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Estruturas Narrativas: O Modelo Funcional de Propp | O Básico em Letras 10/02/19 19:14

O Básico em Letras

Estruturas Narrativas: O Modelo Funcional


de Propp
março 17, 2013
(Este artigo é o segundo de uma série de três sobre estruturas narrativas. Após o modelo funcional de Propp,
veremos também o esquema quinário.)

Não vou mentir para vocês: o modelo funcional não é algo prático de se entender. A questão que
envolve tal modelo vai muito além da simples abstração de uma estrutura narrativa em pontos-
chave. Na verdade, o modelo funcional chega a determinar que pontos-chave seriam esses. Para
entender o porquê, vou falar rapidamente sobre o formalismo.

É mesmo necessário?

Temo que sim. Lembra de quando eu falei que uma obra e seu autor são frutos do meio? O mesmo
acontece com a criação de certas escolas de pensamento.

O formalismo na literatura – visto que ele também está presente em outras áreas dentro de
Humanidades – procura reconhecer a evolução de acontecimentos dentro da narrativa de forma
independente às influências externas. Assim como os químicos veem a fotossíntese como etapas de
um processo químico (gás carbônico + água (luz + clorofila) = glicose e oxigênio), também os
formalistas acreditam que a ficção (deve) envolve(r) uma progressão perceptível, como se fosse
possível entender a trama em termos normativos.

Isso não seria algo difícil de obter? Digo, “normatizar” os acontecimentos da obra?

Precisamos lembrar que a “Poética” de Aristóteles não era apenas um livro que analisava a
estrutura das peças – ele também ensinava como as peças deveriam ser escritas. Manuais de
roteiro também explicam como um roteiro ideal deve ser escrito. Quando os formalistas surgiram,

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entre o final do século XIX e o início do século XX, a tendência era procurar categorizar – uma
outra demonstração da influência de Aristóteles – tudo que fosse possível, seja no nível da Arte ou
das Ciências Exatas.

A fim de categorizar o que chamamos hoje de “sintagmas narrativos”, Vladimir Propp, crítico e
filólogo russo, analisou diferentes contos maravilhosos – aqueles que possuem características
fantásticas, como contos de fadas – para encontrar o que era comum a todos eles. Resultado:
encontrou 31 sintagmas narrativos.

31?!

Pois é: 31. Seguindo a lógica de que tais sintagmas independem do meio – a maior preocupação
dos formalistas era desvincular as áreas de especialidade do meio histórico-social, uma medida
que visava eliminar a possibilidade de “contaminação” do processo analítico -, tais contos teriam,
sempre, 31 sintagmas narrativos, divergentes apenas em suas formas finais.

São estes os sintagmas:

1. Afastamento: uma personagem se desloca de um local familiar, seguro.

2. Interdição: existe algo que a personagem não deve fazer, um aviso, uma intimação. Não cumprir
pode levar a uma pena ou castigo – mas geralmente leva ao problema apresentado na história.

3. Transgressão: a personagem desobedece.

4. Interrogação: aparece uma antagonista, um agressor surge procurando encontrar meios para
atacar a personagem – geralmente perguntando à própria vítima.

5. Informação: a personagem informa o agressor sobre quem ela é, entregando assim também os
meios pelos quais a antagonista procurará atacá-la.

6. Engano: o agressor tenta enganar a vítima.

7. Cumplicidade: de forma inocente, a personagem se deixa engrupir pelo agressor.

8. Dano/vilania: surge o problema, o cerne da narrativa.

9. Mediação: entra em cena o heroi para corrigir o dano.

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10. Início da ação contrário: o heroi aceita ir contra o agressor.

11. Partida: o heroi sai de seu lar para cumprir sua missão.

12. Função do doador: surge uma personagem actante, na forma de doador, o qual ajudará o heroi
de alguma maneira. Para isso, o heroi precisa passar por uma prova.

13. Reação do heroi: o heroi supera a prova e é ajudado pelo doador.

14. Recepção do objeto mágico: não precisa ser um objeto mágico, mas também um conselho. É o
prêmio da prova superada.

15. Deslocamento: o heroi se dirige para o local do conflito.

16. Luta: o heroi se atraca ao agressor.

17. Marca: durante a luta, o agressor deixa uma marca no heroi.

18. Vitória: o bem vence o mal.

19. Reparação: o dano é corrigido.

20. Volta: o heroi retorna para casa.

E acabou?

Quem dera!

21. Perseguição: o heroi é perseguido pelo agressor ou seu ajudante.

22. Socorro: o heroi se salva ou é salvo por outrem.

23. Chegada incógnita: o heroi retorna sem se identificar.

24. Pretensões falsas: alguém se faz passar pelo heroi.

25. Tarefa difícil: o heroi precisa cumprir uma prova que mostre que ele realmente é quem diz ser.

26. Tarefa cumprida: o heroi supera a prova.

27. Reconhecimento: o heroi é identificado – às vezes, graças à marca deixada pelo agressor.

28. Desmascaramento: o pretenso heroi é desmascarado.

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29. Transfiguração: o heroi é encoberto por uma aura que o muda fisicamente.

30. Punição: o agressor, seus ajudantes e/ou o pretenso heroi são punidos.

31. Casamento: o heroi se casa, geralmente com a personagem envolvida no dano.

E onde nós vamos ver tudo isso, afinal?

Esse é o problema: a ficção contemporânea não se guia por tais funções, como Propp chama essas
etapas. Digo mesmo que a ficção da época de Propp ou anterior a ela mal poderia ser analisada
com tal estrutura narrativa. Para que isso acontecesse, precisaríamos sempre de relatos fantásticos,
que encontramos ou em contos de fadas ou romances de cavalaria que misturassem a Idade Média
com dragões, bruxas, etc.

Não existem exemplos recentes, então?

Podemos pensar, até certo ponto, em “O Hobbit”, de J.R.R. Tolkien:

1. Bilbo se afasta do Condado à convite de Gandalf.

2. Ninguém se afasta do Condado – é algo estranho um hobbit sair para se aventurar pelo mundo.

3. Mesmo assim, Bilbo sai pelo mundo – digo, a Terra Média.

4. Bilbo é capturado por trolls, mas…

5. Gandalf joga informação após informação para cima dos trolls, libertando Bilbo e os demais
anões.

6. Surge o verdadeiro agressor: Gollum, que trava uma conversa com Bilbo.

7. Bilbo acaba entregando detalhes importantes sobre si para Gollum – que serão retomados em “O
Senhor dos Aneis”.

8. Bilbo carrega consigo o Um Anel.

9. Os anões e Gandalf estão no seu caminho, mas ficariam perdidos sem Bilbo…

10. Bilbo encontra o caminho.

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11. Bilbo os reencontra.

12. Os anões são capturados. É quando Bilbo…

13. … usa o Um Anel para salvá-los. É uma prova de heroísmo.

14. Reconhecimento, ora!

15. Eles continuam a jornada.

16. Bilbo se encontra com Smaug, o dragão que guarda o tesouro que os anões desejam.

17. Bilbo recebe uma marca metafórica – se torna ladrão para descobrir a fraqueza de Smaug.

18. Graças a Bilbo e sua descoberta, Bard, o arqueiro, mata Smaug.

19. Bilbo esconde a Arkenstone de Thorin para tenta forçar um acordo de Paz – é uma Reparação
que envolve o objeto de desejo de Thorin.

20. O acordo não vai pra frente e Thorin expulsa Bilbo até…

21. Surge um exército de goblins.

22. Thorin e Bilbo lutam juntos.

23. Num nível metafórico, Bilbo, de hobbit calmo, se revelará um heroi.

24. Não há algo do tipo aqui.

25. Bilbo luta durante a batalha – e recebe ajuda.

26. Batalha vencida – mas Thorin morre…

27. … mas antes perdoa Bilbo.

28. Não há algo do tipo aqui.

29. Bilbo é reconhecido pelos demais por seu heroísmo. No aspecto físico, ele bem poderia pegar
uma boa parte do tesouro que conquistou.

30. Não há algo do tipo aqui.

31. Bilbo volta para casa – com o tesouro e o Um Anel.

Sério que esse é o exemplo mais recente que você arranjou?

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Infelizmente, sim. E isso se deve principalmente porque Tolkien era um estudioso de narrativas
folclóricas, tendo ele mesmo usado partes de contos fantásticos para criar personagens e situações
que encontramos em suas obras.

Mas uma coisa eu não entendo: por que as partes 24, 28 e 30 não aparecem?

O enredo de “O Hobbit” gira em torno de um hobbit comum que procura encontrar seu lugar na
Terra-Média. Curiosamente, ele tanto é vítima quanto heroi quanto vilão – afastar-se, ajudar os
anões e pegar o Um Anel revelam uma personagem mais complexa que o ideal proppiano. É uma
tendência do século XX que as histórias tratem de mergulhar nas dimensões psicológicas – mesmo
quando não o fazem conscientemente -, o que impede uma visão tão restrita dessas narrativas,
como Propp parece sugerir. Há mesmo subversões e interpretações metafóricas que invertem a
posição entre agressor, vítima e heroi. (Compare as funções com o esquema proppiano do romance
para verificar onde elas se encontram).

Mas então, por que estudamos Propp na faculdade? Qual a relevância dele?

Justamente o fato de que ele propõe uma evolução do esquema de três atos. No post anterior, disse
que o “clímax é ‘apenas’ um efeito de tensão […] [mas] a passagem para o terceiro ato ocorrerá independente
dessa tensão”. Ora, se o final ocorre independente disso, de nada adianta então a participação ativa
das personagens na narrativa – ou assim pensamos.

Os eventos nas histórias não podem ser vistos de forma isolada da participação das personagens.
O que Propp reafirma é a importância de tais eventos, identificados nas funções, representarem a
parte ativa do envolvimento da personagem (conscientemente ou não) em um dado momento que
parta do início da transgressão até o final feliz esperado. Mesmo ao querer isolar a narrativa dos
fatores sócio-históricos, Propp acabou esquecendo que as personagens são, também, frutos de tais
fatores, uma vez que representam a percepção do autor sobre o meio – nesse caso, pessoas e
humores. Daí que as mudanças históricas e sociais acabam influenciando os autores, indo além da
visão de categorias prontas e fechadas.

Para contos de fadas onde o caráter (éthos) de cada personagem é delineado de forma determinista
(“Cinderela”, por exemplo), a solução de Propp funciona bem – e até mesmo quando vista em
tramas fantásticas, uma e outra coisa podem ser aproveitadas. Repare que há várias funções que
podemos ver em textos como a “Odisseia” – em particular nas funções 11, 17, 20, 23, 25, 27 e 29 – ou

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em filmes como “Conquista Sangrenta” (Flesh+Blood, 1986, de Paul Verhoeven) ou a trilogia


“Guerra nas Estrelas” – há funções equivalentes a trechos da Jornada do Heroi, de Joseph Campbell,
que foi o modelo usado por George Lucas para a criação da série.

No próximo post, veremos como os estruturalistas criaram o esquema quinário – o mais utilizado
da atualidade – observando justamente as funções de Propp.

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