POIESIS
INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA
Clovis Carvalho | Diretor Executivo
Plinio Corrêa | Diretor Administrativo
Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva
Ivanei da Silva | Museólogo
CIRCULADÔ DOSSIÊ
Revista de Estética e Literatura do Centro de Referência Haroldo de 9
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• Da tradução em sua crítica: Haroldo de Campos e Henri
Campos – Casa das Rosas Meschonnic – Guilherme Gontijo Flores
ISSN – 2446 - 6255 26 • O confronto com o impossível – Marcelo Tápia
Diretor | Marcelo Tápia 34 • Poéticas tradutórias e poesia experimental – Julio Mendonça
Editor | Julio Mendonça
Assistente | Irana Magalhães
Comissão Editorial: Aurora Bernardini, Claus Clüver, Gonzalo INVENÇÃO
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Aguilar, Horácio Costa, Jerusa Pires Ferreira, Leda Tenório da Motta, 45 • Antologia do Noucentismo – Vanderley Mendonça
Lucia Santaella, Luiz Costa Lima, Márcio Seligmann Silva, Nelson 65 • Do quinto capítulo de Finnegans Wake – Caetano Galindo
Ascher, Susanna Kampff Lages 70 • De El Infierno de Wall Street – Reynaldo Jiménez
Design gráfico | Angela Kina 83 • Supervertendo o multiversátil Ovídio – Brunno Vieira
Diagramação | Carlos Santana e Giany Blanco 94 • História geral reelaborada pelo Satirikon: A Grécia – Lucas Simone
Revisão | Centro de Referência Haroldo de Campos
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Risco Editorial 108 • Dante by Haroldo de Campos: Rimas pedrosas – Inês Oseki-Dépré
Edição anterior: Revista CIRCULADÔ. Ano IV – Nº 4 – Março 2016 114 • O Paraíso de Haroldo de Campos: Dante – Manuele Masini
São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas 125 • “O passado como relampeja” – Alguns apontamentos sobre
Haroldo leitor de Walter Benjamin – Diana Junkes
A revista CIRCULADÔ é publicada em frequência semestral.
GALÁXIA HAROLDO
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A revista CIRCULADÔ aceita, para publicação, apenas artigos ainda inéditos em
língua portuguesa e inglesa. 135 • Depoimento de Trajano Vieira sobre Haroldo de Campos
A extensão dos artigos pode variar de acordo com o tema abordado, sendo que a
Redação se reserva o direito de propor cortes ou sugerir ampliações.
As notas devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no final do texto. Os autores 138 SOBRE OS AUTORES
devem fornecer informações biobibliográficas, até 400 caracteres (com espaços).
“Desde o barroco, ou seja, desde
sempre, não nos podemos pensar como
editorial
identidade fechada e conclusa, mas, Numa época em que o processo de mundialização cultural se intensifica,
com a ocorrência de grandes fluxos migratórios, do crescimento do tu-
rismo e de drástica redução das distâncias geográficas graças aos meios
sim, como diferença, como abertura, de transporte e comunicação, as diferenças de toda ordem entre as po-
pulações das diversas partes do planeta – inclusive as diferenças cultu-
como movimento dialógico da diferença, rais e linguísticas – tornaram-se muito mais evidentes – atraentes para
alguns, incômodas para muitos – e passaram a acirrar trocas, tensões e
lutas. Nesse ambiente, a tradução adquiriu grande relevância, inclusive
contra o pano de fundo do universal (...) na literatura. Para além da mera transposição de conteúdo de uma língua
para outra, a tradução passou a ser vista por alguns autores como um
campo de criação em que a travessia entre universos linguísticos é uma
Essa prática diferencial articulada a oportunidade para introduzir o estranhamento que inquieta e transforma.
Esta quinta edição da revista Circuladô vai abordar, como tema principal,
um código universal é também, por questões relativas a este novo papel da tradução.
Haroldo de Campos cultivou a tradução como criação e como crítica (aliás,
título de um texto seu de 1962, publicado no livro Metalinguagem, em
definição, uma prática tradutória.” 1967) e seu trabalho como tradutor e teórico da tradução contribuiu muito
(juntamente com seu irmão Augusto de Campos, Décio Pignatari e Boris
Schnaiderman) para que este campo de atuação tivesse o grande flores-
cimento que teve nas últimas décadas e que hoje se constata no país.
Reunimos, neste número, traduções e textos sobre tradução de autores já
(Haroldo de Campos, Transcriação, p. 198-199) reconhecidos e de jovens autores que se destacaram recentemente.
Quando esta edição da revista estava sendo concluída, infelizmente ocor-
reu o falecimento de Boris Schnaiderman, aos 99 anos. Schnaiderman
ensinou russo para Haroldo e Augusto de Campos e com eles compartilhou
o esforço de tradução que resultou em dois livros fundamentais na cultura
brasileira recente: Maiakóvski – Poemas, de 1967, e Poesia Russa Moder-
na, de 1968. Além dessas marcantes parcerias com os irmãos Campos,
realizou, ainda, outras grandes contribuições na tradução, de Dostoiévski
e Tolstói a Guenádi Aigui. Na crítica, destacam-se seus livros A Poética de
Maiakóvski e Tradução – Ato Desmedido. Na sua extensa obra tem papel
importante, também, seu trabalho de memorialista. Boris foi um dos au-
tores mais importantes para a cultura brasileira nos últimos 60 anos e seu
legado ficará para as futuras gerações.
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DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA:
DOSSIÊ:
HAROLDO DE CAMPOS
TRADUÇÃO E HENRI MESCHONNIC
“Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra,
COMO CRIAÇÃO
mas sua própria linguagem.” Roland Barthes
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uma versão adequada para transpor um pode se transmutar de sua língua a ou- o mesmo na nova versão – night tem um duzível” (1952: 3). Nessa nova via afirma-
texto de determinada língua para a sua tra sem que se rompa toda sua doçura e som aberto, que poderíamos por sineste- tiva do ato tradutório, o próprio termo tra-
própria. No entanto, se considerarmos a harmonia” (1.7.14). Essa afirmação está sia associar ao luminoso dos astros, ao dução fracassa em sua etimologia. Como é
instabilidade de toda linguagem, está cla- embasada no fato de que cada língua tem contrário do sombrio e escuro som de no- de conhecimento geral, “traduzir” vem do
ro que não existe um modo adequado de uma musicalidade específica, que não é che e noite, então o mesmo conceito pro- latim traducere, que, no Novissimo diccio-
tradução, pois as traduções, como qual- traduzível como o significado do texto. E duz ecos diferentes com outras palavras nario latino-portuguez de Saraiva, recebe
quer empenho de leitura crítica, entram mais, a afirmação de Dante nos leva a crer da oração, tais como beside e waters em as seguintes acepções:
num gênero discursivo próprio, que de- que um determinado jogo linguístico não inglês, além de realizar uma assonância
pende de várias teorias e métodos que as se reproduz, porque a sonoridade, ao fim com o neologismo de hitherandthithering. (de trans duco) 1o Conduzir além, con-
possam embasar, para que aí se prestem e ao cabo, interfere no sentido do texto. Nesse ponto, poderíamos chegar à aporia duzir d’um logar para outro, transferir,
a uma possível discussão sobre pertinên- É o que podemos deduzir também da se- tradutória: se nem mesmo uma única pa- transportar, traspassar; 2o Fig. Transfe-
cia. Isso não implica uma inutilidade dos guinte conversa com Jorge Luis Borges re- lavra será traduzível – uma palavra banal, rir, passar d’uma ordem a outra; elevar
exercícios escolares e universitários, dado latada por Augusto de Campos, acerca do como night, e não um conceito específico (a dignidade); virar, voltar para, levar a;
que uma certa ilusão de que os conteúdos dia em que os dois poetas se encontraram da cultura – como traduzir a oração? Ou 3o Expor ao riso, ao despreso, menos-
por transpor não variam é necessária para em Buenos Aires, em 1984 (2013: 77-8): pior, como traduzir um texto inteiro? Bor- cabar, deshonrar, mostrar, dar a saber,
o estabelecimento de um conhecimento ges cai no ceticismo. Eppur si muove: a publicar, divulgar; 4o Passar (o tempo),
linguístico básico: na verdade, é essa ilu- Depois, [Borges] cita a passagem final resposta de Augusto, que à primeira vista cumprir, exercer; 5o Traduzir, verter; ti-
são que permite a baliza inicial de conhe- do capítulo das lavadeiras [do Finne- parece mudar ligeiramente de assunto, con- rar, derivar (palavras).
cimento. Por isso, o ponto fundamental é gans Wake, de James Joyce]: “Beside tradiz a aporia já não com uma nova afir-
outro: a tradução é um ato cultural que the rivering water, of, hitherandthithe- mação categórica, mas com um exemplo Na verdade, a 5a. acepção não
envolve muito mais do que a transposição ring waters of. Night!” E indaga: “Como prático a partir de suas traduções poéticas consta no latim clássico, que usa o termo
entre duas línguas, porque, na prática, o traduzir isso? E night? Noche, noite, não da obra de William Butler Yeats: o que se transfero no sentido exclusivo de “tradu-
que se traduz são textos particulares; e os é a mesma coisa.” Conto-lhe que venho depreende do exemplo é que, para Augus- zir” (cf. contra McElduff 2013: 103-4). O
textos são feitos de relações com a língua, de traduzir os “poemas de Bizâncio” to, não se trata de um problema de intra- termo traducere só aparecerá muito mais
em cada caso diferentes, por esse moti- de Yeats, e que encontrei uma solução duzibilidade, mas de criar outro efeito na tarde com Leonardo Bruni, numa carta de
vo é que elas sempre são postas em che- curiosa para as duas últimas linhas: “Ou língua de chegada, ou seja, de analogia e circa 1400, talvez por um erro de tradução
que e devem ser interrogadas pelo tradu- cantarei aos nobres de Bizâncio e às da- paralelismo, ou de diálogo poético; dessa sobre uma passagem de Aulo Gélio (cf.
tor e por seu futuro leitor. Com isso, uma mas, / pousado em ramo de ouro, como forma, diante da evidência prática, o mes- Bettini, 2012: vii-ix). Como exemplo bási-
dada tradução nunca pode ter o escopo de um pássaro, / o que passou e passará e tre Borges acaba por anuir: “a tradução co de outros modos de pensar a tradução,
transpor um texto em sua completude, ou sempre passa”.1 Ele pede que eu repi- deve ser inventiva”. Desse modo, a fala de no ocidente, penso em dois termos ale-
seja, nenhuma tradução compreende em ta, fitando-me com os olhos abstratos, Borges ecoa o adágio anônimo, hoje co- mães que comportam acepções bastante
si uma leitura total do texto original. Ela atento às palavras, e diz: “Está bien. La mumente atribuído a Robert Frost, de que diversas: Nachdichtung, que significaria
será sempre diversa. tradución deve ser inventiva.” “poetry is what gets lost in translation”, algo como um “poema depois de um poe-
Não é à toa, afinal, que comu- que recai numa espécie de melancolia do ma”, ou “pós-poema”; e Umdichtung, um
mente vemos afirmações sobre a intradu- Neste pequeno trecho narrativo da tradutor, diante das perdas inerentes ao “poema transformado”, ou “transpoema”.
zibilidade da poesia, já que é sobretudo conversa entre os dois poetas, encontra- seu ofício, como fizera Dante. Já Augusto De qualquer modo, dessa entrada de di-
nela que vemos um alto grau de trabalho mos o cerne da poética da tradução. Bor- de Campos insinua por uma resposta prá- cionário podemos depreender pelo menos
formal que não pode ser inteiramente re- ges cita um trecho do Wake de Joyce, para tica àquilo que em português já foi bem duas coisas. Em primeiro lugar, que nosso
petido na cadeia fônica de outra língua. então se espantar num detalhe minucioso: explicitado por alguns teóricos como Paulo termo bastante específico para um ato na
Diante dessa derrota inicial da tradução, o termo inglês night não soa como noche Rónai: “o objetivo de toda arte não é algo linguagem é derivado de um uso mais tar-
alguns afirmaram ideias similares à que em espanhol ou noite em português; por impossível? O poeta exprime (ou quer ex- dio do termo latino, que em primeiro lugar
Dante Alighieri havia apresentado em seu isso, verter uma palavra pelo seu corres- primir) o inexprimível, o pintor reproduz tinha uma acepção ligada a movimento e
Convivio e que hoje servem de base para pondente semântico em outra língua não o irreproduzível, o estatuário fixa o infi- condução: traduzir, portanto, seria trans-
uma argumentação pela intraduzibilidade seria o bastante, porque o que estava xável. Não é surpreendente, pois, que o portar um texto de um lugar para outro.
da poesia: “nada harmonizado em música “harmonizado em música” não seria mais tradutor se empenhe em traduzir o intra- Em segundo lugar, que esse conceito me-
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tafórico implica a imagem melancólica da sedutor enquanto possibilidade aberta à que ele chama “linha de invenção”, que outra língua. No entanto, para que o
perda, já que se trata de “levar algo” para recriação.” O que Haroldo de Campos rea- permite alterações e inserções na tradu- processo crítico se realize, o tradutor
que chegue incólume. Assim, a tradução liza nesse trecho curto é uma virada da ção, desde que condizentes com o modo precisa atuar em pelo menos duas
estaria de fato fadada ao fracasso, já que argumentação tradicional do pensamento de escrita do autor traduzido. O principal frentes: por um lado, na escolha de
sempre entrega do outro lado da margem cristão ocidental sobre tradução. O texto problema argumentativo desse artigo está poetas que precisem ser traduzidos ou
um texto diferente do original. O termo na mais difícil — em muitos casos, aquele no fato de que Campos troca a visão tradi- retraduzidos em determinada língua,
origem latina, somado à metafísica oci- “harmonizado em música”, se retomar- cionalista do texto original — a semântica, vale dizer, uma crítica da tradição poé-
dental cristã — que em geral pensava na mos as palavras de Dante— “mais recriá- por um lado, ou a intraduzibilidade da ca- tica diacrônica e do presente em sua
tradução da Escritura —, contribui para vel”, porque no trabalho poético a aber- deia fônica, por outro — por outra imagem sincronia; e, por outro, num projeto
um pensamento melancólico derivado da tura inevitável da obra seduz o tradutor do texto original que, de certo modo, é tradutório que apresente em seu pró-
perda; mas podemos dar-lhe uma acepção a mais variedades de tradução criativa, ainda mais vaga talvez derivada da tradi- prio corpo essa avaliação crítica do
nova que incorpore seu aspecto criativo. já que o texto não cobra a recriação da ção romântica: o “espírito” ou o “clima”. texto original. Daí que, neste artigo,
Na verdade, como bem demonstra Mauri- sua inteireza, ou seja, da sua materiali- Nesse ponto do seu pensamento, Ha- nasça uma espécie de pedagogia “não
zio Bettini, em Vertere: dade mesma. Esse pensamento não é de roldo praticamente se restringe a tro- morta e obsoleta, em pose de contri-
todo novo, claro: já estava profundamen- car a ênfase do semântico para o esté- ção e defunção, mas fecunda e estimu-
O fato é que os povos e as culturas, te calcado na linguística de Roman Jakob- tico; o que é um passo importante, lante, em ação” (ibid.: 44): a tradução,
quando querem definir o ato de traduzir son e na estética de Max Bense; deste, mas ainda incipiente. É só quando pas- sem a mística da intraduzibilidade, ga-
de uma língua para outra, pensam isso Haroldo concluía sobre a complexidade e sa à análise das traduções de Odorico nha a possibilidade crítica, e mais, a
de modos bastante diversos entre si: e fragilidade da informação estética, porém Mendes que Haroldo demonstra melhor possibilidade de ser uma categoria do
sobretudo formulam essa noção segundo discordava quando Bense afirmava, em uma noção de projeto tradutório: a saber, com análises e decomposições
paradigmas linguísticos e culturais ex- princípio, a intraduzibilidade, e preferia a tradução que Odorico fez da poesia ho- pedagógicas para que o processo pos-
tremamente específicos, ligados à cultu- possibilidade jakobsoniana da recriação mérica tem valor, para Haroldo, não sa ser ensinado aos interessados.
ra que os produz. Exatamente por isso, paralela como um corolário da abertu- porque reproduzia fielmente um “cli- O pensamento iniciado naquele
limitar-se a traduzir as palavras para ra estética (Jakobson não aparece citado ma” homérico, nem porque alcançava artigo foi aprofundado e radicalizado nas
‘traduzir’ por ‘traduzir – o trocadilho é neste artigo, mas sua influência sobre o uma fidelidade poética mais acurada, décadas seguintes. Em 1976, quando pu-
inevitável – leva não apenas a falsear o poeta paulista será crescente). Para isso, mas sobretudo por “desenvolver um blica suas primeiras traduções de seis can-
sentido dessas palavras específicas, mas, apoiava-se na prática tradutória do poeta sistema de tradução coerente e consis- tos do Paradiso de Dante, Haroldo de
pior ainda, a mistificar o contexto cultural norte-americano Ezra Pound, com a pro- tente, onde seus vícios (numerosos, Campos cunha o termo transcriação, para
onde elas foram geradas (2012: ix). posta do make it new: sem dúvida) são justamente os vícios evitar qualquer confusão com as ideias
de suas qualidades, quando não de sua mais tradicionais sobre tradução e fideli-
A metáfora de “levar”, ou “trans- muitas vezes, Pound trai a letra do origi- época” (ibid.: 38). Ao tradutor criativo dade semântica. A ideia de trans+criar já
portar” é apenas um modo de pensar esse nal (…); mas, ainda quando o faz, e ain- caberia então a criação de um projeto indica que não se trata mais de conduzir
ato. Não foi à toa, afinal, que Haroldo de da quando o faz não por opção voluntária de leitura e a realização que, por sua (“-duzir”, do latim ducere) para algum lu-
Campos passou a utilizar o termo trans- mas por equívoco flagrante, consegue coerência e consistência, apresente gar, pois agora se trata de criar algo em
criação para os seus trabalhos tradutó- quase sempre (…) ser fiel ao “espírito”, uma crítica do texto original ao mesmo outro ponto, num processo de profundo
rios, para evitar cair na lógica tradicional ao “clima” particular da peça traduzida; tempo em que se insira no tempo, na diálogo poético e crítico. Trata-se, afinal,
vinculada às imagens de levar e trazer um acrescenta-lhe, como numa contínua se- sua própria época. É nesses termos “de um modo de traduzir que se preocupa
texto original ou seu leitor. Esse problema dimentação de estratos criativos, efeitos que Haroldo (ibid.: 43-4) pensa uma eminentemente com a reconstituição da
já aparece em germe na seguinte afirma- novos ou variantes, que o original autori- crítica via tradução (criticism via trans- informação estética do original em portu-
ção em “Da tradução como criação e como za em sua linha de invenção (ibid.: 37). lation), porque o texto original se pres- guês, não lhe sendo, portanto, pertinente
crítica”, de 1962 (2004: 35): “Tradução de ta à análise meticulosa do seu maqui- o simples escopo didático de servir de au-
textos criativos será sempre recriação, ou Então, no lugar da tradicional fide- nário (portanto, já crítica e distante da xiliar à leitura desse original” (1976: 7).
criação paralela, autônoma, porém re- lidade semântica, melhor seria erigir uma metafísica do “gênio incomparável do Neste ponto, está claro que o texto da tra-
cíproca. Quando mais inçado de dificul- fidelidade ao “espírito” ou ao “clima” do poeta”), para que o tradutor o possa dução poética não serve para apenas
dades esse texto, mais recriável, mais texto original, sobretudo se embasado no recriar, por meio do labor poético, em apontar o original, já que passa a ocupar o
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lugar de novo texto em nova língua: a me- qualquer modo, numa afirmação como críticas aos textos sobre linguagem adâ- como ele mesmo explicita seu pensamen-
lancolia tradutória pode ser, dessa forma, essa vemos a crescente radicalização das mica escritos por Benjamin em 1916, que to em dois artigos posteriores (Haroldo
mitigada. Isso não implica, no entanto, propostas de Haroldo de Campos. viriam a embasar o pensamento do autor escreve o exato mesmo parágrafo, 2013:
que o texto nunca possa servir de acesso O pensamento tradutório de Ha- alemão no seu texto tradutório. Num arti- 55-6 e 100):
à leitura do original, é só que esse acesso roldo de Campos atinge o ápice da sua ra- go de 1992 intitulado “O que é mais im-
da transcriação é uma lente crítica e cria- dicalidade em “Transluciferação mefisto- portante: a escrita ou o escrito?” (2013: Tenho para mim que o jogo conceitual
tiva sobre o original, com nova “informa- fáustica”, de 1981. Nele, Haroldo 141-54), Haroldo de Campos atacaria com benjaminiano é um jogo irônico (...) Sob
ção estética” (termo ainda derivado de apresenta uma leitura inventiva do clássi- mais minúcia ainda outro problema da a roupagem rabínica de sua “metafísica”
Bense). Sua crítica continua então a ope- co texto de Walter Benjamin, “Die Aufgabe teoria benjaminiana: a intraduzibilidade do traduzir pode-se depreender nitida-
rar abertamente naquelas duas fronteiras: des Übersetzers”, originalmente escrito no das traduções. Na verdade, esse problema mente uma “física”, uma pragmática da
a crítica do texto original e a crítica do início da década de 19202, para afirmar já tinha sido posto em xeque num artigo tradução. Essa “física” pode, hoje, ser
contexto de chegada. Alguns anos depois, que o teórico alemão: “inverte a relação de 1969, “A palavra vermelha de Hoelder- reencontrada in nuce nos concisos teo-
ele fará uma formulação inda mais preci- de servitude que, via de regra, afeta as lin” (In: 1972), em que Campos traduz um remas jakobsonianos sobre a tradução
sa: “a escolha do modelo a transcriar não concepções ingênuas da tradução como trecho da tradução que Hölderlin havia fei- (...), aos quais, por seu turno, os relam-
é ingênua, nem deve ser inócua. Trata-se tributo de fidelidade” (1981a: 179). As- to da Antígone de Sófocles; o assunto é pagueantes filosofemas benjaminianos
fundamentalmente de uma operação críti- sim, Haroldo lê, ou deslê, a passagem ainda ampliado em outro artigo de 1996, darão uma perspectiva de vertigem.
ca” (1981b). Mais tarde, dirá que o objeti- benjaminiana que caracteriza as traduções “A clausura metafísica da teoria da tradu-
vo é produzir “um texto comparativa e convencionais como “transmissão inexata ção de Walter Benjamin, explicada através Então, para o brasileiro, por um
coextensivamente forte, enquanto poesia de um conteúdo inessencial (eine unge- da Antígone de Hölderlin” (In: 2013); em lado Jakobson dá a fundamentação físi-
em português” (1993:11). Assim, em vez naue Uebermittlung eines unwesentlichen todos os casos, Haroldo rompe com a ideia ca e linguística para uma poética do tra-
de uma pretensa fidelidade, a tradução Inhalts)” (ibid.: 179), tomando-a como de que uma tradução não deveria ser tra- duzir, por outro, Benjamin dá ao aparato
“guarda, com o texto de partida, uma re- uma defesa para sua proposta de trans- duzida; afinal, se tradução é um novo tex- lógico uma potencialidade filosófica que o
lação formal e semântica de ‘reimagina- criação. Para tanto, sua leitura acaba por to, ela renova o empenho dos tradutores. prepara para a transluciferação, o grande
ção’, para além tanto do rudimentarismo “equacionar a teoria da tradução do lin- salto no pensamento tradutório de Harol-
literal, como da banalidade explicativa” guista Roman Jakobson com a do filósofo De modo similar, a tese benjami- do de Campos. Ao longo desse processo,
(1994: 17). Nesse sentido, a crítica via Walter Benjamin (...). A primeira estaria niana da estrangeirização é retomada por Haroldo também faz uso do pensamento
tradução é um processo conciso, em que o para a segunda como uma física da tradu- Campos pelo seu viés poético e político: desconstrutivo de Jacques Derrida (num
tradutor precisa explicitar sua leitura a ção para a sua metafísica” (apud Lages, “ao invés de aportuguesar o alemão, ger- trecho como “tradução enquanto inscrição
partir de soluções poéticas, sem um alon- 2002: 187, grifo do autor). Cláudia Santa- manizo o português, deliberadamente, da diferença no mesmo”) para liberar da
gamento explicativo sobre os problemas na Martins, ao comentar a apropriação de para o fim de alargar-lhe as virtualidades “clausura metafísica” o pensamento ben-
do texto. Essa ideia aparece na entrevista Benjamin por Haroldo de Campos, afirma criativas” (1981a: 194). Portanto, está jaminiano e fazer propostas radicais como
em que Campos defende que “a tradução que “Haroldo despe a ‘roupagem rabínica’ aqui longe de toda a questão messiânica a de que o texto tradutório deve ser lucife-
poética é uma prática teórica, em que o da teoria de Benjamin, considerando a presente em Benjamin (cf. Lages, 2002) rino, ou seja, derivar de sua função angé-
poeta tem a mesma natureza” (2005: ‘língua pura’ não como a língua adâmica, para se dar numa política material das lín- lica (de grego ἀγγέλος, “mensageiro”, que
354). A afirmação tem seu exagero retóri- primeva, mas como o ‘lugar semiótico da guas; com isso, Campos também se afas- levaria a mensagem, seu conteúdo sem a
co, já que certamente o ato de traduzir operação tradutora’(…)” (2011: 148-9). ta de uma corrente que Inês Oseki-Dépré forma) a faceta demoníaca de usurpação
não é idêntico ao de compor uma nova Talvez a equação mais notável seja aproxi- identifica na França, onde “a literalidade do lugar do original, uma recriação formal
obra, mas procede, se considerarmos que mar a negação da comunicação nas obras (…) é o caminho que permite criar ou re- ao modo de um ágon com o texto de par-
se trata da natureza do artífice, do artesa- literárias (Benjamin) a ideias que o próprio criar a obra original num élan hiperliteral tida; “assim, nada mais estranho à tarefa
nato linguístico que dá forma à poesia, de Haroldo já vinha defendendo havia quase ou extraliterário (Pierre Klossowski, Michel do traduzir, considerado como uma forma
modo que os limites entre criação autoral vinte anos, como a fragilidade da informa- Deguy, André Chouraqui)” (2005: 213-4) (...), do que a humildade” (1981a: 180).
e tradução permanecem borrados (cf. Har- ção estética (Bense) e a função poética da uma tradição que também teria o nome de Pelo contrário, como nota Lucia Santael-
dwick, 2000, onde exemplos de recria- linguagem (Jakobson). Sobretudo devido Antoine Berman (2007). Assim, Haroldo la, “a empresa é luciferina porque chega a
ções, imitações, traduções e obras novas ao refinado aparato linguístico derivado de busca operar uma espécie de refisicaliza- sugerir uma superação do texto original”
traçam diálogo com textos clássicos). De Jakobson, Haroldo de Campos faz algumas ção da metafísica de Benjamin. É o modo (2005: 229). Essa aspiração usurpado-
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ra está baseada numa nova dupla crítica sado e pela sua realização prática como de Haroldo de Campos, que foi pouco ex- mulação teórica. Haroldo compreendera
que o tradutor deve realizar: por um lado, obra do presente numa tradição de tradu- plicitado na sua própria escrita, mas que, Meschonnic perfeitamente, num texto de
contra as traduções mediadoras e, por ou- ções. Por isso, na entrevista já citada, Ha- se contrastado às teorias de outro teórico, 1985 intitulado “Da transcriação: poéti-
tro, contra as traduções medianas (1981a: roldo afirma: “a tradução como crítica tem pode ser melhor depreendido. A questão, ca e semiótica da operação tradutória”;
184), sem oferecer um resultado de fato como corolário uma crítica da tradução” no momento, é que toda tradução criativa nele, Campos promove uma crítica à crí-
poético. O risco menos óbvio está sobre- (2005: 357); e em outro artigo posterior e crítica será, por conseguinte, um ato po- tica que Meschonnic fizera a Jakobson;
tudo no segundo grupo, porque ele traduz o famoso adágio italiano tra- lítico. Esse ponto é bastante marcado no mas esse embate de Haroldo não afasta
duttore/traditore com uma mistranslation pensamento do poeta, tradutor e ensaísta o pensamento dos dois: pelo contrário, o
o empenho estético mediano, morige- intencional: “TRADUTOR:TRADITOR, pen- francês Henri Meschonnic, onde podemos poeta brasileiro se esforça por demons-
rado, apesar de suas inegáveis boas sando na tradução como tradição do pas- encontrar formulações pungentes que re- trar como o francês não compreendera
intenções, redunda em Kitsch involuntá- sado no presente” (2013: 94-5). A tradu- velam com mais clareza algumas impli- bem as teorias tradutórias de Jakobson,
rio, seja pela imperita seleção dos pa- ção envolve uma revisão participativa da cações de uma poética da tradução. No o resultado disso é que as teorias de Ha-
radigmas lexicais, seja pela trivialidade tradição, porque os textos do passado só seu hoje já clássico Pour la poétique II, roldo de Campos, Meschonnic e Jakobson
das rimas (obtidas, frequentemente, vivem no presente mediante leitores que de 1973, Meschonnic postulava uma união acabam sendo ainda mais aproximadas.
pelo pinçamento de palavras em “esta- os interpretem ativamente: “O receptor entre teoria e prática muito similar às re-
do de dicionário”, ou por um dificultoso não é somente alguém que recebe algo, lações entre tradução e teoria em Haroldo Que a ideia de “prática teórica” se afasta
contorcionismo sintático que acusa o nem está somente em estado passivo; em de Campos: da de simples empiria no caso da tradu-
“versejador de domingo”). De qualquer termos ótimos, ele deveria ser um coau- ção, não há dúvida, pois um dos fatores
modo, se o poeta-tradutor, em seu esto- tor da informação” (2002: 83). Assim, a 1. Uma teoria da tradução dos textos é constitutivos da operação tradutora é,
que mobilizável de formas significantes, tradução da tradição pode ser como uma necessária, não como atividade especu- exatamente, seu caráter crítico (aquilo
não estiver ao nível curricular da melhor maiêutica poética (2013: 115) em que o lativa, mas como prática teórica para o que Meschonnic prefere denominar o
e mais avançada poesia do seu tempo, poeta extrai a diferença por meio do pro- conhecimento histórico do processo so- “trabalho ideológico concreto” implícito
não poderá reconfigurar, síncrono-dia- cedimento mimético da tradução. Ou, se cial de textualização, como uma trans- à relação texto/tradução, envolvendo
cronicamente, a melhor poesia do pas- apenas transferirmos essas ideias semió- linguística. (...) uma teoria da tradução “descentramento”, “dessacralização”,
sado (ibid.: 184-5). ticas para a ideia de tradução luciferina, dos textos está inclusa na poética, que “anti-ilusionismo”). (2013: 91)
“toda tradução criativa é já também um é a teoria do valor e da significação dos
Desse modo, a tradução, como a caso deliberado de mistranslation usurpa- textos (1973: 305-6). O que acontece com o tradutor é
poesia, tem pouco espaço para o trabalho dora” (1981a: 208). Para Haroldo, a tra- que teoria e prática se misturam criando
mediano e requer mais ousadia luciferina dução é o caso mais óbvio dessa interven- Noutro momento, ele ainda refor- uma cadeia mútua de influências calcadas
da parte de um tradutor que, para além de ção criativa e crítica do receptor/leitor. çaria: “A teoria, a crítica, a prática são no experimentalismo que contém em si o
ler a poesia do passado e dominar algumas aqui inseparáveis” (1981: 39), e isso germe da crítica. Portanto, como ato con-
regras de métrica e rima, deve também Flamejada pelo rastro coruscante de seu se dava precisamente porque seu pen- tínuo de prática e teoria, a tradução não
estar familiarizado com a melhor poesia Anjo instigador, a tradução criativa, pos- samento teórico desde o início esteve apenas escapa a uma metodologia prede-
de seu próprio tempo. Do mesmo modo suída de demonismo, não é piedosa nem atrelado às traduções poéticas de tex- finida, como ainda poderá servir de base
como, para Henri Meschonnic, que tratarei memorial: ela intenta, no limite, a rasu- tos bíblicos, como Les cinq rouleaux, de epistemológica para uma crítica ideoló-
com vagar mais adiante, “a armadilha da ra da origem: a obliteração do original. 1970, uma união que se manteve até, por gica do aparato intelectual do ocidente,
teoria tradicional é identificar esta poéti- A essa desmemória parricida chamarei exemplo, as traduções dos Salmos, intitu- suas ideologias espalhadas nos diversos
ca do texto com o literalismo, assim como ‘transluciferação’ (ibid.: 209)4. ladas Gloires, de 2001. O resultado inevi- níveis sociais. Isso acontece porque, na
ela confunde a poesia com a versificação” tável desse entrelaçamento entre teoria, tradução, linguagens e pensamentos dife-
(2010: 5). Nesse sentido, a ideia de que E isso só pode ocorrer no momento prática e crítica, é que a tradução, como rentes entram em contato, gerando – se
o projeto tradutório importa (e muito) se em que um leitor assume conscientemen- acontecimento empírico, não se subme- livre da coação prescritiva ideológica – um
torna ainda mais complexa, porque cada te seu papel na realização de uma obra, te a qualquer tipo de metodologia prees- novo texto capaz de apresentar constan-
projeto pode e deve ser julgado segundo para em seguida tomar em mãos a escrita tabelecida, ou à mera aplicação teórica tes idiossincrasias para a teorização já es-
sua pertinência poética e política, ou seja, de uma nova obra, a tradução. Neste pon- anterior à prática; do mesmo modo que tabelecida e, em decorrência disso, uma
pela sua visão crítica sobre a obra do pas- to nós chegamos a um nó-chave da teoria a prática não pode existir sem uma for- crítica à epistemologia que havia formado
16 17
aquela teorização prescritiva. Isso impli- que chegaríamos “à noção metafísica, não a ideologia estabelecida. Para Meschon- feita pelo indivíduo que apenas conhece
ca, afinal, que a tradução, em sua poéti- historicizada, do intraduzível” (ibid.: 309), nic, é preciso combater uma dominância a língua, mas pouco intervém como lei-
ca, não pode se resumir à mediação com que por sua vez antepõe sempre o origi- da tradutória estetizante, “que se marca tor de um texto. Para Meschonnic, isso é
o texto original, sob a pretensa categoria nal à tradução, na medida mesmo em que por uma prática subjetiva de supressões muito mais do que um problema de estilo
de imparcialidade, nem pode subsistir na nega à tradução seu estatuto de texto. Ou, (das repetições, por exemplo), acrésci- e de fidelidade, trata-se de um problema
figura do tradutor invisível, que entrega como ele mesmo diz em outro livro: “O mos, deslocamentos, transformações, em de ética e de política. Apesar de ética e
uma tradução transparente ao seu leitor. intraduzível não é um dado empírico, é um função de uma ideia preconcebida sobre política serem costumeiramente planos
Ao contrário, para Meschonnic: “10. Se a efeito da teoria” (2010: 21). O texto não é língua e literatura” (ibid.: 315). Essas complementares (a ética está para a vida
tradução de um texto é estruturada-rece- estanque, nem apresenta um sentido ape- palavras, que à primeira vista poderiam privada como a política para a vida social),
bida como um texto, ela funciona texto, nas, que deva ser traduzido de modo cor- depor contra o pensamento tradutório de o tradutor francês expressa como se dá o
ela é a escritura de uma leitura-escritura, reto; a forma se imbrica no sentido tanto Haroldo de Campos, são, na verdade, mui- movimento entre um e outro plano na lin-
aventura histórica de um sujeito.” (1973: quanto o conteúdo, e desconsiderar qual- to próximas. Quando Meschonnic fala de guagem, pela poética:
307). Se considerarmos esse dado empíri- quer um dos dois seria um ato ideológico dominação estetizante, não critica a tra-
co da tradução como intervenção criativa de dominância contra aquilo que o origi- dução poética que leva em consideração Não defino a ética como uma responsa-
de um leitor que interpreta criticamente nal, por meio de uma tradução descentra- os aspectos estéticos do texto de partida, bilidade social, mas como a procura de
determinado texto e lhe dá nova forma, lizante, poderia por em xeque na ideologia mas aquelas traduções que lançam sobre um sujeito que se esforça para se cons-
claro está que não existe transparência estabelecida do presente. Nesse aspecto, o texto de partida uma poética preconce- tituir como sujeito pela sua atividade,
com relação ao original, porque a tradu- a poética da tradução de Meschonnic, as- bida e assim obliteram o original não por mas uma atividade tal, que será sujeito
ção é ela própria texto, passível de nova sim como a de Haroldo de Campos, é uma um ágon luciferino, e sim por apagamen- aquele por quem um outro é sujeito. E
interpretação e reescritura diferentes da- poética transgressora, porque pensa nas to político do ato de leitura, em geral em nesse sentido, como ser de linguagem,
quelas do texto original. Assim, Meschon- possibilidades de uma crítica sincrônica nome de ideias vagas como “bom gosto” e esse sujeito é inseparavelmente ético e
nic propõe a tradução como “reenunciação engajada a partir das contradições atuali- “espírito da língua”. Para ele, a poetização, poético. É na medida dessa solidarieda-
específica de um sujeito histórico, intera- zadas no choque com o texto diacrônico do ou literariação tradutória, é uma “escolha de que a ética da linguagem concerne a
ção entre duas poéticas, descentramento” passado ou de uma cultura diversa. É por de elementos decorativos segundo a escri- todos os seres de linguagem, cidadãos
(ibid.: 307-8), isto é, como um choque dis- esse motivo que não podemos pensar que tura coletiva de uma dada sociedade num da humanidade, e é nisso que a ética é
sonante entre pontos de vista diferentes, se traduz de uma língua para outra, como dado momento” (ibid.: 315). O exemplo política (2007: 8).
seja pela língua, pela pátria, pela cultura, é costume dizer, mas que se traduz de um principal dado pelo autor é a tradução da
etc.; o que resulta num descentramento texto para outro. O fato é que os textos Bíblia – que, no Velho Testamento, é cons- Se voltarmos à questão do he-
epistemológico que oferece ao tradutor e estão escritos em línguas diversas, porém tituída por um aglomerado de textos he- braico, veremos que, ao apagar o caráter
aos seus leitores uma visão mais comple- nunca é a língua que se traduz – siste- breus de tradição oral – segundo um crité- oral da cultura semítica, não apenas fa-
xa da existência humana. Esse descentra- ma fechado –, e sim um acontecimento rio de literatura como escrita. zemos um texto milenar de uma cultura
mento deve acontecer, portanto, por meio na língua. Se traduzimos a língua, acaba- distante soar como intrinsecamente nosso
do apagamento da ilusão de naturalidade mos por traduzir para a nossa língua, ou A estrutura paratática, coordenada do e apagamos suas diferenças estéticas; na
na tradução; o que ela deve deixar trans- seja, para um sistema fechado, sem dar hebraico bíblico é inseparável daquilo verdade, apagamos a própria literatura, e
parecer é seu próprio estatuto ambíguo de ao texto aquilo que o caracteriza – seus que é uma literatura oral. Não é apenas com ela a cultura oral que foi capaz de pro-
tradução e de texto. Para o teórico fran- desvios e idiossincrasias, sua existência a estrutura linguística que se apaga ao duzir aquele pensamento, apagamos toda
cês, a típica ilusão da transparência tradu- singular e histórica– para então criarmos traduzirmos a Bíblia na língua de Bos- a alteridade do texto e, com isso, as pos-
tória pertence ao sistema ideológico, que um texto “natural” e transparente; por suet, ou no estilo dito escrito, como se sibilidades de que ele também realize uma
se constitui pelas noções ligadas de hete- isso, por essa necessidade da relação en- o semítico fosse pensado em francês – é crítica à nossa cultura. De um lado, caímos
rogeneidade entre pensamento e lingua- tre textos, a tradução se torna um even- também essa literatura oral que se apa- no beletrismo das belles infidèles france-
gem, “noções fundadas sobre uma linguís- to translinguístico e transnarcísico (ibid.: gará (ibid.: 345-6). sas; do outro, na subserviência da mule-
tica da palavra, e não do sistema” (ibid.: 313), uma ação de alteridade. Com isso, a ta de leitura. É numa espécie meio-termo
308), que acabam por promover a sacrali- tradução pode romper as dicotomias tra- Dessa forma, a poetização bele- com posição política demarcada, abolindo
zação da literatura e a idealização do texto dicionais para implicar uma leitura crítica trista é tão inócua para a tradução poé- dicotomias e erigindo o leitor-tradutor ao
original e do seu sentido. É desse modo capaz de promover um ato político contra tica quanto a tradução palavra a palavra, estatuto de escritor, que Meschonnic pre-
18 19
tende eliminar a ingenuidade da leitura do a tradução. Sua atividade é a oralidade. A entre poesia e prosa (…) segundo opi- to-mundo (cf. Cassin 2005: 31). Assumir
texto tal qual ele é, ou transparente: “a literatura é sua realização máxima” (2010: na, a estrutura rítmica já é portadora de essa implicação política da linguagem na
poética é a ética do poema” (2007: 27). xxi). Isso implica uma historicidade do ato sentido (2004a: 26). configuração de mundo, muito além de
Uma intervenção crítica do tradutor que tradutório. É então o centramento no leitor mera ornamentação textual, exige que
leve em consideração essa ética opera, em crítico que determina a tradução, ou melhor, Então os dois pensam que a forma o tradutor seja, no fim das contas, tam-
última análise, uma transformação poéti- o traduzir, porque então Meschonnic radica- é muito mais do que um fetiche da obra bém um escritor, alguém que renuncie e
ca e cultural (1973: 319); por isso ele vê liza ainda mais o caráter experimental: poética; a forma é condição do conteú- reenuncie o original por meio de uma nova
na obra de Ezra Pound como tradutor a do, inseparável deste. Assim como no fa- escrita interpretativa e crítica, ciente de
figura de um precursor, ainda inexplorado Digo poética do traduzir, mais do que moso adágio de Maiakóvski, não haveria sua dissemelhança em relação ao origi-
(ibid.: 322-3). Isso ganha ainda mais for- “poética da tradução”, para marcar que arte revolucionária sem forma revolucio- nal. “A tradução é sempre reenunciação.
ça, se levarmos em conta sua insistência se trata da atividade, por meio de seus nária, poderíamos pensar que não existe O tradutor que acreditava não interpre-
sobre a tradução como acontecimento de produtos. Como a linguagem, a litera- tradução política sem uma forma política tar estava, graças ao mesmíssimo pris-
um discurso para outro discurso, não de tura, a poesia são atividades antes de de tradução, sem um olhar para as for- ma ideológico, cego de si mesmo” (1973:
uma língua para outra. Para Meschonnic a gerar produtos. Olhar o produto primei- mas políticas dos textos alheios: explici- 359-60), diz Meschonnic. “O tradutor é
língua, a langue de Saussure, é uma abs- ro é, segundo o provérbio, olhar o dedo, tar a alteridade, nesse caso, é promover um leitor-autor”, complementa Haroldo
tração como um todo; na prática o que te- quando o sábio mostra a lua. uma crítica intensa do contexto presente de Campos (1989: 89), e mais: “só me
mos é sempre parole, a fala; que no caso Antes, quase, poética do retraduzir. ao mesmo tempo em que se critica o texto proponho a traduzir aquilo que para mim
da poesia assume a força discursiva espe- (ibid.: xix). original. Podemos com isso, retornar a um releva em termos de um projeto de mili-
cífica. Traduzir, portanto, não é enfrentar texto de Haroldo, para explicitar a política tância cultural” (2013: 136); e num artigo
uma língua, mas seu acontecimento como Daí que todo traduzir seja em implícita na sua teoria, agora à luz da po- de 1997 Haroldo volta a afirmar que a tra-
discurso; porque na verdade a literatura grande parte retraduzir, uma inserção lítica e da ética em Meschonnic: dução é uma forma de pedagogia (2013:
apenas demonstra com mais especifici- também na história das traduções do tex- 204). Cada tradutor terá um programa,
dade que não existe concretamente a lín- to; mas inserção que contém o germe do ao significar-se como operação trans- ou um projeto de militância cultural, pró-
gua: apenas discursos (1982: 85). Sem imprevisto, já que é sempre experimental. gressora, a tradução põe desde logo prio, vinculado aos seus interesses como
a metafísica da língua, o texto nos chega Por isso, podemos dizer que é na proposta entre parênteses a intangibilidade do leitor e talvez até como autor e, por isso,
dessacralizado, passível da crítica do su- de atualização inventiva e crítica dos tex- original, desnudando-o como ficção capaz de influir sobre o mundo, ou “lan-
jeito que o interpreta e traduz. Com essa tos traduzidos que se unem essas duas e exibindo sua própria ficcionalidade çar mundos no mundo”, como na canção
dessacralização do sentido unívoco do tex- poéticas de Haroldo de Campos e Henri de segundo grau na provisoriedade do de Caetano Veloso. Esse questionamento
to original, Meschonnic ainda insiste num Meschonnic. Até o momento, venho lendo como se. No mesmo passo, reconfigura, profundo que leva à intervenção política e
ponto fundamental: “a poesia não é um Meschonnic à luz de Haroldo de Campos, numa outra concretização imaginária, o poética acaba por exigir muito do tradu-
caso especial na língua” (ibid.: 332); afir- para fazer daí emergir um diálogo intenso; imaginário do original, reimaginando-o tor, para que essa tradução, uma vez feita,
mação que se desdobra em dois aspectos: mas também poderia fazer o movimento por assim dizer (1989: 94). também passe a existir. Como afirma Mes-
por um lado, arruína o estatuto sacralizado inverso, encontrar mais facilmente em Ha- chonnic, “A Bíblia foi traduzida em inglês,
da poesia como palavra intocável, intradu- roldo referências ao poeta, tradutor e teó- Nos dois casos, a intervenção po- em alemão. A Bíblia nunca foi traduzida
zível, como metafísica, originada do gênio, rico francês, sobretudo nos trabalhos com lítica e a transcriação existem num am- em francês” (2010: xxvii). Não há espa-
etc.; por outro, determina que qualquer poesia bíblica (1993, 2004a e 2004b), em biente sem a melancolia por uma perda ço para a humildade, ou para a tradução
pensamento sobre a linguagem deve in- trechos como: irreparável no texto de partida, porque mediana: ela será tradução, ou simples-
cluir a poética, já que a poesia não é anta- ambas as teorias repousam na ideia de mente não será (ibid.: lxi). A conclusão é
gônica aos outros usos da língua, tal como Uma das maiores contribuições do (…) que o texto original não é igual a si mes- que “quanto mais o tradutor se inscreve
a oralidade não se opõe à escrita (sobre francês Henri Meschonnic à poética da mo (diria Meschonnic, que “um texto é como sujeito na tradução, mais, parado-
a falsa oposição entre oral e escrito, cf. tradução bíblica está, a meu ver, na ên- sempre poesia de sua gramática”, 1973: xalmente, traduzir pode continuar o tex-
Finnegan, 1977, passim, e 1982, intro.). fase por ele dada ao aspecto ritmopéico, 345); ele é uma ficção do mundo e de si, to. Quer dizer, em um outro tempo e uma
Na tradução, essa união é explicitada, de rítmico-prosódico, do original hebraico que, por isso mesmo se transforma diante outra língua, dele fazer um texto. Poética
modo que “dois modos de transformação, (…). Julgando não-pertinente quanto aos das várias leituras que lhe são impostas e pela poética (ibid.: xxxiv). O processo crí-
na política e no pensamento, agem sobre textos bíblicos a distinção convencional pode talvez performar com isso um efei- tico que propõe um novo texto no lugar
20 21
do original – arriscando obliterá-lo lucife- do texto original quanto com o presente/ pp. 13-15. Paris: Gallimard, 1970.
rinamente – não será, ao fim e ao cabo, futuro de sua própria cultura: poético, éti- _________. “Da tradução à transficciona- __________. Pour la poétique II: Épisté-
uma resolução; pelo contrário, ele entra na co, político. lidade”. In: 34 Letras. n.3; março de 1989. mologie de l’écriture; Poétique de la tra-
história e convive intertextualmente com Pp. 82-101. duction. Paris: Gallimard, 1973.
o texto original, sem se prestar ao serviço _________. Bere’shith: a cena da origem __________. Jona et le signifiant errant.
de muleta de leitura. É arriscando o apaga- (e outros estudos e poética bíblica). São Paris: Gallimard, 1981.
mento pelo ágon que a tradução, no fim, dá Paulo: Perspectiva, 1993. __________. Critique du rythme: anthro-
continuidade ao original. Do mesmo modo, _________. Hagoromo de Zeami: o char- pologie historique du langage. Lagrasse:
sem facilitar qualquer ideia de fidelidade, me sutil. São Paulo: Liberdade, 1994. Verdier, 1982.
“uma grande tradução é uma contradição _________. “Semiótica como prática e __________. Politique du rythme: Politi-
que se mantém” (ibid.: lxii). Tanto no ágon não como escolástica” (entrevista). In: que du sujet. Lagrasse: Verdier, 1995.
como na contradição, o texto da tradução Depoimentos de oficina. São Paulo: Uni- __________. Gloires: traduction des psau-
ocupa um lugar, ele não será mais trans- marco, 2002. mes. Paris: Desclée de Brouwer, 2001.
porte, nem transparência do original. Por _________. Qohélet = O-que-sabe : Ecle- __________. Éthique et politique du tra-
certo isso pode envolver a questão dos siastes : poema sapiencial (com uma co- duire. Lagrasse: Verdier, 2007.
equívocos do processo tradutório, mas gos- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS laboração especial de J. Guinsburg). São __________. Poética do traduzir. Trad. Je-
taria de ressaltar, como Viveiros de Castro Paulo: Perspectiva, 2004a [1990]. rusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
(2004 e 2009), que um equívoco não se ALIGHIERI, Dante. Obras completas. Con- _________. Éden: um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2010.
iguala a outras perdas tradutórias, porque tendo o texto original italiano e a tradução Paulo: Perspectiva, 2004b. OSEKI-DÉPRÉ, Inês. “Make it new”. In:
não se trata de uma falha (como uma fal- em prosa portuguesa. 10 vols. São Paulo: _________. Haroldo de Campos — Trans- MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima:
ta) de interpretação, pelo contrário - é um Editora das Américas, 1958. criação. org. de Marcelo Tápia & Thelma Mé- para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos.
excesso interpretativo. Tal como a antro- BERMAN, Antoine. A tradução e a letra: ou o dici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2013. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 213-220.
pologia, também a tradução poética se in- albergue do longínquo. Trad. de Marie-Helè- ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: ex- RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. Os
teressa pelo equívoco possível, entendidos ne Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia periências de tradução. Trad. Eliana Aguiar. Cadernos de Cultura: Ministério da Educa-
como “o fundamento mesmo da relação Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007. ção e Saúde, 1952.
que o implica e que é sempre uma rela- BETTINI, Maurizio. Vertere: una antropo- FINNEGAN, Ruth H. Oral poetry: its natu- SANTAELLA, Lucia. “Transcriar, transluzir,
ção com a exterioridade” (2009: 58, trad. logia della traduzione nella cultura antica. re, significance and social context. Cam- transluciferar: a teoria da tradução de Ha-
minha ), porque o equívoco pressupõe a Torino: Einaudi, 2012. bridge: Cambridge University Press, 1977. roldo de Campos” In: MOTTA, Leda Tenório
heterogeneidade das premissas em jogo; CAMPOS, Augusto de. Quase Borges: 20 ____________ (ed.). The Penguin book of da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’
no nosso caso, ele funda uma relação que transpoemas e uma entrevista. São Paulo: oral poetry. London: Penguin, 1982. de Haroldo de Campos. São Paulo: Pers-
se desenvolve poeticamente. Isso significa Terracota, 2013. HARDWICK, Lorna. Translating words, trans- pectiva, 2005, pp. 221-232.
que, à diferença do texto argumentativo/ CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como lating cultures. London: Duckworth, 2000. STEINER, George. After Babel: Aspects of
interpretativo, que se baseia numa coerên- criação e como crítica.” In: Metalinguagem JAKOBSON, Roman. “On linguistic aspects of language and translation. Oxford: Oxford
cia argumentativa, e da tradução semânti- e outras metas: ensaios de teoria e crítica translation”. In: BROWER, Reuben A. (org.) University Press, 1975.
ca, que tende a confiar num sentido estável literária. São Paulo: Perspectiva, 2004. On translation. New York: Oxford, 1966. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.“Pers-
do texto original, a tradução poética recria _________. A arte no horizonte do prová- LAGES, Susana Kampff. Walter Benja- pectival anthropology and the method of
o original pela formulação ativa de um novo vel. São Paulo: Perspectiva, 1972. min: tradução e melancolia. São Paulo, controlled equivocation”. In: Tipití: Jour-
texto poético, portanto, passível de inúme- _________. “Luz: a escrita paradisíaca”. Edusp, 2002. nal of the Society for the Anthropology
ras leituras como fora o original; a tradução In: ALIGHIERI, Dante. Seis cantos do Pa- MARTINS, Cláudia Santana. Vilém Flusser: of Lowland Southamerica. No. 1, vol. 2.
poética, em vez de resolver os pontos de raíso. Recife: Gastão de Holanda, 1976. a tradução na sociedade pós-histórica. 2004. pp. 3-22. Consultado em http://di-
abertura pela interpretação mais correta, _________. Deus e o diabo no Fausto de São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2011. gitalcommons.trinity.edu/cgi/viewcontent.
pode preferir mantê-los ou recriá-los, en- Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981a. MCELDUFF, Siobhán. Roman theories of cgi?article=1010&context=tipiti.
quanto performa sua tarefa crítica. E isso _________. “A transcriação do Fausto” translation: surpassing the source. New _________. Métaphysiques cannibales.
só pode acontecer quando o tradutor é um In: “Suplemento de Cultura” d’O Estado York/London: Routledge, 2013. Lignes d’anthropologie post-structurale.
leitor ativo envolvido tanto com o passado de São Paulo, ano II, n. 62, 16-08-1981b, MESCHONNIC, Henri. Les cinq rouleaux. Paris: PUF, 2009.
22 23
Notas
2013: 2011-4.
operação tradutória”.
por Haroldo.
24 25
se tem colocado através de toda a o canto XXVI do Inferno, canto
minha carreira poética, é aquele no qual Dante propõe a solução
problema que está quase na raiz para um enigma que vinha da
de meu trabalho: o enfrentamento tradição clássica, o enigma do
constante que o poeta acaba tendo fim de Ulisses.7
com o fazer poético.4 (...) Dante está propondo um
(...) há uma constante tentativa de fim para Ulisses, na carência do
se (...) colocar novamente diante fim homérico (...) O ultrapassar,
IMPOSSÍVEL
colunas de Hércules. A busca de
A dificuldade de fazer o novo alguma coisa que estivesse mais
aponta para a dificuldade de realizar o im- além, busca que correspondia a
possível, tal como teria intentado Odisseu um afã de curiosidade, um desejo
em sua última viagem, relatada por Dante de conhecimento, àquilo que em
no canto XXVI do Inferno, em que busca grego se chama húbris: essa des-
ultrapassar a fronteira do permitido aos mesura orgulhosa com que o ser
homens. Nas palavras de Haroldo: humano intenta, de certa manei-
Marcelo Tápia ra, confrontar-se com o impossí-
No canto XI da Odisseia, quando vel, no caso de Ulisses colorida
Tirésias se pronuncia sobre o fim pelo tema da velhice, porque é o
de Ulisses, a frase do vaticínio velho Ulisses que vai fazer essa
(...), no texto grego, se presta a viagem.8
mais de uma interpretação. Pode-
-se entender thánatos eks halós Curiosa mas muito coerentemen-
como uma morte para longe do te, os limites do novo são buscados, por
mar salino, ou como uma morte Haroldo, na recriação da tradição9, toma-
que procede do mar salino. En- da como origem, gênese de seu poema;
A última viagem do herói grego da3. Incitado por seu desejo de desafio tão não estava claro na tradição neste caso, a viagem refazedora recai
Odisseu é também a viagem que, de meu constante, em busca de contribuir para se Ulisses morreria por causa do sobre o naufrágio do herói grego, cuja
ponto de vista, Haroldo de Campos rea- a explicitação da gênese da poesia e da mar, ou seja, no mar, num nau- gesta ultrapassou e ultrapassa os limites
liza mais plenamente até o porto tran- renovação de sua própria poética, Harol- frágio, ou se Ulisses acabaria das gerações:
sitório do enfrentamento do impossível, do ilumina a evidência de que o poema morrendo em paz, em Ítaca, lon-
propulsor de sua própria criação poética. se constrói por movimento derivativo de ge do mar salino.6 O risco da criação pensado como
Refiro-me ao poema “Finismundo: a úl- reinvenção, associando as ideias, as pa- um problema de viagem e como
tima viagem”, originalmente publicado lavras, a sensibilidade estética e a cons- “Finismundo” se gera, segundo o um problema de enfrentamento
como livro em 19901, e posteriormente ciência da linguagem: autor, a partir da leitura de um ensaio: com o impossível, uma empre-
incluído no volume Sobre “Finismundo: a sa que, se por um lado é punida
última viagem”, de 19972, e na coletânea (...) no final do ano passado (...) o embrião que me permi- com um naufrágio, por outro é
de poemas Crisantempo, de 1998. (1989), que foi quando comecei tiu concretar, realizar o texto do recompensada com os destroços
Odisseu-Ulisses é o símbolo que reúne a escrever Finismundo (...) eu Finismundo foi, curiosamente, do naufrágio que constituem o
sua leitura da tradição por um viés do estava fazendo um balanço des- (...) um estudo (do crítico D’Arco próprio poema.10
novo, do inusitado; por uma tradução ses (meus) 40 anos de produção Silvio Avalle) intitulado “L’ulti-
da tradição que implica a apropriação de poética. E o problema que se colo- mo viaggio d’Ulisse”, onde esse Relembre-se o trecho final da pri-
sua historicidade para que seja recria- cava, àquela altura, que, de resto, autor italiano se detém sobre meira parte de “Finismundo”:
26 27
Ele foi – lutamente realizada de sua poesia no con- dutórias de seu autor, que consideram a
Odisseu. texto da – por ele proposta – “pluraliza- tradução poética como uma recriação, ou,
Não conta a lenda antiga ção das poéticas possíveis”, característica como preferia ele, transcriação – “criação
do Polúmetis o fado demasiado. da “poesia pós-utópica”, porque posterior paralela, autônoma porém recíproca” –,
Ou se conta a toda utopia e toda possibilidade desta, uma reescrita análoga àquela de um pa-
desvaira variando: infinda o fim. que era própria das vanguardas (em que limpsesto, que também faz incorporar,
Odisseu foi. Perdeu os companheiros. todos os criadores se engajam num pro- pela transparência residual, signos pas-
À beira-vista pósito comum)11, caso do movimento da sados (repassados) e camadas diversas
da ínsula ansiada – vendo já poesia concreta. Não só pela múltipla face de significação.
o alcançável Éden ao quase semiótico-poética, de emprego do verso Acerca da ensaística do autor, o en-
toque da mão: os deuses conspiraram. num espaço amplo de significação, no qual contro entre a tradução – transcriação – e
O céu suscita os escarcéus do arcano. os elementos de associação paradigmáti- a literatura, ideada na conceituação da his-
A nave repelida ca se configuram ao mesmo tempo livre e tória da criação literária como plagiotropia
abisma-se soprada de destino. exatamente, evocando toda a história da (no sentido etimológico, de plágios, suge-
Odisseu não aporta. poeticidade, mas também pela apropriação rindo-se a derivação oblíqua, não retilínea,
de aspectos da dicção de Manuel Odorico de toda obra literária)13 ecoa no poema
Efêmeros sinais no torvelinho Mendes (revivido pelo autor como reva- pelo convívio da criação com a recriação,
acusam-lhe o naufrágio – lorização de procedimentos que lhe eram do presente com o passado desconstruí-
insta mas declinam característicos)12, de citações e referências do e presentificado num contexto novo e
soçobrados no instante. e da própria mítica do herói grego, cujo dirigido ao futuro da permanência de um
Água só. Rasuras. fim é mencionado em Homero e recontado herói-agente da sincronicidade por meio da
E o fado esfaimando. Última em Dante – no próprio poema, portanto, poesia – e do poema.
thánatos eks halos espelha-se o plano pós-utópico da plura- A sincronicidade – conceito caro a
morte que provém do mar salino lidade linguística e literária, que abrange Haroldo de Campos – instila sua natureza
húbris. a formação múltipla nos planos formal e em sua poética tradutório-ensaística. Nele,
Odisseu senescente semântico, incorporando-se a temática as ideias, formas e temas convergem para
da glória recusou a pompa fúnebre. de um ensaio alheio voltado à herança da um fazer e refazer constantes que sugerem
Só um sulco poesia ocidental. Neste ponto, justifica-se o ir e vir do mesmo mar: mar da travessia
cicatriza no peito de Poséidon. a afirmação quanto ao papel emblemático textual de Ulisses14, mar cor de vinho, mar
Clausurou-se o ponto. O redondo do texto relativamente às convicções tra- das Galáxias, mar de palavras:
oceano ressona taciturno.
Serena agora o canto convulsivo
o doceamargo pranto das sereias
( ultrassom incaptado a ouvido humano ).
multitudinous seas incarnadine o oceano oco e regougo a proa abrindo um
sulco a popa deixando um sulco como uma lavra de lazúli uma cicatriz
Finismundo é, penso, o texto creta, nos anos 1950 e 1960); a estru- contínua na polpa violeta do oceano se abrindo como uma vulva violeta
mais emblemático da produção poética turação inventiva; a riqueza, a precisão a turva vulva violeta do oceano oinopa ponton cor de vinho ou cor de
haroldiana em si mesma, como o é re- e a criação vocabulares; a espécie de ferrugem conforme o sol batendo no refluxo de espumas o mar multitudinário
lativamente a suas produções ensaística mescla – única e marcante – de cons- (...)
e tradutória. Quanto à própria poesia do trutivismo e certo barroquismo peculiar; vário murchado e flóreo multitudinoso mar purpúreo marúleo mar azúleo e
autor, o poema encarna conceitos que a utilização de recursos incorporados ao mas e pois e depois e agora e se e embora e quando e outrora e mais e
permeiam sua trajetória criadora, como: verso e seu sentido, como a espaciali- ademais mareando marujando marlunando marlevando marsoando polúphloisbos15
a síntese (levada ao “minimalismo”, no zação das linhas; e, ainda, entre outras
dizer de Haroldo, na fase da poesia con- características notórias, a inserção abso-
28 29
Em “Finismundo”, duas partes, dialetizam a sincronicidade. Diz Haroldo: a inverter a pirâmide dantesca: inicia-se Notas
dois tempos – um mítico, outro secular – com visões do Paraíso, para chegar, ao 1 CAMPOS, H. Finismundo: a última viagem. Ouro
fim, ao mais baixo do Inferno, onde se Preto: Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1990.
encontram seus “últimos lêmures” – um
(...) na primeira parte do meu trabalho, esta situação do herói homérico, eu a trato “êxito ao revés”. Trata-se de uma reescrita 2 CAMPOS, H. Sobre “Finismundo: a última viagem”.
em modo sério-estético, ou seja, trabalhando sobretudo com determinadas estruturas à maneira de um palimpsesto que permite Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. O volume contém a
de linguagem que retomam um certo teor épico, utilizando a visualidade do texto, desvelar resquícios de escritas anteriores: transcrição de uma palestra ministrada pelo autor como
uma herança da poesia concreta, para marcar como que os movimentos das ondas, o uma recriação indicial-icônica, pois, ao in- encerramento do Seminário sobre o Manuscrito, organiza-
balanço do poema (...) E na segunda parte, isso tudo é posto em questão de um modo dicar elementos de uma tradição (evoca- do pelo setor de Filologia da Fundação Casa de Rui Barbo-
derrisório (...) O polúmetis, o poliardiloso, o Odisseu que tem tantos engenhos, vira da e relida a partir de seu fim, o presente sa, no Rio de Janeiro, em 1990.
Ulisses, um factótum, aquele que faz tudo, uma palavra do latim usada pejorativamen- da criação, instalado na visão paradisía-
te no jargão forense (...) O poema são os salvados no naufrágio. Isto não é dito, mas ca que ilumina o percurso a ser seguido 3 Diz Haroldo, em seu artigo “Tradução, ideologia e
isto está exposto no estar-aqui do poema, na sua existência e subsistência. (...) Esses até suas origens), reinstaura paradigmas história”, acerca da tradução criativa: “no caso do que eu
salvados do naufrágio entre um passado onde, por exemplo, foi possível um gesto épi- – qualidade transformada na passagem chamo ‘transcriação’, a apropriação da historicidade do
co, e um presente onde as sereias viraram sirenes e os escolhos, que amedrontavam de um a outro tempo, de um a outro es- texto-fonte pensada como construção de uma tradição
os nautas homéricos no seu desafio ao mar aberto, viraram acidentes de tráfego (...)16 paço –, novos estímulos à percepção em viva é um ato até certo ponto usurpatório, que se rege
novo contexto, em que se insere a nova pelas necessidades do presente da criação” (em: TÁPIA,
dimensão poética, configurando um mapa Marcelo; NÓBREGA, Thelma M. (org.). Haroldo de Campos
Segue-se o trecho final da segun- heroica se apequena e banaliza no dia a palpável da criação. Outro claro exemplo – – Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 39).
da parte do poema, em que a grandeza dia de uma metrópole contemporânea: aqui apenas referido muito sucintamente
– do processo criador de Haroldo de Cam- 4 CAMPOS, H. Op. cit., 1997, p. 13.
pos (que discute “o trabalho de construção
Capitula do poema” e considera que em seu pró- 5 Id., p. 15.
( cabeça fria ) prio trabalho está presente, sempre, “um
tua húbris. Nem sinal drama em que está jogado o poeta, e ao 6 Id., p. 17.
de sereias. mesmo tempo o poeta está jogando com o
Penúltima – é o máximo a que aspira drama do seu fazer”18), voltado à apropria- 7 Id., ib.
tua penúria de última ção recriadora e revivificadora da tradição
Tule. Um postal do Éden: poética, assumindo-se “o risco da criação 8 Id., p. 18.
com isso te contentas. pensado como um problema de viagem e
como um enfrentamento do impossível”19. 9 O enfrentamento do desafio da poesia e do impos-
Açuladas sirenes sível certamente poderá ser visto como uma húbris (ou
cortam teu coração cotidiano. hýbris) do poeta, consubstanciada na apropriação e na re-
30 31
do de Campos em seu artigo “Poesia e modernidade: da de ensaios – Galáxias” em Xadrez de estrelas (São Paulo:
morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, em: Perspectiva, 1976), o quarto “formante” da obra, e, con-
CAMPOS, H. O arco-íris branco. São Paulo: Rio de Janeiro: forme a primeira edição integral do trabalho, Galáxias (São
Imago, 1997. Nesse texto, afirma Haroldo: “Em seu ensaio Paulo: Ex-Libris, 1984), o seu terceiro “formante”.
comum (...) Sem a perspectiva utópica, o movimento de 17 CAMPOS, H. Signantia quasi coelum / Signância
vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção, a poesia quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979.
porque seja moderna ou antimoderna, mas porque é pós- 18 Op. cit., 1997, p. 14.
2001).
15 A citação é extraída de trecho de Galáxias, de Ha- Capa da 1ª edição da antologia de poemas traduzidos de Maiakóvski, editora
roldo de Campos, incluído pelo autor em sua palestra Tempo Brasileiro, 1967.
transcrita e publicada em Op. cit., 2007, p. 27. O texto é,
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cia para a eleição, pelos poetas concretos do séc. XVII, como uma das origens da
brasileiros, da tradução criativa como pro- crise da linguagem no século XX. A ma-
cedimento fundamental de suas próprias temática se tornou uma linguagem autô-
obras. Contra a tradução como trânsito noma em relação à linguagem verbal. A
entre línguas submisso a um conteúdo, respeito disto, ele escreve:
POESIA EXPERIMENTAL
concreta brasileira – começaram por utili- espaço-tempo da relatividade, a estrutu-
zar a tradução como forma de estranhar e ra atômica de toda a matéria, o dualismo
entranhar na poesia brasileira os sons, as onda-partícula da energia – deixaram de
formas, a paisagem e a história da poesia ser acessíveis através da palavra. Não é
de autores de outras línguas, até então, um paradoxo afirmar que, em aspectos
“A poética da tradução, como prática teórica, é uma poética experimental” desconhecidos para nossa poesia e para a fundamentais, a realidade agora come-
Henri Meschonnic língua portuguesa falada no Brasil. ça fora da linguagem verbal. (STEINER,
Este texto vai se ocupar de alguns 1988: 36)
Julio Mendonça aspectos radicais dessa prática tradutória
que se tornaram referência para a poesia Se parece plausível que a economia
experimental posterior à poesia concreta. adotasse a matemática como instrumento,
menos provável foi a adoção pela socio-
Entre o silêncio e o multilinguismo logia da linguagem dos gráficos, tabelas,
Uma época paradoxal – era dos ex- quadros estatísticos, curvas e funções.
tremos, chamou Hobsbawm –, o século XX Entretanto, diz Steiner, a ativi-
foi marcado pelo silêncio e pelo ruído, pelo dade em que se observou o afastamento
Um poeta português de formação vras da tribo”, ela também se constituiu horror indizível das grandes guerras e do da palavra de modo mais surpreendente
bilíngue – português/inglês – escreveu numa experiência de diálogo crítico entre controle social e pelo alarido de uma cul- foi na filosofia. Essa crise da linguagem na
no início do século XX: “Minha pátria é a textos de diferentes línguas/culturas e de tura pop internacionalizada, cosmopolita, filosofia moderna é marcante, justamen-
língua portuguesa”. Fernando Pessoa era diferentes épocas. Por um lado, um desíg- multilíngue, multisensorial e intermidiáti- te, na obra de seu filósofo mais influente:
bilíngue a ponto de os dois primeiros dos nio de purificação/revitalização da língua, ca. Na literatura e, mais especificamente, Ludwig Wittgenstein. Sua obra representa
seus livros a serem publicados em vida se- por outro, o polilinguismo e multitextualis- na poesia, os reflexos desses extremos – o “drástico abandono da confiante autori-
rem obras escritas em inglês: 35 sonnets mo de um mundo globalizado. entre a afasia e a Babel, entre o ensimes- dade da metafísica tradicional” (STEINER,
e Antinous, em 1918. Ainda assim, Pes- Um dos principais formuladores mamento e a alteridade radical – são co- 1988:38). O Tractatus Logico-philosophi-
soa tinha a língua portuguesa como sua dessa experiência de multilinguismo como nhecidos. Ou, ao menos, é o que faz crer o cus questiona a legitimidade da preten-
pátria. Sua pátria não era um lugar, uma diálogo crítico na poesia foi o poeta ame- dualismo da cultura ocidental. são filosófica de conhecer o mundo pela
geografia, uma paisagem; era o universo ricano Ezra Pound – seja no seu seminal A literatura do silêncio, do inomeável linguagem investigando a natureza desse
imensurável de uma língua. Para o poeta trabalho de tradução de poetas de outras ou do indizível é, também, do intraduzível. instrumento.
dos “outros” – o poeta dos heterônimos, tradições (inclusive a chinesa); seja no George Steiner inicia seu ensaio “O repú- Na poesia moderna – que é o campo
da alteridade – a única identidade possível multilinguismo das citações em sua poe- dio à palavra”, do livro Linguagem e Silên- que me interessa, aqui –, Rimbaud, Lau-
(ou incontornável) era a da língua. sia (notadamente nos Cantos); mas, aci- cio, ressaltando que a civilização ociden- tréamont e Mallarmé começaram, cada um
Na segunda metade do século XX, ma de tudo, na defesa, em textos críticos, tal, graças à sua herança greco-judaica, à sua maneira, a implodir a linearidade ló-
três poetas brasileiros deram um outro da tradução como forma de reler a tradi- é essencialmente verbal. Faz notar que, gica da linguagem. Rimbaud interrompeu
sentido a essa experiência da alteridade ção de modo pedagógico-crítico e propo- enquanto para um ocidental como Pascal sua obra e se calou. Mallarmé – escreveu
por meio da prática da tradução de poesia. sitor, reinventando-a. É justamente essa o silêncio infunde terror, para um taoísta Hugo Friedrich – buscou uma “neutrali-
Se a poesia moderna tem como um dos formulação poundiana (a criação de um oriental o silêncio transmite tranquilidade. dade suprapessoal”, uma “voz que oculte
marcos de seu nascedouro o lema de Mal- “paideuma” – a eleição de alguns autores Steiner aponta a crescente influência da tanto o poeta quanto o leitor” (FRIEDRI-
larmé “dar um sentido mais puro às pala- fundamentais) a primeira grande referên- matemática na cultura ocidental, a partir CH, 1911:111). Almejando a ascese de
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“um poema calado, em branco” (FRIEDRI- nd levou o multilinguismo a consequên- com sons que me pareceram relevantes, vanguarda buscava, num “esforço titâni-
CH, 1911:118), reconheceu: “minha obra cias mais radicais: “A poética multilíngue gravando a seguir minha versão numa co”, posicioná-lo no campo da literatura
é um beco sem saída”. contemporânea deve muito a Pound, em nova fita cassete, tendo que daí explorá- brasileira através da “reapropriação” de
A exploração dos limites da co- especial à sua antecipação do link digital -la em suas próprias condições. Também um repertório de autores que, de forma
municação está intensamente presente na criação da montagem narrativa” (PER- não foi fácil para mim romper o silêncio reversa, passaram a ser identificados com
na poesia e na prosa modernas, tanto nos LOFF, 2013: 215). ou ir além dos níveis de entonação su- o movimento concreto. Aguilar chama as
temas quanto nas formas de expressão. Paralela à literatura do inomeável perficiais de minha fala (...) (ROTHEM- traduções feitas por esses poetas de “pos-
Está presente em Franz Kafka e em James e do intraduzível e ao crescente interesse BERG, 2006: 54). sessivas” (AGUILAR, Revista Qorpus, da
Joyce, de maneiras diferentes. Nas primei- pelo multilinguismo – que se manifesta- UFSC, edição N. 016). Haroldo de Campos,
ras décadas do século XX já se observa- rá, pouco depois, de modo mais intenso Seja pelo desgaste da linguagem no que, além de grande tradutor, foi o grande
vam formas poéticas bastante diversas e nas Galáxias, de Haroldo de Campos – uso cotidiano por uma sociedade moderna investigador e teórico da poética tradutó-
até antagônicas que tinham como interes- surgiu nos anos 60 uma outra experiência cujos meios de comunicação se diversifi- ria, acabou identificando essa atitude tra-
se comum desconstruir a linearidade da poética em que estava em jogo a questão caram e cuja experiência empírica empo- dutória com o que ele chamou de “razão
linguagem: a poesia concisa e lacônica de dos limites da linguagem: a etnopoesia. breceu, seja pela vivência traumática das antropofágica” (CAMPOS, Haroldo, 1992).
Georg Trakl, August Stramm e Ungaretti é Recusando a palavra escrita e o dualismo guerras e da vida administrada pelo con- Definiu essa tradução com as seguintes
contemporânea das experiências ruidosas entre o ensimesmamento e a alteridade, trole social, seja por uma nova condição palavras: “(...) tradução enquanto inscri-
das “parole in libertá” futurista e da poesia os poetas da etnopoesia voltaram-se para de deslocamentos constantes e migrações ção da diferença no mesmo” e “rasura da
sonora nonsense dadaísta. a gravação de performances de poesia que intensificam os contatos entre falantes origem” (CAMPOS, Haroldo, 1981: 208).
A literatura europeia da segunda oral – em grande parte extraídas das tra- de diferentes línguas, de diferentes partes Se é fato que essa primazia da
metade do século XX, sob o impacto da dições orais de nativos norte-americanos do mundo, o fato é que, a partir da segun- tradução para os concretos teve inspiração
grande guerra, foi marcada por experiên- – e o estudo e tradução de seus recursos da metade do século passado, a luta do em Ezra Pound, é preciso ressaltar que, ao
cias traumáticas de ruminação do silêncio expressivos, desconhecidos no âmbito da poeta com as palavras assumiu desafios longo dos anos e do desenvolvimento de
– nas obras, por exemplo, de Samuel Bec- página escrita. inéditos na história da literatura. A etno- suas obras pessoais, a tradução assumiu
ket e de Paul Celan. Não obstante, confor- A experiência da etnopoesia é mui- poesia e a poesia concreta têm um aspec- para eles – cada um a seu modo – novos e
me Marjorie Perloff fez notar, a literatura to significativa, entre outras razões, por- to em comum: ambas buscaram alargar o originais significados.
contemporânea também tem sido marcada que ela expõe não apenas o interesse pela campo do que entendemos por poesia a Desses três autores, Décio foi
por um ruidoso multilinguismo “no contex- língua do “outro”, mas expõe também o partir do conhecimento da realidade ma- aquele que praticou a tradução de modo
to global de identidades mutáveis, migra- interesse desses poetas por recursos téc- terial da linguagem e da recusa em aceitar menos sistemático. Ainda assim, deixou
ção em grande escala de uma comunidade nicos expressivos que a palavra escrita na os limites técnicos da poesia tradicional. importantes contribuições, principalmente
linguística a outra, e, sobretudo, a hetero- página não tem e de que eles tomaram em dois livros publicados em colaboração
glossia da internet” (PERLOFF, 2013: 209). consciência. Jerome Rothemberg, no texto Para além das clausuras com Augusto e Haroldo: nas traduções dos
A mistura adúltera de diferen- “Tradução total: uma experiência na apre- A crítica é uma forma aguda de lei- Cantares de Ezra Pound e na obra Mallar-
tes línguas não é uma invenção moderna sentação da poesia ameríndia”, de 1969, tura. Os grandes críticos são grandes lei- mé, para a qual realizou uma impressio-
e já se encontrava, por exemplo, na Di- expõe esse desconcerto: tores. A poesia concreta – assim como ou- nante “tridução” – uma tradução tripla
vina Comédia de Dante e no Inferno de tras manifestações de poesia experimental para “L’aprés-midi d’um faune”. Ao publi-
Wall Street, de Sousândrade. Mas, a partir Decidi traduzir os vocábulos &, a partir – é uma poesia crítica. Ela releu o passado car três traduções simultâneas do mesmo
do início do século XX, ela vai se tornan- disto, já estava jogando com a possibi- pelo viés da crise da linguagem do pre- poema, Pignatari renunciava a qualquer
do cada vez mais frequente e assumindo lidade de traduzir outros elementos das sente. Além disso, ela prospectou e tradu- noção de tradução definitiva e reconhecia
um papel mais seminal – penso numa obra canções que normalmente não são con- ziu outros valores poéticos relevantes, de que um poema de difícil tradução (“quan-
como Finnegans Wake, por exemplo. Eliot templados pela tradução. Também pa- línguas e culturas diversas, para deles se to mais inçado de dificuldades esse texto,
incluiu citações em latim, grego, italiano, receu importante ficar tão longe quan- alimentar. Por esta razão, a tradução foi mais recriável” [CAMPOS, H., 2013: 104])
francês e alemão no The waste land, en- to possível da escrita. Então comecei a uma estratégia tão importante, inclusive admitia diferentes respostas ao desafio.
quanto Gertrude Stein e e.e.cummings falar, e depois a cantar minhas próprias para sua criação. Essa opção era coerente com a atitude que
desconstruíam o inglês em suas obras. palavras em cima da gravação de Mit- Gonzalo Aguilar escreve, com ra- ele mesmo, Augusto e Haroldo mantive-
Mas, como observou Perloff, Ezra Pou- chell, substituindo os vocábulos dele zão, que o trabalho do grupo brasileiro de ram desde o início de expor os andaimes
36 37
do fazer poético e do tradutório (ethos de um determinado autor – como Rilke, por criar uma outra forma de tradução – quase autor, sua língua e o próprio código verbal
oficina que observaram em Pound e Má- exemplo – os poemas mais difíceis. Assim um novo gênero, híbrido entre tradução e se deixam atravessar. Já não se trata, ape-
rio Faustino), conforme se pode ler numa é que suas primeiras traduções, publicadas criação original: as “intraduções”. A pri- nas, do descentramento da língua, mas do
nota introdutória do livro Traduzir e tro- em 1960, são alguns dos Cantos (ou Can- meira “intradução” é de 1974: um trecho descentramento do código verbal.
var, de Augusto e Haroldo: tares) de Ezra Pound (juntamente com Ha- de uma canção provençal de Bernart de Haroldo de Campos foi quem levou
roldo e Décio) e poemas de e.e.cummings. Ventadorn aparece entremeado – literal- mais longe as implicações da ideia de pai-
Este volume expõe-se como canteiro Tratava-se de dois autores do paideuma mente – à tradução feita por Augusto, o deuma de Pound. Extraiu daí um conceito
de trabalho. Poesia que, através da tra- concreto, mas é de notar que a escolha original em letras góticas e a tradução seminal: o de poética sincrônica. Concei-
dução, pode ser vista in fieri: o caráter para a primeira empreitada individual de numa tipologia futurista (aliás, uma fon- tuou essa poética no livro A arte no hori-
concluso da obra feita fica provisoria- Augusto recai em cummings e em alguns te que, hoje, parece muito envelhecida). zonte do provável, onde diz: “Para o crí-
mente suspenso e o fazer reabre o seu de seus poemas mais difíceis, de complexa Mas, o mais importante, aqui, são os dois tico de visada sincrônica não interessa o
processo, refaz-se na dimensão nova da estrutura gráfico-espacial, próximos do in- textos entremeados, enredados, expon- horizonte abarcante e esteticamente indi-
língua do tradutor. Uma didática direta. traduzível. Em 1997, reuniu suas traduções do – num arranjo gráfico-visual – uma in- ferente da visão diacrônica”. Tendo por re-
A jornada e o jornal de um laboratório de de Gerard Manley Hopkins sob o título A decisão entre original e tradução. Nesta, ferência os conceitos de paideuma de Ezra
textos. (CAMPOS H., 2013: 81) Beleza Difícil. Dos três criadores da Poesia como em outras de suas “intraduções”, o Pound e de “sincronia/diacronia” de Roman
Concreta, Augusto é aquele que assumiu indizível e intraduzível configura um novo Jakobson, propõe o diálogo dos melhores
Pignatari foi um poeta cuja obra mais integralmente a fórmula poundiana ícone intersemiótico, fundindo elementos autores de diferentes épocas, lugares e lín-
foi marcada pela busca da poesia sem que define poesia como condensação da de dois ou três códigos. guas à luz dos problemas estéticos do pre-
palavras. Viu no pensamento de Charles linguagem. Suas traduções se voltam para Em seu livro mais recente, Outro, sente, o que implica uma visão não-linear
Sanders Peirce – estruturalmente triá- autores e obras em que essa condensação lançado há poucos meses, Augusto apre- da história; Jauss é seu co-formulador, ao
dico – uma saída para o dualismo. Inte- atinge níveis mais extremos. Também é senta uma outra modalidade de tradução, repensar a constituição da tradição como
ressou-se pela semiótica peirceana, além bastante revelador que Augusto tenha se que ele denominou “outradução”. As “ou- processo de tradução, “operando sobre o
disto, por ser uma teoria da linguagem empenhado em traduzir poesia provençal, traduções” (CAMPOS, Augusto de, 2015) passado a partir de uma ótica do presente”
não-logocêntrica e não-antropocêntrica. aquela que Pound definia como “uma arte não são traduções de obras escritas em (CAMPOS, H., 2013: 83).
Ao introduzir, estudar e divulgar a obra de entre a literatura e a música”. É próprio de outras línguas; são traduções intersemió- Os problemas estéticos do presente,
Peirce no Brasil, teve grande influência no Augusto o interesse pela música (sua série ticas de textos em português, nas quais o para a poética de vanguarda de Haroldo
desenvolvimento das ideias da poesia in- de poemas Poetamenos teve Anton Webern original é relido em nova chave graças ao (como de Augusto e Décio), estavam rela-
tersemiótica e daquilo que Julio Plaza es- como referência) e pelo trânsito entre duas uso de elementos não-verbais que poten- cionados, em primeiro lugar, com a dimen-
tudou e denominou “tradução intersemió- artes, duas linguagens. A atenção para cializam o sentido. são material da linguagem. Daí o diálogo
tica”, na qual a palavra se inter-relaciona a relação entre música e ruído em John Para Augusto de Campos, por- que Haroldo estabelece entre autores como
com outros códigos. Ao criar, no final dos Cage, por exemplo, está ligada ao seu pró- tanto, a tradução assumiu uma função de Pound, Jakobson e Max Bense, conforme
anos 50, o seu poema “LIFE”, Décio Pigna- prio constante trânsito entre legibilidade e condensação, estranhamento e opacidade já observou Marcelo Tápia: “A ideia central
tari radicalizou o multilinguismo de Pound, ilegibilidade na poesia (tratarei, a seguir, da língua portuguesa por meio do impac- de Jakobson sobre a função poética da lin-
plasmando uma outra forma, híbrida. LIFE das intraduções). to da poesia de outros poetas, de outras guagem (...) é compatível com a noção de
atravessa e funde uma palavra inglesa e Entre os poetas provençais tra- línguas. Esse exercício de alteridade, com ‘informação estética’ de Bense” (CAMPOS,
um ideograma chinês (o ideograma que duzidos por Augusto, o mais difícil e mais as “intraduções” e as “outraduções”, se 2013: XIV). No ensaio “A palavra vermelha
se traduz por “sol”), ocidente e oriente, o emblemático foi Arnaut Daniel, que Pound transforma em exercício de alteridade do de Hölderlin”, Haroldo afirma:
digital e o analógico-icônico. A produção incluiu na categoria que ele definia como próprio código linguístico em relação a ou-
sígnica que atravessa línguas e códigos e escritores inventores. Esse conceito de tros códigos. Na tradução de um poema, o essen-
os inter-relaciona me parece ser a tônica, “invenção” é uma ideia cara a Augusto que Já não se trata, apenas, do desa- cial não é a reconstituição da mensa-
a partir daí. busca, em Arnaut Daniel, transpor para o parecimento elocutório do “eu” – de que gem, mas a reconstituição do sistema
Desde o início, nos anos 50, Au- português as “condensações semânticas e falava Mallarmé – mas, da tensa inter-re- de signos em que está incorporada esta
gusto foi atraído pelo desafio da dificuldade complexidades melopaicas” do original. lação elocutória entre autor/tradutor, su- mensagem, da informação estética, não
na tradução. Tem procurado traduzir sem- Esse fascínio por autores e obras jeito/objeto, língua de partida/língua de da informação meramente semântica.
pre os autores mais difíceis e, na obra de tidos como intraduzíveis levou Augusto a chegada e código verbal/outros códigos. O (CAMPOS, 1975:100)
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Assim, outro escritor com o qual eversiva, antes do que como homologa- Ela não envolve uma submissão (uma une, as combina. É este aspecto de sua
Haroldo estabelecerá diálogo será Wal- ção tautológica do homogêneo” e defende catequese), mas uma transculturação, intenção linguística que torna a poesia
ter Benjamin, autor do famoso ensaio: “A “um espaço crítico paradoxal, ao invés da melhor ainda, uma “transvaloração”: concreta o primeiro movimento poético in-
tarefa do tradutor”. Haroldo se identifica doxa: a interrogação sempre renovada, uma visão crítica da história como função ternacional” (BANDEIRA; BARROS, 2008).
com a “ideia benjaminiana da tradução instigante, em lugar do preceito tranquili- negativa (...), capaz tanto de apropriação A poesia experimental – seja a visual, a
como estranhamento da língua do tradu- zador” (CAMPOS, 1992: 238). como de expropriação, desierarquização, sonora, a intersemiótica e verbivocovi-
tor e alargamento das fronteiras desta ao O interesse por traduzir poesia chi- desconstrução. Todo passado que nos é sual ou as de outras denominações – tem
influxo do original” (CAMPOS, 2013:100). nesa e japonesa, associado ao interesse ‘outro’ merece ser negado. Vale dizer: buscado uma linguagem capaz de intervir
Benjamin entendia a má tradução como “a pelo ideograma como escrita não-linear, merece ser comido, devorado.” (CAMPOS, num mundo globalizado e complexo; uma
transmissão inexata de um conteúdo ines- levaram Haroldo à discussão da clausura 1992: 238). linguagem que se valha de recursos e re-
sencial”. Apesar da afinidade com esses e epistemológica das línguas ocidentais. Em pertórios de ampla circulação e processos
outros entendimentos, Haroldo recusa a consonância com os demais poetas con- John Milton ressaltou que “Haroldo tradutórios e intersemióticos; uma lingua-
clausura metafísica da teoria da tradução cretos, afirmou que “o ideograma é a lin- de Campos, na verdade, nunca descreveu gem em que as diferenças coexistam, ten-
de Benjamin: repensa em termos laicos a guagem adequada para a mente contem- seu trabalho [de tradução] como caniba- sas e intensas, entre a comunicação e a
mística “língua pura” benjaminiana. A par- porânea” e ressaltou como uma de suas lismo” (MILTON, 2008: 99). Entretanto, há opacidade. Não uma Desbabel – a ilusão
tir da noção de alargamento de fronteiras características “o uso de ‘imagens mate- pertinência na associação da razão antro- de uma linguagem transnacional e ecumê-
da língua, passa a pensar a tradução como riais’ para sugerir ‘relações imateriais’” pofágica com a concepção haroldiana da nica – mas uma linguagem que atraves-
hybris (excesso, desmedida) – é preciso (CAMPOS, 1977: 41). Ao reunir e apresen- tradução como “transcriação”. Antropofa- se as diferenças, isto é, que fale através.
“ultrapassar os limites”, ideia presente em tar uma série de textos de diversos auto- gia, neste caso, é uma metáfora cultural Jakobson escreveu que “a equivalência na
sua própria poesia: res no livro “Ideograma – lógica, poesia, e Haroldo utilizou metáforas bastante pró- diferença é o problema cardinal da lingua-
linguagem”, defendeu a necessidade de ximas para se referir à tradução criativa: gem” (JAKOBSON, 1975: 65). Transcriar
Tudo isto o tradutor tem que transcriar, uma lógica outra, analógica, “oximoresca, ‘transfusão”, “vivissecção implacável” do era, para Haroldo, fazer a fisicalidade – a
excedendo os lindes de sua língua, es- possibilitando a coexistência e a concilia- original ou “usurpação”, por exemplo (as- materialidade – da língua de partida atra-
tranhando-lhe o léxico, recompensan- ção dos opostos” (CAMPOS, 1977: 79), sim como, escrevendo sobre sua tradução vessar a língua de chegada. Neste senti-
do a perda aqui com uma intromissão contra o logocentrismo ocidental. de Goethe, lembrou Boulez sobre Webern: do, as poéticas tradutórias elaboradas por
inventiva acolá, até que o desatine e o Além da dimensão epistemológica, “não se poderá continuá-lo; é preciso es- Augusto e Haroldo de Campos e Décio
desapodere aquela última Hybris, que é Haroldo vislumbrou, também, uma dimen- quartejá-lo” [Campos, 1981: 209]). Essas Pignatari trouxeram uma contribuição de
transformar o original na tradução de sua são cultural e geopolítica para sua poética metáforas são bastante físicas, corporais. grande originalidade e alcance.
tradução (SCHNAIDERMAN, 2011: 171). sincrônica. Retomando as ideias de Os- O corpo da língua é atravessado pelo cor- A curiosidade e o interesse pelo que
wald de Andrade a respeito da antropo- po de outra língua (ou por outros corpos). acontecia e acontece em campos diversos
Ao escrever sobre sua tradução fagia como estratégia poética e cultural, De qualquer modo, sua defesa da atitude do conhecimento como a linguística, a psi-
das duas cenas finais do segundo “Fausto” percebeu nessas ideias a possibilidade de antropofágica como estratégia para a lite- cologia da Gestalt, a semiótica e a teoria
de Goethe, adota a expressão “translucife- resistência à adoção da noção econômica ratura brasileira no contexto da geopolítica da informação – e, daí, um interesse por
ração”, propondo que a tradução deve ser de subdesenvolvimento no âmbito da cul- pós-colonial é compatível com seu pensa- uma concepção da linguagem como cam-
luciferina ao incorporar uma face demonía- tura e da literatura. Formulou essa razão mento e prática da tradução e com o papel po matemático-probabilístico – e o diálogo
ca de usurpação do lugar do original – uma antropofágica nas seguintes palavras: que ela exerce em sua obra. com a cultura de massa – diálogo crítico,
outra conceituação da hybris tradutória. Eugen Gomringer escreveu que no entanto – são faces desse mesmo im-
Para além da dimensão física da lin- A ‘Antropofagia’ oswaldiana – já o “a poesia concreta é o capítulo estético da pulso dos criadores da poesia concreta em
guagem na tradução, Haroldo irá perceber formulei em outro lugar – é o pensamento formação linguística universal de nossa direção ao outro, ao diverso, ao alógeno.
outras dimensões. Manteve, sempre, uma da devoração crítica do legado cultural época” e Joan Brossa, grande poeta ex- Esse impulso envolveu, sempre, uma re-
atitude inquieta e questionadora das ba- universal, elaborado não a partir da perimental catalão, escreveu que a poesia cusa da clausura do campo literário; ele
ses do pensamento vigente. No ensaio “Da perspectiva submissa e reconciliada do visual é uma espécie de esperanto. Ken- dá a medida do incômodo do campo li-
razão antropofágica: diálogo e diferença ‘bom selvagem’, mas segundo o ponto neth Goldsmith chamou a atenção para a terário com essa poesia experimental. É
na cultura brasileira”, fala na “historiogra- de vista desabusado do ‘mau selvagem’, declaração de Max Bense em 1965: “(...) esta atitude que me faz sentir autorizado a
fia como gráfico sísmico da fragmentação devorador de homens, antropófago. a poesia concreta não separa línguas – as expandir bastante a aplicação, neste tex-
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to, da noção de tradução. Podemos esten- poéticas tradutórias elaboradas pelos cria- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS dutores, nº 17, 2008.
dê-la para o diálogo entre a poesia e as dores da poesia concreta, com seu lega- PERLOFF, Marjorie. O gênio não original –
ciências. Os poetas concretos aplicaram do formal e conceitual, contribuíram para AGUILAR, Gonzalo. Augusto de Campos: poesia por outros meios no novo século.
conhecimentos dessas áreas de pesquisa uma nova sensibilidade. São valores que La traducción del nombre. Artigo publi- Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
em suas obras. São reconhecíveis, tam- ainda estão produzindo impactos e estão cado na revista Qorpus, da Universidade ROTHENBERG, Jerome. Etnopoesia no mi-
bém, elementos da física, da astrofísica e sob juízo. Esses impactos atingem tanto a Federal de Santa Catarina, disponível em lênio. Rio de Janeiro: Azougue Editorial,
da biologia em suas criações. Apenas para tradução criativa quanto a criação poética http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/ 2006.
mencionar alguns casos, podemos lembrar stricto sensu. Entretanto, já temos ele- edicao-n-016/augusto-de-campos-la-tra- SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato
os poemas Pulsar e Quasar, de Augusto de mentos para afirmar que o alcance dessas duccion-del-nombre-gonzalo-aguilar/ desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Campos, além das obras Galáxias e A má- poéticas tradutórias apontam para uma BANDEIRA, João; BARROS, Lenora de. STEINER, George. Linguagem e Silêncio.
quina do mundo repensada, no caso de concepção da experiência poética como Poesia concreta: o projeto verbivocovi- São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Haroldo. A revista Código – que era edi- não-linear, não exclusivamente verbal, sual. São Paulo: Artemeios, 2008.
tada por Erthos Albino de Souza e publi- sincrônica, não-idealista, não-dualista, CAMPOS, Augusto de. Dez poemas de e.e.
cava os poetas concretos e outros poetas descentrada, pós-colonial, não-logocên- cummings. Rio de Janeiro, Serviço de Do-
experimentais mais jovens – dedicou uma trica, não-antropocêntrica e múltipla. Ao cumentação-MEC, 1960.
edição (a de nº 12, em 1989/1990) às menos, esses são alguns dos desafios que __________________. Outro. São Paulo:
relações arte/ciência. Roland de Azeredo tocam a algumas linhas de investigação Perspectiva, 2015.
Campos, físico e poeta, publicou o livro da poesia experimental. Certamente, há CAMPOS, Augusto de (com D. Pignatari e
Arteciência - Afluência de Signos Co-Mo- e haverá outros desafios de superação de H. de Campos). Cantares de Ezra Pound.
ventes, em 2003, obra na qual estuda o limites. Esse conjunto de reptos a diver- Rio de Janeiro: Serviço de Documentação-
diálogo entre essas duas formas de conhe- sos modos de clausura não se restringe ao -MEC, 1960.
cimento. Tanto o pensamento científico campo estético e ao epistemológico. Cons- CAMPOS, Augusto de (com H. de Cam-
quanto o poético são marcados por esse titui, em última instância, uma atitude po- pos). Traduzir e Trovar. São Paulo: Pa-
anseio de vislumbrar homologias de for- lítica. A atitude experimental na criação pyrus, 1968.
mas – traduções icônicas das formas do e/ou na tradução é uma atitude política, CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte
mundo em formas de linguagem. Um pen- independente do assunto das obras. Re- do provável. São Paulo: Perspectiva, 1975.
samento diagramático que busca traduzir novar nossa atitude diante da linguagem é ___________________. Deus e o diabo
a complexidade da vida em formas sintéti- renová-la diante da vida social. no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspec-
cas de linguagem. tiva, 1981.
George Steiner afirmou que a ___________________. Metalinguagem &
poesia moderna surgiu da necessidade de outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
“recuperar o caráter fluído e provisório da ___________________. Transcriação
língua” (STEINER, 1988: 46). Para a poe- (Org. Marcelo Tápia e Thelma Médici Nó-
sia experimental pós-concreta, isto já não brega). São Paulo: Perspectiva, 2013.
responde aos desafios da poesia na vida ___________________(Org.). Ideogra-
contemporânea; para a sensibilidade con- ma – lógica, poesia, linguagem. São Pau-
temporânea é preciso uma linguagem em lo: Cultrix/Edusp, 1977.
que a fluidez e abertura ao novo contem- FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica
plem a expressão das experiências com- moderna. São Paulo: Livraria Duas Cida-
plexas de simultaneidade e instabilidade des, 1991.
da vida atual que não podem ser ditas por JAKOBSON, Roman. Linguística e Comuni-
nenhuma língua, isoladamente. A noção cação. São Paulo: Cultrix, 1975.
de pátria não nos serve mais e a língua MILTON, John. “Universals in translation:
não nos é suficiente. a look at the asian tradition”. Tradução &
A originalidade e o alcance das Comunicação – Revista brasileira de tra-
42 43
POETAS DO
NOUCENTISMO
Traduções de Vanderley Mendonça
INVENÇÃO
Vanderley Mendonça Na Catalunha do começo do século
XX, o Modernismo perde o papel de prota-
Nas duas primeiras décadas do gonista cultural para um movimento que
séc. XX, poucos foram os que não ouvi- haveria de o tachar de desorganizado e
ram o eco dos dados que Mallarmé lan- caótico. Esse movimento recebeu o nome
çou ao acaso. As palavras, dali em diante, de Noucentisme (palavra ambígua, que
viveriam em liberdade e passariam a ser em português significa novo e nove, po-
vistas e não apenas lidas. Apollinaire cha- dendo ser traduzida por novecentismo ou
mar-lhes-ia calligrammes; Marinetti, tavo- novocentismo, o novo novecentismo). De
le parolibere. E mais nomes viriam depois: início, os jovens poetas e artistas catalães
ideogramas líricos, tipogramas, poemas- concentravam-se em dar a conhecer o que
-imagens, aviogramas e tantos outros de novo ia sucedendo em Paris, ainda na
para designar a mesma sensibilidade, o língua literária de toda a Espanha, o caste-
espírito novo que pairava sobre a Europa. lhano, embora em 1905, Rafael Nogreras
Paris era a Babel, Milão, o eixo. A Oller tenha incluído no seu livro Les Tene-
I Guerra Mundial era realidade e os poetas bres o caligrama Una Esse. O certo é que
mais novos eram emissários que levavam o Noucentisme, como movimento, só viria
às suas cidades “a bala da paz”. Huidobro a aparecer em Barcelona em 1916, com
(peruano) levou-a para Madrid; Sá-Car- o surgimento dos primeiros textos van-
neiro, para Lisboa; Oswald, para São Pau- guardistas em catalão, culminando com
lo; Maiakovski, para Moscou; Josep María o lançamento do livro Trossos, de Josep
Junoy, para Barcelona. Argentinos, húnga- María Junoy. Apesar de seu vanguardismo
ros, alemães, romenos, holandeses, suí- durar apenas até 1918 e de ter publicado
ços, mexicanos, norte-americanos. Nunca posteriormente poemas que possam ser
uma vanguarda conectou tantas línguas. vistos como noucentistes, Junoy deu vida
Nunca tantos poetas invadiram tantos em catalão aos Poemes i Cal.ligrames, de
idiomas. Formidáveis, umas vezes; decep- Apollinaire (editado em 1920 por Joan Sal-
cionantes, outras. vat-Papasseit), e à revista mais importan-
44 45
te desse movimento: Trossos, continuada Nota do tradutor:
mais alguns anos por J. V. Foix.
A partir de 1920, num “retorno ao Os poemas escolhidos para esta peque-
classicismo”, Junoy refugia-se nos haikais na recolha foram extraídos de publicações
até o fim de seus dias. Embora breve, nes- fac-simile editadas em Barcelona, das quais citamos, abai-
se lapso de tempo, cria escola. xo, a origem:
Do seu reduzido número de segui-
dores, Joan Salvat-Papasseit é sem dúvida UNA ESSE, de Rafael Nogueras Oller
o mais expressivo. De origem proletária, Les Tenebres. Barcelona, 1905
Papasseit debuta nas letras com escritos
políticos de clara filiação socialista. Em CAMBRA MORTUÒRIA1, de Sebastià Sánchez-Juan
1917, publica Un enemic del Poble. Nas Fluid. Barcelona, 1924
folhas desta revista prega a “subversão do
espírito”, num conjunto de aforismos inti- DRAMA EN EL PORT, PLANOL2, JACULATÒRIA,
tulados Mots Propis. É nesse ano que co- de Joan Salvat-Papasseit
nhece Junoy e alguns outros da vanguar- L’Irradiator del port i les gavines. Barcelona, 1921
da local. Não concorda fundamentalmente
com os preceitos do futurismo italiano e ESTELA ANGULAR3, de Josep María Junoy
auto-intitula-se poetavanguardistacatalà. Trossos. Barcelona, 1916
Seu vanguardismo, porém, será sempre
diluído em elementos de procedência ro- SONET4, de Vicenç Solé de Sojo
mântica, com os quais o poeta era mais Revista Ibèria, Vol. VII, nº 157.
fortemente ligado do que a simples coe- Barcelona, 1918
xistência com a paisagem das máquinas.
Num livro posterior, L’irradiator del port
i les gavines (1921), no qual pesa o uso
das palavras em liberdade, dá-se conta da 1. Neste poema, Sebastià Sánches-Juan descreve-nos o
sua dependência simbolista, além do uso “aborto” prematuro da 2ª República espanhola. O menino
do haikai, com fôlego modernista. Jacula- amarelo, vermelho, azul que aparece tem as mesmas co-
tòria, apesar da sua decomposição espa- res da bandeira republicana.
cial, não é mais do que um poema estrófi-
co rimado. 2. PLANO é um esquema da realidade do pós-guerra na
Das filiações fugazes ao Noucen- Barcelona do início dos anos vinte.
tisme, cabe-nos citar Vicenç Solé de Sojo,
que colaborou com alguns poemas em 3. Em LÁPIDE ANGULAR, Junoy presta homenagem póstu-
Trossos, e Sebastià Sánchez-Juan, mais ma a Boccioni, escultor e pintor futurista, um dos grandes
próximo de Salvat-Papasseit, que publi- impulsionadores desse movimento.
cou em 1922, sob o pseudônimo de David
Cristià, o Segon Manifest Català Futuriste: 4. Em SONETO, Solé de Sojo chora a perda do poeta Gal-
Contra l’Extensió del Tifisme en Literatura. lieni, morto durante a Primeira Guerra Mundial, na França.
tomada de Paris.
Joan Salvat-Papasseit
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POEMAS:
Cambra Mortuòria, de Sebastià Sánchez-Juan
Drama en el port, de Joan Salvat-Papasseit
Estela angular, de Josep María Junoy
Jaculatória, de Joan Salvat-Papasseit
Planol, de Joan Salvat-Papasseit
Sonet, de Vicenç Solé de Sojo
Una Esse, de Rafael Nogueras Oller
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JAMES JOYCE:
do Finnegans Wake
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COMO
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Horúscupo Mesmo Quando Ossinhô Jatamor-mordissô, No Wale de Vaterlough, Pade Ele um olho fino para a virdade do santordeus confuscinado por seus eflúvios noturnos com
Suckumbill Amém As Esperações, Ti poços afrente, Du paços atrai, Minha Pele Atraia armas tambores e dedlos forcépos persequestella suas vanessas por onde flor. Decertas
Três Sentidos e Masbeiças Sem Roscam Columbeijos, Gage Street Com a Grana Barna- formas isso soa ao mais puro kiduliunismo que tanto abunda em nossa maedernateruza
boa, Os Rapaces São Untrio de Levalouçãs E Suas Uvas Viranduo de Divinhas, Na Cama do saibo saiber. Tudo tão herou para nós ele em suas trevas kitchernottas, por hasar
de Meu Senhor Por Uma Puta que Lá Foi, Mães shhega Jacabou, Virgem de Cal Boy Sete e gastos rolos vermicelhos, devemos tastear asté a hora hasgard como pobres giaurs,
Légua de Terrornos Estatos Unicos da Améssica, Ele Dera-me Um Tu Logo Dou-lhesse Ti, como nos mandam popar nullas nossas heras para este nosso dia aisér. Intrível col-
De Todos os Cravalhos do Bem, Com Todos os Dólmens Torrei, O’Donogh, Oh Donna, tudo não sed. Mais detida inspeção do borderó revelaria multiplicidades de personas
Ele Testa Minha Munha Ou Colar, Sou Sujeira no Ovental, Nada Serdes Sem Mamã, Por inflitas ao códice ou códices e certa previsão de crime ou crimes virtuails pode ocorrer
Evitar Poloucos nos Palancos e que Pulhas Moças Pilhem Lojas, Norsker Torsker Trova o a qualquer despreocupado o bastante antes mesmo de qualquer ocasião para isto ou
Poddle, Transperssou-me Aqui Com o Ardor de uma Tona de Tigelos, Beboi da Vara Pre- para eles ter por ora dado jeito de calhar de vir a ser. Deveras, sobos olhos cerrados
ta, Pega essa Mãinha que Tem Foice na Gaveta, O’Loughlin, Benlá da Boca do Estambo dos inspectors os traços que trazem o chiaroscuro coalescem, eliminadas suas contra-
eu te Escambo Uma Bela Matina, Pó Purris Inglo-Andianos de Tommany Moohr, O Grão riedades, num um ustável algum da mesma maneira que pela providencial battalha de
Mestre Senrimônias Pelopolinésio Apressanta Violos de Amores-Perfeitos com a Lira das cardiopreito e casafeita e livrobebedores contra livrepensadores nosso algo social segue
Noções, O Mimo de Mack Neg e as Mequinhas, Resistado Como Último Pigtórico e Meu austrancos, vivendo preconcepta série de desilusães, pela longavia de (para quem sou-
Pobriódico No Salão de Re-vistas, Siegfeld Follies e or Faut Pas de um Pentelhomme, Ver ber seu boicasamelo) gerassons e gerassoes einda mais generasohns.
Primeiro Livro Dessiúmes Pessinh, A Sentensa Suspença, Uma Estória Bem Pessada Pa-
reróis Tamanhinfante, Deitamos em Pleno Ar, Eu Sabia que Estava Por Cima Então Dega
Disso, Nitruante Capitão Smeth e la Belle Sauvage Pocahonteuse, Viu Cê Nungosta Der-
mim Mas Sua Dochka Giga, O Último dos Fingalianos, Fui Eu Quem o L’ovou à Bolsa de
Acegonhas e Pus-me A Chara Em seus Negossos, Tchi Tchu Tchills na Micção Tchinesa,
Picknick Peppers, Lumptytumtumpty Tomou Trambolhão, K-ftim K-ftum, Dez Venturas
de Aliche e a Queda da Malsã, O Interior da Família Povim, Não Jouvera Eu tão Estensa
Lassaria Meu Culpete Contros Podres Maggistratos, Allolosha Popofetts e Homeme Cha-
ma Etenção, Vinágrolis Demaç e Salmorri, Temploroquemecreias de Tu Amá Damãe,
Errubão Donão Tem Não, Sai Do Blim e Volta Amim, Faúlha que Sesfolha dos Olhos de
Vuggy Mincende a Coma Enxamas, Era uma Casa Malte Engraçada, Divinas Vistas de
Trás à Fronta, Abs a Sars Era Ínsaco e Neutro Tèque Brahms Deulhe Bonsexo, Um Pomo
Na Mão Desconstipa o Tampão, Ar Turguinez, Sons e Loas Libidoghtass, Sete Esponsas
Espeltas Ebdômadas, Arianna e Berber-sang, Aimée Lecha Pórter Mas Mari Dousa Pocko,
Umasparde Parassóis ou Triplarem-se os Cãis, Bom Bombom Melor, Do Senhor de Guar-
vaia às Mossoilas Molloydes e das Damas a Seus Dramas, Munifestinações Pelos Colegas
No Parque, Um Beque & Selente e Em Crível Meia Seriam Necessários, Uma Árvore é
Viva e Pedra Faz-se Turva Porsuja É que Lavo Essa Roupa Noturna, Primeiro e Último
Único Relato Real de Tudo que Com Cerne ao Honrato Sem-Dor Earwicker, L.S.D., e
a Serpente (Nuggas!) Dautoria de Mulher Munda que Pode Apenas Contar a Verdade
Nuicrua Sobre um Caro Sujeito e Seus Cospiradores Como Todos Tentaram Tombá-lo
Espalhando Porinteira Lucalizod Sobre o Soudado Earwicker e um Par de Vadias Revãs
Nitidamente Mostrantes Sua Tota Imencionabilidade Falsamente Acusantes Quãoto aos
Capuchos Vermelhos.
O grafo proteiforme por si próprio é um poliedro de escritura, houve um tempo em
que naifos alfabettors o teriam escrito pelos rastros de um (ou uma?) recidivista de pura
deliquescência, quiçá dambi destrismo, çaqui nariz bolinha, e com estranha mente funda
fontigela no occipício. Para o hubrístico curiosante entomofilúbrico ele então demonstrou
veritável mosaicismo sexual de ninfose em que o eterno caça-himeras Oriolopos, ora de-
fronde assulcares, hora senfolha salado, somada a pletora sensória que tinha no ventre a
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Peripecias de transmigrante veritas
Apostillas a una traducción del Infierno de Wall Street
SOUSÂNDRADE:
Traduzido para o espanhol por Reynaldo Jiménez
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a costa del individual martirio, el Guesa, historia. La cual, hablando de horrores y cio. Pues al interrumpir el estricto tempo diletantismo masivo de la novedad per se.
por salvar el pellejo, querer vivir más porque cala los huesos, eminentemente, sacrificial, al faltar al encuentro marcado Todo ello céleremente embutido y labe-
allá del accidente estipulado —escena el poema, en tanto relación de los hechos, con el crimen fundacional, al desertar del rintizado en un vaciamiento adrede de la
del atroz equilibrio— descoloca la prerro- ya expresionista, a la adormecida sociali- mundo conocido —condición de distancia, palabra. Sin intuición de las cosechas, sin
gativa del terror-rito-río-sangrado —ahí dad le resalta la intrínseca intemperie. por otra parte, del chamán— el activista siquiera rituales —excepto los protocolos
donde nada más parecía esperarle— en La muesca de los acontecimientos cambia con su suerte su destino, incorpora rutinales de rigor— en pro del equilibrio
alterno contrarritual, ahora sí iniciático. en la culata del acervo identitario. Los li- el acaso de quién sabe qué kairós, al costo transpersonal, pero recuperándose en las
Inversión de las fuerzas de presión hacia najes de la astucia y la estrategia. El por- de hacerse transversado. arritmias activas a desembocar en nuevo
una cierta autonomía dispersante, la cual menor de las violencias que tanto acom- Quien se construye, se lanza a la ritmo, desdecir del decir, volver a decir
se despliega con acento en la singulari- pañan —en su rol también establecido— a verdad de la aventura. La soledad que lo que no es reiteración, repetición como dis-
dad en tanto cualidad no menos expresi- nuestro espectador de las noticias: mártir avienta, soledad de la conciencia histórica, tribución acentual y reguero sígnico para
va de individuación. en sordina, ya no se sabe, en la horma a la vez esfera atemporal, predispone al eclosionar la variación de la resonancia.
Ni “adolescente” ni “adulto”: al- normal, dizque civilizatoria, cuyo sacrificio singular al estiramiento de horizonte. La El ansia justa del vate moderno se
ternativo, el ente figural en hueco llama- consiste en una sostenida insensibilización ampliación de registro del poema “moder- indaga periférica, casi un presentimien-
do Guesa, que se salva raspando, inicia respecto a lo insaciable. En cualquiera de no” soporta la extrañeza tanto como la con- to, escalofrío profético, cosquilleo ético
el viaje transversal del pensamiento pa- sus dioses siempre únicos, incluso simpá- tradicción —herramientas por excelencia que da de cara a la moral, en cuyo bífi-
norámico. Sin mayores explicaciones, el ticos, y laicos. para el instrumento del canto dialéctico: do acceso al poder vuelve a ser la doble
Guesa se encuentra, en un empalme de La falla voluntaria de la más ínfima en ciernes de transición, del conocimiento moral, en cuanto base del negociado. La
enclaves que es un salto de tiempos —la insumisión al mecanismo de lo establecido a lo desconocido. Con incorporación de lo pregunta por la ética —en tal contexto, lu-
escritura aprehende y trae esta técnica del introyectado, hace del hiato-extrañeza un amorfo excluido, pero que incide, en tan- ciferina— no responde a una enunciación o
sueño— en el centro financiero del canto dardo de curare en la producción destinal. to lengua poética, como las áreas huecas declaración de principios; se apoya en al-
x, devuelto a la consideración pública, en Es parte de su destino nada más que actual del relieve. Y a la luz transmutante de la gunas texturas, referencias urbanas, listas
Brasil, por Augusto y Haroldo de Campos, esa clandestinidad específica del poema en conciencia la deforme belleza aún posible de nombres y apellidos, cosas y asuntos,
como El infierno de Wall Street. Nos impli- tiempos del capitalismo; la cual, además, —chispea la aventura en esa risa implaca- dominios, un imperio u otro, casi nada. Su
ca su lectura el supuesto presente regido no estrictamente jerarquiza. En este girós- ble— en plena tragedia estructurante. incidencia es la de un corrosivo cuyo ajus-
por las coordenadas hipnóticas, obsesivas copo de alteridad que entera, habilitado el te de pátina se producirá gradualmente y
del estadio mental capitalista. Este canto destinorigen por su deseante percatado, QUIEN EN CIERTO ANDARIVEL ES a medida que el sistema-síntoma que lo
propulsa posibilidades detonadoras y en éste, ahora adorigen, abandona al dios de HÉROE, EN OTRO ES DESERTOR, en otro volvió moderno, es decir crítico, se acen-
consecuencia expansivas del hiato-con- lo insaciable, retirándole no sólo la carnada testigo calificado de los hechos, en otro túe, como el retorno en escucha diferida
ciencia que interviene —contraviene— el de su ofrenda sino, con ello, el propio co- descalificado por extraño. Ninguna de es- pero quemante de un mito.
continuo-socialidad. Sin tribu y sin desti- razón que en trofeo le exigía, ojoído, capaz tas figuraciones definen la juglaría, entre Sousândrade no sólo es periféri-
no, al Guesa le queda, sin más embargo, de abolir pánicamente en sí al preexisten- flâneur y tránsfuga, del acechante que co por extranjero —publica en países de
toda la duración posible de su deseo por te insaciado. Así la vida frágil e inestable, engarza diamantes medio abollados —em- habla inglesa— o por lenguaraz, sino por
delante. Por la fisura de la fuga que inau- incertidumbre sostenida en vilo del deseo, pero pulidos hasta renovar la provocación inventor. La sola presencia del inventor
gura el entre, recomienzan odiseas. puede, por el momento, siempre el mo- del accidente— de las 176 estrofas de El poético delata por comparación inevitab-
mento, mucho más que el absoluto. infierno de Wall Street: la cruda incandes- le la pereza coeva de los maestros ver-
FALTA, DESERTA EN ESPACIO- De la entraña inmemorial de los cencia de su ritmar materiales reciclados sificadores más ponderados o a su turno
TIEMPO AL PRESCRITO PAPEL en la pues- anillos concéntricos del encadenamiento de un presente, espejo tan advenedizo. la inclaudicable escasez de miras —siglo
ta de lo aparentemente inamovible, cuyo cíclico resalta entonces la aguja desbruju- Acechante semiótico, el poeta mo- de manos— de los laboriosos cartógrafos
protocolo el desertor, voz-de-los-desier- lar de la línea de fuga, cuya frecuencia di- derno funge entre otras cosas de lector de del canon. El obrar poético de Sousândra-
tos, habrá comprendido por gracia del hor- vinal y mutante no se distingue del estar- la entrelínea. Por eso objeta en diagonal de recién está insinuándose a sus lectores
ror —sinsentido de una muerte no sentida -en-vida. No sin pagar, por ese nomadismo el embrutecimiento hipnotista implícito en potenciales —fuera del brasilero— cuando
por ese dios de lo insaciable—; horror, nos que otorga la disensión con un Nosotros el abuso verborrágico y despiadado de la hace rato ha adquirido la solvencia atem-
consta, no menos sagrado. Por la múltiple imperante —por esa desidentificación— propaganda. Incluidos la imagen pública poral, el merecimiento de ese anacronis-
giratoria de la orfandad hace su entrada la un precio quizá mayor y otra vez sacrifi- de los poderosos, el chiste del chisme y el mo cuyo manifestar explícito ante la men-
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talidad que imprimen las épocas, requiere fabbro fl(h)uye y no se ve(la): absorta e parciales cuando no plenamente falsas y titario. Su periplo levanta la temperatura
un desplazamiento en nuestra propia con- indivisible, es el hilván. La nuca de la épo- el escándalo, obsceno por establecido, de analógica. Por ende, la circunstancia exte-
sideración del espesor presente. ca. El punto ciego incuba la escucha. una palabra maltratada, una palabra que rior o “el paisaje” correlacionarán un des-
Dada la implícita pregunta por las Un recurso de técnica de sutura no condice, una que falta, nada está dicho plegado de acompañamiento, indicial pero
sociedades en tanto economías nacionales invisible y de economía de edición, desde todavía, en el sentido en que poco y nada no concluso, de avatares que consignen la
en proceso, El infierno se mantuvo autori- el contracanto infernal del marañaense, ha sido escuchado hasta ahora. ¿Cómo antedicha aventura de la interioridad en
zado alrededor de una centuria de soslayo contestan —ahí la ironía— a las prepoten- conversar sin escucha, interactuar con rozamientos inevitables e inconducentes
como artefacto ingenioso, a lo sumo, pero cias del cerebro técnico-económico. Una los discursos dominantes del monólogo fricciones con la evidencia de la más mu-
—cuestión de estiletes— desubicado. Ante devoción no confesional sino documental del mono Logos y sus razones de estado? tante inestabilidad.
la lineariedad mnemotécnica del poema de se hace presente en lo que explicita pero Cada última palabra será otro tropiezo. El De pronto el infla(ma)do Yo del
comentario político o de crítica habitual de no explica, al empalmar artesanalmente poeta capta con trazo de urgencia cosmo- cliché que leímos como lunar romántico
costumbres, pero también ante la efusión toda suerte de proclamas, así como otros polita esas verdades a medias y esos actos no sólo disminuye en pretensiones abar-
esteticista del aparato neoclásico —aunque vaciamientos y secuestros residuales de la de emponderamiento, así en la necedad cadoras hacia un yo desmayusculizado,
algún clima lapidario pueda estar inervan- palabra-valor. La juntidad del corta-y-pe- como en el menosprecio, por parte de los más cerca de la expansión distendida de
do su entrelínea— el poema de Sousân- ga hace al filo analógico vinculante y con- detentadores y demás oficiantes de turno, la subjetividad irrestricta, pero alerta, del
drade no podía, insisto, sino tardar en ser vivencial que desnuda, sin recurrir a más de sus efectos. viajero entre horizontes, que de la conden-
apreciado varias generaciones después. traducción, cuánto disfrazan los discurseos El infierno de Wall Street equi- sación del genio a régimen grandilocuente
Desde este granangular se sugie- del interés y la dominación, y cuán poco, valdría a una partitura escénica para un de salto vertical. Se redesmembra y des-
re que Sousândrade estaría sopesando la en realidad, encubren lo estructural de su ensamble de elementos del descentrado perdiga al transmigrar, ya diverso, por en-
situación —mistura de por sí— de super- mentira. Nada de esto, desde luego, se vocerío central atisbado, a punto de pesa- tre un íntegro y/o. “Desenmascaramiento”
viviente ucrónico a la vez que de avezado enuncia en el poema. ¿Hay relámpagos? dilla en el paseo satírico, desde ese rasero “experimental” que implica una “resisten-
cronista ya urbanita. Observante periféri- de excéntrica anonimia en que la voz se cia” de lo informe. O sea el alma, y no el
co cuyo instrumento sensible lo sacara a MENOR NO SERÍA LA IMPREGNA- brota. Pues el Guesa, o sea Sousândrade, sujeto de su discursear. Alma en acto. Rít-
pasear, horizonte dentro, el orbe: de Ma- CIÓN MÍTICO-ROMÁNTICA —el Childe Ha- limitándose a las indicaciones de lectura de micamente se aguza la incógnita de almas
ranhão a Manhattan. Avatar de una super- rold’s Pilgrimage de Lord Byron— de la si- la partitura en los paréntesis, como en una y almas. Ya no en pena. Indemostrable, se
vivencia, para el adorigen que lo desdobla, lueta en otras velocidades del Errante, hoy pieza teatral o las acotaciones anímicas de dirá, pero tangible en devenir. Aun más en
la otredad del alien tanto es Wall Street diríase desterritorializado: el mestizaje se un guión, se hace transparente ante/tras las tiempos de indubitable auge de la utopía
cuanto el Imperio del Brasil. Drama del da por ósmosis [“solvente pero no disoluto voces-entidades que convoca. Hace suya la positivista, luego industria del progreso,
entre. Pues desde otro estrato de la sen- entre dos soluciones de distinta concen- voz del drástico auctor —tal como la grafía máquina de lo constantemente establecido.
sación-posibilidad, desde ese cuerpo que tración”, rae] y consiste en propagaciones en tiempos de Sousândrade consignaba el La petrificación de las utopías, a
se viene salvando, al partir de un mundo incasillables —por ende indómitas— de la término, al que hoy le comprobamos, a oí- medida que pasan de envión a objetivo, de
del cual ya no formará parte, se produce, reciprocidad, sin la cual no hay comunidad dos vista, la mutua transfusión entre autor potencia a signo, de suscitación potencial
de todos modos, un sacrificio. ¿A dónde asociativa. El transterrado deviene puen- y actor. Voz colocada en convergencia de a obsesión por el poder —el eje que le fija
partir? La ilusión sin retorno, el siglo in- te por lo menos en dos direcciones. Aquel resonancias, hiperconciente de las incrus- culminación al supuesto centro del ciclora-
dustrioso, la mentalidad omnipotente. La brasilero que estudiara Ingeniería de Mi- taciones de la letra en la palabra, a través ma— las compele a cumplir con su parte
proteica esclavitud, ahora investida de su- nas en Paris y Letras en La Sorbonne, re- del recorte del recorte. El cartel, la noticia. en el ancestral pacto de tragedia. Ahora,
perstición financiera. sidente en New York desde 1871 (durante El anuncio, la anuencia. La masa, el volu- la mirada cuya utopía es origen en deve-
Echándole más que un vistazo al el Segundo Reinado de Brasil) con conoci- men. La digresión incorporante. El sinérgi- nir, cuya fuerza de arrastre lleva al origen
sistema de creencias de un lugar y una miento de causa construye, desde la de- co acollaramiento del collage. otro, imanta a su vez hibridismos e incon-
época, vértigo irónico mediante, Sousân- molición, fraseos de auctor que son citas El héroe romántico-mestizante-a- gruencias. Fisuras semánticas que son hia-
drade dinamiza conexiones. Alto contraste desliteralizadas del periódico que consti- merindio en su aceleramiento moderno de tos experienciales y que el poema recoge o
en que las lucideces de tan suyas se hacen tuyen antenas para frecuencias que a no partículas informalescentes, sería a la vez aprehende en su red de pescar reverberos
tácitas: suturan secuencialmente las más- ser por la entrelínea-sutura de su recitado el itinerante de la subjetividad —desata futuros, armónicos inusitados del pueblo
caras actualizadas. Tanto se expone ante hubiesen pasado por indecibles. tanto como anuda la interioridad álmica— que vendrá, buscando con su crítica con-
el visor semántico que la precisa mano del Dado el griterío de las verdades la cual a todas luces excede al sujeto iden- notativa afectar, se supone, cuándo no, la
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razonable domesticación del lector. La in- noticia. Muy al fondo del cerebro ilustrado, ciones y concurre el reguero a la transpa- catrices de incandescencia. A la historia se
tervención subliminal de la propaganda recodo fabuloso, el retorno de la escucha rencia del hilván, a filo y desafío de (casi) le ve la hilacha. Así, este poema conciente
—revisando la entrelínea del dato-por-so- poética amplía en detalle las junturas. En imperceptibilidad. Salido de elocución, de su condición periférica a mediados del
bre-el-hecho— constituye la fuente princi- los cortes emerge esta rara esperanza del Sousândrade propulsa, a contrapelo de la xix, se entromete con el cuadro contextual
pal que informa al poema y sobre la cual matiz-ruido, pese a tanto. La noción de propaganda que constituye la fuente y ma- de una altivez, revisa el síntoma panpara-
ensaya. No deja de ser un conjuro. frontera separativa, por la contraria, su- teria de su poema, la escucha en alteridad noico: un tipo hasta entonces inédito de in-
braya profundas urgencias vinculares. que inversamente constituye la alegría co- tervención crítica y clínica.
RITMADAS, PARA AMPLIAR LA El infierno informa que bajo la nectiva del ritmo: restauradora, a su vez Tácitos, en tal panorama, los de-
TRADICIÓN ROMANCE EN LENGUA LATI- continua disolvencia de la noticia, se po- y modo, del aura del signo. La voz pasa el vaneos del alma encorpada, poseída por
NA, en base a parámetros excéntricos aun tencian otras actualidades y quizá otras alma pero el vocerío lleva las almas a una el Gran Pretexto. Ahí el nativo alter por
dentro de la poesía inglesa asimilada, las evidencias. Mientras que esa continuidad cierta textura temporal: la música verbal, el mundo colónida más bien transporta al
imágenes-fragmentos-voces se permean al ras de los signos expresa un sistema: de tan moderna, reluce su insurgencia ar- Occidente tardío, el contraveneno de mu-
al contacto de nuevas mutualidades sen- mismo que ahí se mira, ombligo de la fi- caica. La voz del poema no se distingue así tación de las reciprocidades. Contrabando
sacionistas. Desde la primicia de su sabor jación-historia. Sousândrade devuelve del oído infrafino. La voz se dispara, cada hormiga de otro(s) tiempo(s) o de un des-
intersticial, precisando la eclosión: fugas acrecentada “la propagación del anuncio” vez que acierta, con el arco de una atenta tiempo capaz de abarcar este acelere de
en las junturas, lagunas en la percatación como pregunta por el futuro. Poeta de mo- escucha. La veritas del matiz se aviva con las importancias a su vez recortadas por
general. Con ello detonan las imágenes derna fe, al fin y al cabo, trabaja climas. el tercer oído. la celebridad y las ebriedades del poder.
sousandradianas un caricaturismo tenaz. La intervención poética se consuma retri- EL MITO INDÓMITO Y OTRA VEZ Ése que ya avaláramos secularmente con
El tamiz conjural, caleidoscópico de difrac- buyendo a los signos la emergencia conec- MODERNO DE UN CONTINENTE EN TRAN- apoyo axial en la conversión como criterio
ciones irradia, umbralicio de mayores pre- tiva y despertante de un ritmo. El collage CE de incipiente revuelta republicana y de despliegue, con la consiguiente adap-
cisiones aún no ajustadas —verbigracia el en efecto incorpora —sensibilizándolas a una razón atroz articulándole el esquele- tación de valores en precios. Los cuales
desencuentro feudal de los discursos-terri- la vez que enrareciendo el tono con solo to, le espolea el perfil al diagrama nocio- redundan, además.
torios: Real sobre Real y real contra real— el “dejarlas hablar”— las más brutas eviden- -nacional. A ese recorte fronterizo, cuya La gradual consistencia del no-
claroscuro americano. El tema de la corrup- cias. El más prosaico culebrón de lo real persistencia delata el coloniaje estructu- voindiano, sin reglas de soporte ni pasa-
tela, si bien universal, digno del abordaje es reenchufado a un paradiscurso, que se ral que anuda la referencia inolvidable de do glorioso que corroborar, sobre suelos
clásico de los grandes asuntos, adquiere tin- sacude el consenso perceptual. Ningún las contraposiciones, el inminente mes- de incalculable riqueza —cuestión medu-
tes notorios, aun a pesar de que la unidad énfasis, salvo el irrisorio abrochado de las tizo va a experimentarlo en simultáneo lar de la urdimbre— todo el porvenir, todo
de lugar aquí sea un enclave en una isla del citas con manotazo de ahogado en su pro- desde ambos lados de la demarcación. el futuro por delante. Mientras tanto… La
hemisferio norte, la otra América. Su sus- pia salsa. Pasar fronteras: cruzar espejos: atrave- presión cerrada de la tribu atrapada en la
trato, sin más allá, sigue siendo el común El ritmo poéticamente avisa de una sar espejismos: pasar voces: multiplicar repetición cíclica, por un lado. El campo
avasallamiento de la otredad. intermitencia. A la cual además habilita. cuerpos. Más que de doble mano y en de concentración de la mentalidad colo-
Saltos que el recorte del collage Algo de brote pues pero voluntario, bastan- doble sentido, un contrabando ameboi- nizada y la progresiva agresividad de su
propicia explorándolos —densidad de si- te risa. Aun a pesar de la carga dramática dal, irrestricto al régimen de conocimien- programa, por el otro. Semejante mezcla
lencio, la sutura hilvana, revincula— luga- del asunto, Sousândrade pellizca los asun- to unidimensional imperante. de influencias, si no enloquece, permite el
res transpersonales empero impregnados tos apelando a nuestro sentido del humor Mito amerindiano —invento y ten- serpenteo de una fisura intermedial, que
por los actos de la colectividad. Así el re- con la mira en la interlínea y su consiguien- dencia— no sólo subyacente sino sobre la letra del poema, más que relatar, dela-
clamo por los términos movedizos para el te exigencia oscilatoria de olfato, mayor todo proyectivo, cuya heterogeneidad ha- ta. El Guesa empalma las imágenes de su
intercambio y la pregunta de quiénes dic- escucha. Conduce la exploración de lo no brá de envolver y reenraizar sin embargo collage en movimiento asociativo: cinéti-
taminan lo público e imperioso, peroran o dicho/escuchado en lo harto repetido, y las obsesiones teleológicas y fundacionales, camente elude, este infierno, la descrip-
demarcan. Lugares —acaso sitiados— de aun de los decibeles de lo indecible en lo la urgencia mítica del nuevo origen/orden ción naturalista o la psicología, como así
la resonancia, donde “el manejo de la in- decible. Lo renovadamente inconcluso. La transparente. Y ello expresado por Sousân- también, hay que decirlo, la lírica stricto
formación” queda tan en evidencia que se cuestión —insistamos— del relieve. drade de la manera más simple y directa: sensu del macizo o atribulado Yo [o —me-
trasluce también soporte de emergencias En la disposición colmenar de las El infierno muestra las junturas de su ins- nos que menos— el Narciso masivo Noso-
ucrónicas, anteriores al presente preexis- estrofas se va condensando un residuo, cripción, exhibe los costurones —silencio tros], haciendo de la transmisión un mon-
tente, el cual se actualiza a merced de la el arrastre poético se sustrae de afirma- vinculante, muy lejos de callar— como ci- taje sensacionista con mucho de parade y
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matraca secular. “—Con reyes es haciendo esa otra cosa que el discurso arrebató: el que El infierno de Wall Street vigoriza su tenciación de afloramientos e insurgencias,
realezas; / Con presidentes, sensación; / pandemonio y su aparato, la convivencia vigencia heterogenética. imágenes supervivientes por la hilacha del
Con Vanderbiltes, / ‘Dinamites’; / Con los mecánica alrededor de los intereses y sus La cosa sólita no se agota en el tó- ruido no-indio ambiente. El aglutinante des-
Indios, ¡sombrita y fragor!” respectivas servidumbres. pico. Lo que se despliega, más que el tema liz es la correosa consistencia de las veloci-
La potencia múltiple y plural con- E interesa especialmente que el ante el lector, es un ensamblaje de ilusio- dades que aprontan su propia temporada en
tinúa propagándose en reguero de hetero- auctor nos confunda adrede y hasta ex- nes geométricas, asimetrías anamórficas, el infierno vía el furor de la denuncia cantan-
géneos como el Guesa. Un errante de an- traerle la texturada fricción a su hiperrea- puntos suspensivos, diálogos de sordos, te. La interioridad avasallada por los signos
tes de la historia. ¿Indio moderno de qué lismo, con la transcripción en “tiempo pe- monólogos de doctos en sintaxis burocrá- de la catástrofe general llamada realidad.
Occidente? ¿Un asunto de lenguaje? riodístico” de su experiencia biográfica y la tica; morfologías latentes como frankens- El hiperrealismo, llevado hasta sus últimas
Pero volviendo a la “técnica de es- consistencia pneumática, casi impersonal teins de la razón pragmática, encima pa- consecuencias, adquiere la pureza densa, la
critura”, cinemática avant la lettre, Sou- de receptiva, antenada, de su personaje: sados a otra velocidad, cuya alteración del tersa cáscara de la caricatura.
sândrade inscribe los trazos necesarios no primera sino cóncava voz. El sujeto, foco inteligible aumenta debido a la suelta El modo como mancha la super-
para disparar tragicómicamente las imá- así, dessujetado. A la vista del lector y minuciosa del fragmento miniado; el surti- ficie del poema con su colección de exvo-
genes internas de su virtual lector. Imagi- más allá de las fronteras perceptuales de dor caleidoscópico y su rondarnos la muer- tos Sousândrade, con extractos de otros
nar por un instante desprendido del surco su lectura. te con coartadas, atajos de la historia. idiomas, inventando palabras, complican-
con qué niveles de incomprensión podrían No tanto colores cuanto inciden- do el étimo y el desarrollo narrativo, no
leer brasileros coevos esta impregnación SOUSÂNDRADE O UN OBRAR que cias ambient: daguerrotipos movidos des- es apenas un procedimiento, depende de
de rítmica urbanita que Sousândrade le en El infierno de Wall Street se demuestra de el fantasma identitario hasta la kine- un cuerpo que se las juega. El infierno de
planta a la lengua escrita en tanto efecto y expone. Un obrar que articula picos de sis sonoraural. Imágenes en 360 grados, Wall Street es un poema político porque
sensorial. Ahora el poema es transparentí- intensidad con táctica semántica asom- sensoriales, no apenas retinianas. Olores no celebra el poder ni concede categoría
simo: ¿siempre lo fue? brosa. No apenas “para su época”, que ha- de la calle y proliferación de los cuerpos heroica a los poderosos o públicamente
La dilación que llevó apreciar sus brá que seguir descifrando. La posibilidad activados por la necesidad y el interés, influyentes, mientras trasluce la excentri-
alcances habrá sido la propia lentitud de de una escritura en red, en el sentido de por las astucias del discurso y las tram- cidad de una resistencia observante. Para
apertura lectora, todo ello hermanado al integrar rítmica o colmenarmente módu- pas de la apariencia, por la animación y decirlo una vez más de otra manera: ca-
hecho de que Brasil, vía la Ley Áurea, abo- los de expansión connotativa y contracción el estruendo, por el festejo y la guerra. La pacidad corrosiva de diagnóstico y envión
liera la esclavitud, por decreto de la nota- denotativa, un tensado de plenos pulsan- transparencia entre los hilos deshilachada mediante el humor de mera mostración de
ble princesa imperial Isabel I de Bragança, tes y no menos activos agujeros del sen- y un espeso sinsabor. los mascarones crujientes del poder y su
durante una de las veces que asumiese la tido. El enhebrado conduce eléctricamente Ex-indio de repente pero hace rato tóxica efectiva a nivel de la socialidad. De
regencia, recién en 1888. Pero así como pero ampliando los márgenes del rever- ya yndiano, diversas temporalidades para la percepción.
en un primer momento no se previeran las bero imaginario. Maestro de la entrelínea, un mismo cuerpo, el Guesa encarna por El quid inevitable, si hemos de ba-
condiciones de inserción de los ex-escla- capta el inmenso margen de desaparición contacto el tajo-hiato, corte-puente, del rajar una temática, es por tanto la menta-
vos, la esclavitud continuaría siendo —por violenta como un zumbido de frecuencia mestizo que somos y/o seremos —y no da extranjería y en consecuencia el elusivo
supuesto— un trazo de trasfondo irresuel- alterna que la realidad normatizada igno- sólo en América— porque tanto al viajero extrañamiento, que ya pasó de tópico de
to en el diagrama nacional. ra, expulsa de su campo de pragma: un voluntario cuanto al migrante forzoso de denuncia para ganarse gravedad de tras-
Y así desde el follaje adánico, el ruido, un indio. ¿Alma no fantasma? incontables exilios sobreviene, incorporán- fondo, empujando como bicho de tragedia
mal salvaje, arrojado a la civilización, con En todo caso, el poeta encuentra y dolos. Su presencia objetora de concien- la consecución en bajorrelieve de esta pi-
la que se mimetiza hasta el exacto bor- propone, en acto-de-lengua, contrapactos cia, que tamiza indudablemente al propio caresca cinética. El poeta, desdoblado tal-
de desde donde no deja de observarla. La de lectura. Aun más que porque la escena Sousândrade, alter ego, él, de su charac- lador en su observante tácito, es conector
cursora antropofagia de este manierismo, capital “transcurra” en la Capital del capi- ter, va cobrando intensidad de gradación de voces. En un mundo fragmentado, la
estiramiento háptico de la mirada y del talismo, es en la devolución visionaria del según convenga a su moviola estrófica. junción: del gesto hace conjuro.
oído, contracanta y se tensa, percute la ensordecedor murmullo de los autómatas A través del poema sousandradiano Traductor interreales, se aboca
lente —infernal por timpánica— de Sou- (Westphalen), griterío en sordina de los la tragedia insta deslocalizándose o espolea el poeta a confeccionar un textil —en el
sândrade. El guesa pasa de cantar (¿se autómatas del poder en toda la gama del en tanto emergencia de ancestralidades — sentido precolombino de pieza— aunque
canta en el infierno?) a canalizar vocifera- espectro —sin excluir el desangelamiento, invención amerindia— donde y cuando la en este caso la urdimbre (el espesor ar-
ciones luciferantes. Y esto, demostrado, es o sea el secuestro corpóreo de las almas— oscilación analógica se recupera con la po- ticular) y la trama (el tema en su tempo)
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avanzan por igual hacia un ojoído que an- bre el floreciente capitalismo industriomi- 3 (La VOZ mal oída d’entre la tronada:)
tes no estaba. Los sacerdotes muyscas litar sino acerca de los inagotables ofician-
son los capitalistas y usureros, jeques en tes indiferenciados, espectro de amplia —Fulton’s Folly, Codezo’s Forgery…
jaque de la urbe económica que panoptiza gama de los adosados al poder. Denuncia ¡Fraude es el clamor de la nación!
el orbe y determina la socialidad, vigori- cuya primeriza insolencia retransmite des- No entienden odas
zando la figura, por demás industriosa, del de la propia crisis. Railroads;
chupasangre. “La Voz, ida de los ángeles “La verdad es lo que hay de eterno Paralela Wall-Street a Chattám…
— venida de los vampiros”, rumia, rutila, en la noticia”, inscribirá Paulo Leminski. Un
el poema. siglo antes Sousândrade, redesplegando el 4 (Corredores continuando:)
Incisivo comentario, todo El infier- mito en la noticia, aguijonea en la urgen-
no de Wall Street se ajusta asimismo a ser te referencia la multidimensión metafórica —¡Pigmeos, Brown Brothers! ¡Bennett! ¡Steuart!
algo así como una nota al pie, no sólo so- de El Averno de la Calle Pared. ¡¡Rotschild y el colorado d’Astór!!
== Gigantes, esclavos
¡Si los clavos
Notas Chorrean luz, si finase el dolor!…
1 De esta última es que tomamos en cuenta el Canto
X correspondiente y rebautizado como El Infierno de Wall 5 (NORRIS, Attorney; CODEZO, inventor; YOUNG, ESQ.,
Street por Augusto y Haroldo de Campos, en: Revisão de manager; ATKINSON, agent; ARMSTRONG, agent;
Sousândrade, Edições Invenção, São Paulo, 1964; edición, RHODES, agent; P. OFFMAN & VOLDO, agents;
con grafía moderna, que también adoptamos. algazara, espejismo; al medio, el GUESA:)
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—Sólo Tennyson, sólo, sólo Longfellow,
S’inspiran en la buena moral:
¡No strikers Arthurs,
Donahues,
Ni Byron Juan, ni Juvenal!
10
Oyó de Plymouth al zagal!
11 (BEECHER-STOWE y H. BEECHER:)
Brunno V. G. Vieira
—Mano Laz’rus, tengo remordimientos
De la piedra que a Byron lancé…
== ¡Cayó en mí, mana
Gitana!
¡Él, a la gloria; yo, fuera de la ley!
—¡Abracadabra! ¡Abracadabra!
¡Mahomed mejor que Jesús
Entiende a la mujer
Y no querer
En los cielos a quien de la tierra es la cruz!
82 83
Ovídio, poeta romano da virada da das na seção “& latinórios” de Crisan- seus atos consequentes, amaram ativamen- O que uma tradução do conteúdo poderia
Era Pagã para a Cristã (nasce em 43 a. C. tempo, Haroldo dirá: “já nos poemas la- te. Na tradução que segue seleciono ou anto- dar a entender: “eu temia as muitas dure-
e morre em 17 d. C.), foi um varão versá- tinos, há uma preocupação marcante com logizo 5 dos 21 dísticos do poema completo, zas de sua leviandade (...). Eu, que estava
til naquele sentido do adjetivo uersatilis em a ‘logopeia’. (...) Onde me pareceu mais à guisa de condensação. Atenho-me ao es- para aconselhar amantes similares a mim”.
latim, “aquele que é capaz de se voltar a adequado, servi-me do ‘verso livre’, para sencial mitológico desse catálogo nas figuras Vale dizer que o cerne do paradoxo destaca-
vários assuntos e afazeres”. No campo das evitar o enclausuramento forçado do me- centrais de Marte e Vênus, que, aliás, foram do pela contiguidade em latim dos termos
palavras, ele era capaz de alcançar notáveis tro, que obsta, por vezes, o giro sutil da flagradas em adultério por Vulcano com de- levitatis e dura (que encarnam os concei-
resultados seja em prosa, como declara Sê- sintaxe”4. Esse modo de ler era tomado talhes sórdidos que o próprio Ovídio aponta- tos díspares de “volatilidade” vs. “dureza”,
neca, o velho (Contr. 2.2.8), seja em verso de Pound que julgava os poetas romanos rá em suas Metamorfoses (cf. 4.171-189). bem como a expectativa gerada na suspen-
na verificável habilidade com que o maneja, mestres nessa espécie de poesia (nessa Meu objetivo não é atender à totali- são do adjetivo multa que só fará sentido
especialmente, no dístico elegíaco1. Quando chave, o poeta Propércio é relacionado a dade semântica do poema, mas experimen- quando encontrar o seu correlato gramatical
pensei em versátil aglutinado com “multi” Laforgue)5. Logopeia é «a dança do in- tar uma transposição relacional-visual de al- dura, duas palavras depois) é um sofisticado
no título, confesso-o, queria também co- telecto entre as palavras»6, algo que ele guns giros sintáticos sutis de Ovídio, de sua exemplo de dança do volátil intelecto entre
notar algo sobre as potencialidades de sua mesmo esclarece como o jogo da ironia logopeia, enfim: superverto um texto em dura sintaxe.
poesia em termos tradutórios, ligando-o de produzido pela quebra de expectativas dos “sintaxe discursiva”9 para um texto de ca- Pound translada da seguinte forma:
propósito ao polytropon2 de Ulisses, o pe- concomitantes habituais7. ráter intersemiótico à maneira dos poemas
rene viajor entre povos e cidades. O ver- Ora, o paradoxo semântico-sintá- concretos, seguindo algo daquele plano-pi- The harsh facts of your levity!
bo uertere em latim, cujo particípio é uer- tico que move o poema 1.9, presente já loto ao entender que “a poesia concreta ora Many and many.
sus, significava “traduzir” naquele sentido na primeira sequência de palavras mili- enfatiza o sintático, ora enfatiza o semânti- I am hung here, a scare-crow for lovers.13
comum de tradução entre os latinos como tat omnis amans, ou seja, “guerreia todo co, dentro de seu programa geral de beleza
emulação ou como superação do texto de amante “, é um engenhoso exemplar logo- que implica, como grande balizas, a ideia Dura face de sua leviandade!
partida. Superverter, reiteradamente, é tra- paico, destacado pelas aliterações em /m/ de uma sintaxe relacional-visual e de uma Tal e tanta.
duzir além, sobre-escrever, renovar. que identificam na linha sonora elementos redução semântica”10. Assim, ao reinventar E eu aqui de cara, espantalho de amantes.
O poema em foco aqui é a elegia díspares de sentido como guerra e amor. as relações do tipo sintagmáticas por aquela (trad. minha)
1.9 do livro Amores3, ou seja, o nono poe- No decorrer de 21 dísticos8, o poeta latino “relacional-visual” opero com uma necessá-
ma do livro primeiro. Nele, a dualidade pa- expõe a comparação (comparatio, syncri- ria redução semântica.
radoxal entre amor e guerra é trabalhada à sis) entre o amante e o soldado, buscando Reporto-me a Pound que escolhe o Notemos que a essência da tradução logo-
dupla potência nos dísticos, espelhando-se provar ao leitor, à maneira de uma peça re- primeiro e o último hexâmetro de uma elegia paica reside na disposição das palavras e,
em oxímoros, ecos, comparações, parale- tórica burlesca, que amor não é algo desi- (de 42 versos) para renová-la a partir de sua concomitantemente, nas reelaborações de
lismos fono-sintáticos e outros redobros diosus (ocioso, negligente, desleixado). Tal depreendida logopeia. Ao traduzir o poeta sequências sonoras que se podem sacar do
mais. Se pretendo supervertê-lo em por- aproximação entre amor e guerra é irônica, romano, em sua Homage to Sextus Proper- texto de Propércio. O destaque dado à tra-
tuguês, com recursos pós-mallarmaicos, porque sua realidade é improvável no con- tius (1917)11, é possível perceber, por vezes, dução de multa por many and many, que
algo desses notáveis jogos, convém ilumi- texto do Império Romano. É irônica se se como o tradutor-renovador se serve da dis- o fabro desloca para outra linha em desali-
nar, neste preâmbulo à tradução, algo da pensar no sentimento consuetudinário bem posição das palavras na página para recriar nho com as restantes, é a saída encontrada
complexa fábrica da poesia latina por ele declarado por Cícero que, mesmo quando dança sintático-semântica depreendida do para resolver aquela suspensão de multa há
praticada. Assim, para desconstruir seus está em comparação a (então considerada) texto latino. Por exemplo, na versão dos pouco mencionada. O eu (ego) fica por trás
artifícios a fim de reimaginá-los em portu- nobre carreira de advogado em relação à dois versos que abre a seção XI de Homage de uma frase nominal e assertiva, atenden-
guês, usarei alguma reflexão contemporâ- militar, dá a palma à segunda afirmando rei transpondo a elegia 1.15 do poeta latino: do à necessária condensação professada
nea sobre a poesia antiga feita por um in- militaris uirtus praestat ceteris omnibus, “a por Pound que está algo presente na “re-
fluente poeta-tradutor da primeira metade virtude da atividade militar está acima de Saepe ego multa tuae levitatis dura time- dução semântica” proposta por Haroldo. Tal
do século XX. Falo de Ezra Pound e de sua todas as restantes” (Cic. Mur. 22). bam (...) como, em Propércio, multa tuae...dura per-
formulação de logopeia, especialmente a Ovídio joga com esse dado. Coloca quis (sc. ocellis) ego nunc pereo similes fazem uma assonância extrema contando
partir do modo como foi assimilada no Bra- um sentimento consuetudinário para dan- moniturus amantes. com o destaque na sua performance da vo-
sil pelos Noigandres desde os anos 1950. çar, evocando longo exemplário de heróis gal mais fechada (/u/) sucedida pela mais
Em nota às traduções encontra- épicos que, em plena guerra iliádica ou nos (Prop., 1.15.1;41)12 aberta (/a/), Pound tenta responder a esse
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ludíbrio sonoro e bucal, fazendo ecoar, um especialmente as numismáticas, os estan- Notas ginas espelho. Cf. SULLIVAN, J.P. Ezra Pound and Sextus
tanto anagramaticamente, many and many dartes (signa) em geral são compostos 1 É o dístico uma brevíssima estrofe composta de um Propertius: a study in creative translation. Austin: Univer-
em I am hung here. com a águia (aquila), símbolo do Império hexâmetro datílico, o verso épico instituído por Homero e sity of Texas Press, 1964.
Um pouco nessa trilha de Pound, Romano na posição mais alta. Não poucas transposto à literatura latina desde Ênio (séc. II a. C.), e o
ou melhor, do Pound tal como estrutural- vezes como nesta moeda que reproduzo pentâmetro, também conhecido por hêxâmetro catalético, 12 SULLIVAN, op. cit., p. 158.
mente recebido no Brasil, valor máximo acima, por alguma possível deficiência de ou seja, um verso manco entendido literalmente assim já
será dado à resposta do estranhamento cunhagem ou mesmo desgaste do tem- que lhe falta um pé em relação à cadência hexamétrica. 13 SULLIVAN, op. cit., p. 159.
potencial que as palavras têm no poema po, esse símbolo de soberania é gravado
latino e, às vezes, para transpor todas as de tal forma que me parece uma pomba, 2 “Multiversátil” é o termo usado por Trajano Vieira, 14 Moeda romana com estandartes e águia ao centro.
nuances de combinação será necessário meigo símbolo da deusa Vênus.16 cuja escolha tem respaldo já na Antiguidade, na exegese Encontrado em http://tjbuggey.ancients.info/repub.html
lançar mão da espacialização gráfica, um de Platão (Hp.Mi. 364), tanto que Lívio Andronico já tra- Acesso em 20 abril de 2016. (Domínio Público)
recurso caro à poética pós-mallarmaica, duzira polytropon por uersutum na sua Odusia, tradução
naquilo que ela tem de musical, ideogra- considerada a primeira obra da Literatura Latina. 15 CAMPOS, Augusto de. “Pontos-periferia-poesia concre-
mática, verbivocovisual. ta”. In: ______; CAMPOS; Haroldo de; PIGNATARI, Décio.
Venho traduzindo poesia latina, 3 Sirvo-me aqui do texto como estabelecido por Ver- Teoria da poesia concreta. Cotia: Ateliê Ed., 2006, p. 37.
servindo-me da sintaxe discursiva e quase ger encontrado em OVIDIUS NASO, Publius. Carmina ama-
sempre em medida fixa, acompanhando toria. Ed. Antonio Ramírez de Verger. München/Leipzig:
uma recente tendência nos Estudos Clás- Verlag, 2006, p. 25-7.
sicos, especialmente adotada por tradu-
tores do Latim, que, entre outros para- 4 CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo
digmas, guia-se na prática translatícia de nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 360.
Haroldo de Campos, sobretudo, em tradu-
ções como a do episódio de Narciso (das 5 POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. A. de Campos
Metamorfoses de Ovídio) e a de sua mo- e J. P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 41
numental Ilíada. Neste experimento aqui
apresentado, recorro a um ideário poéti- 6 POUND, Ezra. A arte da poesia: ensaios escolhidos.
co-tradutório que retoma experimentos do Trad. H. L. Dantas e J. P. Paes. São Paulo: Cultrix: 1976, p.
grupo Noigandres, porque acredito que a Figura 1. Moeda romana14 37.
contínua experimentação deve ser uma in- 7 POUND, Ezra. op. cit. 1976, p. 37-8.
sígnia de toda prática tradutória.
Sob essa perspectiva (ou retros- São nesses termos que 8 Uso a edição formatada por Flores como transcrita
pectiva) intersemiótica e apelando a ex- superverto, multiversátil, Ovídio, com ele em PROPÉRCIO. Elegias. Org., trad., introd. e notas Gui-
pedientes de sintaxe relacional-visual arriscando: até que ponto ROMA e AMOR lherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p.
concreta, busquei mimetizar na mancha não têm a ver? 64 e 66.
gráfica desta elegia de amor traços dos fa-
mosos estandartes de guerra romanos. 9 CAMPOS, Augusto de. A moeda concreta da fala. In:
Em uma espécie de technopaeg- ______; CAMPOS; Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria
nia irônica, imaginei que o poema pudesse da poesia concreta. Cotia: Ateliê Ed., 2006, p. 172.
aludir em sua formatação a um estandar-
te, mesmo sob pena de incorrer naque- 10 CAMPOS, Haroldo de. “Dois novos poemas concre-
le equívoco de Apollinaire, apontado por tos”. In: CAMPOS, Augusto de; ______; PIGNATARI, Décio.
Augusto de Campos15. A sugestão dessa Teoria da poesia concreta. Cotia: Ateliê Ed., 2006, p. 177.
formatação provém da Arqueologia ou
de minha leitura de certa Arqueologia do 11 Sirvo-me da edição de Sullivan que conta com a
Mundo Antigo. Em muitas representações, transcrição do texto latino sob imitação poundiana em pá-
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Amores, 1.9
Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.)
Tradução: Brunno Vieira
http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=2819
Detalhe do Arco de Constantino (Roma). Encontrado em http://tjbuggey.ancients.info/
repub.html Acesso em 20 abril de 2016. (Domínio Público)
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quis nisi miles uel amans et frigora noctis quem
et denso mixtas perferet imbre niues? (15-16) se
não
amante ou militar
torvelinos entre nevascas
frio breu
tanto
se
meteria
?
amigo
90 91
ergo desidiam quicumque uocabat amorem, (31-32) [
desinat: ingenii est experientis amor. R
E
amar desleixo T em destreza
bem exige I amor expertise
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Apresentação
Lucas Simone
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História geral reelaborada pelo vada por sua beleza e por usar um vestido adiando o dia do casamento. De dia, Pené- o combate numa carruagem pareada com
decotado, a bela Helena. Ela foi raptada por lope tecia; de madrugada, ela desmancha- cocheiro, tranquila e confortavelmente,
Satirikon (trecho) (1909) Páris, o que desagradou muito a Menelau. va o que fora tecido, com a conivência de como num bonde.
Então começou a Guerra de Troia. seu filho Telêmaco. A história terminou de Lutavam desordenadamente, cada
A guerra foi terrível. Menelau maneira trágica: Odisseu retornou. um por si, e por isso até os vencidos po-
A GRÉCIA acabou ficando totalmente sem voz, e A Ilíada retrata o lado bélico da diam contar, com toda a sua eloquência, a
todos os demais heróis mentiram sem dó vida grega. A Odisseia traz um quadro do respeito de suas façanhas militares, que
A Grécia ocupa a porção sul da Pe- nem piedade. cotidiano e dos costumes sociais. ninguém nunca tinha visto.
nínsula Balcânica. Contudo, essa guerra permaneceu Ambos estes poemas são conside- Além do rei, dos guerreiros e do
A própria natureza dividiu a Grécia na memória da grata humanidade; assim, rados obras do bardo cego Homero, cujo povo, havia também na Grécia os escra-
em quatro partes: a frase do sacerdote Calcas, por exemplo nome gozava de tanta reverência na an- vos, que eram compostos de ex-reis, ex-
1) a parte setentrional, que se lo- — “flores em demasia” —, é citada até tiguidade, que sete cidades disputavam a -guerreiros e ex-povo.
caliza no Norte; hoje por muitos folhetinistas satíricos, e honra de ser sua pátria. Quanta diferença A posição da mulher entre os gre-
2) a ocidental, que fica no Oeste; sempre com êxito. em relação ao destino dos nossos poetas gos era invejável em comparação com a
3) a oriental, que fica no Leste; e, A guerra terminou graças à inter- contemporâneos, cujos próprios pais fre- sua posição entre os povos orientais. A
finalmente, ferência do astuto Odisseu. Para dar aos quentemente não se oporiam a renegá-los! mulher grega era encarregada de todos
4) a meridional, que ocupa o sul guerreiros a possibilidade de adentrar Com base na Ilíada e na Odisseia, os afazeres domésticos: fiar, tecer, lavar
da península. Troia, Odisseu construiu um cavalo de ma- podemos dizer o seguinte a respeito da Gré- as roupas e cuidar de diversas e variadas
Essa divisão muito original da deira e colocou dentro dele os guerreiros; cia heroica. tarefas da economia do lar, enquanto as
Grécia serviu-lhe para atrair, desde tem- ele mesmo, porém, foi embora. Os troia- A população se dividia em: mulheres orientais eram forçadas a passar
pos imemoriais, os olhares de toda a parte nos, fatigados pelo longo cerco, não se 1) reis; seu tempo no ócio, em meio aos prazeres
culta da população do globo. opuseram a brincar um pouco de cavali- 2) guerreiros; e do harém e a um luxo maçante.
Na Grécia, habitavam os chama- nho de madeira, e por isso pagaram caro. 3) o povo. A religião dos gregos era política,
dos “gregos”. Bem no auge da brincadeira, os gregos se Cada um deles executava a sua função. uma vez que os deuses estavam em cons-
Falavam uma língua morta e dedi- esgueiraram para fora do cavalo e derro- O rei reinava, os guerreiros guer- tante contato com as pessoas; em mui-
cavam-se à criação de mitos sobre deuses taram seus descuidados inimigos. reavam, e o povo, por meio de um “rumor tas famílias apareciam com frequência até
e heróis. Depois da destruição de Troia, os indefinido”, manifestava sua concordância demasiada e sem qualquer cerimônia. Às
O herói mais querido dos gregos heróis gregos voltaram para casa, mas ou discordância em relação às duas pri- vezes, os deuses se comportavam de ma-
era Hércules, louvado por limpar as cava- não para sua alegria. Acontece que, du- meiras categorias. neira frívola, quase indecente, levando as
lariças de Áugias, dando assim aos gregos rante todo aquele tempo, suas esposas O rei, em geral um homem não pessoas que os inventaram a um estado
um inesquecível exemplo de higiene. Além tinham escolhido para si novos heróis e muito rico, traçava suas origens aos deuses de amargura e perplexidade.
disso, esse sujeito asseado matou sua es- agora dedicavam-se à traição de maridos; (um consolo um tanto fraco diante de um Em um dos antigos cânticos de
posa e seus filhos. estes eram mortos logo após o primeiro erário esvaziado), e mantinha sua existên- oração gregos que chegaram até nós, po-
O segundo herói mais querido dos aperto de mão. cia por meio de presentes, que recebia de demos ouvir claramente uma nota amarga:
gregos era Édipo, que por desatenção O astuto Odisseu, prevendo tudo maneira mais ou menos voluntária.
matou seu pai e casou-se com sua mãe. isso, não retornou diretamente para casa, Os nobres que cercavam o rei tam- Ó deuses, será possível
Por conta disso, ocorreu uma peste, e mas fez um pequeno desvio de dez anos, bém traçavam suas origens aos deuses, Que podeis vos alegrar
tudo foi descoberto. Édipo teve que furar para dar tempo a sua esposa Penélope de mas esses já eram parentes bem afastados. Quando nossa honra
seus próprios olhos e partir em viagem preparar-se para o encontro com ele. Na guerra, esses nobres se colo- Fica de pernas, fica de pernas
com Antígona. A fiel Penélope o aguardava, ma- cavam à frente das demais tropas e dis- Para o ar?!
Na Grécia Meridional, foi criado o tando o tempo com seus pretendentes. tinguiam-se pela magnificência de suas
mito da Guerra de Troia, ou A bela Helena, Os pretendentes queriam muito se armas. A parte de cima ia recoberta por Os gregos tinham uma visão um
em três atos e com música de Offenbach. casar com ela, mas ela considerava bem um elmo, a do meio, por uma cota de ma- tanto confusa sobre a vida após a morte.
A questão foi a seguinte: o rei Me- mais divertido ter trinta pretendentes do lha, e escudos o protegiam de todos os la- As sombras dos pecadores eram enviadas
nelau (um ator bufo) tinha uma esposa lou- que um marido, e embromava os infelizes dos. Vestido dessa forma, o nobre ia para para o escuro Tártaro. Os justos gozavam
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da felicidade eterna no Elísio, mas a tal subornos e bobagens do tipo, tentando forma, que entre eles sempre reinavam dois e sublevavam-se com frequência contra
ponto tudo era frugal, que Aquiles, versado antes neutralizar esses animais no ponto reis de uma vez. Os reis brigavam entre si, seus senhores. Estes, para trazê-los para
que era nesses assuntos, reconheceu aber- mais importante. deixando assim o povo em paz. Quem pôs seu lado, inventaram a chamada cripteia:
tamente: “É melhor trabalhar como dia- A cronologia dos gregos era feita fim a essa bacanal foi o legislador Licurgo. eles pura e simplesmente matavam, numa
rista para um pobretão qualquer na terra, de acordo com o mais importante acon- Licurgo era de estirpe real e servia hora determinada, todos os hilotas que
do que reinar sobre todas as sombras dos tecimento de sua vida social; ou seja, de de tutor a seu sobrinho. encontravam. Esse método logo fez com
mortos”. Um pensamento que surpreendeu acordo com os Jogos Olímpicos. Esses jo- Com isso, ele passava o tempo que os hilotas pensassem melhor, e pas-
todo o mundo antigo por seu mercantilismo. gos consistiam em que os jovens gregos todo jogando sua justiça na cara de todos. sassem a viver em plena satisfação.
Os gregos descobriam seu futu- competissem em força e destreza. Tudo Quando a paciência dos que o rodeavam Os reis espartanos gozavam de
ro por meio dos oráculos. O oráculo mais corria às mil maravilhas, mas aí Heródo- finalmente acabou, eles aconselharam Li- grande reverência, mas pouco crédito. O
popular localizava-se em Delfos. Ali, a to inventou de ler em voz alta, durante curgo a partir em viagem. Eles pensavam povo confiava neles por apenas um mês,
sacerdotisa, chamada de pitonisa, ficava as competições, trechos de sua História. que uma viagem ajudaria Licurgo a apri- depois obrigavam-nos a prestar lealdade
sentada no chamado tripé (não se deve Tal ato surtiu o efeito esperado: os atle- morar-se, e que, de uma maneira ou de às leis da república.
confundi-la com a estátua de Mêmnon) e, tas perderam a força, e o público, que até outra, influenciaria em sua justiça. Uma vez que em Esparta reina-
depois de entrar num delírio, pronunciava então sempre comparecera com furor às Mas, como costumam dizer, junto vam sempre dois reis, e ainda por cima
palavras desconexas. Olimpíadas, passou a recusar-se a ir, mes- é enjoativo, mas separado é enfadonho. tinha república, tudo isso passou a se cha-
Os gregos, mimados que estavam mo que fosse por dinheiro, dinheiro esse Licurgo mal tivera tempo de revigorar-se mar de república aristocrática.
por sua fluente fala em hexâmetros, con- que o ambicioso Heródoto lhes oferecia na companhia dos sacerdotes egípcios, As leis dessa república determina-
vergiam de todos os cantos da Grécia para abundantemente. Os Jogos acabaram en- quando seus compatriotas exigiram seu vam que os espartanos tivessem a forma
ouvir aquelas palavras desconexas e rein- cerrando-se por conta própria. retorno. Licurgo regressou e instituiu suas de vida mais modesta que eles podiam
terpretá-las cada um à sua maneira. leis em Esparta. imaginar. Por exemplo, os homens não ti-
Os gregos faziam seus julgamen- Depois disso, receando a gratidão nham o direito de almoçar em casa: eles
tos no Tribunal dos Anfictiões. Esparta excessivamente calorosa da parte de seu se reuniam em animadas companhias
Esse tribunal se reunia duas ve- expansivo povo, Licurgo apressou-se a para ir aos assim chamados restaurantes,
zes ao ano: a sessão de primavera era em A Lacônia compunha a porção matar a si mesmo de fome. costume esse também observado por mui-
Delfos; a de outono, nas Termópilas. sudeste do Peloponeso, e recebeu esse — Se você quer que façam bem- tos membros das camadas aristocráticas
Cada comunidade enviava ao tri- nome pela maneira lacônica com que se -feito, faça você mesmo! — foram suas do nosso tempo, numa remanescência dos
bunal dois jurados. Esses jurados inven- expressavam os habitantes de lá. últimas palavras. tempos de outrora.
taram um juramento muito astuto. Em O verão na Lacônia era quente, Os espartanos, vendo que não A comida favorita deles consistia
vez de prometer julgar de acordo com o inverno era frio. Esse tipo de clima, in- podiam esperar mais nada dele, passa- na sopa negra, preparada com caldo de
a consciência, não aceitar suborno, não comum em outros países, possibilitou, de ram a reverenciar sua memória com hon- carne suína, sangue, vinagre e sal. À gui-
ser hipócrita e não acobertar os parentes, acordo com os historiadores, o desenvolvi- ras divinais. sa de recordação histórica de um passado
eles faziam o seguinte juramento: “Juro mento da crueldade e do caráter enérgico A população de Esparta se dividia glorioso, esta sopa é até hoje preparada
jamais destruir as cidades pertencentes de seus habitantes. em três camadas: os espartíadas, os pe- em algumas lanchonetes gregas, onde ela
à Liga Anfictiônica e jamais privá-la de A principal cidade da Lacônia cha- riecos e os hilotas. é famosa pelo nome de “sarapatel”.
água corrente, tanto em tempos de paz, mava-se, sem qualquer motivo, Esparta. Os espartíadas eram os aristocra- No vestuário, os espartanos eram
como de guerra”. Em Esparta havia um fosso cheio de água, tas locais. Eles faziam ginástica, andavam igualmente modestos e simples. Só an-
E só! para que os habitantes pudessem exercitar- nus e davam o tom geral. tes do combate é que eles se aprontavam
Mas isso demonstra a força sobre- -se na prática de lançamento uns dos outros A ginástica era proibida aos perie- com uma toalete mais complicada, com-
-humana que possuía o jurado na Grécia na água. A própria cidade não era protegida cos. Em vez de fazer ginástica, eles paga- posta de uma coroa na cabeça e uma flau-
Antiga. Até o mais imprestável deles po- por muros: a coragem dos cidadãos deveria vam tributo. ta na mão direita. Nos demais momentos,
dia tranquilamente destruir uma cidade servir-lhe de defesa. Isso, é claro, custava A pior situação era a dos hilotas, abriam mão de tal coisa.
ou parar a água corrente. Por isso, é com- aos patriarcas da cidade menos do que a ou, de acordo com a expressão dos en-
preensível que os cautelosos gregos não piorzinha das paliçadas. Os espartanos, as- graçadinhos locais, dos “esfomíadas”. Eles
os importunassem com juramentos sobre tutos por natureza, organizaram-se de tal cultivavam os campos, iam para a guerra
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A educação das crianças à cozinheira um galo para ser cozido, dizia aos atenienses. Estes, em vez de armas beneficiar o país escrevendo sólidas leis
laconicamente: “Se queimar, eu bato”. militares, enviaram-lhes como ajuda o para ele.
A educação das crianças era muito Como elevado exemplo da valen- poeta Tirteu, munido com seus próprios Para granjear a confiança dos ci-
severa. Era bem frequente elas serem logo tia da mulher espartana, apresentamos a versos. Ao ouvir sua declamação, os ini- dadãos, ele se fez de louco e começou a
assassinadas. Isso fazia com que ficassem seguinte história. migos estremeceram e partiram em fuga. escrever versos sobre a ilha de Salamina,
mais valentes e tenazes. Certa vez, uma mulher de nome Os espartanos tomaram Messênia e insti- de que era desagradável falar em meio à
Elas recebiam a instrução mais bá- Lena, ao tomar conhecimento de uma tuíram sua hegemonia. digna sociedade grega, uma vez que tal
sica: eram ensinadas a não gritar durante conspiração contra a lei, de maneira a não ilha, para enorme vergonha dos atenien-
o açoitamento. Aos vinte anos, o esparta- entregar casualmente o nome dos conspi- ses, fora conquistada por Mégara.
no era submetido a um exame com este radores, mordeu a própria língua e, cus- Atenas A artimanha de Sólon obteve su-
conteúdo para obter o certificado de con- pindo-a fora, disse laconicamente: cesso, e ele foi encarregado da composi-
clusão do ensino médio. Aos trinta anos, — Caros senhores, caras senho- A segunda república famosa foi Ate- ção das leis, aproveitando-se amplamente
ele se tornava cônjuge, ao sessenta anos ras! Eu, mulher espartana, tenho a honra nas, que terminava no cabo Sunião. disso para dividir os habitantes, além de
ficava livre dessa obrigação. de aqui endereçar-me a vocês para di- As ricas jazidas de mármore, muito todo o resto, também em pentacosiome-
As moças espartanas faziam gi- zer que, se pensam que nós, mulheres úteis para fazer monumentos, naturalmente dimnos, zeugitas e tetas (famosos por
nástica e eram tão louvadas por sua mo- espartanas, somos capazes de atos vis, geraram em Atenas gloriosos homens e he- “vender diamantes luxuosos, que valem
déstia e virtude, que por todo lado os tais como: róis. quatro rublos, por um rublo, mas apenas
ricos se acotovelavam para tentar conse- a) delações; Todo o infortúnio de Atenas — uma nesta semana”).
guir uma moça espartana como ama de b) mexericos; república em altíssimo grau aristocrática Sólon também dispendeu grande
leite para seus filhos. c) traição de nosso cúmplices; e — adveio do fato de que seus habitantes atenção à vida familiar. Ele proibiu as noivas
A modéstia e o respeito em rela- d) calúnias, dividiam-se em tribos, demos, fratrias e de trazer como dote ao marido mais de três
ção aos mais velhos era o primeiro dever então estão terrivelmente enganados, e subdividiam-se em páralos, pedíacos e vestidos; por outro lado, exigiu da mulher
dos mais jovens. não devem esperar nada semelhante de diácaros. Além disso, eles ainda se divi- uma modéstia em quantidade ilimitada.
A coisa mais indecorosa do jovem minha parte. E que um peregrino transmi- diam em eupátridas, geômoros, demiur- Os jovens atenienses eram educa-
espartano eram consideradas as mãos. ta a Esparta que eu aqui cuspi fora minha gos e outras ninharias. dos em casa até os dezesseis anos, mas
Se ele estivesse vestindo uma capa, ele língua, fiel às leis de minha pátria acerca Tudo isso provocava no povo cons- ao entrar na idade adulta, passavam a
escondia suas mãos debaixo da capa. Se da ginástica. tantes distúrbios e revoltas, de que se fazer ginástica e receber uma educação
ele estivesse nu, ele a enfiava onde po- Os aturdidos inimigos conferiram aproveitavam as camadas mais altas da intelectual, que lhes era tão fácil e agradá-
dia: debaixo de um banco, debaixo de um a Lena mais um “e”, e ela se tornou Leena, sociedade, que se dividiam em arcontes, vel, que até chamavam de música.
arbusto, debaixo de seu interlocutor ou, que quer dizer “leoa”. epônimos, basileus, polemarcos e tesmó- Além do que se referiu acima, os
finalmente, sentando-se sobre elas (ano tetas, e oprimiam o povo. cidadãos atenienses tinham o pesado de-
900 a.C.). Um rico eupátrida, Pílon, tentou ver de honrar os pais; em caso de elei-
Desde a infância, eles aprendiam O declínio de Esparta solucionar a questão. Mas o povo de Ate- ção de um cidadão para um alto posto
a falar de maneira lacônica: brevemente e nas tinha tanta desconfiança para com governamental, a lei previa que fossem
com força. Ao ouvir uma imprecação longa Os banhos constantes e a fala suas iniciativas, que Pílon, a exemplo de levantadas informações preliminares que
e empolada de um inimigo, o espartano lacônica acabaram por enfraquecer terri- outros legisladores gregos, apressou-se a determinassem se ele honrava ou não os
respondia apenas: “Bobo é quem me diz”. velmente as capacidades intelectuais dos partir em viagem. pais, e, no caso de xingá-los, com que
A mulher em Esparta gozava de espartanos, e eles se viram consideravel- palavras exatamente.
respeito, e de quando em quando também mente atrasados em seu desenvolvimento Uma pessoa que aspirasse ao tí-
era permitido a ela falar laconicamente, em relação aos demais gregos, que, por Sólon tulo de conselheiro de Estado da Grécia
o que ela empregava ao educar os filhos seu amor à ginástica e ao esporte, passa- Antiga deveria também obter um certifi-
e pedir o almoço para a cozinheira hilo- ram a chamá-los de “esportanos”. Sólon, um homem de pouca rique- cado de respeito em relação a suas tias e
ta. Assim, uma espartana, ao entregar um Os espartanos estavam em guerra za, que se dedicava ao comércio, adquiriu cunhadas. Isso gerava uma infinidade de
escudo a seu filho, dizia laconicamente: com os messênios e, certa vez, acovarda- experiência em viagens, e por isso, sem inconvenientes e entraves para os desíg-
“com ele ou sobre ele”. Outra, ao entregar ram-se de tal forma, que solicitaram ajuda temer más consequências para si, decidiu nios de um homem ambicioso. Por todo
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lado, as pessoas eram forçadas a recusar desejáveis por meio de uma votação se- res partissem em viagem após a introdu- templo foi incendiado pelo louco Heróstra-
a pasta ministerial por conta de um ca- creta, ou ostracismo. Para evitar que o no- ção de cada nova lei reavivou sobremodo to, para trazer glória a seu nome. Mas os
pricho de um velho tio que vendia man- bre povo tivesse tempo de experimentar a Grécia. gregos, ao tomar conhecimento do obje-
jar turco estragado na feira. Este último essa simpática inovação contra ele mes- Multidões inteiras de legisladores tivo que o levara a cometer tão horrível
provava que o primeiro não o honrava o mo, o sábio legislador partiu em viagem. visitavam ora um, ora outro país vizinho, crime, decidiram, como punição, legar ao
suficiente, e toda a carreira ia pelos ares. Dividindo-se constantemente em compondo algo semelhante às nossas esquecimento o nome do criminoso. Para
Além disso, as altas esferas do po- tribos, demos e fratrias, Atenas rapida- atuais excursões de professores rurais. tanto, foram contratados arautos espe-
der deviam passar o tempo todo informan- mente enfraqueceu, assim como Esparta Os países das cercanias iam ao en- ciais, que, ao longo de muitas dezenas de
do-se acerca do que faziam os cidadãos, se enfraquecera, mesmo não se dividindo contro das necessidades dos legisladores. anos, percorreram toda a Grécia anun-
e punir as pessoas ociosas. Era frequente em absoluto. Eles ofereciam passagens de ida e volta a ciando a seguinte disposição: “Não ousem
acontecer de metade da cidade ficar sem “Se correr o bicho pega, se ficar o preços módicos (Rundreise), davam des- lembrar-se do nome do louco Heróstrato,
sobremesa. Os lamentos dos infelizes não bicho come”, suspiram os historiadores. contos nos hotéis. A empresa reunida de que, por sua ambição, incendiou o templo
cabem em qualquer descrição. navios Mercúrio e Mênfis Ltda. levava os da deusa Ártemis”.
excursionistas totalmente de graça e só Os gregos conheciam tão bem
O restante da Grécia pedia que não fizessem escândalos, nem essa ordem, que era possível acordar qual-
Pisístrato e Clístenes criassem novas leis durante o caminho. quer um deles de madrugada e perguntar:
Os Estados gregos secundários iam Desta forma, os gregos familia- “Quem você tem que esquecer?”. E ele, sem
Depois de assegurar suas leis, Só- por essa mesma vereda. rizaram-se com as localidades vizinhas e hesitar, responderia: “O louco Heróstrato”.
lon não demorou a partir em viagem. As monarquias pouco a pouco fo- organizaram suas colônias. De maneira assim justa foi punido
Sua ausência foi aproveitada por ram sendo substituídas por repúblicas mais um criminoso cheio de ambição.
seu próprio parente, o aristocrata local ou menos aristocráticas. Mas os tiranos Das colônias gregas, deve-se
Pisístrato, que passou a tiranizar Atenas também não deixaram por menos e, de Polícrates e as peças dos peixes ainda notar Siracusa, cujos habitantes
com o auxílio de sua eloquência. tempos em tempos, tomavam nas mãos o eram famosos por sua fraqueza de espí-
Tendo retornado, Sólon em vão poder supremo e, afastando de si a aten- Na ilha de Samos, ganhou fama o rito e de corpo.
tentou convencê-lo a pensar melhor. O ção do povo com a construção de edifícios tirano Polícrates, a quem os peixes do mar
atiranizado Pisístrato não ouvia qualquer públicos, reforçavam sua posição, e depois, aborreciam. Qualquer porcaria que Polícra-
argumento e seguia fazendo suas coisas. perdendo esta última, partiam em viagem. tes jogasse no mar os peixes rapidamente A luta com os persas.
Antes de qualquer coisa, ele mandou erigir Esparta logo compreendeu quão devolviam dentro de suas próprias barrigas. Milcíades em Maratona
na Lombardia um templo a Zeus e morreu inconvenientes eram seus dois reis simul- Uma vez, ele lançou na água uma
sem pagar os juros. tâneos. Em tempos de guerra, com o de- graúda moeda de ouro. Já na manhã se- O rei persa Dario gostava muito
Depois dele, herdaram o poder sejo de obter proeminência, ambos par- guinte, serviram-lhe no café da manhã um de guerrear. Ele tinha especial vontade de
seus filhos Hípias e Hiparco, assim cha- tiam para o campo de batalha, e se então salmão frito. O tirano cortou-o com sofre- conquistar Atenas. Para não se esquecer
mados em homenagem a famosos cava- ambos fossem mortos, o povo se via obri- guidão. Oh, o horror! Dentro do peixe, es- desses seus inimigos em meio aos afaze-
los (526 a.C.). Mas logo eles foram em gado a engajar-se novamente em revoltas tava o seu ouro, com os doze por cento de res domésticos, ele mesmo se provocava.
parte assassinados, em parte expulsos de e dissensões para escolher um novo par. juros anuais em um só dia. Todo dia, na hora do almoço, uma criada
sua pátria. Mas se apenas um rei partisse para Tudo isso acabou em uma enorme esquecia-se de colocar algo na mesa: ora
Nesse momento, ascendeu Clíste- a guerra, o segundo aproveitava a ocasião tragédia. Nas palavras dos historiadores, pão, ora sal, ora um guardanapo. Se Dario
nes, chefe do partido popular, que gran- para enxotar definitivamente o seu confra- “pouco antes de sua morte, o tirano foi fizesse alguma observação aos negligentes
jeou a confiança dos cidadãos ao dividi- de e dominar Esparta por inteiro. morto pelo sátrapa persa”. criados, estes respondiam-lhe em coro, de
-los em dez tribos (no lugar das antigas Havia pelo que perder a cabeça. acordo com o que ele ensinara: “E você, Da-
quatro!), e cada tribo em demos. A paz e riozinho, está lembrado dos atenienses?…”.
a tranquilidade não tardaram a reinar no O louco Heróstrato Provocando-se até o ponto da lou-
país, exaurido pelas atribulações. As colônias cura, Dario enviou seu genro Mardônio
Além disso, Clístenes inventou A cidade de Éfeso era conheci- com tropas para conquistar a Grécia. Mar-
uma maneira de livrar-se dos cidadãos in- A necessidade de que os legislado- da por seu templo à deusa Ártemis. Esse dônio foi derrotado e partiu em viagem,
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enquanto Dario reuniu um novo exército e época ainda eles não sabiam fazer um or- O período da hegemonia respeito. Suas sentenças eram anotadas
o enviou para Maratona, sem se dar conta çamento estimativo). Ele lançou pontes nas colunas do templo de Apolo em Delfos.
de que em Maratona estava Milcíades. Mas sobre o Helesponto, mas uma tempestade Graças às intrigas de Temístocles, A melhor dessas sentenças é do fi-
não nos delongaremos nas consequências destruiu-as. Xerxes então açoitou o Heles- a hegemonia passou para os atenienses. lósofo Bias, “Não faça muitas coisas”, que
desse ato. ponto, e no mar imediatamente fez-se a Os atenienses, por meio do ostracismo, serviu de apoio a muitos preguiçosos em
Todos os gregos louvavam o nome calmaria. Depois disso, esse tipo de fusti- forçaram esse amante das hegemonias a seu caminho natural, mas também a do
de Milcíades. No entanto, a vida de Milcía- gação foi introduzido em todos os estabe- partir em viagem. Temístocles foi ter com filósofo Tales de Mileto, “A fiança vai lhe
des teve que terminar em morte. Durante lecimentos de ensino. o rei persa Artaxerxes. Este deu-lhe gran- trazer preocupações”, lembrada por mui-
o cerco de Paros, ele foi ferido, e por isso Xerxes aproximava-se das Ter- des presentes, na esperança de gozar de tos ao colocarem, com mão trêmula, sua
seus compatriotas condenaram-no a pa- mópilas. Bem nessa época, os gregos es- seus préstimos. Mas com baixeza Temísto- firma na carta de câmbio de um amigo.
gar uma multa, sob o pretexto de que ele tavam celebrando uma festividade e não cles traiu a confiança do déspota. Ele acei- Péricles morreu devido à peste.
teria agido de maneira descuidada para tinham tempo de ocupar-se com bestei- tou os presentes, mas em vez de servi-lo, Seus amigos, reunidos ao redor do leito de
com a sua pele, que afinal de contas per- ras. Enviaram somente o rei de Esparta, envenenou-se com toda a calma. morte, recontavam aos brados seus méri-
tencia à Pátria. Leônidas, com uma dúzia de jovens, para Logo morreu também Aristides. tos. Péricles disse a eles:
Milcíades mal teve tempo de cer- defender a passagem. A república organizou-lhe um funeral de — Vocês estão esquecendo do melhor:
rar os olhos, e em Atenas dois homens já Xerxes enviou emissários a Leôni- primeira categoria e, às suas filhas, deu “Em toda a minha vida, nunca fiz ninguém
ascendiam: Temístocles e Aristides. das, exigindo que este entregasse as ar- um enxoval soloniano: três vestidos e um usar luto”.
Temístocles ganhou fama pelo fato mas. Leônidas respondeu laconicamente: pouco de modéstia. Com essas palavras, aquele ho-
de que os louros de Milcíades não o dei- “Venha pegar”. mem brilhante e eloquente quis dizer que
xavam dormir (483 a.C.). As más línguas Os persas foram e pegaram. jamais tinha morrido em toda a sua vida.
de Atenas garantiam que ele simplesmen- Péricles
te farreava a noite toda e colocava toda
a culpa nos louros. Mas deixe-o para lá. Salamina Depois de Temístocles e Aristides, Alcibíades
Além disso, Temístocles sabia o nome quem tomou a frente da República de Ate-
e o patronímico de todos os cidadãos emi- Pouco depois ocorreu a batalha nas foi Péricles, que sabia usar sua capa Alcibíades era conhecido por seu
nentes, o que os deixava muito lisonjea- de Salamina. Xerxes observou o combate de maneira pitoresca. estilo pândego de vida; para granjear a
dos. As cartas de Temístocles viraram um sentado em seu alto trono. Isso elevou sobremodo as inspira- confiança dos cidadãos, ele cortou a cauda
exemplo para a juventude ateniense: “… Vendo a surra que seus persas es- ções estéticas dos atenienses. Sob a in- de seu cão.
Mando também lembranças a meu papai tavam levando, o déspota oriental desceu fluência de Péricles, a cidade foi adornada Então os atenienses, como um só,
Oligarca Kímonovitch, e à minha titia Ma- às cambalhotas do trono e, perdendo a co- com estátuas, e a suntuosidade foi intro- designaram a Alcibíades a chefia de sua
trona Anempodístovna, e ao nosso sobri- ragem (480 a.C.), voltou para a Ásia. duzida na vida doméstica dos gregos. Co- armada. Alcibíades já tinha partido para a
nho Calímaco Mardariônovitch etc. e tal”. Então ocorreu o combate próximo miam sem garfo e faca, ausentando-se as guerra quando foi trazido de volta e força-
Aristides, por sua vez, dedicava-se à cidade de Plateias. O oráculo previra a mulheres desse espetáculo, que era consi- do a passar um tempo preso, devido a um
única e exclusivamente à justiça, mas de derrota ao primeiro exército que avanças- derado indiscreto. escândalo armado por ele na rua antes da
maneira tão zelosa, que acabou desper- se para a luta. Os exércitos ficaram espe- Quase todos tinham à mesa do partida. Ele fugiu para Esparta, depois ar-
tando uma legítima indignação em seus rando. Mas, depois de dez dias, ouviu-se almoço algum filósofo. Ouvir considera- rependeu-se e fugiu de volta para Atenas,
compatriotas. Com o auxílio do ostracis- um estalo característico. Era Mardônio, ções filosóficas ante de um assado era depois arrependeu-se de seu arrependi-
mo, ele partiu em viagem. explodindo de impaciência (479 a.C.), que tão imprescindível para os antigos gre- mento impensado e de novo fugiu para
começou a contenda, sendo assim aniqui- gos, como é a orquestra romena para Esparta, depois novamente para Atenas,
lado por ter perdido a cabeça: e depois nossos contemporâneos. depois para os persas, depois para Atenas,
Leônidas nas Termópilas também outras partes do corpo. Péricles patrocinava as ciências depois de novo para Esparta, e de Esparta
e frequentava a hetera de Aspásia, para para Atenas.
O rei Xerxes, sucessor de Dario, ocupar-se de filosofia. Ele corria como um louco, desen-
filho de Histaspes, atacou os gregos com No geral, os filósofos, mesmo que volvendo uma velocidade incrível e arra-
um exército de tamanho inestimável (na não fossem heteristas, gozavam de grande sando tudo em seu caminho. Seu cão sem
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cauda mal conseguia acompanhá-lo e, na os braços e a garganta. Com frequência,
décima quinta volta, acabou morrendo situações difíceis também faziam com que
(412 a.C.). Em sua honra há um monu- perdesse a cabeça, de maneira que o va-
mento, em que os espartanos escreveram lente comandante ficava absolutamente
laconicamente: “Viandante, bati as botas”. livre de pesos extras, governando o povo
Por muito tempo Alcibíades ainda apenas com o auxílio do diafragma, o que,
foi como um louco de Esparta para Atenas, no entanto, não deteve suas energias.
de Atenas para os persas. O infeliz teve Filipe da Macedônia intentou sub-
que ser sacrificado, por piedade. jugar a Grécia e começou suas intrigas.
Contra ele, ergueu-se o orador Demóste-
nes, que, colocando na boca pequenas pe-
Sócrates drinhas, convenceu os gregos a se oporem
a Filipe, e depois disso colocou água na
Certa vez, um escultor ateniense boca. Esse modo de expressar-se chama-
inesperadamente teve um filho, que, por -se filípica (346 a.C.).
ARTIGOS/
sua sabedoria e seu amor à filosofia foi O filho de Filipe era Alexandre da
chamado de Sócrates. Esse Sócrates não Macedônia. O astuto Alexandre nasceu
dava atenção ao frio ou ao calor. Mas sua propositalmente bem na noite em que o
esposa Xântipe não era assim. A mulher, grego louco Heróstrato incendiou o tem-
rude e pouco instruída, ficava congelada plo; fez isso para associar-se à glória de
na época do frio e pingava de suor no ca- Heróstrato, o que conseguiu plenamente.
lor. O filósofo lidava com os defeitos de Desde a infância, Alexandre amou
ENSAIOS
sua esposa de maneira impassível, com o luxo e os excessos, e adquiriu Bucéfalo
sangue frio. Certa vez, tendo se irritado para si.
com o marido, Xântipe virou-lhe um balde Tendo obtido muitas vitórias, Ale-
de lavagem na cabeça (397 a.C.) xandre recaiu num grande despotismo.
Os compatriotas condenaram Só- Certa vez, seu amigo Clito, que outrora
crates à morte. Os alunos aconselharam ao salvara sua vida, acusou-o de ingratidão.
venerado filósofo que partisse em viagem. Para demonstrar o oposto, Alexandre ra-
Mas ele se recusou, por conta da idade, e pidamente matou com as próprias mãos
passou a beber cicuta, até sua morte. aquele injusto.
Muitos garantem que Sócrates não Logo depois disso, ele matou mais
pode ser culpado de nada, já que, dizem algum de seus amigos, temendo acusa-
eles, ele foi totalmente inventado por seu ções de ingratidão. A mesma sorte recaiu
aluno Platão. Outros também implicam nes- sobre o comandante Parmênio, seu filho
sa história sua esposa Xântipe (398 a.C.). Filon, o filósofo Calístenes e muitos ou-
tros. Essa imoderação no morticínio dos
amigos minou a saúde do grande conquis-
A Macedônia tador. Ele cedeu à intemperança e morreu
significativamente antes de sua morte.
Na Macedônia, viviam os macedô-
nios. Seu rei, Filipe da Macedônia, foi um
governante inteligente e hábil. Em suas in-
termináveis campanhas militares, ele per-
deu os olhos, o peito, os flancos, as pernas,
106 107
DANTE BY
Certas soluções aqui presentes serão uti-
lizadas na Commedia, principalmente no
“Inferno” (Inf. III, 10) ou no “Purgatório”
(XXXIII, 73-75).
Embora a problemática das Rimas
HAROLDO DE CAMPOS:
seja “uma forma realista de insatisfação
amorosa, acompanhada pela dissonância
acústica e pela mais renhida condensação
RIMAS PEDROSAS
semântica” e mesmo “uma antecipação
literária do ‘sadismo’ amoroso, uma ex-
plosão de sensualismo frustrado que se
compraz na vingança” (“e não serei pie-
doso nem cortes no meu brinquedo de
urso”...)5, é costume para a crítica italiana
Inês Oseki-Dépré considerar as Rime como atemáticas... O
realismo dos poemas se reverte em um
realismo de signos: “a dama empedernida
Ilustrando sua máxima sobre a relação que une “as líricas mais tecnicistas se converte no poema pétreo” (ibidem).
tradução como criação e crítica1, Haroldo de Dante, nas quais a energia léxica e a Dante, inspirando-se na sextina criada por
de Campos, tradutor de um imenso reper- raridade rítmica se transformam, a modo Arnaut Daniel vai além deste último, in-
tório, nunca deixou, ao mesmo tempo em de conteúdo, no tema da dama áspera, do ventando uma sextina dupla (“doppia” ou
que transcriava o original, de fazer uma amor difícil”3. Ou seja, segundo seu tra- “rinterzata”) que, em razão da redundân-
autoanálise ou comentário crítico sobre dutor em português, um caso típico de cia rítmica e da insistência temática, colo-
sua atividade. É, portanto, sempre difícil isomorfismo (“forma e conteúdo identifi- ca problemas ao tradutor.
acrescentar algo de novo sobre o que já foi cáveis num circuito reversível”.) O quarto poema do ciclo apresen-
dito pelo grande mestre. Diversamente do que seria rea- ta, por outro lado, um tipo de versificação
Isso não impede que se tente lizado mais tarde na Commedia, con- excepcional: 13 versos para cada uma
completar seu comentário por um novo trastando com a suavidade da sua fase 6 das estrofes. Dante aí evoca a atitude
olhar e é o que vai se propor aqui a pro- “estilonovistica”, Dante prossegue aqui desdenhosa de sua dama o que o leva a
pósito de suas belas traduções das Rime a herança da poesia provençal, principal- adaptar o estilo de sua poesia amorosa à
Petrose, de Dante Alighieri (1265-1321), mente a de Arnaut Daniel (considerado atitude da dama. A escolha de um estilo
das quais escolhemos um exemplo. O poe- pelo poeta como “il miglior fabbro del par- “aspro” se explica portanto pela vontade
ma que segue é o quarto do ciclo das Rime lar materno” (Purg. XXVI, 117), produzin- de mimar por meio da matéria sonora do
petrose, compostas antes da Divina Com- do uma poesia “hyrsuta”4. verso, a dureza dela, comparada a uma
media. O ciclo teria sido criado logo após a Nesse sentido, Haroldo de Campos pedra preciosa cravada de jaspe. Essa as-
Vita Nuova (1283-1293 ?) segundo o texto cita o crítico Augusto Vicinelli, para quem pereza é compensada porém pela com-
de apresentação de Haroldo de Campos2. os recursos empregados por Dante no ci- binação de rimas doces e ásperas, o que
As indicações astronômicas conti- clo pétreo contem “inusitadas ousadias realça o brilho dos versos. Essa temática
das no primeiro poema da série (“Io son formais, novos esquemas métricos, ima- será retomada por Petrarca.
venuto al punto de la rota”) permitem gens vivíssimas e quase brutais, compara- As Rimas pedrosas, tais como
indicar a data da composição, em 1296, ções audazes, palavras procuradas, versos aparecem na tradução de Haroldo de Cam-
quando Dante tinha 31 anos. martelados e escandidos (...), sons áspe- pos, estão entre as mais belas traduções
O título do ciclo recebeu varias ros, que se chocam, estridentes, rimas ri- do poeta (que traduziu Joyce, Mallarmé,
explicações mas a mais verossímil seria, cocheteantes, aliterações sonoras” (Dante Pound, Homero, entre outros). Na sua
segundo G. Contini, citado por Haroldo, a Alighieri, Opere Minori, Mondadori, 1950). apresentação, Haroldo de Campos ofere-
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ce páginas de introdução e de comentá- É de se notar que o esquema rí- por uma “lança”, para rima com “vingança”.
rios de grande interesse e nelas pode-se mico não é o mesmo: Dante propõe 4 ri- Egli alza ad ora ad or la mano, e sfida
ler a referência a Pound e ao seu Make it mas em –onda, alterando a sequência de Rime petrose – Dante Alighieri la debole mia vita, esto perverso,
new, transformar o passado em algo novo, dísticos. Haroldo por seu lado mantém o che disteso a riverso
“como tirar dele nutrição para o impulso esquema dos dísticos ou das rimas por pa- Cosi nel mio parlar voglio esser aspro mi tiene in terra d’ogni guizo stanco
criador”. res (rebenta-atenta; esconda-onda, mas com’è ne li atti questa bella petra, allor mi surgon ne la mente strida;
Haroldo de Campos chama nossa ponta e afronta modificando a consoante). la quale ognora impetra e ‘l sangue, ch è per le vene disperso,
atenção para o fato de as Rimas de Dante Duas rimas parecem arrojadas: “roer-me” maggior durezza e piú natura cruda, fuggendo corre verso
terem oferecido matéria aos poetas con- rimando com “temes” e “escama” com e veste sua persona d’un diaspro lo cor, che ‘l chiama; ond’io rimango bianco.
temporâneos não somente italianos. Seu “esfaima” no último verso. Haroldo justi- tal che per lui, o perch’ella s’arretra, Elli mi fiede sotto il braccio manco
comentário é riquíssimo, e torna o nosso fica sua escolha pela necessidade da rima non esce di faretra sí forte che ‘l dolor nel cor rimbalza;
quase desnecessário. interna: “temes” com “comer-me”... saetta che gia mai la colga ignuda; allor dico: « S’elli alza
Acrescento aqui algumas observa- No original italiano, os sete primei- ed ella ancide, e non val ch’om si chiuda un’altra volta, Morte m’avrà chiuso
ções sobre a tradução isomórfica do poe- ros versos contêm rimas alternadas en- né si dilunghi da’colpi mortali, prima che ‘l colpo sia disceso giuso ».
ta: Haroldo mantém o esquema rítmico, quanto que os seis últimos (sextina) contêm che, com’avesser ali,
traduz decassílabo por decassílabo, hexas- dísticos, o que é respeitado pelo tradutor. giungono altrui e spezzan ciascun’arme: Cosí vedess’ io lui fender per mezzo
sílabo por hexassílabo. Dante alterna uma Na terceira estrofe, o tradutor pro- sí ch’io non so da lei né posso atarme. lo core a la crudele che ‘l mio squatra;
versificação irregular seguida de dísticos, o põe “onde outro olhar me cruza”, no se- poi non mi sarebb’atra
que é mantido em português. O esquema gundo verso para o italiano di lei in par- Non trovo scudo ch’ella non mi spezzi la morte, ov’io per sua bellezza corro:
rímico é ABbCABbCCDdEE. Naturalmente te ov’altri li occhi induca (dela em parte né loco che dal suo viso m’asconda: ché tanto dà nel sol quanto nel rezzo
aparecem diferenças quanto à posição das outros olhos dirija). Na mesma estrofe, o ché, come fior di fronda, questa scherana micidiale e latra.
palavras ou alterações na sequência vocá- tradutor acrescenta a palavra “fera” para cosí de la mia mente tien la cima. Omè, perché non latra
lica. Na primeira estrofe, as palavras finais: manter o esquema métrico e faz rimar Cotanto del mio mal par che si prezzi per me, com’io per lei, nel caldo borro ?
Aspro-petra-impetra-cruda-diaspro-arre- “nela” com “fera”... quanto legno di mar che non lieva onda; chè tosto griderei : « Io vi socorro »;
tra-faretra-ignuda-chiuda-mortali-ali-ar- Na quarta estrofe, Haroldo propõe e ‘l peso che m’affonda e fare ‘l volentier, si come quelli
me-atarme são traduzidas em português uma rima interna: “ameaça”, no verso 1; è tal che non potrebbe adequar rima. che ne’ biondi capelli
por: áspero-pedra-impetra-crua-diaspo- “vida escassa”, no verso dois. “Ameaça” é Ahi angosciosa e dispietata lima ch’Amor per consumarmi increspa e dora
ro-alerta-certa-nua-sua-livra-vibra-arma- retomada por “um grito passa”, verso 5. che sordamente la mia vita scemi, metterei mano, e piacere’le allora.
-alarma, com rimas irregulares. Ainda nessa mesma estrofe, o perché non ti ritemi
Haroldo mantém as rimas inter- verso “fuggendo corre verso/io cor...” é sí di rodermi il core a scorza a scorza S’io avessi le belle trecce prese,
nas (seta/certa por faretra e saetta) que, traduzido por “fugindo acode inverso/ao com’io di dire altrui chi ti dà forza ? Che fatte son per le scudiscio e ferza,
segundo ele, foram muito utilizadas por coração” (...) Verso 8: “sotto il braccio pigliandole ansi terza,
Guido Cavalcanti, mestre de Dante. No manco” (sob o braço esquerdo) é traduzi- Chè piú mi trema il cor qualora io penso con esse passerei vespero e squille:
último verso, o tradutor “interpreta” a se- do por “pela esquerda oposto” (que rima di lei in parte ov’altri li occhi induca, e non sarei pietoso né cortese,
mântica do original para manter o esque- com o rosto). per tema non traluca anzi farei com’orso quando scherza;
ma rímico (“si ch’io non so da lei né posso Na estrofe 5, Dante propõe uma lo mio penser di fuor sí che si scopra, e se Amor me ne sferza,
atarme” – “dela não sei, inútil dar alar- reversão da situação: é a dama que é pri- ch’io non fo de la morte, che ogni senso io mi vendicherei di piú di mille.
ma”, que seria aproximadamente: nem sioneira (como uma loba ou uma cadela co li denti d’Amor già mi manduca: Ancor ne li occhi, ond’escon le faville
posso me defender). “ladra”). No verso 6, o poeta se vinga do cio è che ‘l pensier bruca che m’infiammano il cor, ch’io porto anciso,
Na segunda estrofe, o tradutor desdém da dama: “não serei piedoso nem la lor vertú, si che n’allenta l’opra. guarderei presso e fiso,
acrescenta uma nota “contemporânea” no cortês/ no meu brinquedo de urso”(...) E’ m’ha percosso in terra, e stammi sopra per vendicar lo fuggir che mi face;
primeiro verso: Non trovo scudo ch’elle no puxando-lhe as tranças “vingando-me da con quella spada ond’elli ancise Dido, e poi le renderei con amor pace.
mi spezzi (não encontro escudo que ela fuga que me faz (...)” Amore, a cui io grido
não despedace) traduzido por : “Não acho Enfim na última estrofe (uma quin- merzé chiamando, e umilmente il priego; Canzon, vattene dritto a quella donna
escudo – tudo ela rebenta”. tilha), o tradutor substitui a flecha “saetta” ed el d’ogni merzé per messo al niego. che m’ha ferito il core e che m’invola
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quello ond’io ho piú gola, a mesma espada que matou a Dido, até lhe devolver amor e paz. Notas
e dàlle per lo cor d’una saetta : Amor , com quem eu lido; 1 CAMPOS, Haroldo de., “Da tradução como criação
ché bell’onor s’acquista in far vendetta. clamo: “mercê!”, suplico humildemente; Canção, parte certeira àquela dama e como critica”. In: Metalinguagem & Outras Metas. S. P.,
e ele a toda mercê indiferente. que me feriu no peito e que me anula Perspectiva, 1992 (4a ed.), p. 31- 48.
onde eu ponho mais gula,`
Rimas pedrosas – transcriação de Haroldo Ele ergue a mão de vez em quando, ameaça vara-lhe o coração feito uma lança: 2 CAMPOS, Haroldo de., “Petrografia dantesca”. In:
de Campos (1968) a minha vida escassa, este perverso, alto prêmio se colhe na vingança. Traduzir & Trovar. Edições Papyrus, 1968, p. 61.
que estendido e reverso
Quisera no meu canto ser tão áspero me tem por terra, sem mover do pôsto: A dama tem o coração de pedra, o 3 Idem.
como é nos atos esta bela pedra, agora pela mente um grito passa; poeta descreve a dureza de seu coração,
que a tôda hora impetra e o sangue que nas veias vai disperso que rechaça as tentativas do amante. As 4 Diz-se da rima “hyrsuta” (provençal), aquela cuja
maior dureza e essência ainda mais crua, fugindo acode inverso comparações vão da pedra, indiferente, às sonoridade é ruidosa, explosiva, seca e que se opõe às
e veste sua pessoa dum diásporo ao coração que o chama; branco o rosto. ondas do mar que ignoram o barco que grandes sonoridades suaves.
tal que por ele, ou pela esquiva alerta, Ele me fere, pela esquerda oposto, o navega. Os verbos de ação da malvada
seta nenhuma certa e a dor no coração ricocheteia vão de “mastigar”, “jogar”, “ferir”, “ma- 5 (HC, p. 63)
saindo dos carcás a colhe nua; tanto, que se ele alteia tar”, que fazem o poeta perder as rimas.
e ela mata, e dos golpes dessa sua outra vez e se abate, Morte um termo A única vingança que ele pode
mira mortal ninguém se guarda ou livra, achará que me poupe ao golpe extremo. imaginar é a de fender-lhe o coração, pu- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
com asas ela os vibra, xar-lhe as tranças tal um urso ferido e é
atinge a todos, rompe qualquer arma; Quisera vê-lo assim fender no centro nesse intuito que o poeta pede ao poema CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como
dela não sei, inútil dar alarma. o coração à cruel que me maltrata; que consiga atingir o coração da amada. criação e como critica”. In: Metalinguagem
não me seria atra 6
Haroldo de Campos mantém a & Outras Metas. Perspectiva, 1992 (4a
Não acho escudo – tudo ela rebenta – a morte, aonde por sua beleza corro: beleza pétrea do poema ao mesmo tem- ed.), p. 31- 48.
nem sítio que do seu olhar me esconda; que tanto fere ao sol como ao relento po que propõe um novo poema. O trans-
que, como flor na ponta, esta facínora homicida e ladra, criador obtém, por meio dessas transfor-
assim da minha mente está por cima. ai !, que por mim não ladra, mações, um poema novo em português
Tão pouco do meu mal parece atenta, como eu na cova ardente em quem me torro; moderno. As Rimas pedrosas ressurgem
como o barco do mar que não faz onda; então eu gritaria: “Vos socorro”, assim renovadas pela mão, não do urso,
e o peso que me afronta e de bom grado, como vou dizê-lo : mas do gênio do tradutor.
é tal que não lhe posso encontrar rima. no seu louro cabelo
Ó angustiante, despiedosa lima que Amor para punir-me encrespa e doura
que surdamente a vida vens roer-me, lançara a mão, bem recebido fôra.
então por que não temes
comer-me o coração escama a escama Se eu lhe apanhar as tranças uma vez,
como eu temo nomear a quem te esfaima? que foram para mim chibata e açoite,
irei até de noite
Treme o meu coração sempre que nela a contar da hora terça, matinal;
penso em recinto onde outro olhar me cruza, e não serei piedoso nem cortês
pois teme que transluza no meu brinquedo de urso; e que se afoite
o pensamento como que por fora, Amor, e que me açoite,
mais do que à morte, que os sentidos fera mil golpes lhe reservo eu afinal.
com os dentes de Amor já me mastiga: E rente de seus olhos, o fanal
à mente me castiga que abrasa o coração que eu trago morto,`
e pouco a pouco as obras lhe dessora. me fixarei absorto,
E me jogou por terra, e brande agora vingando-me da fuga que me faz;
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através da prática intertextual. Este “res- série de nomes que, embora não perten-
ponder pelas rimas” (“rispondere per le çam a um verdadeiro grupo, viveram os
rime” que, em italiano, e com o parecido mesmos horizontes poéticos: Herberto
O PARAÍSO
“fare il verso” - fazer o verso de alguém – Helder é o exemplo talvez mais conhe-
deu lugar a duas frases idiomáticas, tra- cido desta in/corporação do texto alheio
duzíveis em português por “responder tim no texto próprio, mas há mais exemplos
tim por tim tim” e “imitar”), este imitar o que vale a pena citar, como o de Fiama
verso, para recriá-lo, chega a ser a única Hasse Pais Brandão (que falou da tradu-
maneira sensata de ainda fazer poesia e ção e da escrita, estratigráficas, como um
fazer história da literatura, sempre com amor/paixão pelo texto: memorável a sua
DE HAROLDO DE CAMPOS: DANTE uma visão retroativa e criativa em relação tradução do Cântico dos Cânticos), o do
aos textos convocados, e que toca quer a António Barahona (que chegou a escrever
tradução poética, quer as mesmas práti- “cartas” aos autores traduzidos, vivos ou
Manuele Masini cas e teoria poéticas, quer o ensaio, todos não, confirmando a ideia da poética da
textos que funcionam como partes inte- amizade: imprescindíveis às suas tradu-
gradas num mesmo macrotexto. Horizon- ções da Fedra, de Racine, e de A Guerra
te que, como vimos, é o de Ezra Pound, Santa, de René Daumal, e às introduções
mas que, em português, foi partilhado e a estas obras, em que enfoca a teoria da
“Hospitalidade linguística portanto, em que o prazer de ha- defendido por Fernando Pessoa, que che- tradução que as informa), e, finalmente, o
bitar a língua do outro é compensado pelo prazer de rece- ga a fazer coincidir a prática da tradução exemplo de Luiza Neto Jorge, cuja ativida-
ber em sua casa, na sua própria morada de acolhimento, e do ensaio com mais uma vertente da de tradutória foi surpreendente, e que fa-
a palavra do estrangeiro.” Paul Ricoeur heteronímia, no sentido de construir um lou mesmo em metempsicose, em relação
macrotexto em que os outros (e o outro- ao gesto da tradução. Em todos os casos
-de-mim) colaboram em sinfonia, sejam citados, sempre influenciados pelas teo-
eles amigos e contemporâneos, sejam au- rias dos irmãos Campos, trata-se de falar
tores recuperados numa revisão análoga da terceira voz do texto – a voz do outro-
à dos irmãos Campos (Sousândrade, Pe- -que-sou-eu, ainda para referirmo-nos a
É difícil, como italiano, falar de que foi de Haroldo de Campos. Gesto tra- dro Kilkerry...), sejam, enfim, os próprios Pessoa – que é conceito que, através de
Haroldo de Campos e do seu papel como dutório que se integra num gesto poéti- heterônimos. Tudo conflui numa enciclo- Derrida, mas vindo de Walter Benjamin,
tradutor (e tradutor de Dante), na sua co mais abrangente que, como já o tinha pédia, ou suma, que tende a representar é adotato por todos os autores citados. A
“casa”. A minha contribuição será então sido em Ezra Pound, envolve a criação, a (i.e.: presentar novamente) um núcleo de obra tradutória de Haroldo e Augusto de
no sentido de realçar esta relação entre tradução/transcriação, a crítica e a her- signos e um sistema de referências. Fer- Campos é um exemplo maior desta vi-
as casas que nós partilhamos e que, no menêutica do texto e, num sentido mais nando Pessoa chegará a dizer de si e da são, diria, holística do gesto da tradução,
meu caso, são pelo menos três: Itália, amplo, a história da poesia como história sua poesia: sou uma antologia. que Augusto encarna com o seu trabalho
Portugal e Brasil. A citação de Ricoeur (única possível) do ser humano, história Desde perspectivas muito pare- sobre a poesia provençal, e que Haroldo
move-se justamente no mesmo sentido: (e poética) da(s) amizade(s), e de uma cidas movem-se Haroldo e Augusto de abraça ao traduzir a poesia italiana me-
a hospitalidade, o hospedar de quem re- amizade maior. Não é por acaso que Ha- Campos. Perspectivas que eles partilham dieval, mas sobretudo Dante. Nos dois ca-
cebe e de quem é recebido. Um hospedar roldo de Campos dedica tanto espaço, no (sabendo-o ou não sabendo-o) com ge- sos, marco autêntico da tradução dessas
que se dá a vários níveis e que se rever- seu Pedra e Luz na Poesia de Dante, à rações de poetas portugueses e italianos duas tradições a qualquer outra língua, e
te e projeta no texto: Haroldo de Cam- relação do poeta toscano com Cavalcan- muito próximas: cito apenas o Grupo 63, marco também da tradução como práti-
pos acolhe a ideia que foi de Ezra Pound, ti e Guinizzelli, oferecendo também uma na Itália, (e penso nas transcriações do ca poética. Aceitar a afirmação de Cesare
o “make it new”, o refazer que desde a transcriação dos poemas seus que de al- poeta Eduardo Sanguineti, bem conheci- Segre, um dos maiores filólogos do sécu-
simples tradução interlinear leva, por de- guma maneira fundam o movimento do do pelos irmãos Campos, e, sobretudo, na lo XX, e ver na transcriação dos 6 Cantos
graus que sobem através de uma espécie Dolce Stil Nuovo e, com ele, uma ideia de sua magnífica transcriação do De Rerum do Paraíso, de Haroldo, a melhor versão
de ascese textual, à ideia de transcriação, poética da amizade que é vivida também Natura, de Lucrécio) e, em Portugal, uma nunca lida em qualquer outro idioma não
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será por isso mera citação superficial de lor!” (Purg., XXVI, 140-147) provençais, com o famoso verso “fu mi- e messi in un vasel, ch’ad ogni vento
uma autoridade, e tal é comprovado com (...) “Eu sou Arnaut, que chora glior fabbro del parlar materno” (117), per mare andasse al voler vostro e mio;
a simples comparação com a tradução do e vai cantando;/ magoado vejo frase que T.S. Eliot repete, aplicando-a a sì che fortuna od altro tempo rio
poeta português Vasco Graça Moura, que, a passada folia,/ e regojizando a Ezra Pound, no seu The Waste Land. Si- non ci potesse dare impedimento,
muito embora de qualidade, é formulada alegria que espera adiante./ Ora nais de uma vontade de inscrição numa anzi, vivendo sempre in un talento,
desde outro horizonte e num plano cer- vos peço, por esse valor/ que vos tradição (note-se que a sextina, revisitada di stare insieme crescesse ’l disio.
tamente menos ambicioso. À tradução de guia no topo da escada,/ que te por Dante, terá uma longa tradição que,
Haroldo de Campos, em línguas ibéricas, lembres, a seu tempo, da minha em português, será a de, pelo menos, Ber- (...)
só me permito aproximar a do Purgatório, dor!” (tr. nossa1) nardim Ribeiro e Camões), que Haroldo de e quivi ragionar sempre d’amore,
de Sophia de Mello Breyner Andreses, e Campos pratica como os seus pares Dante e ciascuna di lor fosse contenta,
a tradução integral da Comédia em caste- Este motivo está presente no “Canto XX” e Ezra Pound tinham praticado. Esta cons- sì come i’ credo che saremmo noi.
lhano, do poeta espanhol Ángel Crespo. O de Pound, onde o poeta também partilha, trução de uma enciclopédia2 ou de uma
mesmo poderíamos afirmar em relação à como em toda a sua obra, o plurilinguis- antologia, sempre viva e móvel, das vozes ***
tradução exemplar que Augusto nos ofe- mo da Comédia de Dante, levado às suas comunicantes (na definição de Herberto
rece da poesia provençal e, sobretudo, consequência extremas, fato que mais uma Helder), é, para além do pouco ou nada Guido, quisera eu que tu, Lapo e eu
da recriação da sextina de Arnaut Daniel vez confirma a vontade de hospedar, por que a historiografia literária pode hoje em fôssemos tomados por encantamento
(Noigandres é o nome do grupo e da re- vezes recriando, por vezes transcriando, dia dizer, não um gesto erudito mas, mui- e num navio metidos, que a cada vento
vista com que o concretismo principia). A por vezes citando, a obra dos (nós-)outros: to pelo contrário, a única possibilidade de por mar navegasse ao sabor vosso e meu;
sextina é uma prova de estilo e de retóri- manter viva a tradição da poesia, como
ca (no melhor sentido da palavra), mode- Sound slender, quasi tinnula, gesto criador que continuamente (e pela que má fortuna ou outro tempo réu
lo para futuros desenvolvimentos e ponto Ligur’ aoide: Si no’us vei, Domna metalinguagem) se redefine ou reinven- nunca pudessem ser de impedimento,
de partida de Haroldo, fato bem evidente don plus mi cal, ta, em movimento perpétuo, para além de e que antes, vivendo num mesmo talento,
no seu acertadíssimo ensaio “Petrografia Negus vezer mon bel pensar no fundar uma tal linhagem de relações entre de estarmos juntos crescesse o desejo.
Dantesca”, de 1968, em que por um lado val. autores que nos remete necessariamente
evidencia o seu interesse privilegiado por (...) à ideia de superação que era de Pessoa (...)
um especial “realismo” que as Rimas Pé- “Yes, Doctor, what do they mean e que o próprio Pessoa bebia em Hegel e e ali falarmos sempre de amor,
treas (Rime Petrose) inauguram (já perto by noigandres?” Nietzsche. Não se trata de fazer melhor, e que todas elas fossem felizes, [fala das
da Comédia) e que é um realismo outro And he said: “Noigandres! NOI- trata-se de continuamente ir além e reno- respectivas mulheres amadas]
bem próximo às poéticas do concretismo, gandres! var a mesma tradição. Trata-se, no fundo, assim como acho seríamos nós.
e, por outro lado, como ele diz, porque as You Know for seex mon’s of my de um movimento ascendente, ou mes- [tr. nossa]
Rimas instauram uma linguagem que vai life mo de uma ascese, contínua busca de um
dos provençais até Dante, passando “pe- Effery night when I go to bett, I ponto que é impossível alcançar, se não Na canção da Vida Nova “Donne
los Guidos” (Guinizzelli e Cavalcanti). Dan- say to myself: em movimento, e leitmotiv, em definitiva, ch’avete intelletto d’amore [Mulheres que
te refere-se a Arnaut Daniel no De Vulgari Noigandres, eh, noigandres, da própria Comédia de Dante. tendes entendimento de amor]”, o poeta re-
Eloquentia e encena o encontro com Ar- Now what the DEFIL can that Para retomar e continuar no in- incide no conceito de inteligência ou enten-
naut, no Purgatório, deixando falar o poe- mean!” tuito inicial, vale a pena referirmo-nos a dimento do/pelo amor, amor que, mesmo
ta na sua língua: alguns trechos em que Dante define a sua sendo terreno, tem sempre um movimento
Onde ao inglês do poeta, ao pro- poética da amizade (amizade na poesia, ascendente, que os versos da Comédia “O
(...) “Ieu sui Arnaut, vençal e ao latim (homenagem a Propér- coeva ou passada), do amor e do “enten- voi ch’avete li’ntelletti sani,/ mirate la dottri-
que plor e vau cantan; cio e Ovídio), se junta o marcado acento dimento” pelo amor: na che s’asconde/ sotto ‘l velame de li versi
/ consiros vei la passada folor,/ alemão do professor Levy, consultado por strani. [Ó vos que tendes os inteletos sãos,/
e vei jausen lo joi qu’esper, denan./ Pound acerca do misterioso significado da nas Rimas (Rime LII): olhai para a doutrina que se esconde/ sob o
Ara vos prec, per aquella valor palavra noigandres. De resto, em Purga- véu desses versos estranhos]” (Inferno IX,
/ que vos guida al som de l’escalina, tório XXVI é Guinizzelli a introduzir Arnaut Guido, i’ vorrei che tu e Lapo ed io 61-63) confirmam, acrescentando a este
/ sovenha vos a temps de ma do- Daniel a Dante, definindo-o o melhor dos fossimo presi per incantamento saber pelo amor (mais propriamente, dos
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“Fiéis de Amor”), a dimensão alegórica ou “Olha aquele com essa espada na mão, Imperii que a Eneida, instaurando a ideia tão distinta), e nele se inscrever, faz dele
até esotérica que certamente não pôde es- que avança antes dos três como senhor. da passagem de poder, cultura e tradição uma espécie de enxerto.
capar a Haroldo de Campos3. mediante a prossecução de uma civilização Um dos momentos mais interes-
Mas é em Inferno IV, 79-102 que É ele Homero, poeta soberano; em outra (Eneias que de Tróia chega ao santes a este respeito, nas duas tradições,
a problemática até aqui traçada encontra a O outro é Orácio sátiro, que vem; Lácio e funda as bases da futura civilização é a chamada catábase, ou descida (aos in-
sua mais clara afirmação poética: Ovídio é o terceiro, o último é Lucano. romana), “inventa” a rebours, assumindo- fernos), que tem justamente a função de
Intanto voce fu per me udita: -se como texto fundacional a posteriori reatar o passado ancestral à ação presente,
“Onorate l’altissimo poeta: (...) dessa mesma civilização. De resto, trata- e, se quisermos, a um tempo mítico (e a
l’ombra sua torna, ch’era dipartita”. -se de processos de reescrita muito fre- suma das tradições gregas, mas também
Assim vi reunida a bela escola quentes na tradição ocidental, desde Ho- itálicas, na Eneida) com um tempo atual (a
Poi che la voce fu restata e queta, desse senhor do altíssimo canto mero: o cerne da questão parece ser não época de Augusto, neste caso), converten-
vidi quattro grand’ombre a noi venire: que sobre os outros como águia voa. tanto ou não só, para oferecer um exem- do a operação num ato (literário) de fun-
sembianz’avevan né trista né lieta. plo tópico, ou o exemplo dos exemplos, a dação de uma civilização, e, também, de
(...) gênese e a natureza originária da epopeia um poder. Dante eleva este gesto, também
Lo buon maestro cominciò a dire: homérica (tão poligenética), mas sim, por na senda de uma tradição medieval, a das
“Mira colui con quella spada in mano, e mais honra ainda, e assaz, me fariam, um lado a sua recolha e fixação, por outro viagens ao “além-mundo”, gesto metafísi-
che vien dinanzi ai tre sì come sire: quando assim me acolheram na sua tur- lado a sua inclusão numa biblioteca, e a co e teológico, incluíndo-o numa ascese.
ma, conseguinte inserção num sistema literá- Já Camões, o maior herdeiro de Virgílio do
quelli è Omero poeta sovrano; e eu fui o sexto de uma tal sabedoria. rio ou num cânone bastante mais próxi- seu tempo, opta pela fusão da dimensão
l’altro è Orazio satiro che vene; [tr. nossa] mo do nosso, e essencialmente livresco. histórico-mítica (e propriamente épica) da
Ovidio è ’l terzo, e l’ultimo Lucano. Operações que, na tradição clássica, pa- Eneida, com a dimensão metafísica (toca-
Evidentemente, aqui Dante convo- recem coincidir: no fundo conta a lenda da pela estética do sublime), inventando
(...) ca simbolicamente os autores latinos que que Pisístrato recolheu os livros que hoje o que, porventura, será o episódio mais
segue mais de perto (e deliberadamente compõem os poemas homéricos, e que es- lido e comentado do poema, o da Ilha dos
Così vid’i’ adunar la bella scola cita e imita), mas, através da figura de tes livros eram, nomeadamente, o núcleo Amores. E, na nossa contemporaneidade,
di quel segnor de l’altissimo canto Homero, de uma certa forma toda a tradi- de uma biblioteca (o mesmo pode dizer-se é Ezra Pound, abrindo os seus Cantos com
che sovra li altri com’aquila vola. ção ocidental que conhece. Aqui Homero da Bíblia, aliás neutro plural de βιβλίον - a tradução livre da catábase da Odisseia
é mais símbolo ou personagem, já que βιβλία). Há muitas questões que aqui se a partir de uma tradução latina da mes-
(...) Dante só podia ler sínteses em latim da cruzam e que não é possível examinar ma, de Andreas Divus (filtrando um filtro,
sua obra que, na realidade, desconhecia. É detalhadamente, mas a que é imprescin- em suma), a instalar-se novamente nessa
e più d’onore ancora assai mi fenno, apenas uma parte de toda uma enciclopé- dível fazer referência: primeiro, “Homero” “fieira”, teorizando, ainda com Dante, e
ch’e’ sì mi fecer de la loro schiera, dia de autores que são pouco a pouco re- (como máscara, função, instância autoral, com Vico, a intersecção de planos: o plano
sì ch’io fui sesto tra cotanto senno. lembrados na Comédia, e que confirmam, nome-símbolo de uma tradição inteira), de uma história mítica, universal, profética
aliás, o programa teórico e a visão crítica poderia não ser mais do que o editor de se quisermos; o plano da grande história
*** do De Vulgari Eloquentia, nesse caso limi- toda essa tradição oral estratificada. Se- de que somos filhos, e, finalmente, o plano
tadamente à tradição em vulgar e nomea- gundo, esse editor, ele próprio investido da história cotidiana. Ao encontro dos pa-
Eis que uma voz foi por mim ouvida: damente em romance; mas não se trata de uma instância autoral, é garantia da rentes-antepassados e do seu legado:
“Todos honrai o altíssimo poeta! só disso, pois o que mais nos interessa conservação de um patrimônio imaterial,
a sombra sua torna, que antes era partida”. aqui é a voluntária inscrição de Dante nes- que muito tem a ver com o problema dos
ta tradição, conforme uma clara ideia de suportes e da sua perecibilidade, que é um
Quando a voz parou e ficou quieta, Translatio Studii. A qual, aliás, é elevada, dos problemas da filologia. Já o segundo
eu vi quatro sombras até nós mover: modelo por excelência da classicidade, a
sua aparência não era triste nem leda. Eneida, foi concebida por um único autor,
como transmissão de saberes e de toda mas na tentativa de reproduzir esse mo-
E o bom mestre começou a dizer: uma tradição, ao nível daquela Translatio delo-não-modelo (por ser a sua gênese
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cosmológica (como a de Dante ou a de 63 – o com os portugueses da Poesia
And then went down to the ship, Camões já o tinham feito no seu tempo): 61 e da Po.Ex) com a experimentação
Set keel to breakers, forth on the godly seas, and “mallarmé/ sabia (seu coetâneo) que ao poética do concretismo. Em definitivo
We set up mast and sail on that swart ship, azar/ jamais abolirá un coup de dés/ vendo estamos também tratando da tão brasílica
Bore sheep aboard her, and our bodies also a constelação a desenhar-se (...)”; citação antropofagia, muito embora não haja aqui
Heavy with weeping, and winds from sternward que aliás ainda nos remete para uma leitura espaço suficiente para tratar da específica
Bore us out onward with bellying canvas, amada pelo Haroldo: Gilles Deleuze, outra relação de Haroldo de Campos com esta
Circe’s this craft, the trim-coifed goddess. vez. Mas a máquina do mundo é também outra estética nacional.
Then sat we amidships, wind jamming the tiller, essa máquina do Drummond, terceiro Mas voltando à sua relação direta
Thus with stretched sail, we went over sea till day’s end. convidado de honra (com Dante e Camões), com Dante, e ao meu trabalho de pesqui-
Sun to his slumber, shadows o’er all the ocean, agora brasileiro, do poema do Haroldo. sa não tanto e não só na obra de Haroldo,
Came we then to the bounds of deepest water, Máquina em que, mais uma vez, o alfabeto mas também no seu acervo, à procura de
To the Kimmerian lands, and peopled cities do céu e os sinais da terra constroem a marginálias nos livros de e sobre Dante que
Covered with close-webbed mist, unpierced ever sua escrita infinda em correspondências no acervo tão cuidadosamente se guar-
With glitter of sun-rays plenas. Quer a escrita, quer a transcriação, dam, devo dizer que o que mais pode ter
Nor with stars stretched, nor looking back from heaven são, repetimos, reescritas da tradição interessado ao nosso poeta é justamente
Swartest night stretched over wretched men there. e, portanto, ao mesmo tempo, com o a experimentação da linguagem, e a ideia
The ocean flowing backward, came we then to the place ensaísmo propriamente dito, gesto crítico, de escrita como estrutura, ou mesmo os
Aforesaid by Circe. (...) e talvez a única maneira possível, com as elementos estruturantes da obra, como,
famosas revisões, de se fazer uma “história eles próprios, “elementos traduzíveis”: a
da poesia”. Tanto que, reincidindo, a revisão já citada numerologia dantesca, “repensa-
E se o seu companheiro Eliot, quais citaremos ao menos Sousândrade e da literatura brasileira, o repensar-se da da” na sua Máquina do Mundo, onde terão
no seu magnífico Quatro Quartetos, Odorico Mendes (pelo seu trabalho pioneiro teoria e da prática tradutórias (por exemplo tido influências também aquelas medidas
escrevia: “Time present and time past/ de transcriador dos poemas homéricos), com ensaios sobre Poe/Pessoa/Machado de mínimas da poesia tão frequentes na poe-
Are both perhaps present in time future/ mais próximos ao tipo de textualidade de Assis; sobre Hölderlin e a Antígona; sobre sia oriental que cultivou, e que um crítico
And time future contained in time past./ que estamos falando. as suas próprias traduções, comentadas, da envergadura de Stephen Reckert cha-
If all time is eternally present/ All time is Existem muitos exemplos deste de Píndaro ou de Homero... ), e o inscrever- mou de “lira mínima”, estudando-as tanto
unredeemable”, estamos evidentemente tipo de operação (reoperação) textual que se no fluxo (e em “O nexo o nexo o nexo o na poesia oriental como nas cantigas ga-
em presença (ou re-presentação) de uma Haroldo nos deixou, e, já na sua escrita nexo o nex” com que fecha a sua Máquina lego-portuguesas o na quadra popular. As
fusão dos planos temporais, em função pessoal, não podemos esquecer o seu do Mundo), com uma criação própria, são, alegorias, o fundo esotérico da obra dan-
daquela contemporaneidade de tudo Finismundo – a última viagem, e o também todos e tudo, finalmente, poesia5. Esta tesca, a sua macroestrutura, a inovação da
(no plano imanente), ou eternização (no eloquente A Máquina do Mundo Repensada, literatura será, portanto, o lugar terceiro linguagem e, finalmente, o uso de emble-
plano trascendente) a que, por outras cujo título (outra vez a reiteração do de benjaminiana memória, lugar do mas7, conforme a sua própria poética, te-
vias, chegará também Deleuze na sua ritornello) tão camoniano (e lucreciano testemunho, voz de sombras, voz de quem rão sido outros elementos caros a Haroldo,
leitura de Bergson, anunciando o famoso ao mesmo tempo) é já um marco, e onde morre, voz de metempsicose, estratigrafia mais ainda do fundo realista/expressionis-
rizoma4. E é esta fieira que, da melhor convoca a tradição clássica, Dante (não – estratégia evidente, aliás, essa da leitura ta do Inferno, e dos seus episódios mais
forma (e como poucos outros autores da apenas explicitamente no começo: “quisera estratigráfica de traduções de terceiros, na isolados, que foram também os mais lidos
segunda metade do século XX), Haroldo como dante em via estreita”, mas também sua tradução de Homero6, e menos, pelo e amados pelo público, justamente pela
de Campos prossegue. Na sua enciclopédia ao longo do poema, pela estruturação que pude comprovar nas edições usadas maior facilidade de compreensão e análise.
, como já dissemos, une as referências numerológica da composição e pelo uso pelo autor, na da Comédia de Dante. E o Daí a sua preferência pelo Paraíso, de que
mais comuns (a caminho desses lugares da “terzina”), Camões, a física moderna aprofundado conhecimento do texto e do traduziu, como poucos outros conseguiram
comuns aqui totalmente fecundos: (Galileu, Newton), a contemporânea trabalho da linguagem de Homero e de fazer desde o mesmo plano de ambição, os
Homero, Virgílio – embora menos –, Dante (Einstein), e ainda a poesia que, na Dante encontrarão um paralelo (como famosos seis cantos.
– com os provençais –, Camões, Pound) contemporaneidade partilhada, mais aconteceu tabém com os poetas italianos Para concluir, e propor uma bre-
às mais ousadas, e brasileiras, entre as seria capaz de hospedar essa nova visão da chamada neovanguarda – o Grupo víssima leitura comparada de original e
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tradução, queríamos antes notar como Minerva spira, e conducemi Appollo, ultrapassar os limites da linguagem. Se e a outra, que a voar contempla e canta
os cantos I e XXXI do Paraíso sejam es- e nove Muse mi dimostran l’Orse. atendermos com precisão às traduções de a glória do alto bem que a enamora,
pecialmente significativos como conclusão Haroldo de Campos, veremos como as fa- e a bondade que esparze graça tanta,
do que fomos afirmando até agora. No li- Voialtri pochi che drizzaste il collo mosas perdas e os danos da tradução, e
miar da última etapa da sua ascese, que per tempo al pan de li angeli, del quale as compensações tidas por necessárias, e como enxame de abelhas que se enflora,
é ao mesmo tempo poética (no plano da vivesi qui ma non sen vien satollo, de que muito se fala especialmente para a e sai da flor, e unindo-se retorna
linguagem) e metafísica, Dante avisa o lei- poesia (pela problemática da tradução da para a lavra do mel que doura e odora,
tor da dificuldade, que é, paralelamente, de metter potete ben per l’alto sale prosódia, das rimas, do ritmo, que gera-
linguagem e de entendimento, a que terá vostro navigio, servando mio solco riam inevitáveis falhas), nem sempre se descia à grande rosa que se adorna
de se submeter, aconselhando-o a deixar dinanzi a l’acqua che ritorna equale. resolvem com os pequenos enganos e as de tanta pétala, e a seguir subia
a empresa caso não tenha a disposição e (Paradiso, II, 1-15) fraquezas do tradutor. Elas, se envolverem ao pouso que o perétuo Amor exorna.
a preparação necessárias. Serão agora a uma reestruturação do texto que não se
inteligência (Minerva) e, se quisermos, a *** limite aos seus segmentos menores (como ***
poesia (Apolo) a dar forças ao poeta e ao o verso), mas, sim, se fixem em unidades
seu leitor para a prossecução da viagem. Ó vós que em barca pequenina e lassa, maiores e estruturais (estrofe, conjunto E assim Haroldo, com Dante, no
É, no fundo, esta dificuldade necessária por amor de escutar, me haveis seguido de estrofes...), podem-se jogar também Paraíso, tenta transumanar, per verba,
que Haroldo de Campos sempre partilhou a nau cantante que desonda e passa, ao nível da relação complexa entre signos, “significando”, com imagens sublimes, o
na sua própria poética, dificuldade maior e da sua significação mais profunda e su- encontro com o mistério da plenitude, da
porque inscrita num plano ao mesmo tem- volveis sem mais ao porto conhecido: perior, ulterior. Foi este o desafio, o obje- luz e da graça: sem palavras e com a ne-
po metafísico e místico: de uma razão que p mar é alto, basta de porfia, tivo alcançado por Haroldo de Campos: cessidade das palavras da poesia, que nos
alcança até onde alcança, e de uma lingua- pois me perdendo, vos tereis perdido. faz prever (ou inventar) esse mesmo dese-
gem que quer ultrapassar este limite para jo de (regresso) à plenitude do silêncio, fi-
tentar justamente o que Dante nega ou fin- À água que eu tomo não se desafia; In forma dunque di candida rosa nalidade sem fim de toda a poesia humana.
ge que nega. “Transumanar significar per Minerva inspira e me conduz Apolo, mi si mostrava la milizia santa
verba / non si porìa; però l’essemplo basti e as Musas, descobrindo-me a Ursa-guia. che nel suo sangue Cristo fece sposa;
/ a cui esperienza grazia serba”, afirma nos
versos 70-73 de Paraíso I, assim traduzi- Vós outros, raros, vós, de altivo volo, ma l’altra, che volando vede e canta
dos por Haroldo de Campos: “Transumanar, dos poucos que alimenta o pão divino la gloria di colui che la ‘nnamora
significar per verba / não saberia; a quem sem jamais saciar no térreo solo, e la bontà che la fece cotanta,
o exemplo baste,/ a graça há de provar lançai-vos para além do mar salino,
quanto ele averba”. E toda a grande poesia velas plenas, seguros nessa esteira sì come schiera d’ape che s’infiora
é esta tensão para o transumano, para o que reflui do meu rasto cristalino. una fïata e una si ritorna
ir além, para o excesso do limite terreno. là dove suo laboro s’insapora,
Então no começo de Paraíso II, com a tra- Convite ao exceder dos limites
dução de Haroldo: que já Ulisses tinha prefigurado, mas com nel gran fior discendeva che s’addorna
a condena (muito embora paralela à uma di tante foglie, e quindi risaliva
O voi che siete in piccioletta barca, sincera admiração) de quem o fez apenas là dove ‘l süo amor sempre soggiorna.
desiderosi d’ascoltar, seguiti em nome da sabedoria e não de Deus. (Paradiso, XXXI, 1-12)
dietro al mio legno che cantando varca, Convite que na nossa contemporaneidade
é quase exclusivo da poesia, lato sensu. Já ***
tornate a riveder li vostri liti: dizia Teixeira de Pascoaes, “a ciência de-
non vi mettete in pelago, ché forse, senha a onda, a poesia enche-a de água”. A forma assim de uma cândida rosa
perdendo me, rimarreste smarriti. É evidente que se trata de dois momento vi que assumia essa coorte santa
altíssimos da poesia da nossa tradição, e que no sangue de Cristo fez-se esposa;
L’acqua ch’io prendo già mai non si corse; do momento tão alto em que ela tenta
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O PASSADO
RELLA, Franco. Pensare e Cantare la Mor-
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RICOEUR, Paul. Sobre a Tradução [título
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2004], tradução de Maria Jorge Vilar de
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--- La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris:
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SEGRE, Cesare. Fuori dal mondo: i modelli
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RELAMPEJA
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SOUSA, Eudoro de. Horizonte e Comple-
mentariedade. Lisboa: IN-CM, 2002.
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1. O material do acervo Haroldo de Campos e a envergadura de forma de consulta para localização rápi- ele estabeleceu com pensadores de outras
O objetivo deste artigo é apresen- suas reflexões estão registrados em várias da de informações. Diante da voracidade áreas do conhecimento, de filósofos a físi-
tar alguns resultados da pesquisa realizada notas de leitura, entre grifos, rodapés, co- do leitor, era preciso que localizasse com cos, registrado em forma de anotações de
no acervo haroldiano, em 2015, decorren- mentários, correspondências. Exemplo da presteza dados que lhe valessem para a leitura, cartas e outras fontes disponíveis
tes de bolsa de pesquisa concedida pelo diversidade do material é o amplamente escrita de artigos e textos tradutórios. Ve- em sua biblioteca, guardam forte relação
Centro de Referência Haroldo de Campos anotado volume de A formação da litera- ja-se o final do Volume I da obra de Can- com o pensamento benjaminiano para
(Casa das Rosas – Espaço de Poesia e Li- tura brasileira de Antonio Candido (1957), dido mencionada: além das questões do texto de juventude
teratura/Poiesis). O material, riquíssimo, com registros instigantes que permitem do filósofo alemão, “A tarefa do tradutor”,
ainda começa a ser explorado por estu- rastrear a história da leitura desta obra amplamente estudadas pela fortuna crítica
diosos e interessados pela obra do poeta; por Haroldo e iluminam os caminhos para do poeta.
além disso, certamente contribuirá para o a compreensão dos argumentos apresen- Esclareço ao leitor que se de um lado ve-
avanço da pesquisa em literatura de um tados por ele em O sequestro do barro- nho me dedicando ao estudo da obra harol-
modo geral. O pensamento constelar de co na formação da literatura brasileira: diana há quase doze anos, por outro lado,
o caso Gregório de Matos, publicado em estou longe de ser uma profunda conhe-
1989 pela Fundação Casa de Jorge Amado cedora da obra de Walter Benjamin; foi a
e reeditado pela Iluminuras em 2011. leitura de Haroldo que me levou até ela e,
Vale a pena observar os critérios portanto, o que apresento aqui é um work
de anotação: grifos em amarelo e em es- in progress, algumas imagens fulgurantes
ferográfica azul e/ou vermelha, anotações e, arriscaria dizer, marcadas de agoridade
em caneta esferográfica preta e/ou azul, e utopia, pelo que inspira Haroldo e pelo
a seta em vermelho, as notas de rodapé que o momento que vivemos reivindica. A
com referências a outras leituras possí- partir dessas anotações uma pesquisa de
veis. Os escólios indicam leituras feitas em maior fôlego será desenvolvida.
vários momentos, inclusive pela diferen- O leitor da obra do poeta sabe que
ça de caligrafia de Haroldo. Outro critério Haroldo propõe, na esteira benjaminiana,
bastante utilizado pelo poeta é a lista de que à continuidade linear da história de-
anotações e comentários feitos na última ve-se opor a ruptura; não se pode pen-
página dos livros, provavelmente como sar a história sem considerar que outrora
e agora se enlaçam para romper com as
visões pré-estabelecidas, para isso, é pre-
ciso tomar partido, ou seja, nos termos do
que Benjamin aponta nas “Treze Tarefas
Abarcar todo o material pesqui- do Crítico”: “Quem não é capaz de tomar
sado nos limites deste artigo seria impos- partido deve calar” (BENJAMIN, 2000:
sível; por isso, optei por fazer um recor- 32). E o partido aqui não quer dizer sim-
te que, a meu ver, pode trazer nova luz plesmente manifestar uma opinião, mas
à investigação da visão de história – não tomar partido frente aos dilemas históri-
apenas literária que Haroldo adota. A pes- cos, frente à defesa da não cristalização
quisa cuidadosa das anotações de leitura de tradições e em defesa do “lado b” da
feitas por Haroldo de Campos, nas obras história, em defesa daqueles que seja na
de Walter Benjamin ou sobre ele, em tex- vida social ou na história literária ficaram
tos escritos em diferentes línguas, dispo- à margem.
níveis em seu acervo, mostra que a fáus-
tica relação haroldiana com séculos de 2. Por uma história aberta
Anotações de leitura feitas por Haroldo de Campos na primeira edição de A formação da literatura brasileira história literária e o profícuo diálogo que Sabe-se da importância dos poetas con-
126 127
cretos para a leitura de vários autores pelo livros em seu acervo. tão da história, que é menos abordada. Ele gostaria de deter-se para acordar os
público brasileiro, não apenas literários, Não vou aqui aprofundar as espe- Essa vertente me parece muito rica, tanto mortos e juntar os fragmentos. Mas uma
como críticos também. Walter Benjamin é cificidades do diálogo. Além disso, afastan- quanto aquela que se debruça sobre os es- tempestade sopra do paraíso e prende-se
um desses autores que graças ao traba- do-me das análises mais usuais, voltadas tudos tradutórios, já que estes inserem-se, em suas asas com tanta força que ele não
lho de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo para a presença das ideias de Benjamin na de um ou outro modo, na perspectiva his- pode mais fechá-las. Essa tempestade o
de Campos, a partir de meados dos anos obra haroldiana pela via da tradução, que tórica das reflexões de Benjamin. impele irresistivelmente para o futuro, ao
1960, pôde ser recebido pelo leitor do Bra- é muito importante, vou me ater, pelos li- Para isso, é importante pensar, qual ele vira as costas, enquanto o amon-
sil de modo mais amplo. Evidentemente, mites de que disponho neste texto, à ques- então, a confluência dos pensamentos de toado de ruínas cresce até o céu. Essa
outros contribuíram para a chegada das Benjamin e Haroldo, a partir de algumas tempestade é o que chamamos progres-
ideias benjaminianas entre nós, mas sem balizas. A primeira delas é entender a im- so (BENJAMIN, 1996: 226).
dúvida os estudos dos poetas concretos, de portância do passado tomado sob a pers-
modo geral e os de Haroldo de Campos, pectiva do presente, não como foi, mas Da nona tese, algumas conside-
em particular, sobre a Tarefa do Tradutor, como “relampeja”, exatamente como pro- rações são muito importantes. Sem men-
já apreensíveis em “Da tradução como cria- põe a Tese VI: cionar a marca direta presente no poema
ção e como crítica” (1962 [1992]) e, ain- “O anjo esquerdo da história”, dedicado
da, em “A palavra vermelha de Hölderlin” A verdadeira imagem do passado per- às vítimas de Eldorado dos Carajás, de
(1967 [1977]) são exemplos dessa contri- passa veloz. O passado só se deixa fixar, 1996, há uma questão teórica implicada
buição que, aliás, é bastante investigada. como imagem que relampeja irreversi- na leitura haroldiana desta tese. Em pri-
Para que se tenha dimensão da importân- velmente, no momento em que é reco- meiro lugar, o anjo está situado no pre-
cia de Haroldo para a recepção do filóso- nhecido (...) Articular historicamente o sente, isso é claro pelo texto, ou seja, é
fo alemão, basta observar nas imagens passado não significa conhecê-lo “como no agora, no Jetzeit, para usar o termo de
destas páginas, os leitores benjaminianos ele foi”. Significa apropriar-se de uma Walter Benjamin, que o anjo da história
formados pelo poeta, nas dedicatórias de reminiscência, tal como ela relampeja se situa. Ele olha para as ruínas do passa-
num momento de perigo (BENJAMIN, do e é massacrado pela ideia do progres-
Leia-se: “Ao Haroldo de Campos, modelo de intelectual e 1996: 224) so. Vale notar que Benjamin é bastante
pessoa, ofereço [...] com a admiração do discípulo. São Paulo,
maio 78, Flávio Kothe” cético em relação à ideia do trem para o
Esse é um exemplo das relações futuro, do devir como lugar utópico, para
de influência que podemos detectar, mas ele, é no presente, “é quando o outrora
para além da influência, deve-se pensar enlaça o agora” que a ação da história se
na elaboração dos conceitos benjaminia- afirma, como nova narrativa e novo re-
nos por Haroldo de Campos. Em Benjamin, lato. O presente, em sua fugacidade, é
a Tese IX é um momento privilegiado para o lugar privilegiado da ação, ou, se qui-
que se pense essa relação. Diz Benjamin: sermos, é onde se ancora a esperança e
de onde se percebe a história não como
Há um quadro de Klee que se chama fechamento e cristalização, mas como
Angelus Novus. Representa um anjo que abertura. É patente a apropriação dessa
parece querer afastar-se de algo que ele visão por Haroldo de Campos no ensaio
encara fixamente. Seus olhos estão es- “Poesia e Modernidade: da morte do ver-
cancarados, sua boca dilatada, suas asas so à constelação, o poema pós-utópico”
abertas. O anjo da história deve ter esse (CAMPOS, 1997), por exemplo.
aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de 3. Walter Benjamin e a poética sincrônica
Dedicatória de Márcio Seligmann-Silva em: Ler o livro do mun-
do: Walter Benjamin, romantismo e crítica literária. Leia-se: acontecimentos, ele vê uma catástrofe A leitura da tradição em Haroldo
“Para meu caro Haroldo, pioneiro na leitura benjaminiana por
1
Leia-se: “Para o Haroldo, com a amizade de Willi Bolle,
São Paulo, junho,87”.
estas terras e original tradutor de linhagem valorizada e teoriza- única, que acumula incansavelmente ruí- de Campos, como em Benjamin, conforme
da por WB. Que fique clara a tua presença na origem e nas en-
trelinhas desta tentativa. Um grande abraço, Márcio, 12/05/99.” na sobre ruína e as dispersa a nossos pés. apontam seus críticos mais importantes,
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não é melancólica, mas historicamen- de ubiquidade, uma operação des-babeli- A leitura desse excerto de Haroldo trabalho de citações por parte de Ben-
te ativa – situada. Eu sustentaria que o zante, até redentora, no sentido benjami- afina-se grandemente com as “Teses so- jamin muito instigou Haroldo, a julgar
poeta, ao tomar contato com Benjamin, niano, que assevere o porvir. Sensível ao bre a história”. Em Benjamin, a história é pelas anotações de leitura feita em Ilu-
encontra nomeadas várias de suas refle- momento histórico vivido pelo país, já nos aberta porque há sempre possiblidade de minations, sobretudo no prefácio de Han-
xões e a partir disso ele próprio as reno- anos 1970, e ao aprofundamento da crise retomada de uma outra visada. Em ter- na Arendt à obra benjaminiana, como se
meia. No caso de Haroldo, pensando em ideológica e política, Haroldo vê na inten- mos freudianos, a retomada muitas vezes pode ver nas imagens abaixo:
termos da oposição freudiana entre luto e sificação da leitura da tradição e no passa- é original no sentido de que no momen- O que importa sublinhar é que, em
melancolia, ainda que a melancolia domi- do meios para entender o presente, para to de sua ocorrência não se tinha ideia do Haroldo, a leitura do passado não perde o
ne a temática de alguns poemas porque, agir criticamente sobre ele, mas ao mes- que acontecia e a rememoração, conceito sentido político jamais, mas constela ao
como retorno ao passado, revela um obje- mo tempo, e também em virtude dessa chave para Benjamin, é que pode possibili- transpor para a poesia, para a tradução,
to infinitamente perdido (isso vale para o preocupação, instiga-o à revisão da histo- tar que a imagem fulgurante apareça. Esse igualmente devedoras das ideias benjami-
Lamento sobre o Lago de Nemi, de 1949, riografia literária brasileira, como possibli- modo de ler o passado, pela perspectiva nianas, embora não apenas delas, a leitura
e para a A Máquina do Mundo Repensa- dade de mudança do presente: essa força de Benjamin, também se viabiliza pelo uso do passado do ponto de vista do presente;
da, de 2000, sem esquecer de Finismun- é utópica porque crítica. É nessa chave das citações. Retomo-o a partir do prefácio nesse sentido, a atualização do passado,
do, de 1990), o movimento de leitura e os que a leitura da obra de Benjamin passa a de Hanna Arendt a Iluminations2: sua invenção, é sempre crítica – daí po-
procedimentos de construção dos poemas assumir grande relevância. dermos falar em reelaboração de conceitos
e traduções são ativos e inventivos sem- Penso que o que Haroldo deno- “(...) “Quotations in my work are like benjaminianos por parte de Haroldo. A ci-
pre, ou seja, o poeta vive o luto daqui- mina de pós-utopia está bem próximo robbers by the roadside who make an tação, “arrancada” de um contexto em que
lo que perdeu, elabora-o e tenta avançar de uma noção de utopia benjaminiana, armed attack and relieve an idler of his cristaliza, ganha novo sentido, vem à luz de
de modo a inventar a herança que vem distante do princípio-esperança de Bloch convictions” (Schiriften I, 571) (BENJA- outro modo, como se, para usar uma ideia
do cânone 1(FREUD, 2013). Por isso, nem com sua orientação para o futuro, marca- MIN apud ARENDT, p. 38) haroldiana, fosse uma “vivissecção impla-
mesmo a pós-utopia é nostálgica, como da, ao invés, pelo que ele mesmo chama “(...) the destructive power of quotations cável” no corpo da tradição, algo em afini-
atesta o poeta em entrevista concedida a de princípio-realidade, ou se quisermos, was “the only one which still contains the dade, entre outros aspectos, com a plagio-
Rodolfo Mata: “A utopia perde um pouco orientada pela ação interventora da arte, hope that something from this period tropia e com a sincronia (CAMPOS, 2005).
dessa ideia visionária de ficar projetando que não é engajada em seu discurso sim- will survive – for no other reason than De meu ponto de vista, Haroldo
para o futuro aquilo que não pode realizar plesmente – embora possa ser, mas que that it was torn out of it”. (BENJAMIN, leu a tradição muito mais em um senti-
no presente (...) E eu não vejo essa opera- tem na forma a sua maior arma revolu- apud ARENDT, p.39) do de agoridade do que de projeção futu-
ção como um nostálgico e eclético retorno cionária, porque a forma é a denúncia, no ra, mesmo antes da leitura benjaminiana
ao passado”. (CAMPOS, 1996) presente de uma tradição que aceita apa- Dessa perspectiva pode-se cap- e mesmo antes da pós-utopia, como diz
Em Haroldo, percebo a leitura da ziguar-se; pela forma toma corpo a ruptu- tar, ainda que com reservas, que à ideia em um texto de 1960, “Contexto de uma
tradição em muita afinidade com essa ra que desafia o conformismo da tradição. benjaminiana de citações, Haroldo asso- vanguarda”: A poesia concreta fala a lín-
perspectiva. É possível sustentar a apro- Nesse sentido, fazer o novo é inventar for- cia a antropofagia oswaldiana e o make gua do homem de hoje (...). (CAMPOS,
priação crítica da tradição sob dupla égide mas do passado para livrar da tormenta o it new poundiano. A proposição de um 1960[2007]: 211, grifos meus). Falar a
em Haroldo, de dois modos utópicos, mas presente. Para Haroldo, enfim:
em sentido diverso. O primeiro aspecto
tem a ver com a utopia de vanguarda; A tradição é uma coisa aberta. (...)
o segundo, em mais afinidade com a uto- A vanguarda literária, tal como a com-
pia do presente benjaminiana, ou o que preendo, envolve uma interpretação crí-
prefiro chamar de utopia fáustica, e que tica do legado da tradição, através de
Haroldo denomina de pós-utopia, marcada sua ótica integrada no presente e feito
da agoridade (TONETO, 2012). contemporâneo. Não artefato para mu-
De meu ponto de vista, ao lado do pro- seu (para a contemplação), mas objeto
jeto de vanguarda, instaura-se um pro- linguístico vivo, para uso produtivo ime-
jeto pessoal da leitura da tradição. Esse diato (para a ação). (CAMPOS, 1997)
projeto poético pessoal marca um desejo
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língua de hoje significa sincronizar tempos do Anjo da História, subvertendo-o tam- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São
e espaços. A poética sincrônica, tal qual a bém, pois entre o outronão e o outrossim, Paulo: Cosac&Naify, 2013.
concebe Haroldo não opera no vazio (...), pulsarão sempre as lições da poética de BENJAMIM, Walter. “Sobre a história”. In: SCHÜLER, Donaldo. Um lance de nadas
mas está inserida na história: só pode as- leitura de Haroldo, este inigualável Orfeu Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e na épica de Haroldo. Ponta Grossa: UEPG/
sumi-la um homem datado e inscrito num bem sucedido! Política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. Museu Arquivo da Poesia Manuscrita,
dado tempo histórico, o presente. Daí Vol. 1, p. 222-234. 1997. Col. Mapa.
também o estatuto relativo, pois, ao con- ______. “Infância em Berlim”. In: Obras TONETO, Diana Junkes Martha. Haroldo de
trário do que se poderia imaginar, é o va- Escolhidas: Rua de Mão Única. São Paulo: Campos e a Utopia da Escritura Original Fron-
lor relativo, funcional, e não o eterno que Ed. Brasiliense, 2000. Vol.2, p.71 teiraz (São Paulo), v. 9, p. 175-187, 2012.
preside a uma história literária (CAMPOS, CAMPOS, Haroldo de. “Comunicação na
1977: 216) Poesia de Vanguarda”. In:______. A arte Notas
Aqui me parece reside uma cone- no horizonte do provável. São Paulo: Pers- 1 Segundo Freud: (2003, p.86) “(…) o luto leva o ego
xão muito interessante entre duas formas pectiva, 1977, p.131-154. a renunciar ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-
de pensamento que têm importância para ______. “Por uma poética sincrônica”. In: -lhe como prêmio permanecer vivo [o ego]”, ou seja, a
Haroldo, a benjaminiana e a jakobsonia- ______. A arte no horizonte do provável. elaboração do luto permite a presença ativa e produtiva
na. Ambas delineiam uma concepção do São Paulo: Perspectiva, 1977, p.205-231. do que se perdeu, não um saudosismo do passado, mas
tempo histórico que influi grandemente no _______. “Da razão antropofágica: Diálo- a “vivissecção implacável” (CAMPOS, 2005) do vivo sobre
pensamento do poeta. Se a poesia é a flor go e diferença na literatura brasileira”. In: o morto, que o recria. Não é à toa que Donaldo Schüler
que nasce na rua e fura o ódio é porque, ______ Metalinguagem e outras metas. (1997) atribui a Haroldo um novo orfismo, um orfismo
para acompanharmos a leitura que propo- São Paulo: Perspectiva, 1992, p.231-257. bem-sucedido, que resgata os mortos, trazendo-os à
nho, suas raízes estão no outrora. Walter ______. “Da morte do verso à constelação. luz; estes mortos não ressuscitam como foram, mas são
Benjamin diz: “assim como as flores di- Poesia e modernidade. O poema pós-utópico”. restaurados pela leitura e apropriação crítica, viabilizada,
rigem sua corola para o sol, o passado, In: ______O Arco Íris Branco. São Paulo: Ed. como se verá adiante, pela poética sincrônica.
graças a um misterioso heliotropismo, Imago, 1997, p.243-270.
tenta dirigir-se para o sol que se levan- ______ . Finismundo: A Última Viagem. 2 Iluminations, Walter Benjamin, organização e notas
ta no céu da história” (BENJAMIN, 1996: Ouro Preto: Tipografia do Fundo de Ouro Hanna Arendt.
224 ). E o que é o céu da história senão Preto, 1990. Tradução livre das citações: “Citações em meu trabalho
a poesia pós-utópica que entre açuladas ______ .A Máquina do Mundo Repensada. são como ladrões de beira de estrada que fazem um
sirenes reconstrói a fé na linguagem, na São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. ataque armado e descansam ociosamente de suas con-
palavra, bebendo “um verso velho que o ______. O sequestro do barroco na litera- vicções”.
citrino verdecente acidula”? tura brasileira: o caso Gregório de Matos. “O poder destrutivo das citações era o único que ainda
Sim, quem não é capaz de tomar São Paulo: Iluminuras, 2011. continha a esperança de que alguma coisa sobre esse
partido deve calar. Aprendi esta lição de ______. Deus e o diabo no Fausto de Goe- período sobrevivesse por nenhuma outra razão a não ser
Benjamin lendo Haroldo. Uma das formas the. São Paulo: Perspectiva, 2005. pelo fato de que foram arrancadas dele”
de não calar é arrancar o passado de seu ______. Entrevista a Rodolfo Mata. Dispo-
imobilismo, isso, sem dúvida é um incon- nível em: http://www.jornaldepoesia.jor.
testável projeto tanto da Poesia Concreta, br/rmata01c.html
quanto de Haroldo, em toda a sua longa ______ et al. Teoria da poesia concreta:
“atividade poetaria”. Acrescentaria ainda textos críticos e manifestos 1950-1960.
que se o azar é dançarino, amanhã sere- São Paulo, Ateliê Editorial, 2006.
mos reis, não do mundo, mas do nosso CANDIDO, Antonio. Formação da literatu-
destino, narrado e desenrolado como as ra brasileira. Rio de Janeiro: Outro sobre
meias de Walter Benjamin, numa elabora- o Azul, 2006.
ção sincrônica de nós mesmos, do passado JAKOBSON, Roman. Linguística e Comuni-
e da memória coletivas, sob os auspícios cação. São Paulo, Cultrix, 1999.
132 133
GALÁXIA DEPOIMENTO DE
TRAJANO VIEIRA
HAROLDO SOBRE HAROLDO DE CAMPOS
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“Eu vi recentemente, no Youtube, há na Ilíada e na Odisseia, um acúmulo que eu denomino de contenção, há um ou- que ainda deixou marcas e deixa marcas
o Augusto de Campos lendo um poema de de epítetos e fórmulas tradicionais que re- tro igualmente importante, de certo modo nos estudos clássicos. A versão automáti-
1952 do Haroldo. Por algum motivo, eu fui fletem sua composição oral. Pode-se dizer contrário a esse padrão de contenção, e ca, a versão que evita reformatar o texto
levado a pensar no autor a que me dedico que o núcleo da linguagem homérica não que ocorre, sobretudo, no plano narrativo; cria a ilusão de que o que está sendo ver-
há décadas, que é Sófocles, para quem o é a palavra, mas a fórmula. Esse núcleo trata-se de um movimento de expansão. tido é fundamental; cria a ilusão de que,
destino é um enigma cujo sentido só se formular é responsável por um movimen- A poesia homérica, portanto, ela tem es- em poesia, o conteúdo vale mais do que a
esclarece retrospectivamente. O desenho to de contenção. Não se trata, apenas, ses dois traços marcantes; ela tem esse forma. Do ponto de vista poético, esse tipo
biográfico que elaboramos e reelaboramos do emprego recorrente de expressões aspecto na dicção de contenção, de uso, de de tradução não é propriamente equivoca-
continuamente possui uma forma que nos fixas – isto é muito comum em Homero uma economia no uso de fórmulas, e esse da, mas catastrófica.
escapa. Quando imaginamos identificar – mas de renovação da linguagem ocor- aspecto de expansão narrativa. Se o poe-
um sentido para o destino, o acaso trata rer com base nesse núcleo formular. Vá- ta oral percebe que sua rapsódia agrada a
de deslocá-lo, de reconfigurá-lo de manei- rios levantamentos estatísticos mostram plateia, ele tem condição de expandir, de Notas
ra imprevista. Para Sófocles, é o talento que uma boa porcentagem da linguagem maneira impressionante, sua obra através 1 O vídeo no Youtube ao qual Trajano Vieira se refere
investigativo que define a magnitude de homérica é composta de fórmulas de digressões, do acréscimo de vinhetas, pode ser encontrado neste link: https://www.youtube.
um personagem, e não propriamente a ca- recorrentes em um ou mais momentos do do emprego acumulativo de signos, de com/watch?v=Xvm8jDN_UqA
pacidade de chegar a uma classificação, a poema. Esse é um tema clássico dos estu- analogias; tudo isso depende do instante,
uma conclusão ou a uma definição impos- dos homéricos que foi levantado, sobretu- porque vocês sabem que a poesia homéri-
sível, devido ao caráter instável do tempo. do, por um americano, foi iniciado por um ca era um tipo de poesia realizada no mo-
O maior exemplo disso é Édipo; admira- extraordinário comparativista americano mento de competição, rapsódia, justamen-
mos o personagem, sobretudo em razão chamado Milman Parry, nos anos vinte; ou te o que eu digo é, quando aquelas várias
da persistência com que ele se empenha seja, a questão fundamental para Homero equipes de poetas, que eram pessoas que
em sua investigação para descobrir a pró- são estas microestruturas formulares, es- viviam, efetivamente, dessa prática, ga-
pria identidade. Mas, repito, ao ver e ouvir sas expressões fixas que vão se renovan- nhava a vida assim – Homero foi o maior
a leitura de Augusto de Campos, lembrei- do ao longo do poema, sempre com um deles, criou uma escola, famosa, chamada
-me de Sófocles por causa da coerência do caráter analógico. Ou seja, há um padrão Homéridas. Quando eles percebiam que a
destino a posteriori – coerência que se re- na dicção homérica que reflete o uso de plateia, que tinha caído no gosto da pla-
vela a posteriori. Cinquenta anos antes de fórmulas fixas, mesmo quando estas fór- teia, eles expandiam; expandiam, expan-
publicar o primeiro volume da Ilíada, da- mulas fixas estão ausentes, é a estrutura diam, expandiam, eram capazes disso com
tado de 2002, Haroldo de Campos escreve formal que possibilita a geração de outras o poema tradicional. Então, a gente lendo
um poema, poema esse lido pelo Augusto, fórmulas. A estrutura formular é um fe- Ilíada e a Odisseia, vê como há digressões
uma leitura maravilhosa — é algo recente nômeno, portanto, de dicção em Homero; estranhas, muitas vezes, e decorre desta
no Youtube, vale a pena ver, extraordinária ela é um diferencial com que o poeta épico prática de oralidade. A poesia pulsante de
leitura do Augusto, como sempre, grande trabalha. Ao lado desse diferencial, res- Haroldo, de Homero – vejam só, às ve-
leitor de poesia —, um poema que no pla- ponsável pelo que denomina contenção, zes eu confundo essa.... de Homero tem,
no vocabular antecipa várias das soluções porque é uma tendência essas fórmulas se portanto, como baliza, baliza nesses dois
homéricas, o poema é de 1952; ninfose, repetirem ao longo do poema, então, por parâmetros: um de contenção no plano da
cristalneves, cefalâmpagos, cavernoscura, exemplo, sempre que Homero falar da Au- dicção, e o de expansão no plano da narra-
purponoctívagos, vermicegos, verbogêne- rora numa certa posição do verso, ele vai tiva. O maior problema das traduções aca-
sis.1 A poesia de Homero pode ser qualifi- usar o famoso epíteto “dedirrósea”; sem- dêmicas de Homero decorre do fato de, em
cada como pulsante, o que a torna familiar pre que Aquiles for definido numa certa po- lugar de privilegiarem essa tensão original,
a um traço fundamental da personalidade sição do metro, vai aparecer o epíteto “pés algo que exige reinvenção, elas optarem
de Haroldo de Campos e de sua atividade velozes”, e assim formam-se essas fórmu- pelo translado literal, pelo menos do re-
poética. Quando emprego o termo pulsan- las fixas. O padrão da dicção homérica é o dundante e desinteressante – o que no ori-
te, penso em dois aspectos da linguagem padrão que é bem marcado por esse tipo ginal pulsa. Tenho para mim que isso se dá
homérica. No plano da estrutura verbal, de estrutura. Mas ao lado desse aspecto por causa do peso da filologia positivista,
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SOBRE OS
gica. Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação Lucas Simone nasceu em São Paulo em 1983. É historia- Street, de Joaquim de Sousândrade.
em Estudos de Literatura na UFSCar. dor formado pela Universidade de São Paulo e doutoran-
do em Literatura e Cultura Russa na mesma instituição. Vanderley Mendonça é jornalista, tradutor e editor dos
AUTORES
Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, pro- Atua também como editor e tradutor, tendo publicado a Selos Demônio Negro e Edith. Lecionou Editoração da ECA-
fessor e tradutor. Leciona língua e literatura latina na UFPR. peça Pequeno-burgueses e a coletânea A velha Izerguil -USP. Traduziu, entre outros livros, Poesia Vista, antolo-
Estreiou com os poemas de Brasa Enganosa (2013). Publi- e outros contos, ambos de Maksim Górki (Hedra, 2010). gia bilíngue do poeta catalão Joan Brossa (Ateliê, 2005),
cou traduções de As janelas, seguidas de poemas em prosa Traduziu também os romances A aldeia de Stepántchikovo Crimes Exemplares, de Max Aub (Amauta, 2003), Nunca
franceses, de Rainer Maria Rilke (em parceria com Bruno e seus habitantes (Editora 34, 2012) e Memórias do sub- aos Domingos, de Francisco Hinojosa (Amauta, 2005) e
Brunno V. G. Vieira é doutor em Estudos Literários pela D’abruzzo), e d’A Anatomia da Melancolia, de Robert Bur- solo (Hedra, 2013), de Fiódor Dostoiévski, além de contos Greguerías, de Ramón Gómez de La Serna (Selo Demônio
UNESP, instituição onde atualmente leciona temas relacio- ton, em 4 volumes (prêmio APCA 2014 de melhor tradu- de Odóievski, Kuprin, Tchekhov, Górki e Ilf & Petrov para Negro, 2010). É autor do livro Iluminuras, Ed. Patuá. 2013.
nados à Língua e Literatura Latinas, no nível de gradua- ção). Em 2014, publicou a tradução integral das Elegias de a Nova antologia do conto russo(1792-1998), organizada
ção e pós-graduação. No momento, é vice-coordenador Sexto Propércio. Participa do blog coletivo escamandro por Bruno Barretto Gomide (Ed. 34, 2011).
É coorganizador dos livros Permanência Clássica: Visões uma revista impressa. Manuele Masini nasceu em Massa Marittima, na Itália.
Thamos, Ed. Escrituras, 2011) e Acervos especiais: me- Inês Oseki-Depré é pesquisadora e teórica de Estudos da Portugueses e Crítica Textual. Desenvolve projetos de
mórias e diálogos (com A. P. M. Alves, Cultura Acadêmica, Tradução, professora emérita, tradutora e ensaísta. Já pu- investigação e de estudo em tradução poética. Autor de
2015); traduziu os cinco primeiros cantos da Farsália, de blicou Literariedade (1970),Théories et pratiques de la tra- monografias e artigos, traduziu autores e poetas para as
Lucano (Editora da Unicamp, 2011); e, como integrante duction littéraire (1999), Traduction & Poésie (2000), De línguas portuguesa, galega, espanhola, francesa e catalã.
do Grupo Odorico Mendes, colaborou nas anotações das Walter à Benjamin à nos jours (2006), Haroldo de Cam-
Bucólicas (Ateliê, 2008). pos: une Anthologie, entre outros. Como tradutora, verteu Marcelo Tápia, poeta, tradutor, ensaísta e professor, é gra-
para o francês importantes obras, tais como: como Le ciel duado em Letras (Português e Grego) e doutor em Teoria
Caetano Waldrigues Galindo nasceu em 1973 em Curi- em damier d’étoile, de Antonio Vieira, Livre de I’nquiétude, Literária e Literatura Comparada pela USP. Autor de cinco li-
tiba, onde reside. Desde 1998 é professor de linguística na de Fernando Pessoa, Les premières histoires, de Guima- vros de poemas, traduziu, entre outras obras, o romance Os
Universidade Federal do Paraná. Como tradutor, já verteu rães Rosa, Structure de la bulle de savon, de Lygia Fagun- passos perdidos (2008), de Alejo Carpentier; coorganizou o
para o português obras de autores como Charles Darwin, des Telles, Galaxies e Poémes d’Haroldo de Campos, de livro Haroldo de Campos – Transcriação. Publicou, também,
Thomas Pynchon, Tom Stoppard e David Foster Wallace. O Haroldo de Campos. Já para o português, traduziu os Écrits Cinematographos: Antologia da crítica cinematográfica, re-
tradutor e escritor curitibano ganhou, em 2013, os prêmios de Jacques Lacan (1986) e Algo Preto (2006), de Jacques união de textos de Guilherme de Almeida, organizado por
Academia Brasileira de Letras e Jabuti pela tradução do Roubaud. Participou, em 1999, do colóquio de Oxford e de ele e por Donny Correia. É, atualmente, professor pleno do
clássico Ulysses, de James Joyce. No mesmo ano deu-se Yale em homenagem a Haroldo de Campos, em presença Tradusp – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tra-
sua estreia na ficção, com a coletânea de histórias cur- do poeta. Foi bolsista residente do Programa de Incentivo dução da FFLCH-USP. Dirige os museus Casa Guilherme de
tas Ensaio sobre o entendimento humano. Traduziu ainda, à Pesquisa e Tradução da Obra de Haroldo de Campos, Almeida – Centro de Estudos de Tradução Literária, Casa
entre outras obras, Graça Infinita, de David Foster Wallace mantido pelo Centro de Referência Haroldo de Campos. das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Litera-
e acaba de lançar Sim, eu digo sim – uma visita ao Ulysses. tura e Casa Mário de Andrade, em São Paulo.
Diana Junkes - Possui mestrado (2004) e doutorado miótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – São Reynaldo Jiménez é poeta, ensaísta, editor, performer,
(2008) em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulo, especialista em Gestão Pública (UFABC) e coordena realizador de video-poemas e tradutor do português. Nas-
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Araraquara) e pós- o Centro de Referência Haroldo de Campos da Casa das ceu em Lima, Peru, mas reside em Buenos Aires desde
-doutorado na área de Análise do Discurso e Psicanálise Rosas. Foi diretor do Departamento de Ações Culturais de 1963. Entre seus últimos libros estão: Informe, El cóncavo.
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão São Bernardo do Campo. Foi responsável pela curadoria Imágenes irreductibles y superrealismos sudamericanos,
Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) (2011). das exposições Pontos Luminosos da poesia de Haroldo de Esteparia e Plexo. No Brasil, publicou Shakti, com orga-
É professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira da Campos e Esdrúxulo – 100 anos da morte de Augusto dos nização e tradução de Cláudio Daniel e El ignaro triunfo
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, na gradua- Anjos. Tem publicado poemas e outros textos em revistas e de la razón (compilação de textos de Gastón Fernández
ção e na pós-graduação, onde também atua como pesqui- jornais. Organizou os livros ABC Rap – Coletânea de poesia Carrera). Traduziu para o espanhol Galaxias, de Haroldo de
sadora . Publicou o livro As razões da máquina antropofá- rap e Poesia (Im)Popular Brasileira. Campos, Catatau, de Paulo Leminski e O Inferno de Wall
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realização