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Dramaturgias do desamparo: vivências do urbano no cinema da América Latina

Luiz Todeschini - UNILA / UFF 1

Resumo:
A partir do mapeamento crítico da filmografia urbana latino-americana contemporânea, busquei
identificar a presença de uma ‘dramaturgia do desamparo’ nos filmes Rodrigo D. No Futuro
(1990) e Pizza, Birra, Faso (1998). Em que medida o desamparo cria certa dinâmica de
esquecimento e vulnerabilidade social? Quais os sentidos políticos das encenações nas cidades
latino-americanas? Quais as imagens do desamparo nas narrativas?

Abstract:
From the critical mapping of contemporary Latin American urban filmmaking, I sought to
identify the presence of a 'dramaturgy of helplessness' in the films Rodrigo D. No Futuro (1990)
and Pizza, Birra, Faso (1998). To what extent does helplessness create certain dynamics of
forgetfulness and social vulnerability? What are the political meanings of scenarios in Latin
American cities? What are the images of helplessness in the narratives?

Cinemas e cidades na América Latina


A catástrofe da humanidade “desejável”, resíduo do mercado diante da intensa e
violenta lógica do capital […] entre os discursos cotidianos sobre a marginalidade
urbana surgiu com força renovada uma imagem: a da cidade como um lugar
contaminado não pelo ruídos e pela poluição industrial da modernização
periférica, mas por uma poluição humana. […] A cidadania é uma condição
política definida pela subtração, pela marca, separação e disposição da
marginalidade social como resíduo humano.2

As ruas de uma cidade Latino-americana. Podem ser de Bogotá, Medellín ou Cali, Buenos
Aires ou La Paz, Cidade do México, São Paulo, Santiago, Montevideo, Rio de Janeiro, Caracas
ou Assunção. As paisagens urbanas nos são apresentadas: a untuosa casa modernista que divide
espaço com o indesejável vizinho na cidade de La Plata em El Hombre de Al Lado (2009); o
conjunto habitacional popular de um bairro pobre em alguma grande cidade da Venezuela em
Pelo Malo (2013); o icônico 'Mercado 4', camelódromo de rua da capital do Paraguai, Assunção,
em 7 Cajas (2012); a grama verde de um condomínio de luxo que faz divisa com a favela ao lado
em La Zona (2007), na Cidade do México. O interesse de pesquisa em Cinemas e Cidades surge
com uma pergunta: como o cinema Latino-americano têm narrado a vida urbana? Com essa
questão, a investigação se desenvolve durante o período de minha graduação em Cinema e
Audiovisual na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), mais
precisamente no grupo de pesquisa NEPI (Núcleo de Estudos em Estética e Política dos
Imaginários). Ao por sub suspeita a produção cinematográfica contemporânea, escolhemos
efetuar um mapeamento explorativo de filmes de longa-metragem de ficção encenados nas
grandes cidades Latino-americanas. Mais próximas do conceito de megalópole, ou seja, de
extensas regiões metropolitanas, “a megacidade pode […] ser entendida como o ‘exterior
constitutivo’ dos estudos urbanos contemporâneos, existindo uma relação de diferença com a
norma dominante da ‘cidade global’. […] Assim, a megacidade é o subalterno dos estudos
urbanos”3. Assim foi definido o recorte temporal - entre o ano de 1990 e 2018 - escolha como
reflexo do exponencial crescimento urbano do final do séc. XX e da retomada da produção
cinematográfica na maioria dos países, forte momento da mundialização do cinema.
O levantamento dos filmes será concentrado no site “Relatos Urbanos Latino-
Americanos”, a ser criado no intuito de reunir um banco de dados para a pesquisa em Cinemas e
Cidades. O site se propõe a ser uma plataforma de estudos com links para produções acadêmicas,
making-of’s, fotos dos bastidores e informações adicionais como equipe técnica e curiosidades
acerca das produções e das cidades encenadas. A análise fílmica permitiu à pesquisa construir um
panorama crítico do conjunto de filmes, seja no sentido de reconhecer uma iconografia urbana
particular, entre valores e temas em constante diálogo, seja na busca por conectar dramaturgias
que alcancem a dimensão do desamparo. É nesse sentido que dividimos a pesquisa em três
frentes conceituais: a construção do olhar de alteridade como negociação de sentido entre
espectador e filme; o uso da violência enquanto mecanismo narrativo; e a representação da
juventude como reflexo de uma geração de sujeitos que expressam maior vulnerabilidade social e
incerteza de futuro. Surge aqui um conceito que aponta para uma espécie de resultado primeiro
da investigação: a presença de um "imaginário periférico global". Entendendo o imaginário como
um conjunto de marcas de enunciação das culturas, trata-se de dar a ver a produção de imagens
cinematográficas das periferias urbanas ao público global sob o desenho geopolítico das grandes
cidades de países emergentes da América Latina.
O conjunto de filmes explorados, em suas encenações urbanas, manifestam características
próprias: países que compartilham um passado colonial, na força de imposição de projetos
estruturantes da modernização estratégica das sociedades, pilares das instituições sociais
(religião, pátria, família, cultura), os quais esbarram em conflitos de narrativas e disputas
territoriais na lógica da remoção de certos corpos dissonantes para a limpeza e higienização
destas cidades. A presença do desamparo surge, aqui, como uma forma de compreender os
sentidos de sociabilidade e organização do sensível das comunidades que vivem à margem da
racionalidade produtiva4 e da ética cidadã5. Diante disso, questionamos: qual o pensamento
espacial que opera nos filmes? Há uma iconografia urbana particular na representação das
favelas, bairros pobres e ruas violentas das cidades Latino-americanas? Qual a presença do
desamparo enquanto consequência da marginalidade urbana?

Discursos críticos como chaves de leitura


Foram várias as categorias que buscaram um preciso ou veredito minimamente relevante
do cinema Latino-americano de hoje. O que há de comum nesse cinema que possa ser lido como
uma chave de entendimento, diagnóstico, sintoma, ou subgênero próprio em emergência? "Quais
são as convenções de autenticidade, particularmente em relação à cidade, e como elas mudaram
com o tempo?”6 . Aponto, neste espaço, os mais pertinentes à pesquisa, assim como termos,
conceitos e ideias que continuam a provocar o olhar sobre a cinematografia contemporânea.
Das posturas recorrentes, uma certamente chama atenção. Trata-se da ficcionalização das
periferias urbanas através de procedimentos estilísticos que ora flertam com os códigos de
gêneros cinematográficos, como o policial e de ação, por exemplo - Ratas, Ratones y Rateros
(1999); Tinta Roja (2000); La Virgen de Los Sicarios (2000); Hermano (2010) - ora projetam na
obra um grau mais poroso de acesso já que garantem o diálogo no terreno do (então) reconhecível
e convencionado. Pensamos em Quem Quer Ser Um Milionário? (2008), filme indiano encenado
em Mumbai, maior cidade do país, cuja narrativa aponta para o que Ananya Roy (2017) chama de
“pornografia da pobreza”. Esse termo reflete a maneira como as ‘tecnologias de ficção’7 atuam
como motores para equivaler megacidade a favela, depreciando e naturalizando a condição de
subalternidade que, por sua vez, reafirma o estado oposto ao progresso urbano e a beira do
descontrole político: “[…] a favela tornou-se o mais comum itinerário por meio do qual a cidade
do Terceiro Mundo (ou seja, a megacidade) é reconhecida”8. Situação equivalente àquilo que
Ivana Bentes (2007) chama de “cosmética da fome”9, ao olhar para Cidade de Deus (2002)
enquanto "gozo espetacular da violência” e vertente do “novo brutalismo”10. A pesquisadora faz
ácida rejeição a forma como os personagens do filme não encontram motivação senão no
extermínio e no horror: "Cidade de Deus é um filme-sintoma da reiteração de um prognóstico
social sinistro: o espetáculo consumível dos pobres se matando entre si”.11
O mesmo filme é estudo de caso fundamental para Barbara Mennel (2008) forjar o “efeito
favela”. Este se localiza diante de uma lógica que concatena os discursos sociais da sociedade
com suas equivalentes representações fílmicas, como divisões espaciais, estruturas urbanas e
relações de identificação impostas pela sociedade dominante:
O efeito favela não resulta apenas da distribuição e recepção global do filme;
descreve também uma dinâmica complexa em que os cinemas nacionais
incorporam os estilos e gêneros de outras tradições para produzir essas
representações de sua própria cultura, que são então distribuídas como
"autênticas" para um público global.12

A força desse efeito faz lembrar o tão disseminado “favela movie”, expressão que pairou
sob o público de filmes cuja matéria dramática provinha de um imaginário da violência, pobreza
e tráfico em espaços desprovidos da passividade cordial da cidade ideal - Linha de Passe (2008);
La Hora Cero (2010); El Rumor de Las Piedras (2011). Eduardo Valente (2011), no texto
incluído no compilado de provocações acerca do cinema brasileiro dos anos 2000, recupera tal
expressão ao pensar “que gêneros são nossos?”:
Falou-se muito do tal “favela movie”, mas a verdade é que o ambiente urbano-
geográfico em si não configurou um gênero por si […] O que une os filmes […],
muito mais que o ambiente da favela, é esta exploração de dramas reais, onde a
violência se torna catártica através do diálogo com os gêneros. 13

De fato, esses quatro termos apresentam fortes diálogos com a ideia crítica do filme como
obra autêntica e genuína, que possa acessar esse outro diretamente enquanto já classificado em
seu contrato de civilidade (comportamento) e ideal de concessão subjetiva (ações, moralidade e
motivação). Com relação à “pornografia da pobreza”, é importante lembrar o termo que o
referencia diretamente, isto é, a “porno-miséria”. O termo pejorativo surge no manifesto “Que es
la porno-miseria?” (1978) dos realizadores colombianos Luis Ospina e Carlos Mayolo, expoentes
do 'Grupo de Cali'14. Premissa: criticavam a forma do documentário social dos anos 1970 ao
tratar das condições de subdesenvolvimento e marginalidade dos países Latino-americanos como
espetáculo e válvula de escape, ‘demagogia da pobreza’ vendida ao público estrangeiro. A esse
cinema de ‘explotação’ reinava converter a miséria em mercadoria “onde o espectador podia
lavar sua má consciência, comover-se e tranquilizar-se”15. O manifesto surge como extensão de
Agarrando Pueblo: Os Vampiros da Miséria (1977), falso-documentário de uma dupla de
realizadores que percorre as ruas de Cali filmando imagens de mendigos, indigentes e moradores
de rua como matéria-prima para ilustrar a tese do hipotético filme “o futuro para quem?”.
Recheado de deboches ao processo desleal de exploração da realidade como fonte de denúncia
social, cartão de visita dos produtores europeus que bancam o filme, é evidente a consciência do
lugar de fala e da crise de representação na realização do filme.
Diante desse ícone do cinema colombiano, Julio Luzardo (2001) resgata o termo “porno-
miséria" ao dissecar A Vendedora de Rosas (1998), de Victor Gaviria. Em seu descontento, “uma
delícia mórbida da câmera na abjeção, as imagens de falta de moradia e do lixo“16 seria menos
convicção de uma alegoria nacional do que a criação de um imaginário deteriorado do país. O
filme de Gaviria representa o paradigma de uma postura que passou a ser corrente na
cinematografia contemporânea: a encenação de dramas reais da vida privada, proposta que
tangencia a apropriação de corpos em prol da tensão dramática, desde a tangente neo-realista à
linguagem como fabulação do real no estilo "ficção documental” ou "docuficção". Tal apreensão
da realidade como um modo de acesso direto e verdadeiro ao mundo é sentença contestada por
Vera Lucia Figueiredo (2008). Ao por o real sob suspeita, apresenta os novos modelos de
realismo nos regimes narrativos questionando o tratamento dado ao real como garantia de
legitimidade para uma audiência desprovida da instância enunciadora, ou seja, “[…] a perda da
nitidez das fronteiras entre os dois extremos da dicotomia realidade/ficção […]”17. É justamente
nesse raciocínio que se comprova a virada sensível no regime estético do chamado “realismo de
periferia”, expressão politicamente controversa que nomeia uma série de filmes do gênero, como
Carandiru (2003) e Tropa de Elite (2007):
Do ponto de vista mercadológico, está em alta o que parece ser menos
intermediado, aquilo que nos colocaria diante da brutalidade do real. […] os
relatos identificados como não-ficção, as diversas formas de
“documentalismo”, que, no entanto, não deixam de lançar mão de
procedimentos característicos das narrativas ficcionais.18

Essa estética realista incorpora procedimentos historicamente habituais ao cinema


documentário, estratégias estilísticas que Christian León (2005) ressalta ao enfocar a presença do
cinema direto ou cinema verité em filmes de ficção que “[…] com ágeis movimentos de câmera,
montagem fulminante e inspiração documental, abordam histórias de mundos desencantados,
onde valores sociais e os ideias comunitários estão em decomposição” 19. O trabalho do sociólogo
equatoriano surge nessa pesquisa como fundamental contribuição crítica ao que intitula “cine de
la marginalidad”. Esta proposta de título exige uma postura crítica da leitura do termo ‘marginal’.
A proposta: “[…] reconstruir a experiência da exclusão social e da marginalidade sem recorrer a
narrativas burguesas, elitistas, ou ilustradas, (uma experiência) que aborda a pobreza e a violência
desde o ponto de vista dos personagens marginais”20 ao mesmo tempo em que opera na “[…]
incorporação da subcultura do terceiro mundo em um produto especializado para os
consumidores do capitalismo global”.21 Esse cinema não busca os grandes temas ou epopeias,
mas emerge das micropolíticas cotidianas a problematização da vida nas grandes cidades:
O cinema da marginalidade constrói uma estética do desamparo que explora com
desencanto a vida dos seres que vivem à margem das instituições sociais e dos
discursos políticos, que estão excluídos do espaço mobilizador e progressista
destinado ao povo, […] um cinema com uma posição crítica sobre o discurso da
nação […] e o sentido utópico da modernidade.22

Reconhecer o desamparo como resposta primeira de um cinema sem ânimo e destituído


de compromisso ideológico significa encontrar em sua linguagem visual o conceito de
marginalidade como a materialização das camadas de exclusão frente à cidadania. Tal
pensamento parte de três definições23 : alimentada pelas práticas simbólicas em sua generalização;
fora do paradigma dos discursos de progresso - povo, estado e nação - e desviada do olhar da
redenção social; não como um lugar fixo mas uma condição deslocalizada que nega a polarização
dentro-fora. Forma-se uma 'estética da marginalidade e do desencanto' que trazem em sua
concepção o discurso visual do “realismo suyo”. Ao retomar a tradição da literatura suja como
oposição ao realismo mágico, León alude ao cenário de crise dos anos 1990. Trata-se da crise da
identidade nacional, no sentido do desmantelamento do “paradigma homogeneizador da nação”24;
do esgotamento do modelo desenvolvimentista da América Latina, no avanço neoliberal que
esbarra na permanência do projeto colonizador; e da era pós utópica, ou seja, o horizonte
revolucionário da mudança social enfrenta uma crise simbólica na rarefação da possibilidade de
futuro.
Tais ideias são deveras pertinentes ao estudo desses filmes, já que é recorrente nos filmes
mapeados construções da marginalidade urbana em torno da falta de perspectiva e de um certo
heroísmo resignado na exposição do abandono de 'seres abjetos’, como revela a voz over do
trailer internacional do filme venezolano Secuestro Express (2005): "na cidade mais violenta do
mundo, o crime é uma forma de vida. E não importa quem você seja, ninguém está seguro. […]
Quando todo segundo é vida e morte, você tem que jogar cada movimento como se fosse o
último”25.

Juventude em desamparo: Rodrigo D no Futuro e Pizza, Birra y Faso


Esos cables en la cabeza, la camisa de fuerza. No te salvarán, no te salvarán. No
te salvarán porque te voy a matar.26

Ya no consigo más satisfacción. Ya ni con drogas, ni con alcohol. Ya no consigo


ninguna reacción.27

Estamos em Medellin, na Colômbia. O ano é 1988. Uma música de punk rock sonoriza os
créditos iniciais. Corte para um edifício desocupado. Rodrigo, jovem de 19 anos, surge ao fundo,
abre e fechas portas de um corredor desabitado na busca por algum objeto ou pessoa. A câmera
gira em torno de si, curiosa e atenta a qualquer movimento. Na escada, é expulso por um outro
jovem que carrega um facão em sua cintura, alegando Rodrigo que busca uma pequena mala
verde. As primeiras imagens de Rodrigo D No Futuro (1990) revelam o tôm que marcará as
imagens do filme: no tédio, um grande vazio habita a vida dos personagens, uma nítida ausência
de uma trama convencional, sem julgamentos morais, nem claras motivações dramáticas ou
sentido nas ações. Considerado um marco na cinematografia colombiana, é o primeiro filme do
país a ser exibido no Festival de Cannes (1990) e um dos últimos financiados pelo FOCINE
(Compañia de Fomento Cinematográfico), importante empresa estatal que possibilitou a
realização de inúmeros longas-metragens após a era da ‘ley del sobreprecio’. O enredo do filme
gira em torno de dois caminhos: o desejo de Rodrigo em obter uma bateria (objetivo) para tocar
na futura banda punk e o grupo de amigos que vivem no cenário da extrema violência do tráfico
nas ruas de Medellin. A ausência da figura materna em Rodrigo complexifica o caráter
psicológico e cede espaço para uma camada afetiva e familiar pouco presente nas relações que
estabelece. Com isso, além da busca pela bateria, também busca, quer consciente ou não, uma
figura feminina: desamparo duplo.
Diante do imaginário do narcotráfico e da “cultura da violência” e “cultura da morte”,
categorias forjadas pelos grandes meios de comunicação, o filme alude ao sentimento de uma
época de incerteza e medo e de uma realidade urbana que mostra uma Colômbia conhecida e por
sua vez invisível. Ou seja, a matéria dramática do filme parte do ponto de vista de dentro dessa
realidade, menos preocupado em dar conta de resolver os problemas do que projetar ao relato a
transparência do testemunho. Victor Gaviria escolhe trabalhar com não-atores chamando-os de
‘atores naturais’, corporeidades cujas próprias vivências são escritas no texto fílmico, premissa da
'dramaturgia de ator' que parte de casos reais e de atores que literalmente vivem seus dramas.
Assim o roteiro se construiu após (a equipe de realização) encontrar os personagens através da
imersão no entorno das comunas de Medellin. Outra característica que decorre dessa práxis foi
incorporar o “parlache”: a chamada língua dos parceiros, vocabulário típico dos jovens de bairros
populares da década de 1980 formado por expressões e neologismos de difícil compreensão (que
não foram legendadas no corte final como decisão política).
Com forte tendência naturalista, é evidente a homenagem de Gaviria ao clássico
neorealista de Vittorio de Sica Umberto D. (1952), no sentido de resgatar o sentimento que o
filme italiano traz - tempos mortos, ruínas de uma sociedade e observação paciente aos
personagens. De fato, as questões que Rodrigo D propõe a testemunhar encontram no
procedimento estético neorrealista a fonte de pensamento e práxis adequada. É esta ideia de
encontro com o real em sua complexidade defendida por Gaviria e Luis Alberto Álvarez no texto
seminal de 1982, Las Latas en el Fondo del Rio: "O desejo de fazer filmes a qualquer preço leva
a muitas servidões e muitos esquecimentos, […] o mais fundamental e pernicioso é o do real
como um fato físico. [...] Só assim o olhar do diretor poderá passar as coisas vivas que brilham,
que têm intenção”28. O exercício de apontar a câmera para a realidade ignorada ou
demasiadamente estigmatizada, mas, ainda assim, o real enquanto materialidade já existente,
recai numa responsabilidade exponencialmente maior. Basta pensarmos no fato de que, após as
filmagens todos os atores que trabalharam no filme foram assasinados. Todos com menos de 20
anos.
O filme se encerra com Rodrigo que, após ver todas as saídas se fecharem, e sem
conseguir a bateria, sai de sua comuna para o centro de Medellín. Sobe num andar alto de um
prédio modernista vazio (filmado no edifício Banco de Londres, na rua dos bancos) e paira seu
rosto sobre o vidro que reflete a si mesmo diante de uma cidade de aranha céus e condomínios.
Vemos uma janela do edifício. A trilha sonora é agressiva, um forte som que quebra a melodia da
cidade. Ao fundo, um corpo cai. Rodrigo se suicidou. Fugir da violencia das ruas de Medellin
recai em duas opções: matar ou morrer.

Rodrigo observa a cidade em Rodrigo D No Futuro (1990).

Prólogo: é noite. Algumas viaturas policiais estão estacionadas no meio fio da calçada.
Não entendemos o que está acontecendo, tampouco a câmera parece saber para onde olhar.
Ouvimos o rádio da polícia entoar orientações. Corte para o título: Pizza, Birra y Faso (1998). É
dia. Uma música animada começa a tocar. Os sons de carros e motos invadem a tela. Os créditos
iniciais alternam planos subjetivos de um carro com ações rotineiras de personagens da rua: uma
jovem menina carrega uma criança no colo enquanto pede esmola no semáforo, limpadores de
pára-brisas espumam os vidros de carros, um eufórico homem de meia idade pronuncia frases
num microfone do tipo "hay que luchar para vencer!", mendigos caminham pelas calçadas,
operários carregam caixas de papelão nas costas. Estamos em Buenos Aires. As imagens que
abrem o filme se preocupam em mostrar ao espectador uma série de personagens esquecidos e
ignorados pela sociedade. Em menos de três minutos o filme já nos apresenta uma iconografia do
trânsito de uma grande cidade (que poderia ser de qualquer país periférico) que detém a câmera
na observação objetiva dos fenômenos passageiros.
Tido pela crítica como ícone do Novo Cinema Argentino (no pôster oficial do filme, a
frase: hay un nuevo cine argentino), a trama dirigida por Adrián Caetano e Bruno Stagnaro
acompanha um grupo de jovens que vivem de assaltos e roubos na cidade: Cordobés, Pablo,
Sandra (grávida de Cordobés), Frula e Megabón. O objetivo do grupo, que soa como uma família
com hierarquias definidas, é assaltar uma boate e fugir com o dinheiro. Talvez fosse esse o desejo
presente no imaginário da Argentina dos anos 1990, época de crise não necessariamente
econômica mas certamente social. Explico: quando Carlos Memem se tornou presidente da
Argentina em 1989, diante de un cenário de hiperinflação, tratou de implantar no governo uma
política tipicamente neoliberal (privatizações, austeridade econômica, menos gastos sociais, livre
mercado, estado mínimo). A “Era Memem”, como ficou conhecida, deu luz em 1991 ao “Plano
de Convertibilidade" (Plano Cavallo) - garantir a equidade entre dólar e peso. Isso garantiu o
controle da inflação mas resultou, na mesma moeda, na grande taxa de desemprego e na
concentração de riqueza aos mais ricos. O descaso social foi tão grande que incidiu na histórica
“Crise de 2001”, revolta popular generalizada. Filmado desde o ponto de vistas dos sujeitos
‘delinquentes’, o clima de calamidade pública que o país se encontrava refletiu o reconhecimento
e a identificação da população com o filme.
Os jovens conduzem a narrativa entre conversas estratégicas do planejamento do grande
assalto, a invasão do famoso monumento obelisco, na praça da República, com o intuito da
simples diversão, e as pizzas e cigarros que os alimentam de ideias sobre como ganhar dinheiro
através do crime (o emprego formal é privilégio para quem?). Ao se aproximar do fim, a tentativa
de assalto não ocorre como planejado. Na boate, são surpreendidos por policiais que atiram em
Frula e Megabón. Pablo consegue fugir com Cordobés, baleado no tiroteiro. De carro, vão para a
estação das barcas: Cordobés pretendia fugir com Sandra para Montevidéu, após ter conseguido o
dinheiro do roubo, em busca de uma vida melhor e de um futuro mais digno. O plano final é
ilustrativo desse desejo de deslocamento: a câmera, presa ao barco, se afasta da cidade num
movimento de travelling. Ao deixar a cidade para trás, o sentido do plano dá a ideia de um
capítulo encerrado na vida dessa família. Como se fosse o final de um videogame, onde quem se
salvou foi Sandra (Pablo foi detido ou morto, Cordobés é preso).

Sandra parte para Montevidéu em Pizza, Birra y Faso (1998).

Olhar com atenção para o final dos filmes reflete esse sentimento final que do filme resta,
a imagem última que sintetiza a visão de mundo que os filmes carregam: dramaturgia como
pensamento. Ambos os filmes apresentam finais trágicos e personagens pobres2 e marginalizados
no corpo de uma juventude periférica abandonada. Rodrigo e Cordóbes muito lembram o
personagem central do filme colombiano La Playa D.C (2012), Tomás, um jovem negro afro-
colombiano forçado a ajudar seu irmão Jairo a fugir dos traficantes de Bogotá, ou os traços de
Andrés e Pedro, pai e filho que escapam compulsivamente de Caracas para a fronteira da
Colômbia após perceberem o risco da rebelião contra a violenta injúria cometida por Pedro no
longa-metragem venezolano La Familia (2017). Também trazem em comum personagens que
possuem vácuos com a família, ausências e inconsequências São esses que, em alguma medida,
buscam o sentido de pertencer ao mundo em uma rede de afeto e sociabilidade corrompida pela
violência das ruas e pelas exclusões em todos os níveis da esfera social. Esse sentimento de
desajuste e desamparo, deslocamento ou não reconhecimento de si no território em que se habita,
sublinha a descrença no governo e na sociedade através da sensação de ser um próprio
estrangeiro: quem tem direito à cidade? O desejo do deslocamento, compulsório ou planejado,
delineia as fronteiras quer visíveis ou não das territorialidade urbanas.
São dramaturgias fílmicas que traçam noções de cidadania e direitos sociais como fruto
das políticas de extermínio, controle e apagamento das populações. Os filmes não procuram
julgar seus personagens mas sim buscar uma forma de se aproximar dos dramas invertendo o
ponto de vista ‘hegemônico' que normalmente parte de uma lição de moral ou uma medida do
correto, certo e errado, bom e mau.

Considerações Finais
Como se relacionam os filmes à cidade, desamparo e marginalidade? Como o desamparo
contaminou as narrativas? Em que medida o desamparo está presente além do espaço urbano? É
esse cinema negativo e pessimista? Muito mais questões do que falsas respostas, a aguda
pronúncia do desamparo nos textos fílmicos revela um caminho de pesquisa descontente por
fórmulas reducionistas. Ainda que o engajamento político da maioria dos filmes encenados nas
cidades Latino-americanas recaia na denúncia testemunhal de realidades ignoradas pelo estado e
por grande parte da população, é fato uma certa contensão do cinema como ferramenta de
transformação social.
É preciso dizer que esse cinema político e de compromisso social
termina em um estado de melancolia e luto, que se reflete bem em filmes
como Rodrigo D. No Futuro, A Vendedora de Rosas e La Universal, que
são filmes que já delineiam a concepção da nação como um corpo
doente, discurso que nos últimos anos se tornou central no cinema […] e
que, apesar de suas intenções críticas, pode ter usos contrários por parte
do poder, ao contribuir para a paralisia e imobilidade social (p.106,
traduzido).

Esse trecho do crítico colombiano Pedro Zuluaga (2013) , acerca do que chama de "cine
de la violencia y el conflicto social y político”29 , ilustra muito bem essa dimensão ignorada da
práxis cinematográfica. Muitas são as pesquisas mediadoras de uma nova corrente de realização
contemporânea. No Brasil fala-se em Cinema da Retomada e da pulsão de um Novíssimo Cinema
Brasileiro, termo que Raul Lemos Arthuso (2016) se apropria ao constatar uma ‘suspensão do
confronto’ através do 'radicalismo acanhado', premissa dos perigos de um cinema pacificado na
máscara do afeto, ou da emergência de um provável Novíssimo Cinema Latino-Americano, título
de um cinema que ainda não se materializou enquanto constância homogênea ou consciência de
seus limites e alcance da discussão. Essas categorias esbarram em um conjunto de procedimentos
corrente na internacionalização dos cinemas: filmes não somente como reflexos das sociedades,
mas antes discursos em negociação permeados por relações de poder, fontes de financiamento e
co-produções, educação, ensino e acesso ao audiovisual, discursos da crítica, circuitos de
legitimação das obras e redes de distribuição globais. Portanto, não se trata aqui de compreender
a semântica do desamparo enquanto mero sintoma da distribuição estratégica dos lugares
(personagens), ainda que possa ser. Mais importante é pensar em termos de visão de mundo,
pensamento-em-cena, um sentimento que consiga se aproximar das inconstâncias e caminhos de
uma urbanização que trouxe consigo inúmeros efeitos colaterais que aqui foram pincelados nas
respectivas dramaturgias fílmicas.
Expressões como "pornografia da pobreza", "cosmética da fome", "efeito favela", "favela
movie”, “porno-miséria", "realismo de periferia", “cine de la marginalidad" e “realismo suyo",
tentam dar conta do que se tem produzido e pensado em termos de linguagem cinematográfica.
Mas o fato é que a heterogeneidade dos modelos de produção é forte o suficiente para que
nenhum termo ou conceito resuma ou sintetize esse cinema, mas ajudem a pensar nos regimes
estéticos pertinentes ao cenário Latino-americano. Há de pensar, nesse novo modelo de cinema
político, como dar a ver os dramas sociais e os enfrentamentos ao descaso político (na chave do
desamparo?) sem que essa possibilidade de acessar o outro acabe por apaziguar o conflito.

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VALENTE, Eduardo. Que gêneros são nossos? Em: Cinema brasileiro anos 2000, 10 questões. Cinética,
2011.

ZULUAGA, Pedro Adrían. Cine colombiano: cánones y discursos dominantes, 2013.

1Graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA),


mestrando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF), luiztodeschini@uol.com.br.
2 JÁUREGUI; SUÁREZ, 2002, p. 367-368, tradução nossa.
3 ROY, 2017, p. 7.
4 LEÓN, 2005, p. 13, tradução nossa.
5 Ibid., p. 47.
6 MENNEL, 2008, p. 216, tradução nossa.
7 ROY, 2017, p. 9.
8 Ibid., p. 8.
9 BENTES, 2007.
10 Ibid., p. 249.
11 Ibid., p. 252.
12 MENNEL, 2008, p. 211, tradução nossa.
13 VALENTE, 2011, p. 28-29.
14 Coletivo audiovisual formado no início dos anos 1970 por Luis Ospina, Carlos Mayolo e Andrés Caicedo.
Conhecido como “Caliwood”, foi um movimento que reuniu a efervescência do “Cineclub de Cali” na lógica da
estética do “gótico tropical".
15 OSPINA; MAYOLO, 1978, tradução nossa.
16 LUZARDO, 2001, tradução nossa.
17 FIGUEIREDO, 2008, p. 68.
18 Ibid., p. 66.
19 LEÓN, 2005, p. 23, tradução nossa.
20 Ibid., p. 24.
21 Ibid., p. 73.
22 Ibid., p. 31.
23 Ibid., p. 12-13.
24 Ibid., p. 20.
25 Trecho do trailer de Secuestro Express (2005), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hl-_MS2PsOk.
26Trecho da música "(Aunque esté en el frenopatico) te tiraré del atico” da banda punk espanhola Siniestro Total,
cantarolada por Rodrigo em uma cena do filme.
27 Trecho da música “Sin Reacción”, da banda punk colombiana Mutantex, também entoada por Rodrigo.
28 GAVIRIA; ÁLVAREZ, 1982, tradução nossa.
29 ZULUAGA, 2013, p. 107.

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