários do partido em si. Alguns
com cuidado. Embora a democracia local seja dos projectos importantes foram a MOZAL
claramente honesta, existe o perigo real de (um projecto de fundição de alumínio em
fragmentação, como o indicam as repetidas Moçambique, da australiana BHP Billiton) e os
exigências de divisão e autonomização de projectos do gás natural de Temane e Pande
regiões por parte da RENAMO. (incluindo o gasoduto Temane-Secunda) a
cargo da SASOL. A exploração dos depósitos
de carvão de Moatize também foi renovada,
A “Maldição dos Recursos” e a inicialmente pela mineira brasileira Vale e, mais
Expectativa de Lucros Fabulosos recentemente, pela japonesa Mitsui. Estes
“megaprojectos” foram alvo de críticas ao
Os recursos naturais de existência reconhecida longo dos anos, por não terem gerado receitas
actualmente em Moçambique, consistem em fiscais, novas infra-estruturas, oportunidades
gás natural, carvão, energia hidroeléctrica, areias de emprego ou qualquer tipo de benefícios
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Série da FES “Paz e segurança “ No. 30
Sobre a Série “África Paz e Segurança” da FES Como fundação política comprometida com os
A falta de segurança é um impedimento importante valores da democracia social, a Friedrich-Ebert-
ao desenvolvimento e a democracia em África. A Stiftung (FES) tem como objectivo fortalecer as
existência dos conflitos violentos e prolongados interacções entre a democracia e a política de
bem como a falta de responsabilização pública do segurança. Neste contexto a FES organiza diálogos
sector de segurança, em muitos países, apresentam políticos sobre desafios de segurança e respostas
desafios para a cooperação na área de política de adequadas ao nível nacional, regional e continental.
segurança. A emergente Arquitetura Africana de A publicação FES da Serie “África, Paz e Segurança”
Paz e Segurança oferece o quadro institucional para tem como objectivo contribuir para este diálogo,
promover a paz e a segurança no continente. garantindo o acesso alargado à análises relevantes.
A Serie está sendo publicada pela Rede de Política
de Segurança da FES em África.
Sobre este estudo
A opinião sobre os dezasseis anos devastadores O artigo de Colin Darch na Série Paz e Segurança
de conflito armado em Moçambique e o quarto trata as raízes estruturais da actual situação e
de século de paz que se lhe seguiu, tem mudado identifica factores chave da história de Moçambique
substancialmente ao longo do tempo. A guerra entre pós-independência que contribuíram para a actual
o Governo da Frelimo e o grupo rebelde RENAMO crise política e económica. O autor afirma que a paz
começou em 1976, pouco depois da independência, em Moçambique, mais do que falhar no sentido
e terminou em 1992, com a assinatura do Acordo dramático de um colapso súbito desde a assinatura
Geral de Paz (AGP). Em meados dos anos 90, do AGP, parece antes ter-se tornado insustentável
Moçambique era generalizadamente visto como um no quadro do sistema político administrativo
exemplo bem-sucedido de estabilização económica centralizado vigente e em circunstâncias económicas
e social numa sociedade pós-conflito. Mas na radicalmente diferentes. Revisitando as características
segunda década do século vinte e um, a história de estruturais do conflito – como o reenquadramento
sucesso de Moçambique começou a esboroar-se, ideológico e os pontos brancos do Acordo de Paz que
quando um conflito armado de baixa intensidade prestavam mais atenção à estabilidade instantânea e
entre seguidores do principal partido de oposição, menos à reconciliação e democratização do estado –
a RENAMO, e as forças do governo se reacendeu Darch demonstra que as condições necessárias para
em 2013, e a revelação das chamadas “dívidas uma possível parlamentarização do conflito são,
secretas”, afectaram as relações com a comunidade ainda agora, difíceis de alcançar. Mas o aumento das
doadora internacional, resultando num grave golpe pressões internas, tal como as recentes mudanças na
para a economia do país. região da África Austral, poderá alterar a economia
política da razão e abrir janelas para uma ulterior
consolidação da paz no país.