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Atenção Primária à Saúde A

A
ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Gustavo Corrêa Matta


Márcia Valéria Guimarães Morosini

Internacionalmente tem-se apre- organização dos sistemas de saúde pela


sentado ‘Atenção Primária à Saúde’ primeira vez no chamado Relatório
(APS) como uma estratégia de organi- Dawnson, em 1920. Esse documento
zação da atenção à saúde voltada para do governo inglês procurou, de um
responder de forma regionalizada, con- lado, contrapor-se ao modelo
tínua e sistematizada à maior parte das flexineriano americano de cunho cu-
necessidades de saúde de uma popula- rativo, fundado no reducionismo bio-
ção, integrando ações preventivas e cu- lógico e na atenção individual, e por
rativas, bem como a atenção a indiví- outro, constituir-se numa referência
duos e comunidades. Esse enunciado para a organização do modelo de aten-
procura sintetizar as diversas concep- ção inglês, que começava a preocupar
ções e denominações das propostas e as autoridades daquele país, devido ao
experiências que se convencionaram elevado custo, à crescente complexi-
chamar internacionalmente de APS. dade da atenção médica e à baixa
No Brasil, a APS incorpora os resolutividade.
princípios da Reforma Sanitária, levan- O referido relatório organizava o
do o Sistema Único de Saúde (SUS) modelo de atenção em centros de saú-
a adotar a designação Atenção Básica de primários e secundários, serviços
à Saúde (ABS) para enfatizar a domiciliares, serviços suplementares e
reorientação do modelo assistencial, hospitais de ensino. Os centros de saú-
a partir de um sistema universal e inte- de primários e os serviços domicilia-
grado de atenção à saúde. res deveriam estar organizados de for-
Historicamente, a idéia de atenção ma regionalizada, onde a maior parte
primária foi utilizada como forma de dos problemas de saúde deveriam ser

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resolvidos por médicos com formação básicas da APS. A primeira seria a


em clínica geral. Os casos que o médico regionalização, ou seja, os serviços de
não tivesse condições de solucionar com saúde devem estar organizados de for-
os recursos disponíveis nesse âmbito da ma a atender as diversas regiões naci-
atenção deveriam ser encaminhados para onais, através da sua distribuição a par-
os centros de atenção secundária, onde tir de bases populacionais, bem como
haveria especialistas das mais diversas devem identificar as necessidades de
áreas, ou então, para os hospitais, quan- saúde de cada região. A segunda ca-
do existisse indicação de internação ou racterística é a integralidade, que for-
cirurgia. Essa organização caracteriza-se talece a indissociabilidade entre ações
pela hierarquização dos níveis de aten- curativas e preventivas.
ção à saúde. Os elevados custos dos sistemas
de saúde, o uso indiscriminado de
Os serviços domiciliares de um
dado distrito devem estar baseados tecnologia médica e a baixa reso-
num Centro de Saúde Primária – lutividade preocupavam a sustentação
uma instituição equipada para ser- econômica da saúde nos países desen-
viços de medicina curativa e pre-
volvidos, fazendo-os pesquisar novas
ventiva para ser conduzida por clí-
nicos gerais daquele distrito, em formas de organização da atenção
conjunto com um serviço de en- com custos menores e maior eficiên-
fermagem eficiente e com o apoio cia. Em contrapartida, os países po-
de consultores e especialistas visi-
bres e em desenvolvimento sofriam
tantes. Os Centros de Saúde Pri-
mários variam em seu tamanho e com a iniqüidade dos seus sistemas de
complexidade de acordo com as saúde, com a falta de acesso a cuida-
necessidades locais, e com sua lo- dos básicos, com a mortalidade infantil
calização na cidade ou no país. e com as precárias condições sociais,
Mas, a maior parte deles são for-
mados por clínicos gerais dos seus econômicas e sanitárias.
distritos, bem como os pacientes Em 1978 a Organização Mundial
pertencem aos serviços chefiados da Saúde (OMS) e o Fundo das Na-
por médicos de sua própria região. ções Unidas para a Infância (Unicef)
(Ministry of Health, 1920)
realizaram a I Conferência Internacio-
Esta concepção elaborada pelo nal sobre Cuidados Primários de Saú-
governo inglês influenciou a organiza- de em Alma-Ata, no Cazaquistão, an-
ção dos sistemas de saúde de todo o tiga União Soviética, e propuseram um
mundo, definindo duas características acordo e uma meta entre seus países

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membros para atingir o maior nível No que diz respeito à organiza-


de saúde possível até o ano 2000, atra- ção da APS, a declaração de Alma-Ata
vés da APS. Essa política internacio- propõe a instituição de serviços locais
nal ficou conhecida como “Saúde de saúde centrados nas necessidades
para Todos no Ano 2000”. A Decla- de saúde da população e fundados
ração de Alma-Ata, como foi chama- numa perspectiva interdisciplinar en-
do o pacto assinado entre 134 países, volvendo médicos, enfermeiros, par-
defendia a seguinte definição de APS, teiras, auxiliares e agentes comuni-
aqui denominada cuidados primári- tários, bem como a participação soci-
os de saúde: al na gestão e controle de suas ativida-
des. O documento descreve as seguin-
Os cuidados primários de saúde são tes ações mínimas, necessárias para o
cuidados essenciais de saúde base- desenvolvimento da APS nos diver-
ados em métodos e tecnologias prá-
ticas, cientificamente bem funda- sos países: educação em saúde voltada
mentadas e socialmente aceitáveis, para a prevenção e proteção; distribui-
colocadas ao alcance universal de ção de alimentos e nutrição apropria-
indivíduos e famílias da comunida- da; tratamento da água e saneamento;
de, mediante sua plena participa-
saúde materno-infantil; planejamento fa-
ção e a um custo que a comunida-
de e o país possam manter em cada miliar; imunização; prevenção e controle
fase de seu desenvolvimento, no de doenças endêmicas; tratamento de
espírito de autoconfiança e auto- doenças e lesões comuns; fornecimen-
determinação. Fazem parte inte-
to de medicamentos essenciais.
grante tanto do sistema de saúde
do país, do qual constituem a fun- A Declaração de Alma-Ata repre-
ção central e o foco principal, quanto senta uma proposta num contexto
do desenvolvimento social e eco- muito maior que um pacote seletivo
nômico global da comunidade.
de cuidados básicos em saúde. Nesse
Representam o primeiro nível de
contato dos indivíduos, da família sentido, aponta para a necessidade de
e da comunidade com o sistema na- sistemas de saúde universais, isto é,
cional de saúde, pelo qual os cui- concebe a saúde como um direito hu-
dados de saúde são levados o mais
mano; a redução de gastos com ar-
proximamente possível aos lugares
onde pessoas vivem e trabalham, e mamentos e conflitos bélicos e o au-
constituem o primeiro elemento de mento de investimentos em políticas
um continuado processo de assis- sociais para o desenvolvimento das
tência à saúde. (Opas/OMS, 1978) populações excluídas; o fornecimento

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e até mesmo a produção de medica- incipiente desde o início do século XX,


mentos essenciais para distribuição à como os centros de saúde em 1924
população de acordo com a suas ne- que, apesar de manterem a divisão entre
cessidades; a compreensão de que a ações curativas e preventivas, organi-
saúde é o resultado das condições eco- zavam-se a partir de uma base
nômicas e sociais, e das desigualdades populacional e trabalhavam com edu-
entre os diversos países; e também es- cação sanitária. A partir da década de
tipula que os governos nacionais de- 1940, foi criado o Serviço Especial de
vem protagonizar a gestão dos siste- Saúde Pública (Sesp) que realizou ações
mas de saúde, estimulando o intercâm- curativas e preventivas, ainda que res-
bio e o apoio tecnológico, econômico tritas às doenças infecciosas e carenciais.
e político internacional (Matta, 2005). Essa experiência inicialmente limitada
Apesar de as metas de Alma-Ata às áreas de relevância econômica,
jamais terem sido alcançadas plena- como as de extração de borracha, foi
mente, a APS tornou-se uma referên- ampliada durante os anos 50 e 60 para
cia fundamental para as reformas sa- outras regiões do país, mas represada
nitárias ocorridas em diversos países de um lado pela expansão do modelo
nos anos 80 e 90 do último século. médico-privatista, e de outro, pelas di-
Entretanto, muitos países e organismos ficuldades de capilarização local de um
internacionais, como o Banco Mundial, órgão do governo federal, como é o
adotaram a APS numa perspectiva caso do Sesp (Mendes, 2002).
focalizada, entendendo a atenção pri- Nos anos 70, surge o Programa
mária como um conjunto de ações de de Interiorização das Ações de Saúde
saúde de baixa complexidade, e Saneamento do Nordeste (Piass)
dedicada a populações de baixa ren- cujo objetivo era fazer chegar à popu-
da, no sentindo de minimizar a exclu- lação historicamente excluída de qual-
são social e econômica decorrentes da quer acesso à saúde um conjunto de
expansão do capitalismo global, dis- ações médicas simplificadas, caracte-
tanciando-se do caráter universalista da rizando-se como uma política focali-
Declaração de Alma-Ata e da idéia de zada e de baixa resolutividade, sem
defesa da saúde como um direito capacidade para fornecer uma atenção
(Mattos, 2000). integral à população.
No Brasil, algumas experiências de Com o movimento sanitário, as
APS foram instituídas de forma concepções da APS foram incorpo-

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radas ao ideário reformista, compre- um conjunto de ações de saúde no


endendo a necessidade de reorientação âmbito individual e coletivo que
abrangem a promoção e proteção
do modelo assistencial, rompendo com da saúde, prevenção de agravos,
o modelo médico-privatista vigente até diagnóstico, tratamento, reabilitação
o início dos anos 80. Nesse período, e manutenção da saúde. É desen-
durante a crise do modelo médico- volvida através do exercício de prá-
ticas gerenciais e sanitárias demo-
previdenciário representado pela cráticas e participativas, sob forma
centralidade do Instituto Nacional de de trabalho em equipe, dirigidas a
Assistência Médica da Previdência populações de territórios bem deli-
Social (Inamps), surgiram as Ações mitados, pelas quais assume a
responsabilidade sanitária, conside-
Integradas de Saúde (AIS), que visavam
rando a dinamicidade existente no
ao fortalecimento de um sistema unifi- território em que vivem essas
cado e descentralizado de saúde volta- populações. Utiliza tecnologias de
do para as ações integrais. Nesse senti- elevada complexidade e baixa den-
sidade, que devem resolver os
do, as AIS surgiram de convênios entre
problemas de saúde de maior fre-
estados e municípios, custeadas por re- qüência e relevância em seu territó-
cursos transferidos diretamente da pre- rio. É o contato preferencial dos
vidência social, visando à atenção inte- usuários com os sistemas de saúde.
Orienta-se pelos princípios da uni-
gral e universal dos cidadãos.
versalidade, acessibilidade e coorde-
Essas experiências somadas à nação do cuidado, vínculo e conti-
constituição do SUS (Brasil, 1988) e nuidade, integralidade, responsabi-
sua regulamentação (Brasil, 1990) pos- lização, humanização, equidade, e
participação social. (Brasil, 2006)
sibilitaram a construção de uma polí-
tica de ABS que visasse à reorientação Atualmente, a principal estratégia
do modelo assistencial, tornando-se o de configuração da ABS no Brasil é a
contato prioritário da população com saúde da família que tem recebido
o sistema de saúde. Assim, a concep- importantes incentivos financeiros vi-
ção da ABS desenvolveu-se a partir sando à ampliação da cobertura
dos princípios do SUS, principalmen- populacional e à reorganização da aten-
te a universalidade, a descentralização, ção. A saúde da família aprofunda os
a integralidade e a participação popu- processos de territorialização e respon-
lar, como pode ser visto na portaria sabilidade sanitária das equipes de saú-
que institui a Política Nacional de Aten- de, compostas basicamente por mé-
ção Básica, definindo a ABS como: dico generalista, enfermeiro, auxiliares

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de enfermagem e agentes comunitári- ListaPublicacoes.action?id=134238>


Acesso em: 29 nov. 2005.
os de saúde, cujo trabalho é referência
de cuidados para a população adscrita, BRASIL. Portaria n. 648, de 28 de março
de 2006. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
com um número definido de domicí- Disponível em: <http//
lios e famílias assistidos por equipe. dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/
Entretanto, os desafios persistem e Port2006/GM/GM-648.htm> Acesso em:
4 set. 2006.
indicam a necessidade de articulação de
estratégias de acesso aos demais níveis FAUSTO, M. C. R. Dos Programas de Medicina
Comunitária ao Sistema Único de Saúde: uma
de atenção à saúde (ver verbete Atenção análise histórica da atenção primária na política
à Saúde), de forma a garantir o princí- de saúde brasileira, 2005. Tese de Doutorado,
pio da integralidade, assim como a ne- Rio de Janeiro: IMS/Uerj.
cessidade permanente de ajuste das ações MATTA, G. C. A organização mundial de
e serviços locais de saúde, visando à saúde: do controle de epidemias à luta pela
hegemonia. Trabalho Educação e Saúde, 3(2):
apreensão ampliada das necessidades de 371-396, 2005.
saúde da população e à superação das
MATTOS, R. A. Desenvolvendo e Ofertando
iniqüidades entre as regiões do país. Idéias: um estudo sobre a elaboração de propostas
Ressalta-se também na ABS a im- de políticas de saúde no âmbito de Banco Mundial,
portante participação de profissionais 2000. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro:
IMS/Uerj.
de nível básico e médio em saúde, como
os agentes comunitários de saúde, os MENDES, E. V. Atenção Primária à Saúde
no SUS. Fortaleza: Escola de Saúde Pública
auxiliares e técnicos de enfermagem, do Ceará, 2002.
entre outros responsáveis por ações de
MINISTRY OF HEALTH. Interim report
educação e vigilância em saúde. on the future provision of medical and
allied services. London, 1920. Disponível
em: <http://www.sochealth.co.uk/
history/Dawson.htm> Acesso em: 25 set.
Para saber mais: 2006.
OPAS/OMS. Declaração de Alma-Ata.
BRASIL. Constituição da República. Conferência Internacional sobre Cuidados
Artigos 194, 196. Brasília: Senado Federal, Primários em Saúde. 1978. Disponível em:
1988. Disponível em: < http:// <http://www.opas.org.br> Acesso em: 12
www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/ nov. 2004.
> Acesso em: 29 nov. 2005.
STARFIELD, B. Atenção Primária: equilíbrio
BRASIL. Lei 8.080, de 19 de setembro de entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia.
1990. Disponível em: <http:// Brasília: Unesco Brasil/Ministério da Saúde,
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