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Nº 500 | Ano XVII | 13/3/2017

Biomas brasileiros
e a teia da vida
Entrevistados
Alexandre Costa
Cláudio Ângelo
Mário Mantovani
Pierre Girard
Rodrigo Castro
Haroldo Schistek
Altair Barbosa
Flávio Zanette
Marcelo Dutra da Silva
Mozar Dietrich
Demétrio Xavier

Leia também
■ Paulo Ribeiro
■ Reportagem Aldeia Mbya
Guarani
■ Agenda de eventos IHU
EDITORIAL

Os biomas brasileiros e a teia da vida

J
á em 1991 a multinacional petrolífera anglo-holan- na cultura gaúcha e latino-americana.
desa Shell alertou para os perigos da mudança cli-
Na Caatinga, toda essa interferência em busca de mais
mática, conforme fica explícito no vídeo Climate of
produtividade tem se revertido em aquecimento e, segundo
Concern realizado pela empresa e recentemente publicado.
Rodrigo Castro, doutorando em Ecologia e Recursos Na-
Por sua vez, Stephen Hawking, astrofísico inglês, na sema-
turais pela Universidade Federal do Ceará, ações públicas
na passada, voltou a alertar: “Desapareceremos e será por
não têm se mostrado eficientes para frear essa degradação.
nossa culpa”.
Degradação que, na perspectiva de Haroldo Schistek,
Conscientes do colapso civilizacional com que nos defron- agrônomo e teólogo, se instala pela inabilidade humana de
tamos como espécie humana e inspirados pela Campanha conhecer e se adaptar ao Semiárido.
da Fraternidade deste ano, cujo tema é Fraternidade:
Ainda contribuem para o debate Altair Sales Barbosa,
Biomas Brasileiros e Defesa da Vida e que tem como lema
antropólogo e coordenador do projeto Enciclopédia Virtu-
Cultivar e Guardar a Criação (Gn 2,15), a edição de núme-
al do Cerrado, que analisa como a destruição desse bioma
ro 500 da revista IHU On-Line debate o tema que tam-
tem levado o ser humano a um fenômeno nomeado por ele
bém é assunto central do ciclo de conferências promovido
como desterritorialização, e Flávio Zanette, professor da
pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU a partir do
Universidade Federal do Paraná, que se dedica a projetos
dia 15 de março até o final do mês de junho deste ano.
de preservação da Mata de Araucária.
Alexandre Araújo Costa, professor da Universidade
2 A presente edição também celebra a memória da vida
Estadual do Ceará, relaciona o modo de vida da humanida-
e obra de Darcy Ribeiro, por ocasião dos 20 anos do seu
de de hoje às mudanças climáticas. Tais mudanças impac-
falecimento, entrevistando Paulo Ribeiro, sociólogo que
tam nos biomas tanto quanto os usos que se faz da terra.
dirige a fundação que leva o nome do grande e importante
Nessa perspectiva, o advogado Mozar Dietrich observa
pensador brasileiro.
como a venda de terras brasileiras a estrangeiros pode se
converter em ameaça. Para ele, elas seguem sendo objeto A reportagem sobre a aldeia Tekoá Pindo Mirim, localizada
de desejo internacional para fins exploratórios. Essa dispu- na cidade de Viamão, Rio Grande do Sul, e um comentário
ta, além de levar à destruição dos biomas, gera desigualda- sobre os filmes Nostalgia da Luz (2010) e Botão de pérola
des e mortes. São as vertentes dos conflitos ambientais do (2015), de Patricio Guzmán, completam a edição.
Brasil de hoje, analisados pelo jornalista e ativista ambien-
Para celebrar as 500 edições da IHU On-Line disponi-
tal Cláudio Ângelo.
bilizamos o novo sítio da revista e um projeto gráfico to-
A Mata Atlântica é a floresta mais próxima das grandes talmente repaginado. A aposta é que o acesso, a leitura e a
cidades, 60% dos brasileiros vivem na sua área. Segundo consulta sejam mais fáceis, ágeis e agradáveis.
Mário Mantovani, da Fundação SOS Mata Atlântica, é
A todas e a todos, uma boa leitura e uma excelente se-
aqui que reside um paradoxo: a principal ameaça ao bioma
mana!
é a expansão urbana, ao mesmo tempo em que a metrópole
quer preservar a sua “vista para o mato”.

No Pantanal, a principal característica do bioma, o ciclo


de inundações, dita o ritmo de vida das pessoas. Entretan-
to, apesar de uma boa relação entre ser humano e ambien-
te, há riscos e ameaças ao bioma. É o que revela Pierre
Girard, professor do Instituto de Biociências da Universi-
dade Federal de Mato Grosso – UFMT.

Já no Pampa, a agricultura provoca o desequilíbrio en-


tre ser humano e ambiente. Para produzir cada vez mais,
as lavouras de soja avançam sobre as planícies pampianas,
segundo analisa Marcelo Dutra da Silva, da Universida-
de Federal do Rio Grande - FURG. Por sua vez, o músico
Foto: Escola da Mata Atlântica/
Demétrio Xavier descreve a influência do bioma Pampa Flickr Creative Commons

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em Destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Reportagem | No choque dos mundos, a construção de um saber comum
12 ■ Paulo Ribeiro | A semente viva da utopia de Darcy Ribeiro
18 ■ Revista IHU On-Line de cara nova
20 ■ Tema de Capa | Biomas brasileiros e a teia da vida
24 ■ Tema de Capa | Alexandre Costa: A fábrica de ilusões que leva ao colapso civilizacional
31 ■ Tema de Capa | Cláudio Ângelo: O Brasil que desmata, mata e é incapaz de gerar riqueza
34 ■ Tema de Capa | Mário Mantovani: Preservar a Mata Atlântica é melhorar a qualidade
de vida da população
39 ■ Tema de Capa | Pierre Girard: A vida no Pantanal é ritmada pela inundação
42 ■ Tema de Capa | Rodrigo Castro: Ineficiência de políticas públicas em uma Caatinga cada
vez mais árida
46 ■ Tema de Capa | Haroldo Schiestek: O desconhecimento da Caatinga e o mito da seca
52 ■ Tema de Capa | Altair Barbosa: Cerrado é laboratório antropológico ameaçado pela
desterritorialização
56 ■ Tema de Capa | Flávio Zanette: A floresta disseminada pelos índios e que hoje vive
ameaçada
58 ■ Tema de Capa | Marcelo Dutra da Silva: Cultivo de soja é a maior ameaça ao Pampa
62 ■ Tema de Capa | Mozar Dietrich: A histórica e eterna entrega da terra brasilis ao estrangeiro 3
70 ■ Tema de Capa | Demétrio Xavier: O canto que corre solto no pampa do sul da terra
72 ■ Crítica Internacional | Bruno Lima Rocha: A projeção ideológica da Operação Lava Jato
na América Latina
74 ■ Cinema | Ricardo Machado: No espaço do tempo infinito, a obsessão pela memória
76 ■ Publicações | A Liberdade Vigiada: sobre Privacidade, Anonimato e Vigilantismo com a
internet
77 ■ Publicações | Laudo Si’ e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: uma
convergência?
79 ■ Retrovisor

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
(inacio@unisinos.br) Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,
Luísa Boéssio e William Gonçalves.
Coordenador de Comunicação - IHU
Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Jornalistas
João Flores da Cunha - MTB 18.241/RS
(joaoflores@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
ISSN 1981-8793 (on-line) (joaovs@unisinos.br)
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(prfachin@unisinos.br)
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Vitor Necchi - MTB 7.466/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- (vnecchi@unisinos.br)
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
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Projeto Gráfico
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ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

EDIÇÃO 500
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

A combinação explosiva do judiciário e a mídia, a


energia da sociedade e o déficit de pensamento
É preciso sair do plano geral para o plano da política, para o plano da razão,
para o plano da análise, porque a presidente Dilma caiu sem que isso signifi-
casse um levante da população em defesa dela. Ela caiu por fraqueza, por vul-
nerabilidades, por erros, por equívocos. Quais foram esses erros e equívocos?
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio.

Em um ano, 5% da população sofreu


mobilidade descendente
O que vimos na década de 1990? Aumento da miséria, mais marginalida-
de, criminalidade, pois o desemprego desestrutura as famílias. Então, pode
haver um aumento da miséria e da pobreza, porque as pessoas não têm pers-
pectiva, porque não têm como se virar. O que vai acontecer? Ninguém sabe.
Waldir José de Quadros é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp.

4
“Nenhum suicídio mais” quer dizer “não nos
processem mais”
Embora hoje tenha se adotado o nome de Comando Barneix, trata-se dos
mesmos militares que se reúnem num grupo chamado Tenientes de Ar-
tigas Eles foram responsáveis pelo golpe (...) e agora fazem parte desse
grupo que reage às condenações e processos.
Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai.

As prefeituras precisam oferecer condições


para os catadores trabalharem nas cooperativas
Nossa sugestão era de que a lei definisse que os carrinhos fossem substi-
tuídos por outro tipo de tecnologia para que os catadores pudessem conti-
nuar o seu trabalho e inclusive pudessem ser contratados pelas prefeituras
para realizarem esse serviço.
Alex Cardoso é membro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR.

Saneamento precisa ser inserido na agenda


política do país
A Organização Mundial da Saúde preconiza em estudos recentes que
cada real investido em saneamento reduz quatro reais em despesas na
saúde. (...) Nas cidades onde há saneamento mais avançado, ocorrem mui-
to menos faltas ao trabalho decorrentes de doenças.
Evilásio Salvador professor na Universidade de Brasília – UnB

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Textos na íntegra em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

A neolatifundização da “Viemos do silêncio. Por que as mulheres da


Amazônia A ele retornaremos”. América Latina param?
Entrevista com Martin
Scorsese

Dos 112 Decretos Legisla- “Viemos do silêncio, a ele Líderes feministas do Pa-
tivos promulgados recente- retornaremos, até nos acos- raguai, Colômbia e Brasil
mente pelo governo do pre- tumarmos com ele”, diz Scor- expressaram os motivos pe-
sidente peruano Pedro Pablo sese sorridente, quando evoca los quais incentivam a pa-
Kuczynski (PPK) com o objeti- a sua adaptação do romance ralisação em seus países. A
vo de reativar a economia do de Shûsaku Endô. Entretanto violência machista em seu
país, dois em especial foram o cineasta continua a colocar extremo, os femicídios e a
unânime e energicamente re- a espiritualidade no âmago desigualdade são os eixos de
chaçados por organizações do seu cinema, de se pergun- suas reivindicações. “Esta
indígenas andino-amazôni- tar sobre a natureza humana, paralisação é contra o pa-
cas e instituições ambienta- palco do confronto entre o triarcado e o capitalismo
listas e de direitos humanos, bem e o mal, com a esperança que nos explora. A força e a
por representarem uma das de que o homem, com a força resistência das mulheres se
maiores ameaças aos direitos do aprendizado, supere sua veem e estão em marcha”,
fundamentais dos povos indí- inclinação para a violência disse Amarilla Leiva.
genas e originários do Peru. A entrevista foi publicada por La Vie, Reportagem é de Mariana Carbajal,
O artigo é de Róger Rumrill publicado 02-02-2017, reproduzida no sítio do publicada por Página/12 e reproduzi- 5
por De Olho nos Ruralistas IHU. da no sítio do IHU.

“Há motivos gravíssimos Os dois corpos do A guinada conservadora


por trás da renúncia povo. Artigo de Roberto ameaça os pobres,
de Bento XVI”, afirma Esposito afirma reitor da PUC
arcebispo italiano Minas

É a primeira vez que um Pode-se dizer que o povo Se a economia é que, em ge-
bispo credencia a ideia de um também tem dois corpos dife- ral, mais impacta as pessoas,
complô, de pressões e de uma rentes e às vezes opostos. Um não devemos nos distrair em
chantagem por trás da renún- corpo político, sujeito da sobe- relação aos outros setores da
cia de Bento XVI, dando a en- rania, e um corpo social que a vida social. Um fenômeno que
tender, sem meias palavras, sofre”, escreve Roberto Espo- parece, ao mesmo tempo, se
que o Papa Ratzinger não foi sito, filósofo italiano, profes- dar também em vários países
embora por sua própria von- sor da Escola Normal Supe- do mundo, o Brasil testemunha
tade. Uma tese que até agora rior de Pisa e ex-vice-diretor neste momento uma triste de-
tinha circulado em certas re- do Instituto Italiano de Ciên- saceleração e recuo em inicia-
construções midiáticas, corro- cias Humanas. Segundo ele, tivas de resgate da dignidade
borada e apoiada por aqueles “a democracia representativa popular. Somada à crise econô-
que não se resignam ao fato traz como consequência inevi- mica que, como sempre, atinge
de o ex-pontífice alemão não tável uma distinção entre go- de modo mais draconiano e co-
estar mais no trono. vernantes e governados”. varde os empobrecidos.
A reportagem é de Andrea Tornielli, O artigo de Roberto Esposito foi Artigo de professor Dom Joaquim
publicada no sítio Vatican Insider e publicado no jornal La Repubblica e Giovani Mol Guimarães, Reitor da PUC
reproduzida no sítio do IHU. reproduzido no sítio do IHU. Minas e Bispo Auxiliar da Arquidiocese
de Belo Horizonte.

EDIÇÃO 500
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Bioma pampa: gestão IHU ideias: Audição Ciclo de Estudos do


de recursos hídricos comentada de músicas Livro “O Capital no
e conservação das relacionadas ao Bioma Século XXI” - A Estrutura
águas. Desafios e Pampa/Campos do Sul da Desigualdade
possibilidades

15/Mar 16/Mar 20/Mar a 24/Mar


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 17h30min às 19h 19h30min às 22h
Conferencista Conferencista Semana 1 de 6
Prof. Dr. Rafael Cabral Cruz Demétrio de Freitas Xavier Renda, capital, produção
– Universidade Federal do – Locutor da FM Cultura, e crescimento econômico
Pampa – Unipampa Porto Alegre/RS mundial desde o século
XVIII
Local Local
Sala Ignacio Ellacuría Sala Ignacio Ellacuría Leitura
e Companheiros – IHU e Companheiros – IHU “Primeira Parte: renda e
Campus Unisinos São Campus Unisinos São capital”, do livro O capital
Leopoldo Leopoldo no Século XXI, de Thomas
Piketty

6
Pantanal brasileiro: Pampa: um bioma em Dinâmicas das
características, transformação periferias e a (re)
biodiversidade e produção da(s)
delimitações para a metrópole(s). Um olhar
sua proteção a partir de São Paulo

20/Mar 21/Mar 22/Mar


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 19h30min às 22h
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Pierre Girard – Prof. Dr. Marcelo Dutra da Prof. Dr. Daniel Hirata –
Universidade Federal do Silva – Universidade Fede- UFF
Mato Grosso – UFMT ral do Rio Grande – FURG
Local
Local Local Sala Ignacio Ellacuría e
Sala Ignacio Ellacuría Sala Ignacio Ellacuría Companheiros – IHU
e Companheiros – IHU e Companheiros – IHU
Campus Unisinos São Campus Unisinos São
Leopoldo Leopoldo

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A reinvenção da Oficina - Base de Audição comentada:


esquerda brasileira dados do IBGE/SIDRA Cantata BWV 80, Ein
no pós-lulismo. feste Burg ist unser Gott
Continuidades e
rupturas

23/Mar 28/Mar 30/Mar


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 14h às 17h 19h30min
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Pablo Ortellado – Prof. MS. Ademir Barbosa Profa. Dra. Yara Borges
USP Koucher - Instituto Brasilei- Caznok – UNESP–SP
ro de Geografia e Estatísti-
Local ca - IBGE Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Local Companheiros – IHU
Prédio B09 - Sala de Infor-
mática B009

EDIÇÃO 500
REPORTAGEM

Na aldeia, há um espaço para celebrações, eventos e exposições quando os indígenas recebem visitas de escolas da região | Foto: Ricardo Machado/IHU

8 No choque dos mundos, a construção


de um saber comum
Aldeia indígena em Viamão, no RS, e estudantes de engenharia civil trocam
experiências e criam edificação com elementos tecnológicos e da natureza
Ricardo Machado

Q
uando um grupo de aproxima- Arnildo não estava desinteressado pelo
damente 20 estudantes de en- tema, ao contrário, era ele quem mais queria
genharia civil, mais a professora que a biblioteca fosse construída e com ela a
da escola que fica dentro da Aldeia Tekoá possibilidade de erguer casas para as famílias
Pindo Mirim, na cidade de Viamão, no da aldeia de 85 habitantes. Ele queria saber,
RS, discutiam fervorosamente sobre os na prática, como o projeto sairia do papel,
novos passos para a construção do centro quanto iria custar e de onde viria o dinheiro,
cultural e biblioteca na comunidade in- afinal, a metafísica financeira dos brancos
dígena, o jovem cacique Arnildo Verá, de não é matéria que todo mundo alcança. O
33 anos, aproximou-se e sentou junto ao debate entre a professora e os alunos que
grupo. Calado, ouviu atentamente o deba- integram o grupo do Engenheiros sem
te dos brancos, enquanto eles remexiam Fronteiras no RS voltou e de novo Arnildo
suas folhas e revisavam e-mails em seus calou-se. A discussão era em torno de uma
celulares sobre as combinações anteriores. ecoconstrução, que usa um composto de
Era muito papel, muita fala, muito projeto. cimento, água e areia do próprio solo da
Quando a professora Alessandra Santos, aldeia, que depois de misturado vai para
responsável pela escola local, perguntou uma forma feita de madeira e é encaixado
ao cacique Arnildo o que ele achava daqui- entre os moirões para formar as paredes.
lo tudo, ele apenas respondeu: “Essa fala Depois de seco, surge uma parede rígida e
nem entra na minha cabeça”. consistente como concreto.

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“A construção do centro cultu-


ral e biblioteca pode ser o pon-
tapé inicial para uma melho-
ria de vida significativa das 85
pessoas que vivem na aldeia”

O tédio do cacique, no meio de toda separada. Segundo explica o professor de


aquela falação, em uma manhã quente engenharia da Unisinos Maurício Mancio,
de fevereiro, encontrava no outro lado o o centro cultural será uma edificação de
olhar entusiasmado de Alessandra e dos 115 metros quadrados, com 12 paredes, 9
demais alunos que estavam visitando a formando um dodecágono, com telhado
aldeia, muitos deles pela primeira vez. de capim santa-fé. O projeto arquitetônico
Para os brancos o mundo da burocracia é levou em conta a sabedoria indígena,
razoável, e por isso acertavam os detalhes cabendo aos engenheiros a parte estrutural.
dos próximos passos a serem seguidos, “Isso tudo será feito com a comunidade,
enquanto as crianças da comunidade com transferência de tecnologia. O grande
vinham chegando, todas elas saudosas de objetivo é, futuramente, usar as mesmas
Alessandra, que as recebia com um beijo técnicas nas habitações das famílias”,
no rosto e uma expressão em guarani de explica o professor. A sabedoria tradicional
boas-vindas. Arnildo só mudou o rosto guarani ensina a construir casas com
entediado quando todos se levantaram argilas e taquaras, mas o solo do local
para conhecer a aldeia. O cacique sorriu e onde a tribo foi assentada é arenoso, o que
animado passou a apresentar os diferentes impede esse tipo de construção. “A ideia
pontos da área de 25 hectares destinada é sempre fazer uma relação colaborativa
aos integrantes da etnia Mbya-Guarani. O para que a comunidade possa utilizar as
mundo do pé na terra, do ouvido no chão técnicas conforme o próprio interesse”,
para ouvir a semente germinar, como um complementa.
dia falou Marx (quem diria, não?), é o
Apesar do trabalho do grupo de
mundo dos índios. Isso é o que entusiasma
estudantes da Unisinos ser gratuito e de
os anfitriões.
parte dos materiais para a obra estarem
disponíveis na região da aldeia, há
Centro cultural
custos para o projeto, o que preocupava,
Quando saíram da frente da escola, onde por razões diferentes, Alessandra e
ocorreu a reunião, Arnildo foi direto para Arnildo. A professora, que já havia
onde será construído o centro cultural conseguido recursos para a publicação
e biblioteca. O local para a construção já do livro Curumim contou... kyringue
havia sido preparado pelos indígenas, mas Omombe’u, em 2016, novamente foi
o tempo dos brancos é diferente do tempo atrás da empresa patrocinadora. Orçado
dos índios. O que havia sido “limpo”, em aproximadamente R$ 15 mil, para
foi tomado de assalto pela natureza e o a compra do capim santa-fé, moirões e
mato voltou a crescer, mas a área estava cimento, entre outros materiais, o projeto

EDIÇÃO 500
REPORTAGEM

finalmente conseguiu um apoiador, a indígenas. Os Mbya Guarani que vivem


empresa Dufrio, para financiar a obra na aldeia Tekoá Pindo Mirim, juntamente
e torná-la real. “Unir uma necessidade com outros grupos geograficamente
da escola em ter um espaço amplo e próximos, esperam pela demarcação das
cultural com conceitos tradicionais do terras indígenas na região, cujo território
povo Guarani, é proporcionar um espaço passará de 25 para 893 hectares. “Com
de convivência e de muito aprendizado essa área nosso modo de vida melhora
natural e significativo”, anima-se muito, porque aí poderemos plantar
Alessandra. “É a busca da sustentabilidade, diferentes coisas em diferentes épocas
através dos conceitos da permacultura, e poderemos mudar de uma região para
possibilitando a construção das casas com outra”, projeta Arnildo. Não obstante
a areia compactada, trazendo moradias todos os problemas já enfrentados
mais resistentes ao clima da região sem pelos indígenas, a região, na década de
a utilização de plantas nativas que são 1970, teve a mata nativa retirada para a
escassas na área, devido à monocultura do plantação de eucalipto que abastecia as
eucalipto”, ressalta a professora. caldeiras de um leprosário localizado não
muito distante da comunidade.
Questões indígenas
Ao fim da visita Arnildo está mais
A construção do centro cultural e animado, nota-se em suas expressões
biblioteca pode ser o pontapé inicial para ao mostrar a aldeia. Os brancos falam
uma melhoria de vida significativa das 85 menos, ouvem mais. Observam a
pessoas que vivem na aldeia. A tribo foi comunidade, os trabalhos artesanais dos
para a região de Itapuã em 2000, depois indígenas, conhecem as diferentes hortas
de ser removida de uma área às margens e vão até um local de onde se pode ver a
da rodovia ERS-040, em Viamão, no Lagoa dos Patos e a Lagoa Negra, que foi
RS. Dentre os inúmeros desafios, eles
10 tiveram que reflorestar
totalmente a área, que
só tinha eucaliptos.
Quem conta é Arnildo
Verá, o cacique e neto
de Toribio Gomes, de
98 anos, que muitas
décadas atrás vivia
com sua tribo onde
atualmente fica o
Parque Estadual de
Itapuã. “Quando
construíram o Parque,
expulsaram meu avô e
minha avó e todos os
indígenas que viviam
na região”, relata o
cacique. Artesanatos vendidos durante os eventos realizados na aldeia Mbya Guarani | Foto: Ricardo Machado/IHU

A questão indígena
em todo o país é
delicadíssima, desde o o imbróglio declarada área de preservação ambiental
jurídico da Raposa Serra do Sol, em que e somente indígenas podem se banhar
seis arrozeiros pretendem desmanchar nela. As crianças da aldeia brincam para
a demarcação das terras, aos povos do lá e para cá, entram e saem da escola
Xingu, com Belo Monte e as investidas várias vezes. Ainda não é período de aula,
da Belo Sun para se instalar no local, mas sentem-se em casa. Um pequenino
passando por todo o drama dos povos macaco, que foi encontrado pelas
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul crianças da comunidade abandonado e
com o genocídio dos Guarani Kaiowá, ainda filhote, vem para perto de todos
até chegar ao extremo sul do Brasil nos braços de um dos meninos. O sol no
e à marginalização das comunidades topo do céu avisa que já é meio dia. Os

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alunos e integrantes do Engenheiros sem frutos e que a comunidade possa, com


Fronteiras se preparam para retornar as próprias mãos, como sempre fizeram
à civilização urbana. Nos despedimos os indígenas, construir uma vivência
todos com apertos de mãos e acenos. melhor e com a alegria digna de quem
Arnildo Verá, em silêncio e com o olhar ergueu a sua moradia com a terra da
esperançoso, torce para que o projeto dê própria terra. ■

11

EDIÇÃO 500
ENTREVISTA

A semente viva da utopia


de Darcy Ribeiro
Paulo Ribeiro, sociólogo e sobrinho de um dos teóricos
e políticos mais influentes do Brasil, retoma a vida
e o pensamento do autor de O povo brasileiro
Ricardo Machado

C
onsiderado um dos teóricos universidade deveria, internamente,
que pensaram o Brasil a partir apresentar soluções para o desenvolvi-
de suas próprias potencialida- mento autônomo e soberano do país”,
des e contradições, Darcy Ribeiro faz ressalta Paulo. “A fé de Darcy no povo
parte do grupo dos intérpretes de nos- brasileiro, de que nossa mestiçagem só
so país. Darcy era um utópico, mas deu trouxe ganhos, e no desenvolvimento
passos concretos importantes em dire- da educação, poderá germinar aqui a
ção a garantias básicas, como a cons- mais bela província da terra, pautada
trução de escolas no Rio de Janeiro e a pela generosidade, felicidade e justiça
defesa política e acadêmica aos povos social”, pontua.
indígenas e à população negra. “Ele viu
que éramos um país que marginalizava Paulo Ribeiro é sociólogo formado
seu povo, que é o maior patrimônio que pela Universidade Federal Fluminen-
12 se – UFF. Há dez anos é presidente da
um país pode ter, e que não investia
para que se desenvolvesse autonoma- Fundação Darcy Ribeiro, tendo sido
mente”, relata Paulo Ribeiro, sobrinho assessor de Darcy durante seus últimos
e parceiro intelectual de Darcy, em en- 17 anos de vida, tendo-o acompanhado
trevista por telefone à IHU On-Line. no governo do Rio de Janeiro e Sena-
do Federal. Foi um dos idealizadores
Fundador da Universidade de Brasí- e fundadores da TV Escola e da Rede
lia – UnB, Darcy acreditava que o nervo Minas de Televisão e foi secretário de
ético da sociedade estava na univer- Meio Ambiente de Montes Claros-MG.
sidade. “Havia uma responsabilidade
política e não meramente científica. A Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como era a foram morar com os avós maternos família Ribeiro. Darcy começa a ler
família em que nasceu Darcy de Darcy, pois perderam, inclusive, aquela biblioteca toda e já com 17
Ribeiro? Como foi sua infância a casa onde moravam, passando anos se muda para Belo Horizonte
e seus anos de juventude? a ter uma vida muito simples. Na para estudar medicina.
época, sua mãe, conhecida como
Paulo Ribeiro – Por parte IHU On-Line – Ele foi para
Dona Fininha, aos 26 anos, passou
materna, a família de Darcy era Belo Horizonte estudar
a fazer biscoitos para vender e
muito simples, a família Silveira, medicina, mas acabou se
manter a família e ainda sustentar
originária de Mato Verde, próximo interessando pelas ciências
seus dois irmãos mais jovens.
a Montes Claros, MG. Do lado sociais. Ele comentava sobre
Darcy cresceu em uma cidade de 20
paterno, tratava-se da família o porquê de ter dado essa
mil habitantes, brincando com os
tradicional da cidade, industriais guinada na própria carreira
moleques e passou a infância entre
e políticos economicamente muito ainda na juventude?
córregos e a poeira da rua. Ele só
importantes à época. A questão
despertou para o lado intelectual Paulo Ribeiro – Na verdade
fundamental é que quando o pai de
a partir dos 12 anos, quando Darcy se apaixonou pelos gregos,
Darcy morreu, em 1927, ele tinha
descobre a biblioteca de seu tio afinal ele nunca tinha ouvido
três anos de idade. Sua mãe e o
Plínio, que era deputado federal da falar sobre isso em sua cidade, e
irmão não herdaram nada do pai e

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Implantar uma escola de tem-


po integral capaz de gerar opor-
tunidades iguais para toda a
população, continua sendo
necessário acreditar nisso”

lia compulsivamente. Seu professor a carreira pública de Darcy Niemeyer5 e Lucio Costa6, o pessoal
Amílcar1, que era um militante do Ribeiro? do direito, dos tribunais superiores
Partido Comunista, faz sua cabeça responsáveis pela construção da
Paulo Ribeiro – Darcy era membro
e ele desperta para as humanidades UnB, todos coordenados por Darcy.
atuante do partido comunista, e no
e as questões sociais. Isso acaba o Desse relacionamento vem o convite
dia do suicídio de Vargas3 ele rompe
empurrando para outros interesses, com os comunistas e se aproxima de Hermes Lima7, na época primeiro
o que o levou a ser reprovado durante dos trabalhistas, porque ele está no ministro, para Darcy assumir a
dois anos na faculdade de medicina Rio de Janeiro e, quando vê milhões pasta da Educação, sendo mais
porque não se dedicou às matérias tarde convidado por Jango8 para
de pessoas na rua, se questiona se 13
específicas. É nesse período que o está certo em suas convicções. É a
professor sugere que ele vá para partir disso que ele entra de cabeça 5 Oscar Niemeyer (1907-2012): arquiteto brasileiro. É
São Paulo, porque tinha um contato no trabalhismo. Essa articulação de considerado um dos nomes mais influentes na arqui-
tetura moderna internacional. Foi pioneiro na explo-
com professores da Universidade Darcy é percebida por Jango quando ração das possibilidades construtivas e plásticas do
de São Paulo – USP, na escola de ele vai para Brasília, juntamente com concreto armado. Em 1956, iniciou, a convite do pre-
sidente da República, JK, colaboração na construção
sociologia, quando ele opta pela Anísio Teixeira4, seu grande mestre, da nova capital, cujo plano urbanístico foi confiado
a Lucio Costa, arquiteto e urbanista. Em 1958, foi no-
área antropológica. O pessoal do para fundar a Universidade de meado arquiteto-chefe da nova capital e transferiu-se
pós-guerra, grandes intelectuais da Brasília - UnB. São 200 intelectuais para Brasília, onde permaneceu até 1960. Em 1972,
abriu um escritório em Paris. Realizou também grande
Europa e Estados Unidos, inclusive que vão para Brasília, dentre eles. número de projetos no exterior, como a sede do Parti-
do Comunista Francês, em Paris, 1967; a Universidade
Levi-Strauss2, vão para USP mais ou de Constantine, na Argélia, 1968; a sede da Editora
menos nesse mesmo período. Mondadori, em Milão, 1968. O site da Fundação Os-
car Niemeyer (www.niemeyer.org.br) apresenta suas
3 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (1882- ideias, obras em arquitetura, urbanismo, mobiliário,
IHU On-Line – Como se dá 1954): político gaúcho, nascido em São Borja. Foi esculturas, serigrafia, cenografia e sua bibliografia.
presidente da República nos seguintes períodos: 1930 (Nota da IHU On-Line)
a 1934 (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo 6 Lucio Costa [Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima
Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Exceção) e e Costa] (1902-1998): arquiteto brasileiro nascido em
1 Amílcar Viana Martins (1907-1990): foi um médico, de 1951 a 1954 (Governo eleito popularmente). Re- Toulon, França, é considerado líder e maior doutri-
pesquisador, cientista e professor universitário brasi- centemente a IHU On-Line publicou o Dossiê Vargas, nador do movimento de implantação da arquitetura
leiro. Formado pela Faculdade de Medicina da UFMG por ocasião dos 60 anos da morte do ex-presidente, moderna no Brasil, consagrado como o criador do
em 1929, foi nomeado médico pesquisador do Institu- disponível em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line plano-piloto de Brasília. Filho de brasileiros a serviço
to Ezequiel Dias. Livre-docente da cadeira de parasito- dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, de 16- no exterior, sendo seu pai o almirante e engenheiro
logia da UFMG. Catedrático de zoologia e parasitolo- 8-2004, intitulada A Era Vargas em Questão – 1954- naval Joaquim Ribeiro da Costa, estudou na Royal
gia da Faculdade Farmácia e Odontologia da UFMG. 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, e a 112, de Grammar School de Newcastle, Inglaterra, e no Collé-
(Nota da IHU On-Line) 23-8-2004, chamada Getúlio, disponível em http://bit. ge National, em Montreux, na Suíça. De volta ao Brasil,
2 Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropólogo belga ly/ihuon112. Na edição 114, de 6-9-2004, em http:// em 1917, estudou pintura e matriculou-se no curso de
que dedicou sua vida à elaboração de modelos ba- bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis Filho concedeu a arquitetura da Escola Nacional de Belas-Artes e diplo-
seados na linguística estrutural, na teoria da informa- entrevista O desafio da esquerda: articular os valores mou-se em 1925. (Nota da IHU On-Line)
ção e na cibernética para interpretar as culturas, que democráticos com a tradição estatista-desenvolvi- 7 Hermes Lima (1902-1978): político, jurista, jornalista,
considerava como sistemas de comunicação, dando mentista, que também abordou aspectos do político professor e ensaísta brasileiro. Foi presidente do Su-
contribuições fundamentais para a antropologia so- gaúcho. Em 26-8-2004, Juremir Machado da Silva, da premo Tribunal Federal (STF) e membro da Academia
cial. Sua obra teve grande repercussão e transformou, PUC-RS, apresentou o IHU ideias Getúlio, 50 anos de- Brasileira de Letras. (Nota da IHU On-Line)
de maneira radical, o estudo das ciências sociais, pois. O evento gerou a publicação do número 30 dos 8 João Belchior Marques Goulart, ou Jango (1919-
mesmo provocando reações exacerbadas nos seto- Cadernos IHU ideias, chamado Getúlio, romance ou 1976): presidente do Brasil de 1961 a 1964, tendo sido
res ligados principalmente às tradições humanista, biografia?, disponível em http://bit.ly/ihuid30. Ainda a também vice-presidente, de 1956 a 1961 – em 1955,
evolucionista e marxista. Ganhou renome internacio- primeira edição dos Cadernos IHU em formação, pu- foi eleito com mais votos que o próprio presidente,
nal com o livro As estruturas elementares do paren- blicada pelo IHU em 2004, era dedicada ao tema, re- Juscelino Kubitschek. Seu governo é usualmente
tesco (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para cebendo o título Populismo e Trabalho. Getúlio Vargas dividido em duas fases: fase parlamentarista (da
lecionar Sociologia na USP. Interessado em etnologia, e Leonel Brizola, disponível em http://bit.ly/ihuem01. posse, em janeiro de 1961, a janeiro de 1963) e fase
realizou pesquisas em aldeias indígenas do Mato (Nota da IHU On-Line) presidencialista (de janeiro de 1963 ao golpe militar
Grosso. As experiências foram sistematizadas no livro 4 Anísio Spínola Teixeira (1900-1971): advogado, inte- de 1964). Jango foi ainda ministro do Trabalho entre
Tristes Trópicos (São Paulo: Companhia das Letras), lectual, educador e escritor brasileiro. De suas obras, 1953 e 1954, durante o governo de Getúlio Vargas. Foi
publicado originalmente em 1955 e considerado uma destacamos Educação para a democracia: introdu- deposto pelo golpe militar do dia 1º de abril de 1964
das mais importantes obras do século 20. (Nota da ção à administração educacional (2a. ed. Rio de Ja- e morreu no exílio. Confira a entrevista “Jango era um
IHU On-Line) neiro: Editora UFRJ, 1997). (Nota da IHU On-Line) conservador reformista”, com Flavio Tavares, de 19-

EDIÇÃO 500
ENTREVISTA

o Gabinete Civil. É a partir daí mundo contra o preconceito. Na negra, achava importante construir
que ele constrói sua relação com época, ele recebe um prêmio da esse monumento à cultura popular
Jango e Brizola9, entre 1962, ano da Unesco e é contratado para fazer brasileira.
inauguração da UnB, até o golpe de uma pesquisa a fim de investigar se o
Inspirações
1964. brasileiro percebia o índio de forma
diferente daquela como percebia Darcy teve três grandes figuras que
Uma coisa interessante, mas pouco
o negro, isto é, se havia racismo o inspiraram. O herói na concepção
conhecida, é que quando é dado o
somente contra o negro ou se de Darcy era Rondon11, com quem foi
golpe em 1º de abril de 1964, Darcy também contra o índio. O resultado trabalhar entre 1946 e 1954, o grande
fica até o dia 3 dentro do Palácio. final é que o mesmo racismo que humanista brasileiro, do mesmo
Mesmo o Jango tendo saído, Darcy existia contra o negro, existia contra quilate de Tiradentes12. Depois ele
tentou resistência ao golpe, até ser o indígena, o que causou grande encontra Anísio, seu professor,
retirado por Waldir Pires10 em um surpresa à Unesco. que o ensinou a fazer ciência sem
avião com destino ao Uruguai. Nesse
período, juntamente com Brizola eles
passam a arquitetar uma resistência,
“Ele viu que éra- paixão. Anísio falava “eu não tenho
compromisso com minhas ideias”, o
um contragolpe, a partir do exterior,
articulando um retorno. A relação
mos um país que deixava Darcy “p” da vida, “eu só
tenho compromisso com a verdade”.
com Brizola se dá mais no exílio que que marginali- Ele sustentava que um homem que
tem compromisso com suas ideias é
zava seu povo”
no governo. Houve um atrito muito
incapaz de enxergar a verdade plena,
grande entre Jango e Brizola, porque
o horizonte. Por fim tem Brizola,
Brizola queria que Jango resistisse e
seu grande parceiro e companheiro
ele não resistiu, mas Darcy, como
Articulação internacional de lutas políticas; ambos tentaram
era o segundo homem do governo,
passar o Brasil a limpo e priorizar
ministro do Gabinete Civil, ficou leal Essa sua articulação faz com que a educação, acreditando que só a
ao presidente da República. ele conviva com os europeus e com educação e o conhecimento do povo
Ele havia feito um trabalho para a social-democracia. É o próprio poderiam diminuir as desigualdades.
14 a Unesco, em 1953, quando criou o Darcy que, durante a primeira A grande questão do Brasil era
Museu do Índio, no Rio de Janeiro, reunião da Internacional Socialista, gerar oportunidades iguais a toda
considerado o primeiro museu do apresenta Brizola aos líderes sociais-
a população, acreditando que aqui
democratas, que fica surpreso, pois
floresceria a mais bela civilização do
não imaginava que Darcy tinha essa
12-2006, em http://bit.ly/ihu191206; João Goulart e um mundo.
projeto de nação interrompido, com Oswaldo Mun- articulação internacional. Depois
teal, de 27-8-2007, em http://bit.ly/ihu270807. Confira
também as entrevistas com Lucília de Almeida Neves Brizola convida Darcy para ser vice- IHU On-Line – Ele comentava
Delgado intitulada O Jango da memória e o Jango da
História, publicada na edição 371 da IHU On-Line, de
governador dele na eleição do Rio de seus anos no exílio? Que
29-8-2011, em http://bit.ly/ihuon371 e ‘’Dúvidas sobre de Janeiro de 1982. A simbiose é tão dificuldades enfrentou?
a morte de Jango só aumentam’’, de 5-8-2013, em
http://bit.ly/ihu050813. Veja ainda “João Goulart foi, grande que os projetos de Darcy só
antes de tudo, um herói”, com Juremir Machado, de Paulo Ribeiro – Ele falava que era
foram possíveis com o apoio integral
26-8-2013, em http://bit.ly/ihu260813 e Comício da “o desterro, mas comendo caviar”.
Central do Brasil: a proposta era modificar as estrutu- de Brizola. Eles deixaram um legado
ras sociais e econômicas do país, com João Vicente Como ele não tinha pai, nem filho
Goulart, de 13-3-2014, em http://bit.ly/ihu130314. (Nota impressionante, com 506 escolas de
da IHU On-Line) para sustentar, ele era responsável,
tempo integral no Estado do RJ, cuja
9 Leonel de Moura Brizola (1922-2004): político brasi- basicamente, por sua sobrevivência
leiro, nascido em Carazinho, no Rio Grande do Sul. Foi menor era de mais de 6 mil metros
prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do e de sua mulher à época. Foi uma
Sul, deputado federal pelo extinto estado da Guana- de área construída e a maior, de 24
experiência muito intensa de 12
bara e duas vezes governador do Rio de Janeiro. Sua mil metros. Para se ter dimensão
influência política no Brasil durou aproximadamente
do que isso significou, o volume em anos, quando ele conheceu toda a
50 anos, inclusive enquanto exilado pelo Golpe de
1964, contra o qual foi um dos líderes da resistência.
metros quadrados de área construída América Latina e pôde ter uma visão
Por várias vezes foi candidato a presidente do Brasil,
sem sucesso, e fundou um partido político, o PDT. era maior que Brasília quando
Sobre Brizola, confira a primeira edição dos Cadernos 11 Cândido Rondon (1865-1958): Cândido Mariano
IHU em formação intitulado Populismo e trabalho. foi inaugurada. Além disso, na da Silva Rondon, conhecido como Marechal Cândi-
Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível em http:// do Rondon, foi um militar brasileiro. Desbravador do
bit.ly/ihuem01. Leia também a IHU On-Line intitulada
construção do sambódromo foram interior do país, criou em 1910 o Serviço de Proteção
Leonel de Moura Brizola 1922-2004, disponível em feitas, embaixo das arquibancadas, ao Índio (SPI). Teve seu primeiro encontro com os ín-
http://bit.ly/ihuon107. (Nota da IHU On-Line) dios (alguns hostis, outros escravos de fazendeiros)
10 Waldir Pires [Francisco Waldir Pires de Souza] mais de 200 salas de aula, que hoje quando construía as linhas telegráficas que ligaram
(1926): é um político brasileiro, filiado ao Partido dos Goiás a Mato Grosso. Obteve a demarcação de terras
Trabalhadores (PT). Exercia o cargo de cargo de Con-
ficam vazias, utilizadas somente de vários povos, entre eles os Bororo, Terena e Ofayé.
sultor-Geral da República no governo Jango quando no carnaval. Eles pensaram o Em 1939 foi nomeado presidente do Conselho Na-
da eclosão do golpe militar em 31 de março de 1964 cional de Proteção ao Índio. Recebeu do Congresso
e foi, junto com Darcy Ribeiro, o último membro do sambódromo como um complexo Nacional, em 1955, através de lei especial, o posto de
Governo a sair do Palácio do Planalto, onde ficaram, cultural, educacional e desportivo. marechal do Exército. (Nota da IHU On-Line)
a pedido do presidente, para tentar garantir o respeito 12 Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes (1746-
à Constituição, segundo um documento enviado ao Ele havia criado o Museu do Índio, 1792): foi um dentista, tropeiro, minerador, comercian-
Congresso - mas desprezado pelas forças de apoio te, militar e ativista político carioca que atuou no Brasil
aos militares, que declararam vaga a presidência considerava o Paço Municipal uma colonial, mais especificamente nas capitanias de Mi-
quando o presidente encontrava-se ainda em ter-
ritório nacional, no Rio Grande do Sul. (Nota da IHU
homenagem aos portugueses e, para nas Gerais e Rio de Janeiro. No Brasil, é reconhecido
como mártir da Inconfidência Mineira, patrono cívico
On-Line) aumentar a autoestima da população e herói nacional. (Nota da IHU On-Line)

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

do Brasil desde fora, quando ele liberdade pretendido por Allende, de 1989 aproxima-se de Darcy e
constrói toda sua obra intelectual13. do qual passa a ser um parceiro o ajuda a escrever o programa do
Ele morou em seis países diferentes intelectual, escrevendo vários de seus partido, e Mangabeira Unger19 são os
– no Uruguai, no Chile, no Peru, na discursos, depois de ser procurado únicos que se aproximam dele para
Venezuela, no México e na Costa pelo ex-presidente chileno no construir um programa para Brizola,
Rica –, o que permitiu uma visão Uruguai. Che não perdoava Darcy que infelizmente perde para Collor20
macro do continente. Apesar de ser e era extremamente agressivo com e Lula21, que vão para o segundo
uma época de várias ditaduras e ele, chamando-o de incompetente, turno.
intervenção dos Estados Unidos, a porque havia conquistado o poder
esquerda se organiza e é quando ele e deixado a direita derrubar. Mas Darcy foi extremamente
conhece os intelectuais de esquerda Allende aponta outra alternativa, marginalizado pela academia
da América Latina. diferente do modelo cubano, que brasileira, porque quando ele cria
inicialmente inspirou Darcy, mas a UnB, em 1962, a USP se sente
Nesta época ele tem contato com que ao fim chegou à conclusão de ameaçada de perder o posto de
Gabriel García Márquez14, Che que nenhum país conseguiria repetir universidade mais importante do
Guevara15, Fidel Castro16, Salvador aquilo, que a experiência cubana Brasil, como me relatou certa vez
Allende17, com quem aprende que se tratava de algo muito particular Paul Singer22. Pela primeira vez,
há um outro socialismo possível, daquele povo.
sem a ditadura do proletariado. nico, economista, educador, professor universitário e
Ele acaba com a própria crença IHU On-Line – Após a político brasileiro filiado ao Partido Popular Socialista
- PPS. É o criador da Bolsa-Escola, que foi implantada
marxista baseada na ditadura e redemocratização ele foi pela primeira vez em seu governo no Distrito Federal.

“Havia uma
Foi reitor da Universidade de Brasília de 1985 a 1989.
passa a acreditar no socialismo com Foi governador do Distrito Federal de 1995 a 1998. Foi
eleito senador pelo Distrito Federal em 2002. Foi Minis-

responsabili-
tro da Educação entre 2003 e 2004, no primeiro man-
13 Darcy Ribeiro é autor de diversos livros, entre os dato de Lula. Foi reeleito nas eleições de 2010 para o
quais Culturas e línguas indígenas do Brasil - 1957; Senado pelo Distrito Federal, com mandato até 2018.

dade política e
Arte plumária dos índios Kaapo – 1957; A política in- É autor de diversos livros dos quais destacamos A Re-
digenista brasileira – 1962; Os índios e a civilização volução nas Prioridades - da modernidade-técnica à
– 1970; Uira sai, à procura de Deus – 1974; Configura- modernidade-ética ( Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993).
ções histórico-culturais dos povos americanos – 1975; (Nota da IHU On-Line)
Suma etnológica brasileira – 1986 (colaboração; três
volumes); O processo civilizatório – etapas da evolu-
ção sócio-cultural – 1968, As Amé¬ricas e a civilização
não meramen- 19 Mangabeira Unger [Roberto Mangabeira Unger]
(1947): é um filósofo e teórico social brasileiro. Por
duas vezes foi ministro-chefe da Secretaria de Assun-
15
– processo de formação e causas do desenvolvimen-
to cultural desigual dos povos americanos – 1970,
O dilema da América Latina – estruturas do poder e
te científica” tos Estratégicos da Presidência da República do Bra-
sil. Em 1971, tornou-se um dos mais jovens professo-
res da Universidade Harvard. (Nota da IHU On-Line)
forças insurgentes – 1978, Os brasileiros – teoria do 20 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista,
Brasil – 1972, Os índios e a civilização – a integração economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito
das populações indígenas no Brasil moderno – 1970, de Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas
The culture – historical configurations of the American de 1987 a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º
peoples – 1970 (edição brasileira em 1975), O povo próximo de que outras figuras presidente do Brasil, de 1990 a 1992, e senador por
brasileiro – a formação e o sentido do Brasil – 1995, Alagoas de 2007 até a atualidade. Foi o presidente
Diários índios – os urubus-kaapor – 1996, A universida- políticas? mais jovem da história do Brasil e o presidente elei-
de necessária – 1969, Propuestas – acerca da la reno- to por voto direto do povo, após o Regime Militar
vación – 1970, UnB – invenção e descaminho – 1978 Paulo Ribeiro – É com (1964/1985). Seu governo foi marcado pela imple-
e Nossa escola é uma calamidade – 1984. (Nota da mentação do Plano Collor e a abertura do mercado
IHU On-Line) os intelectuais que ele tenta nacional às importações e pelo início de um progra-
14 Gabriel García Márquez (1927-2014): escritor co- ma nacional de desestatização. Seu Plano, que no iní-
lombiano, jornalista, editor, ativista e político. Conside-
aproximação. O problema é que a cio teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a
rado um dos autores mais importantes do século XX, grande universidade brasileira, que recessão econômica, corroborada pela extinção, em
foi um dos escritores mais admirados e traduzidos no 1990, de mais de 920 mil postos de trabalho e uma
mundo, com mais de 40 milhões de livros vendidos era a USP, tinha uma rejeição imensa inflação na casa dos 1200% ao ano; junto a isso, de-
em 36 idiomas. Sobre a obra do autor, confira a IHU
On-Line n° 221 Cem anos de solidão. Realidade, fan-
ao trabalhismo, porque até hoje não núncias de corrupção política envolvendo o tesoureiro
de Collor, Paulo César Farias, feitas por Pedro Collor
tasia e atualidade, disponível em http://www.ihuonline. assimilaram a derrota de 1932. Essa de Mello, irmão de Fernando Collor, culminaram com
unisinos.br/edicao/221. (Nota da IHU On-Line) um processo de impugnação de mandato (Impeach-
15 Che Guevara (Ernesto Guevara de la Serna, ou El rejeição persiste até hoje. Parte desse ment). (Nota da IHU On-Line)
Che, 1928-1967): um dos mais famosos revolucioná- grupo vai criar o PT e outra parte vai 21 Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): trigésimo
rios comunistas da história. Foi tema da edição 239 da quinto presidente da República Federativa do Brasil,
IHU On-Line, de 08-10-2007, disponível em http://migre. para o PSDB. No Rio de Janeiro, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro de 2011.
me/2pebG. (Nota da IHU On-Line) É cofundador e presidente de honra do Partido dos
16 Fidel Alejandro Castro Ruz (1926-2016): primeiro- ele também tem muita dificuldade Trabalhadores (PT). Em 1990, foi um dos fundadores
secretário do Comitê Central do Partido Comunista de inserção porque a universidade e organizadores do Foro de São Paulo, que congrega
de Cuba, é presidente dos Conselhos de Estado e de parte dos movimentos políticos de esquerda da Amé-
Ministros de Cuba, onde governa desde 1959. A partir permanece sob intervenção, então rica Latina e do Caribe. Foi candidato a presidente
dessa data viajou por muitos países da América La- cinco vezes: em 1989 (perdeu para Fernando Collor
tina, Europa e África do Sul para representar Cuba
ele não consegue retornar. Somente de Mello), em 1994 (perdeu para Fernando Henrique
em congressos e conferências. Desde 1976 passou a depois de muito tempo ele é Cardoso) e em 1998 (novamente perdeu para Fernan-
governar também como chefe de Estado. Em 2006 o do Henrique Cardoso), e ganhou as eleições de 2002
socialista delegou suas funções às Forças Armadas reincorporado à universidade. Nesse (derrotando José Serra) e de 2006 (derrotando Geral-
de Cuba e ao irmão Raúl Castro Ruz, ministro da Defe- do Alckmin). Lula bateu um recorde histórico de popu-
sa, que assumiu formalmente a presidência em 2008.
período ele passa a fazer consultoria laridade durante seu mandato, conforme medido pelo
(Nota da IHU On-Line) para outros países e universidades, a Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Família
17 Salvador Allende (1908-1973): médico e político e Fome Zero são marcas de seu governo, programa
marxista chileno. Em 1970, foi eleito presidente do exemplo do que fez no México e na este que teve seu reconhecimento por parte da Orga-
Chile pela Unidade Popular, um agrupamento político
formado por socialistas, comunistas e por setores ca-
Venezuela, em 1976, propondo uma nização das Nações Unidas como um país que saiu
do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque
tólicos e liberais do Partido Radical e do Partido Social reforma no sistema educacional. na evolução recente das relações internacionais, in-
Democrata que contava com grande apoio dos tra- cluindo o programa nuclear do Irã e do aquecimento
balhadores urbanos e camponeses. Governou o país Cristovam Buarque18, que na eleição global. É investigado na operação Lava-Jato. (Nota da
até 11 de setembro de 1973, quando foi deposto por IHU On-Line)
um golpe de estado liderado pelo chefe das Forças 22 Paul Singer (1932): austríaco, de Viena, mora no
Armadas, Augusto Pinochet. (Nota da IHU On-Line) 18 Cristovam Buarque (1944): é um engenheiro mecâ- Brasil desde 1940. É formado em Economia e Admi-

EDIÇÃO 500
ENTREVISTA

depois de 20 anos de sua morte, base, tarefa que é interrompida pelo universidade era o nervo ético da
haverá um seminário na USP sobre golpe e é recuperada somente em sociedade, com compromisso com
o pensamento de Darcy. Nem 1983, com Brizola. os destinos da nação e deveria
mesmo sua obra é reconhecida entender os problemas do país e
Seu último período é como
pela universidade que o formou. apresentar soluções. Havia uma
romancista, mesmo depois de toda
O primeiro curso de mestrado em responsabilidade política e não
a sua produção intelectual. Dentre
antropologia no Brasil foi criado por meramente científica; a universidade
os vários romances, o mais famoso é
Darcy, em 1954, dentro do Museu deveria, internamente, apresentar
Maíra (Rio de Janeiro: Record, 1989),
do Índio. Quando foi ministro da soluções para o desenvolvimento
que em 2016 completou 40 anos de
Educação, ele passou esse curso autônomo e soberano do país.
sua publicação; também escreveu
para o museu nacional, ligado à
Utopia selvagem (São Paulo: Nova É a partir disso que ele defende que
Universidade Federal do Rio de
Fronteira, 1982) e O muro (Rio não é o negro que é inferior, ou o índio
Janeiro – UFRJ. Ao ser cassado,
de Janeiro: Record, 1981). Ele fez que é preguiçoso, ou mesmo que o
todos aqueles que trabalhavam
isso porque acreditava que a teoria clima é o responsável pelo fracasso do
com ele foram retirados e só
passava, mas os romances ficavam. Brasil. O Brasil “não deu certo”, ele
entravam pessoas que apoiavam a
São peles que ele foi trocando durante dizia, por culpa da classe dominante
ditadura, fazendo uma antropologia
a vida, o que ocorreu de modo bem brasileira, insensível e formada na
totalmente diferente da que ele
definido. Casa Grande. Somos o último país
pregava. Na UnB ocorreu a mesma
que acabou com a escravidão, e isso
coisa, dos 220 professores, 200
pediram demissão. Com isso, a “A fé de Darcy estava entranhado na alma das classes
dominantes, que sequer propõem um
direita ficou muito feliz porque
só colocou gente dela dentro da no povo bra- plano de desenvolvimento nacional.
Aliás, até hoje o país nunca criou um
sileiro, de que
universidade. Tudo que ele construiu
plano de desenvolvimento nacional,
acabou se voltando contra ele, sem
porque a elite nunca quis. É preferível

16
jamais reconhecerem seu papel, ao
contrário, foi perseguido por estas nossa mesti- ser gerente de multinacionais,
subordinado ao capital externo,
instituições.
IHU On-Line – O próprio Darcy
çagem só trou- a ter o próprio processo de
desenvolvimento autônomo do povo
Ribeiro dizia que se sentia como xe ganhos” brasileiro. Nosso grande fracasso é a
uma “serpente”, no sentido de elite infecunda, impatriótica e infiel
que a cada tempo trocava de ao povo brasileiro.
IHU On-Line – Há uma célebre
pele para encarnar uma nova frase de Darcy em que ele dizia IHU On-Line – O que significa
identidade, por assim dizer. De que “se não construíssemos fazer memória de Darcy Ribeiro
onde vinha essa personalidade? escolas, precisaríamos construir 20 anos após sua morte?
Paulo Ribeiro – Darcy teve presídios”. A atualidade desta
Paulo Ribeiro – É constatar
trabalhos bem definidos, as “peles”, frase mostra a atualidade do
que as ideias não morreram e que
como ele dizia. Trabalhou como pensamento de Darcy?
a boa semente pode demorar, mas
etnólogo durante dez anos com o Paulo Ribeiro – Sem dúvida fica guardada na terra e germina.
Rondon, convivendo com os índios, nenhuma, é uma previsão dele. O Tudo que ele sonhou para o
na mesma época em que fez o museu que as pessoas não percebem é que desenvolvimento deste país, da
do índio e montou a pós-graduação Darcy é um pensador de múltiplas necessidade de implantar uma escola
em antropologia. Depois ele corta facetas. Ele tinha uma visão global de tempo integral, de educação de
radicalmente com isso e vai trabalhar das coisas, percebia para onde qualidade para o povo, capaz de
com Anísio Teixeira até a construção
o Brasil estava caminhando e gerar oportunidades iguais para
da UnB; quando ele assume o Gabinete
percebeu onde chegaríamos com 30 toda a população, continua sendo
Civil, o Anísio é nomeado reitor,
anos de antecedência. Ele viu que necessário acreditar nisso. A fé de
período que trabalharam juntos até
éramos um país que marginalizava Darcy no povo brasileiro, de que
o exílio. A terceira fase é a dele como
seu povo, que é o maior patrimônio nossa mestiçagem só trouxe ganhos,
político, trabalhando no governo e
que um país pode ter, e que não e no desenvolvimento da educação,
elaborando os planos nacionais, de
investia para que se desenvolvesse poderá germinar aqui a mais bela
desenvolvimento, as reformas de
autonomamente. Esta é a palavra- província da terra, pautada pela
nistração, doutor em Sociologia, além de outras for-
chave para Darcy, desenvolvimento generosidade, felicidade e justiça
mações. Possui 23 obras publicadas, foi professor da autônomo, e foi com essa ideia social. Isso está pulsante e vivo. Darcy
Faculdade de Economia, Administração e Contabili-
dade da USP. Além disso, fundou o Centro Brasileiro que ele fundou a UnB, com está vivo e estas sementes hão de dar
de Análise e Planejamento – Cebrap e diretor Secre-
taria de Economia Solidária, vinculada ao Ministério
caráter científico e extremamente frutos, elas podem demorar, mas vão
do Trabalho, entre 2003 e 2016. (Nota da IHU On-Line) político. Ele acreditava que a frutificar. ■

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Leia mais
- Escolas ou presídios: o desafio de Darcy Ribeiro. Artigo de Luiz Alberto Gómez de Souza sobre
Darcy Ribeiro, publicado nas Notícias do Dia, 9-1-2017, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/2m2GUJt.
- Darcy Ribeiro, na visão de Gilberto Vasconcellos: pensador rebelde e anti-imperialista. Artigo
de Roberto Bitencourt da Silva, publicado nas Notícias do Dia, 21-9-2015, no sítio do IHU, disponível
em http://bit.ly/2mC4DmL.

- Darcy Ribeiro e a consciência de quem somos. Artigo de Eric Nepomuceno, publicado nas Notí-
cias do Dia, 28-1-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2lZ2u0r.

- Darcy Ribeiro: brasileiro e desenvolvimentista. Artigo de Paulo Kliass, publicado nas Notícias do
Dia, 2-11-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2lElmXi.

17

EDIÇÃO 500
NOVA IHU ON-LINE

Revista IHU On-Line de cara nova


Publicação chega à edição 500 com projeto gráfico atualizado e novo portal web
Ricardo Machado

D esde a última segunda-feira, 6 de


março, a revista IHU On-Line do
Instituto Humanitas Unisinos
conta com sua nova página web. Mais mo-
derna e simples de navegar, a atual versão
digital da revista possui uma identidade
visual mais próxima dos exemplares im-
pressos.
O novo portal é responsi-
vo, isto é, se ajusta às dife-
rentes telas em que o leitor
pode acessar as entrevistas,
reportagens e textos, faci-
litando a leitura em dispo-
sitivos móveis. Além disso
o conteúdo pode ser com-
partilhado nas redes sociais
e no whatsapp com apenas
18 dois cliques. Todas as 500
edições da revista podem ser
acessadas por meio da seção
“Edições anteriores”, no
topo da página, podendo ser
pesquisadas por palavras-
-chaves, por data da edição
ou até mesmo pelo número
de cada um dos volumes.

Reprodução do topo
da home page da nova página web da revista
IHU On-Line

Reprodução do topo da home page antiga da revista IHU On-Line

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Mudanças
Enquanto no portal antigo todo conteúdo era acessado por meio de um menu lateral
na parte esquerda da tela mostrando apenas os nomes dos entrevistados e autores, na
nova home page o conteúdo é apresentado por meio dos títulos das entrevistas, artigos,
reportagens e demais seções. O editorial, a versão PDF e a versão para folhear estão dis-
poníveis à esquerda da capa da revista, no topo da página; os outros textos aparecem logo
abaixo do topo e da capa
da revista. Nas versões
para celular e tablet, o
conteúdo pode ser visuali-
zado um abaixo do outro,
com os títulos e as linhas
de apoio com o nome dos
entrevistados. 19
O projeto gráfico desta
edição que o leitor tem em
mãos também foi refor-
mulado e conta com novas
seções, mas sem deixar
de lado a profundidade
e seriedade dos debates
que caracterizam a produ-
ção jornalística da revista
IHU On-Line e a tradição
nos seus 500 exemplares
já publicados. ■

Na nova versão, as entrevistas serão exibidas


conforme o modelo acima.

Esta é a exibição antiga das entrevistas na página HTML da IHU On-Line

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Biomas divisão política (Barbosa, 2016, baseado no IBGE)

20 Biomas brasileiros e a teia da vida


João Vitor Santos

N
uma definição mais ampla, bio- ria com o Ministério de Meio Ambiente, o
ma pode ser compreendido como Mapa de Biomas do Brasil.
áreas de pequena escala, tipos de
Segundo o mapa, o Brasil possui seis
habitat ou de ecossistema. Apesar de en-
grandes biomas. São eles: Pampa, Pantanal,
globar tanto as plantas quanto os animais
e microrganismos de um determinado lo- Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e
cal, na prática, se define pelo clima e pela Amazônia. O biólogo Rodrigo Castro, que
fisionomia ou aparência geral das plantas também está entre os entrevistados deste
da comunidade. A definição não é unâni- número da IHU On-Line, lembra que a
me entre os cientistas. O antropólogo Al- Constituição de 1988 reconhece apenas
tair Sales Barbosa, um dos entrevistados três como patrimônios nacionais: Mata
desta edição da IHU On-Line, por exem- Atlântica, Amazônia e Pantanal, deixando
plo, é crítico dessa classificação. Para ele, o de fora a Caatinga e o Cerrado. “Há mais
conceito de bioma “tende a enfatizar ou re- de 18 anos tramita no Congresso Nacional
alçar um clímax vegetacional, muitas vezes uma Proposta de Emenda Constitucional
não corroborado pela história evolutiva do - PEC que visa a corrigir uma injustiça
espaço em questão”. O Instituto Brasileiro histórica”, explica Castro. O Pampa,
de Geografia e Estatística - IBGE compre- segundo o professor, também não está
ende o termo como um sinônimo de “pro- na Constituição e sequer há movimento
víncia biogeográfica”. É nessa perspectiva no sentido de incluí-lo, como no caso dos
que o IBGE elabora, em 2004, em parce- outros dois.

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Entre os biomas classificados pelo IBGE, o forma de construir um mundo melhor e


Amazônia é o de maior extensão, ocupando mais igual para todos.
49,29% do território nacional. O menor é
A ecologia integral é uma das áreas de
o Pantanal, com apenas 1,76% da área do concentração do Instituto Humanitas
Brasil. O Cerrado compreende 23,92%, Unisinos – IHU que tem publicado,
seguido pelo bioma Mata Atlântica, com na sua página eletrônica, atualizada
13,04%, Caatinga com 9,92% e Pampa com diariamente, como também nas
2,07%. Entretanto, sem a perspectiva de suas publicações impressas, amplo e
levar tão “ao pé da letra” classificações e diversificado subsídio sobre o tema em
percentuais, a Campanha da Fraternidade debate nesta edição. E em 2017, promove o 21
deste ano, promovida pela Conferência ciclo de conferências Os biomas brasileiros
Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, e a teia da vida. As atividades iniciam em
quer chamar atenção para a necessidade março e se estendem até junho. Saiba mais
de olhar para as questões ambientais, como em http://bit.ly/biomasbrasileiros.

Publicações do IHU sobre biomas brasileiros


Bioma Amazônia
- Amazônia. Verdades e Mitos. Revista IHU On-Line número 211, de 12-3-2007, disponível em http://bit.
ly/2mkcza0.
- Ano internacional das florestas. Em defesa da habitabilidade do Planeta. Revista IHU On-Line núme-
ro 365, de 13-6-2011, disponível em http://bit.ly/2mmRtJR.
- “O conjunto da sociedade falhou, por isso o desmatamento aumentou na Amazônia vertiginosamen-
te”. Entrevista especial com André Guimarães, publicada nas Notícias do Dia de 20-1-2017, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mkqz3J.
- A escassez de chuvas é uma das consequências do desmatamento na Amazônia. Entrevista es-
pecial com Raimundo Nonato Brabo Alves, publicada nas Notícias do Dia de 3-12-2014, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mkovZm.
- Plantação de cana-de-açúcar na Amazônia Legal: “O ciclo se repete com novos desmatamentos”.
Entrevista especial com João Camelini, publicada nas Notícias do Dia de 22-5-2013, no sítio do Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mknKiZ.
- Uso de agrotóxico pode intensificar desmatamento na Amazônia. Entrevista especial com Jefferson
Lobato, publicada nas Notícias do Dia de 11-6-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2m3GMtf.

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

- Moratória da soja e os desafios do desmatamento na Amazônia. Entrevista especial com Bernardo


Rudorff, publicada nas Notícias do Dia de 5-11-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2mn0mmH.
- Amazônia. 2015, desmatamento zero. Entrevista especial com João Talocchi, publicada nas No-
tícias do Dia de 11-4-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2mCXCT1.

Bioma Pantanal
- O Pantanal em alerta. Revista IHU On-Line número 345, de 27-7-2010, disponível em http://bit.
ly/2nfx4Ek.
- Pantanal: um bioma ameaçado pelo desmatamento. Entrevista especial com Viviane Fonseca
Moreira, publicada nas Notícias do Dia de 18-9-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2m0a7DU.
- Hidrelétricas comprometem conservação do Pantanal. Entrevista especial com Débora Ca-
lheiros, publicada nas Notícias do Dia de 6-9-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2lF8L6j.
- Pantanal ameaçado pelas mudanças climáticas. Entrevista especial com Paulo Teixeira de
Sousa Júnior, publicada nas Notícias do Dia de 26-9-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2lF2U0S.
- O Pantanal ameaçado. Entrevista especial com Débora Calheiros, publicada nas Notícias
do Dia de 6-4-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
22 ly/2m0b3sb.
- Os riscos do aquecimento global para o Pantanal. Entrevista especial com Paulo Teixeira,
publicada nas Notícias do Dia de 28-6-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis-
ponível em http://bit.ly/2mmVcaA.
- Pantanal: um bioma ameaçado pelo desmatamento. Entrevista especial com Viviane Fonseca
Moreira, publicada nas Notícias do Dia de 18-9-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2m0a7DU.

Bioma Cerrado
- Cerrado. O pai das águas do Brasil e a cumeeira da América do Sul. Revista IHU On-Line nú-
mero 382, de 28-11-2011, disponível em http://bit.ly/2mkf4ZY.

Bioma Caatinga
- Caatinga: um bioma exclusivamente brasileiro... e o mais frágil. Revista IHU On-Line número
389, de 23-4-2012, disponível em http://bit.ly/2mmNxsF.
- Desmatamento silencioso da Caatinga tem intensificado a desertificação do semiárido brasi-
leiro. Entrevista especial com Iêdo Bezerra de Sá, publicada nas Notícias do Dia de 28-6-2015,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mkdSWC.
- Caatinga, um bioma desconhecido e a “Convivência com o Semi Árido”. Entrevista especial
com Haroldo Schistek, publicada nas Notícias do Dia de 23-4-2012, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2nfzIcY.
- Desmatamento silencioso da Caatinga tem intensificado a desertificação do semiárido brasi-
leiro. Entrevista especial com Iêdo Bezerra de Sá, publicada nas Notícias do Dia de 28-6-2015,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mkdSWC.

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REVISTA IHU ON-LINE

Bioma Mata Atlântica


- Reflorestamento da Mata Atlântica: não existem mudas suficientes para recuperar a floresta. Entre-
vista especial com Jaeder Lopes Vieira, publicada nas Notícias do Dia de 24-6-2015, no sítio do Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mktJVb.
- A Mata Atlântica fragmentada. Entrevista especial com Maury Abreu, publicada nas Notícias do Dia
de 3-12-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mmWbaL.
- Mata Atlântica: “Somos muito mais responsáveis pela derrubada da mata do que a economia mun-
dial e seus padrões”. Entrevista especial com Alexandre Colombo, publicada nas Notícias do Dia de
12-2-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mmQKZ4 .
- O Brasil é um país bovino. O Estado brasileiro sinaliza que apoia o desmatamento, apesar de polí-
ticas setoriais de controle. Entrevista especial com Rogério Rocco, publicada nas Notícias do Dia de
6-1-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mHuEBu.

Bioma Pampa
- O Pampa e o monocultivo do eucalipto. Revista IHU On-Line número 247, de 10-12-2007, disponível
em http://bit.ly/2mmLcy4.
- Pampa. Silencioso e desconhecido. Revista IHU On-Line número 190, de 7-8-2006, disponível em
http://bit.ly/2mCJ99E.
- Falta controle sobre a poluição por agrotóxicos das águas do Pampa. Entrevista especial com Ro-
berto Verdum, publicada nas Notícias do Dia de 8-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2nfw434. 23
- Pampa: um espaço de transição. Entrevista especial com Marcelo Dutra, publicada nas Notícias do
Dia de 25-3-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mCFw3l.
- O Pampa padece com a silvicultura. Entrevista especial com Maria Conceição Carrion, publicada
nas Notícias do Dia de 12-12-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/2m3ro02.
- O pampa alterado. Entrevista especial com Marcelo Dutra da Silva, publicada nas Notícias do Dia de
30-6-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2n7pSdV.
- Pampa. Um bioma em risco? A plantação de pínus e eucaliptos. Entrevista especial com Antonio
Eduardo Lanna, publicada nas Notícias do Dia de 8-12-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2lZU891.
- Silvicultura: a praga do pampa gaúcho? Entrevista especial com Eridiane Lopes da Silva, publicada
nas Notícias do Dia de 8-1-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/2lF2Azg.
- Somente 41% do pampa gaúcho está preservado, revela mapeamento do Bioma. Entrevista espe-
cial com Heinrich Hasenack, publicada nas Notícias do Dia de 17-1-2008, no sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2n7phJl.
- O pampa gaúcho entregue às multinacionais. Entrevista especial com Maria da Conceição Carrion
e Flávio Lewgoy, publicada nas Notícias do Dia de 11-4-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2mmRMEp.
- Monoculturas podem decretar o fim dos pampas. Entrevista com Glayson Ariel Bencke, publicada
nas Notícias do Dia de 25-1-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/2nfPRiE.
Bioma Araucária
- Floresta de Araucária: uma teia ecológica complexa. Revista IHU On-Line número 183, de 5-6-2006,
disponível em http://bit.ly/2mjXMMU.

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

A fábrica de ilusões que leva


ao colapso civilizacional
Para Alexandre Costa, a expansão ilimitada da produção e consumo não
passa de ilusão que os economistas e políticos adoram vender e que
desconsidera o esgotamento do “Sistema Terra”
João Vitor Santos

A
ideia desenvolvimentista, mo- modo de vida insustentável”. “A lógica
vida pela fome de consumo de expansão ilimitada da produção e
e necessidade de produção, consumo, uma ilusão que os economis-
aliada ao incipiente investimento em tas e políticos adoram vender, já ultra-
energias renováveis, tem nos levado a passou os limites de equilíbrio do Siste-
tempos sombrios. “O Brasil tem sido ma Terra”, alerta. Sem confrontar essa
um fiasco no investimento em energias situação, o “colapso dessa civilização é
renováveis”, dispara Alexandre Costa, inevitável”.
físico e professor da Universidade Esta-
dual do Ceará. Com parcos investimen- Alexandre Araújo Costa  é professor
da Universidade Estadual do Ceará.
tos na energia solar, o país insiste nas
Formado em Física, Ph.D. em Ciências
fontes fósseis. “Não entendo o fetiche
Atmosféricas pela Universidade do Es-
da esquerda brasileira com o petróleo.
24 A mudança da regra de exploração do
tado do Colorado, com pós-doutorado
na Universidade de Yale. Foi um dos
pré-sal é um desastre, mas não apenas
autores principais do primeiro relató-
nem principalmente por aumentar a
rio do  Painel Brasileiro de Mudanças
presença das petroquímicas no setor. É
Climáticas. Militante ecossocialista e
por acelerar a extração de um estoque
ativista climático,  edita o blog O Que
de carbono que, no contexto da crise
Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei e
climática, teria de permanecer exata- é um dos coordenadores do  fórum de
mente onde está”, pontua. articulação Ceará no Clima.
Na entrevista, concedida por e-mail à De março a junho, o Instituto Huma-
IHU On-Line, Costa destaca que esse nitas Unisinos – IHU promove o ciclo
modelo dificulta até mesmo a conscien- de palestras Os biomas brasileiros e a
tização das populações mais pobres. teia da vida. Veja a programação com-
São elas as mais atingidas pelos efeitos pleta em http://bit.ly/biomasbrasilei-
das mudanças climáticas, mas seguem ros.
anestesiadas porque “se beneficiam a
curto prazo e guardam ilusões com esse Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como de chuvas no sudeste brasileiro. interagem por uma variedade
compreender o papel dos Como compreender essas de processos. De um lado, as
biomas brasileiros na complexa relações? Quais os desafios para condições climáticas mais gerais,
equação do clima? Cientistas já se converter essa compreensão de temperatura e precipitação,
comprovaram que as mudanças em mudança de hábitos? não apenas a quantidade, mas sua
climáticas estão associadas, Alexandre Araújo Costa - distribuição anual, é determinante
também, à destruição da Trata-se de uma interação de mão para a existência desse ou daquele
Floresta Amazônica e que o dupla, já que atmosfera e biosfera1
desmatamento nessa região pode conjunto de todos os ecossistemas da Terra, sendo
o maior nível de organização ecológica. (Nota da IHU
influenciar, por exemplo, o ciclo 1 Biosfera: também conhecido como ecosfera, é o On-Line)

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Os biomas brasileiros, especial-


mente a Amazônia, representam
um enorme estoque de carbono e
cumprem importantes papéis na mi-
tigação das mudanças climáticas”

bioma: da Caatinga, no semiárido, daquelas que vêm sendo aplicadas há de capturar nada menos que 380
às florestas úmidas. Mas a vários anos e que levou à expansão milhões de toneladas de carbono,
biosfera também interage de volta. da soja, da pecuária, da mineração, o que equivale aproximadamente
Localmente, eles também são da exploração de combustíveis ao funcionamento de 200 usinas
muito relevantes na manutenção da fósseis e da construção de grandes termelétricas de grande porte.
hidrografia, incluindo a vegetação barragens, como Belo Monte2.
Os autores também avançaram
junto às nascentes e as matas
IHU On-Line - Em que medida numa discussão sobre aquilo que,
ciliares, sendo inegáveis os efeitos
já se pode perceber os efeitos para mim, parece uma verdadeira
que a devastação da Mata Atlântica,
das mudanças climáticas nos armadilha do sistema fisiológico
do Cerrado e da Caatinga tiveram
biomas do Brasil? vegetal. Como este é orientado para
nesse sentido.
um determinado comportamento
Alexandre Araújo Costa - Uma
Além disso, sabe-se, embora competitivo, num bioma em que se dá
das características da dinâmica
os mecanismos ainda não sejam melhor quem cresce verticalmente e 25
de uma atmosfera aquecida é que
inteiramente conhecidos, que a expande a copa, a fisiologia leva a um
os extremos de seca e de chuva
Amazônia tem um papel relevante na menor investimento em manutenção
se exacerbam (trata-se de um
distribuição de chuvas na América de tecidos e em defesa em condições
mecanismo físico bastante simples,
do Sul, ao bombear parte da umidade de fotossíntese suprimida em
que é o aumento da pressão de vapor
que é transportada pelo chamado consequência da seca. E aí vem o
de saturação associada ao aumento
jato de baixos níveis para a Região desastre subsequente: o aumento da
de temperatura). Isto já tem
Sudeste. Na floresta, compostos mortalidade das árvores, o que leva a
provocado mudanças importantes
orgânicos voláteis são também uma emitir mais CO2, aquecer ainda mais
na frequência de secas na Amazônia.
importante fonte de núcleos de o clima, produzir secas ainda mais
condensação, influenciando o ciclo Um artigo publicado há dois severas etc., ou seja, estabelecendo
de vida das nuvens. anos na  Nature3 mostra o grave aquilo que chamamos de “feedback
problema que pode representar positivo” ou retroalimentação.
Por fim, devo lembrar que os
uma sequência de grandes secas
biomas brasileiros, especialmente a No Nordeste, também há indícios
na região. Os autores  examinaram
Amazônia, representam um enorme de que podemos estar mudando
os efeitos das secas de 2005 e
estoque de carbono e cumprem a “norma”, isto é, que a seca que
2010 e os resultados mostraram
importantes papéis na mitigação atravessamos possa ser uma amostra
um decréscimo na captura de CO2
das mudanças climáticas. Entender do futuro da região com a mudança
pela floresta: a Amazônia deixou
a ciclagem de água e carbono e climática global em curso.
as influências do desmatamento,
2 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem IHU On-Line - O Nordeste
queimadas e mudança do clima global publicando uma série de texto sobre as questões
envolvendo Belo Monte. Entre eles, Belo Monte e a brasileiro entra no sexto ano
nesses biomas requer pesquisa, lógica do capital e dos jogos políticos que sufocam do que pode ser a pior seca de
com o devido financiamento (como a vida. Entrevista especial com Ubiratan Cazetta, pu-
blicada as Notícias do Dia de 16-2-2016, no sítio do sua história. Uma mudança no
se viu no Large-Scale Biosphere- Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2miNCv0; e ‘Desastre em Belo Monte é imi- modelo de desenvolvimento,
Atmosphere Experiment - LBA nente’, diz Conselho de Direitos Humanos, publicado tomando como prioridade as
in Amazonia). Mas preservá-los nas Notícias do Dia de 15-10-2016, no sítio do Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit. energias renováveis, mudaria
vai além da mudança de hábitos ly/2mD8K1I; e ainda Além de Belo Monte e das outras
esse cenário? Como?
(por exemplo, reduzir o consumo barragens: o crescimentismo contra as populações
indígenas, Cadernos IHU, Ano 12, número 47, 2014,
de carne, principalmente se a disponível em http://bit.ly/2lT8Fs1. Leia mais em ihu.uni- Alexandre Araújo Costa - Há
sinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line)
procedência desta for a Amazônia 3 Doughty ey al. (2015): Drought impact on forest car- expectativa de que pelo menos em
ou o Cerrado). É preciso ter políticas bon dynamics and fluxes in Amazonia, Nature, 519,78– parte da região o longo período
82, doi:10.1038/nature14213, disponível em http://go.na-
públicas no sentido contrário ture.com/2mEI2Go. (Nota do entrevistado) de seca seja interrompido. Pelo

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

menos é o que o prognóstico da Emergência de outras fontes Os ruralistas, de olho inclusive


Fundação Cearense de Meteorologia de energia nas terras indígenas e quilombolas,
e Recursos Hídricos aponta, para a são o outro setor econômico
porção mais ao norte do Nordeste. É urgente inverter a lógica da que se fortaleceu recentemente,
Mas de qualquer modo, o que se viu geração energética da região, com pressionando contra a demarcação
de 2012 a 2016 é obviamente atípico. ênfase nas energias renováveis, de Terras Indígenas - TIs e Terras
A maior parte do Nordeste entrou mas sobretudo na microgeração Quilombolas - TQs e especialmente
em seca extraordinária e no Ceará solar, residencial, pois até mesmo neste governo tem dado mostras
tivemos a menor média de cinco os parques eólicos, instalados de que está disposto a não parar
anos já observada na história, sendo numa lógica mercantilista, têm no desmonte do Código Florestal.
que o estado mantém registros de sido prejudiciais para várias Todas as articulações desse setor
precipitação desde pelo menos o comunidades, principalmente na concorrem para reduzir a proteção
início do século XX. zona costeira. O aproveitamento aos biomas e no ano passado
É preciso que se diga que da energia solar poderia ser as emissões brasileiras de CO2
eventos extraordinários como uma solução de várias questões cresceram justamente por conta do
esse dificilmente podem ser simultaneamente: segurança aumento do desmatamento.
associados a uma única causa. As energética, redução do uso de água IHU On-Line - Quais os avanços
mudanças climáticas certamente e de emissões de CO2 associados às e limites do Brasil nas políticas
já estão tendo influência, mas termelétricas, distribuição de renda de combate às mudanças
é preciso mais estudos para mediante barateamento da conta de climáticas e preservação de
identificarmos como e quanto. luz e, claro, geração de empregos. seus biomas?   Quais os maiores
Mesmo sem o aquecimento desafios para conscientizar as
global, o Nordeste setentrional é
sensível à variabilidade climática “A biosfera populações das metrópoles
de que seus hábitos podem
natural, com as chuvas tendendo
a diminuir ou aumentar de acordo também inte- impactar no aquecimento global
e que essas mudanças climáticas
26 com os padrões de temperatura
oceânica no Pacífico e Atlântico rage de volta” afetam diretamente os mais
pobres que vivem nas periferias?
e, no momento, os modos de
variabilidade de longo prazo em Alexandre Araújo Costa - É por
IHU On-Line - Como conta dos fatores que coloquei antes,
ambos os oceanos estão em fase compreender o fato de que o
desfavorável para as chuvas na e de outros, que minha preocupação
desmatamento na Amazônia e cresce em relação à capacidade
região. A degradação ambiental na em toda área de Mata Atlântica
escala local, com o desmatamento do Brasil de cumprir com seus
cresce a cada ano? compromissos internacionais
comprometendo matas ciliares
e nascentes e assoreando rios e Alexandre Araújo Costa - para o clima, em particular a NDC
reservatórios, também precisa Infelizmente, as razões são bastante (a contribuição nacional para
ser colocada nessa contabilidade. nítidas, com destaque para a redução das emissões). Cerca de
Uma inadequada e insuficiente expansão da fronteira agrícola 40% do CO2 emitido vem ainda
política de resíduos e saneamento por pressão do agronegócio. Na do desmatamento, e sem medidas
contribui também para o configuração mundial do capitalismo, sérias para zerá-lo, ou no mínimo
comprometimento da qualidade o Brasil entrou como exportador para reduzi-lo drasticamente nos
da água na região. de commodities, incluindo minério próximos anos, será impossível
de ferro, soja etc. Esse modelo atingir as metas. Importante frisar:
E a vulnerabilidade da região é essas são, em tese, as emissões
de desenvolvimento mostrou-se
amplificada por conta das escolhas “fáceis” de cortar.
dos modelos de desenvolvimento. mais perverso justamente quando
A multiplicação das obras hídricas o preço dessas commodities cai Os outros dois grandes
não levou em conta em geral no mercado internacional. Não contribuintes para as emissões
as necessidades da maioria da é de se espantar que o avanço da brasileiras são o setor de
população e visou essencialmente mineração, especialmente em que energia. Incluindo transportes
ao favorecimento de determinadas ela tenta compensar lucros menores e agropecuária, sendo que neste
atividades econômicas, como o aumentando a quantidade da último caso estão as emissões de
agronegócio e setores industriais produção, produza crimes terríveis gases de efeito estufa várias vezes
hidrointensivos. Em particular, como o da Samarco4. mais potentes que o CO2, no caso o
a instalação de termelétricas na metano e o óxido nitroso. Ora, não
4 O entrevistado se refere ao desastre ocorrido em
região se mostrou uma atitude Mariana, Minas Gerais. O Instituto Humanitas Unisinos há nenhuma política pública no
irresponsável e desprovida de – IHU, através de seu sítio, vem publicando uma série
de materiais sobre o episódio. Leia mais em ihu.uni-
horizonte de redução do rebanho
qualquer mínimo bom senso. sinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line) bovino, principal fonte de emissão de

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REVISTA IHU ON-LINE

metano, por fermentação entérica. um forte acordo, num grupo de quantidade de nitrogênio fixada
trabalho de especialistas, que este hoje pelas atividades humanas
Do ponto de vista da energia,
tempo em que vivemos deve ser já excede todos os processos
o Brasil tem sido um fiasco
caracterizado como uma nova época naturais somados e é possível
no investimento em energias
geológica, o Antropoceno5, embora que os fluxos de fósforo tenham
renováveis, sendo especialmente
ainda não tenha sido delimitado que sido simplesmente triplicados,
pífio no aproveitamento da energia
referência deve ser adotada, nem produzindo desequilíbrios
solar. O predomínio do modal
rodoviário, os incentivos ao uso de do ponto de vista temporal nem do nos ecossistemas aquáticos e
derivados de petróleo, incluindo o ponto de vista físico-biogeoquímico. comprometendo a qualidade da
pré-sal, e ao transporte individual, De qualquer modo, a adoção do água em rios e reservatórios.
políticas que foram vendidas como termo é cada vez mais consensual.
caminho para o “desenvolvimento
nacional” se mostram um beco sem
Mais recentemente, Gaffney6
e Steffen7 (2017) fizeram uma
“É preciso ter
saída nesse terreno. Os incentivos à atualização das atuais condições
do Antropoceno e os números
políticas pú-
blicas no sen-
exploração de combustíveis fósseis,
especialmente petróleo e gás, podem são cada vez mais assombrosos,
especialmente quando comparamos
inclusive levar ao aumento das
chamadas emissões fugitivas. as tendências exponenciais e tido contrário
daquelas que
disruptivas do Antropoceno com a
Fetiche petroleiro marcante estabilidade do Holoceno8.

Como tenho dito, aliás, não entendo Por conta


combustíveis
da queima
fósseis
de
(carvão,
vêm sendo
aplicadas há
o fetiche da esquerda brasileira
com o petróleo. Sim, a mudança petróleo e gás), a concentração de
CO2 sofreu uma mudança 1000 vezes
da regra de exploração do pré-sal
é um desastre, mas não apenas mais rápida do que a verificada entre vários anos”
nem principalmente por aumentar 11 mil e 7 mil anos atrás, chegando a
a presença das petroquímicas no 400 partes por milhão (ppm), valor Efeitos nos mares 27
setor. É por acelerar a extração de sem paralelo nos últimos 3 milhões
um estoque de carbono que, no de anos. Em virtude de um maior Os oceanos estão mais quentes,
contexto da crise climática, teria de efeito estufa, entre 1970 e 2015, a mais ácidos e com menos oxigênio:
permanecer exatamente onde está. temperatura média global cresceu em 2016, acompanhando o recorde
Costumo dizer: “o petróleo é nosso a uma taxa média 170 vezes maior global de temperaturas, a superfície
para ficar no chão”. do que as mudanças de temperatura dos oceanos ficou cerca de 1°C acima
verificadas durante o Holoceno. A das temperaturas médias observadas
Desafios para sensibilização no início do século XX. A acidez
5 Antropoceno: termo usado por alguns cientistas já é 26% maior do que no período
para descrever o período mais recente na história do
Nesse sentido, não é realmente Planeta Terra. O sítio do Instituto Humanitas Unisi-
pré-industrial e o teor de oxigênio
trivial trabalhar o convencimento nos – IHU tem tratado dessa perspectiva em diversas dissolvido nos oceanos caiu 2,1%
publicações. Entre elas “Antropoceno: ou mudamos
junto principalmente aos setores da nosso estilo de vida, ou vamos sucumbir”. Entrevista em 50 anos. O fluxo de sedimentos
população urbana que se beneficiam especial com Wagner Costa Ribeiro, publicada nas
Notícias do Dia, de 29-02-2016, disponível em http://bit.
decorrente da atividade mineradora
a curto prazo e guardam ilusões com ly/1T5xU2U. Confira mais em http://bit.ly/1TFub7T. (Nota atingiu impressionantes 57 bilhões
da IHU On-Line)
esse modo de vida insustentável. E 6 Owen Gaffney: diretor de mídia e estratégia interna- de toneladas ou cerca do triplo da
não é apenas em relação ao uso de cional no Stockholm Resilience Centre, engenheiro de
astronáutica e aeronáutica, é também jornalista, ci-
soma daquilo que é carregado pelos
combustíveis fósseis, mas a toda a neasta e escritor. Seu trabalho concentra-se na com- rios de todo o planeta.
preensão, comunicação e visualização do impacto da
insustentabilidade do uso de água, da humanidade no planeta através de conceitos como o
cultura do consumismo e descarte... Antropocendo e fronteiras planetárias e processos de
transformação. (Nota da IHU On-Line)
6ª grande extinção
A lógica de expansão ilimitada da 7 Will Steffen (1947): químico americano, professor e
produção e consumo, uma ilusão que pesquisador da Australian National University, foi di-
retor executivo do Instituto de Mudanças Climáticas
Devido à combinação de vários
os economistas e políticos adoram da Universidade Nacional Australiana e membro da fatores, como destruição de habitats,
Comissão Australiana de Clima. De 1998 a 2004, foi di-
vender, já ultrapassou os limites de retor executivo da International Geosphere-Biosphere, caça e pesca indiscriminadas,
equilíbrio do Sistema Terra. organismo de coordenação de organizações nacio-
nais de mudança ambiental com sede em Estocolmo.
introdução de espécies invasoras
(Nota da IHU On-Line) e mudanças climáticas, a perda de
IHU On-Line - É verdade que os 8 Holoceno: divisão da escala de tempo geológico, é
a última e atual época geológica do Quaternário. O espécies é 100 vezes maior do que
cientistas falam que entramos começo do Holoceno é definido na mudança climáti- o que seria considerado normal,
em outra época geológica em ca correspondente à do final do episódio frio conhe-
cido como o Dryas recente, após a última glaciação, situação já comparável às grandes
virtude da ação humana? e abrange os últimos 11.784 anos, tendo 2000 como
referência de tempo base. Ele é um período intergla- extinções da história da Terra. Em
Alexandre Araújo Costa - Sim, cial em que a temperatura foi mais suave e calotas de-
sapareceram ou diminuíram de volume, o que causou
outras palavras, estamos entrando na
é verdade. Já ficou evidenciado uma elevação do nível do mar. (Nota da IHU On-Line) 6ª grande extinção. A contaminação

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

química é um fenômeno exponencial, configurando o que se As escolhas que salvaguardam o


generalizado, com substâncias convencionou chamar de “a grande futuro são as no sentido de uma
artificiais (e tóxicas) tendo sido aceleração”, particularmente nítida sociedade igualitária, democrática e
encontradas até em seres vivos que a partir da segunda metade do que utiliza racional e contidamente
habitam a Fossa das Marianas9. Em século passado e início deste. É isso a matéria e a energia que o restante
suma, se alguma civilização visitar que produziu o Antropoceno. da natureza lhe fornece. Precisamos
a Terra, ou nela evoluir, e seus urgentemente de uma inflexão na
Mas, na Natureza, tudo que
arqueólogos resolverem perfurar velocidade dos processos e (tentativa
cresce exponencialmente produz
a crosta para fazer pesquisa, vão de) reversão das alterações
instabilidade, seguida de colapso.
ficar horrorizados com o que irão ambientais deletérias associadas ao
É simples assim. Na Física, quando
encontrar. Antropoceno.
resolvemos as equações de um
IHU On-Line - Qual a relação problema e uma das soluções é de Problema aí é que mexe nas
entre o paradigma econômico crescimento exponencial, nós a estruturas econômicas e políticas.
hegemônico e o Antropoceno? descartamos, por ser implausível. Mexe com a indústria mais
Quais os desafios para se pensar Violar a conservação da massa, a poderosa de todas (6 das 10
noutro paradigma econômico? conservação da energia e a 2ª Lei da maiores companhias do mundo
Termodinâmica10 parece ser o sonho são petroquímicas). Mexe com
Alexandre Araújo Costa -
da economia capitalista, mas só os bancos que têm investimentos
O sistema produtivo capitalista
pode conduzir ao pesadelo de uma gigantescos nelas, nas mineradoras
experimentou nas últimas décadas
sociedade insustentável. etc. Mexe com o sistema político
enormes transformações, que
profundamente corrompido pelo
colocaram o planeta sob intensa Colapso civilizacional
poderio do capital.
pressão no que diz respeito às fontes
de matérias-primas e de energia. Por isso, costumo dizer, já que IHU On-Line - Falando no
Interconectado globalmente, o o colapso dessa civilização é poderio das petroquímicas,
sistema capitalista proporcionou inevitável, que precisamos de um recentemente veio a público
um fluxo extremamente intensivo “colapso do bem”. As escolhas o vídeo Climate of Concern11,
28 não apenas de capital especulativo, que mais salvaguardam o futuro produzido pela Shell ainda em
mas desses materiais e dos produtos (inclusive a velhice das gerações 1991. O que os documentos
a partir deles fabricados. As redes atuais) são precisamente aquelas da Exxon (do final da década
longas desse sistema econômico mais contrárias à lógica do mercado de 1970 e dos anos de 1980) e
ligaram, via extração, produção e e da acumulação de capital (e são esse vídeo da Shell de 1991, que
consumo, praticamente todos os absolutamente urgentes). São as reconhecem e alertam para os
indivíduos em praticamente todos os que batem de frente com incentivo riscos do aquecimento global,
cantos do planeta. Por terra, pelo ar ao consumismo, obsolescência revelam? E significa que agora
e pelos mares, milhões de toneladas programada, propaganda, uso há possibilidade de mudança
de material de bauxita a celulares extensivo de embalagens, criação de posturas?
viajam todo ano, numa espiral de falsas necessidades em torno de
itens fúteis e supérfluos, transporte Alexandre Araújo Costa - O
crescente.
individual, expansão das fronteiras que esse vídeo mostra, o que esses
O resultado dessa expansão extrativista e agrícola, uso perdulário documentos mostram pode ser
não apenas em volume do que de matéria-prima e energia, matriz resumido em duas palavrinhas:
é produzido e consumido, mas energética concentrada e baseada eles sabiam! Antes disso tudo, há
no aumento da velocidade principalmente em combustíveis quase meio século, em 1968, por
do transporte e do descarte, fósseis, excesso de produção, uso encomenda do American Petroleum
estabeleceu um conflito que faz a massivo de fertilizantes e outros Institute - API12, um relatório
luta de classes parecer um diálogo agroquímicos, jornadas de trabalho preparado por pesquisadores do
amigável: a contradição insolúvel muito mais prolongadas do que o Instituto de Pesquisa Stanford
entre um sistema intrinsecamente necessário, etc. alertava que “a humanidade está
expansionista e um mundo
limitado. Os chamados  limites 11 Climate of Concern: vídeo de divulgação da em-
planetários  estão sendo um a um 10 Primeira lei da termodinâmica: é uma versão da presa Shell de 1941, mas divulgado recentemente,
lei de conservação da energia. Também conhecido que alerta para os perigos da mudança climática. Leia
ultrapassados. As curvas de diversos como Princípio de Joule, este postulado admite que mais e assista ao vídeo em O vídeo dos anos 90 em
diversas formas de trabalho podem ser convertidas que a Shell admite a existência da mudança climáti-
parâmetros assumiram a forma umas nas outras, elucidando que a energia total ca, publicado nas Notícias do Dia de 1-3-2017, no sítio
transferida para um sistema é igual à variação de sua do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
energia interna, ou seja, em todo processo natural, a http://bit.ly/2n3wRbo. (Nota da IHU On-Line)
9 Fossa das Marianas: é o local mais profundo dos energia do universo se conserva sendo que a energia 12 American Petroleum Institute (API): é a maior as-
oceanos, atingindo uma profundidade de 11.034 me- do sistema quando isolado é constante. Observa-se sociação comercial dos EUA para a indústria de pe-
tros. Localiza-se no oceano Pacífico, a leste das ilhas também a equivalência entre trabalho e calor, onde tróleo e gás natural. Ela afirma representar cerca de
Marianas, na fronteira convergente entre as placas constatou-se que a variação Q - W é a mesma para 650 empresas envolvidas na produção, refinamento,
tectônicas do Pacífico e das Filipinas. (Nota da IHU todos os processos termodinâmicos. (Nota da IHU distribuição e muitos outros aspectos da indústria do
On-Line) On-Line) petróleo. (Nota da IHU On-Line)

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realizando um vasto experimento didaticamente o efeito estufa. poderia ter neste momento. Ele
geofísico” e que “mudanças Lembra, além do CO2, do metano, do está promovendo a indústria de
significativas de temperatura quase óxido nitroso e dos halocarbonetos. carvão, tem como secretário de
certamente devem ocorrer em torno É cientificamente simples e Estado o Sr. Rex Tillerson13, que
do ano 2000, trazendo consigo preciso, mostra total respeito pelo
até poucos dias atrás era CEO da
mudanças climáticas”. conhecimento científico vigente,
Exxon, nomeou um negacionista
tanto no que diz respeito às
Os relatórios internos da Exxon, climático (Scott Pruitt14) para a
observações quanto às projeções de
quando vieram a público, revelavam Agência de Proteção Ambiental
modelos, apesar das incertezas, bem
o conhecimento que a companhia com o claro intuito de desmontar a
maiores na época do que agora. O
tinha sobre os riscos da continuidade vídeo também mostra que a Shell já agência a partir de dentro, anunciou
da queima de combustíveis fósseis e tinha consciência dos impactos. Fala cortes nos programas de pesquisa da
a necessidade de mudança de rota. de elevação do nível do mar como
Por exemplo, em 1978, o cientista Agência Nacional de Administração
ameaça aos países insulares, fala Atmosférica e Oceânica – NOAA etc.
James Black, que trabalhava para a de Bangladesh, fala que a Holanda
companhia, mostrou projeções de (onde fica a sede da companhia) O próprio Trump afirmava, de
aquecimento global incrivelmente pode estar segura agora graças ao maneira bizarra, que o aquecimento
parecidas com aquelas produzidas seu elaborado sistema de barreiras e global seria “uma farsa inventada
pela comunidade de clima muitos de bombeamento, mas que no futuro
anos depois nos piores cenários. E pelos chineses” para enfraquecer a
isso é incerto. Fala, ainda, do perigo indústria dos EUA e, coerentemente,
por fim, a Shell. de quebras de safras que mudanças
deu sinal verde para os oleodutos de
Fundamental dizer que esse sutis nas zonas climáticas podem
acarretar e de refugiados climáticos. Dakota15 e Keystone XL16. Tempos
material veio à tona em larga medida
difíceis, assim como no Brasil, com o
por intervenções de organizações Uma frase, dita em tom solene
como a Union of Concerned Scientists usurpador Temer. A solução está na
pelo narrador, é particularmente
- UCS, a 350.org, o Greenpeace etc., rua, na luta, na resistência indígena
impressionante: “O aquecimento
e que há batalhas judiciais em torno e quilombola, na luta das mulheres
global ainda não é certo, mas muitos 29
deles. Nada tem a ver com uma argumentam que esperar por uma e na possibilidade de as maiorias
mudança de postura. Pelo contrário, ‘prova final’ seria irresponsável. sociais promoverem mudanças
revela que tais corporações tinham Ações agora parecem ser o único reais.■
o conhecimento do perigo do caminho seguro”. Sendo produzido
aquecimento global, tinham os hoje esse vídeo, haveria muito mais 13 Rex Wayne Tillerson (1952): empresário, engenhei-
ro e diplomata estadunidense, atual Secretário de Es-
recursos para investimento, tinham evidências a se apresentar. Teria de tado dos Estados Unidos. Como engenheiro, Tillerson
juntou-se à Exxon Mobil Corporation em 1975 e foi
a possibilidade de influenciar apresentar muito mais urgência do presidente e CEO da empresa de 2006 a 2016. (Nota
governos e outros setores da que há 25 anos e a expressão “não da IHU On-Line)
14 Edward Scott Pruitt (1968): advogado norte-ameri-
indústria e fizeram tudo para manter é certo” teria de ser trocada. Hoje, cano e político republicano do estado de Oklahoma,
atualmente é o 14º Administrador da Agência de Pro-
sua fonte de lucro. Esconderam tudo. não cabem meias palavras. Estamos teção Ambiental. (Nota da IHU On-Line)
Financiaram negacionistas, como a mais do que certos de que o planeta 15 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem publi-
cando textos sobre o tema. Entre eles Trump autoriza
Exxon. Expandiram seus negócios está aquecendo por conta das ações construção de oleodutos vetados por Obama após
e emitiram CO2 como nunca. São protestos de indígenas e ambientalistas, publicado
humanas e que a continuidade dessa nas Notícias do Dia de 25-1-2017, no sítio do IHU, dis-
corporações criminosas. rota é um desastre. ponível em http://bit.ly/2nfw9aX, e Papa parece apoiar
tribos nativas no conflito do oleoduto de Dakota, pu-
blicado nas Notícias do Dia de 18-2-2017, no sítio do
IHU On-Line - Sobre o IHU On-Line - O que a ascensão IHU, disponível em http://bit.ly/2mDaXtM. Leia mais em
conteúdo de Climate of de figuras como Donald Trump ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU
On-Line)
Concern, em que medida o que significa para as discussões 16 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem publi-
cando textos sobre o tema. Entre eles, Em tempos de
é dito ali se confirma no nosso acerca das mudanças climáticas Trump, é preciso levantar a voz em defesa da criação,
tempo? Qual seria o teor desse de nosso tempo? defende editorial de revista americana, publicado nas
Notícias do Dia de 7-12-2016, no sítio do IHU, disponí-
vídeo se fosse produzido hoje? vel em http://bit.ly/2miygGc, e Trump, na contramão do
Alexandre Araújo Costa - mundo, publicado nas Notícias do Dia de 30-1-2017,
Alexandre Araújo Costa - O Sem dúvida, a administração de no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2mDpUw9.
Leia mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias.
vídeo impressiona. Ele explica Trump é tudo o que de pior se (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- Com as catástrofes climáticas batendo à porta, estadistas discutem acordo global na
COP-21. Entrevista especial com Alexandre Costa, publicada nas Notícias do Dia de 8-12-
2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2lHyUkW.

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

- ‘’A concentração de CO2 hoje está beirando 400 partes por milhão.’’ Entrevista com pro-
fessor Alexandre Costa, publicada nas Notícias do Dia de 27-2-2013, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mn6slm.
- Mudanças Climáticas. Impactos, adaptação e vulnerabilidade. Revista IHU On-Line núme-
ro 443, de 19-5-2014, disponível em http://bit.ly/2mFeg4d.
- A Convenção do Clima em Copenhague. Um debate. Revista IHU On-Line número 311, de
19-10-2009, disponível em http://bit.ly/2lHzKy6.
- A vingança de Gaia. Mudanças climáticas e a vulnerabilidade do Planeta. Revista IHU On-
-Line número 171, de 13-3-2006, disponível em http://bit.ly/2lHEELG.

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O Brasil que desmata, mata


e é incapaz de gerar riqueza
Cláudio Ângelo analisa as questões que impedem que o país avance no
combate à destruição ambiental, gerando mais violência e desigualdades
João Vitor Santos

É
sempre dito que a Amazônia é lembra, entre outros problemas, a falta de
o pulmão verde do Brasil, que a investimentos para pesquisas e coletas de
Mata Atlântica é fundamental dados e um parlamento alheio às ques-
para a preservação da biodiversidade e tões ambientais. “Enquanto não lutarmos
assim por diante. Entretanto, a cada ano, também para melhorar e diversificar a
o desmatamento aumenta. Em 2016, na composição de forças no Congresso, es-
Amazônia, foi o maior dos últimos qua- taremos enxugando gelo”, pontua. Saída?
tro anos. Entre agosto de 2015 e julho Para ele, um caminho possível é o esclare-
de 2016, foram desmatados 7.989 km2, cimento. “É preciso levar as crianças para
segundo dados do Sistema de Monitora- o mato. É preciso fazer turismo em par-
mento do Desmatamento na Amazônia ques nacionais e outras áreas protegidas.
Legal. “O desmatamento torna o Brasil o Quem não conhece não conserva”, alerta.
sexto ou sétimo maior emissor de gases
de efeito estufa do mundo”, destaca o jor- Cláudio Ângelo é jornalista formado
nalista Cláudio Ângelo, que atua junto ao pela Universidade de São Paulo - USP, 31
Observatório do Clima. Além de perder coordena a comunicação do Observatório
suas matas, há questões ainda mais per- do Clima, organismo que tem o objetivo
versas. “Traz um aspecto particularmente de formar uma coalizão de organizações
cruel, que é o fato de essas emissões não da sociedade civil brasileira para discutir
gerarem riqueza, nem desenvolvimento; mudanças climáticas. Ainda foi editor de
65% do que se desmatou na Amazônia até Ciência do jornal Folha de São Paulo e é
hoje foi para fazer pastos de baixíssima autor do livro A Espiral da Morte (São
capacidade, menos de um boi por hecta- Paulo: Cia das Letras, 2016), sobre como
re. Isso não gera riqueza para ninguém”, a humanidade alterou o clima nos polos e
avalia. como isso afeta a todos.

Na entrevista a seguir, concedida por No dia 4 de abril, das 19h30min às 22h,


e-mail à IHU On-Line, Ângelo ainda ele profere a conferência Biomas brasilei-
revela outras nuances. “A mais trágica ros e conflitos ambientais, dentro da pro-
delas são os assassinatos no campo, que gramação do evento Os biomas brasilei-
ocorrem na Amazônia e em Mato Grosso ros e a teia da vida, promovido pelo IHU.
do Sul. O Brasil é o país no mundo onde Veja a programação completa em http://
mais morrem ativistas ambientais – fo- bit.ly/biomasbrasileiros .
ram 50 entre 2010 e 2015, a maioria em
conflitos fundiários”, diz. Além disso, Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como as suas emissões de CO2: 43% delas o fato de essas emissões não gerarem
interferências e impactos vêm do desmatamento, em especial riqueza, nem desenvolvimento; 65%
ambientais nos biomas na Amazônia e no Cerrado. O do que se desmatou na Amazônia
brasileiros repercutem nas desmatamento torna o Brasil o sexto até hoje foi para fazer pastos de
questões climáticas? ou sétimo maior emissor de gases de baixíssima capacidade, menos de um
Cláudio Ângelo - O Brasil tem efeito estufa do mundo, e traz um boi por hectare. Isso não gera riqueza
no uso da terra a principal fatia de aspecto particularmente cruel, que é para ninguém.

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

“O desmatamento torna o Brasil o


sexto ou sétimo maior emissor de
gases de efeito estufa do mundo”

IHU On-Line - Como os mais a barlavento1 e 25% menos a apenas uma estação de coleta de
biomas brasileiros estão sotavento2 de uma área desmatada. dados e ela fica numa área da cidade
interconectados? A que tipo que foi cercada de prédios. Então o
IHU On-Line Quais os maiores
de (re)equilíbrios estão que é aquecimento global e o que é
desafios para sensibilizar a
submetidos? concreto e asfalto? Difícil dizer. Isso
população sobre a importância
Cláudio Ângelo - Eles estão do debate acerca das questões vale para tudo, desde chuvas até
interconectados por estarem no climáticas? nível do mar.
mesmo território da América do IHU On-Line - Em encontros
Cláudio Ângelo - O principal
Sul e estarem sujeitos às mesmas internacionais sobre
desafio é a própria complexidade
pressões demográficas, econômicas e clima e meio ambiente, há
do assunto, difícil de comunicar ao
climáticas. Há os ecótonos, as zonas sempre uma preocupação
coração do público. Outro problema
de contato entre os biomas, e eles internacional com relação à
é que vários efeitos das mudanças
são particularmente importantes Amazônia. O que está por trás
climáticas são de muito longo prazo,
32 entre a Amazônia e o Cerrado, que
e o cérebro humano não evoluiu de toda essa preocupação? É
é onde a fronteira agrícola do Brasil importante trazer ao debate
para processar riscos que ocorrem
se expande. Em Minas Gerais, os preservacionista a questão da
fora de sua experiência direta e
pontos de contato entre a Mata soberania nacional sobre a
riscos intergeracionais. Por fim, há a
Atlântica e o Cerrado são zonas Amazônia? Por quê?
questão de que combater mudanças
críticas de desmatamento.
climáticas requer toda a sociedade
Cláudio Ângelo - O Brasil
IHU On-Line - De que forma envolvida, sem exceção, o que é
tem exercido muito mal sua
os conflitos ambientais podem sabidamente difícil de conseguir.
soberania sobre a Amazônia.
ser percebidos nos biomas
IHU On-Line - Como analisa Na época da ditadura, fazia isso
brasileiros?
os estudos sobre clima no deliberadamente, defendendo o
Cláudio Ângelo - De várias Brasil hoje? Quais os avanços e direito ao desmatamento. Esse
formas. A mais trágica delas são os os principais limites e desafios? discurso ainda permanece em
assassinatos no campo, que ocorrem alguns quadros do governo. Há
Cláudio Ângelo - A principal
na Amazônia e em Mato Grosso do temores, a meu ver infundados, de
limitação das pesquisas de clima é a
Sul. O Brasil é o país no mundo onde que os estrangeiros vão chegar aqui
absoluta carência de bases de dados
mais morrem ativistas ambientais e roubar nossas riquezas, nossa água
confiáveis e de longo prazo no Brasil.
– foram 50 entre 2010 e 2015, a (dou um prêmio para quem arrumar
Um exemplo rasteiro: em Brasília
maioria em conflitos fundiários. um esquema para fazer isso) etc.
nós sabemos que as temperaturas
IHU On-Line - Como mínimas subiram 2 graus desde Enquanto isso, transformamos a
compreender os microclimas 1961. Mas não conseguimos isolar floresta em fumaça, efetivamente
brasileiros e suas mudanças a os efeitos da mudança climática internacionalizando-a, já que o
partir dos biomas nacionais? da ilha de calor urbana, porque há carbono emitido vai parar no mundo
todo.
Cláudio Ângelo - Um exemplo 1 Barlavento: termo náutico que se refere ao lado de
simples: um estudo publicado onde e para onde sopra o vento. Barlavento é o lado Acho curioso que essas pessoas
que está na direção do vento. Quando dois barcos em
em fevereiro no periódico Nature mesmas amuras estão em compromisso, o que está
que batem tanto no peito para
Climate Change mostrou que o por sotavento é o barco de sotavento. O outro é o bar- dizer “A Amazônia é nossa!” não se
co de barlavento. (Nota da IHU On-Line)
desmatamento em Rondônia, 2 Sotavento: termo náutico que se refere ao lado de incomodam com venda de terras a
onde e para onde sopra o vento. Sotavento é o lado
depois de um certo tamanho de oposto ao lado do qual sopra o vento. Quando se ve- estrangeiros nem com a participação
clareiras, altera completamente a leja com o vento entrando pela valuma ou em popa maciça de empresas multinacionais
rasa, o lado de sotavento é o lado em que está sua
distribuição das chuvas. Chove 25% vela grande. (Nota da IHU On-Line) no agronegócio brasileiro. Parece,

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para parafrasear o Romero Jucá3, uma direitos difusos. Para mim essa é IHU On-Line - Como
xenofobia selecionada. Então, embora a maior crise. Claro que devemos analisa a política e postura
seja óbvio que é preciso defender a lutar contra o desmatamento, mas do Brasil diante dos debates
integridade do território brasileiro, há enquanto não lutarmos também
internacionais sobre questões
um ranço militarista extemporâneo para melhorar e diversificar a
nessa questão de soberania. composição de forças no Congresso, climáticas?

IHU On-Line - É comum estaremos enxugando gelo. Cláudio Ângelo - O Brasil

“Vários efeitos
observarmos no Rio Grande é um ator relativamente
do Sul, por exemplo, grupos progressista, mas ao mesmo tempo
que defendem a Mata Atlântica
e até mesmo a Amazônia, mas das mudanças relativamente conservador. Já foi
bem pior, mas está longe de fazer o
desconhecem a importância
de preservação do Pampa. climáticas são que lhe cabe para reduzir emissões.
Quais os desafios para se
conhecer e preservar todos os de muito lon- Há diplomatas extremamente
competentes, mas se aferram a
biomas brasileiros?
go prazo, e o alguns dogmas, como o Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo, a
cérebro huma-
Cláudio Ângelo - É preciso
levar as crianças para o mato. É negação total aos mercados de
preciso fazer turismo em parques
nacionais e outras áreas protegidas. no não evoluiu REDD+4 e uma insistência em
achar que seu sistema energético é
Quem não conhece não conserva. É
claro que se eu for a Foz do Iguaçu para proces- limpo.
voltarei de lá disposto a matar pela
preservação da Mata Atlântica, mas
sar riscos que De modo geral, é muito bom em
cobrar os países ricos, que de fato
se não visitar o Parque Nacional de
Brasília, jamais vou querer fazer o
ocorrem fora não se esforçam muito, mas não se
33
mesmo pelo cerrado. de sua experi- enxerga e vive dizendo que já fez
muito, o que é uma mentira. Nada
IHU On-Line - Qual a maior
ameaça aos biomas brasileiros ência direta” do que o Brasil fez na última década
hoje? Como enfrentá-la? para cortar emissões produziu um
IHU On-Line - Qual a milímetro de mudança na economia
Cláudio Ângelo - A maior importância de perspectivas real. O país também tem perdido
ameaça é uma aliança espúria como a da ecologia integral,
entre interesses particulares e sua relevância no debate climático,
concepção de novas formas
o Congresso Nacional. Setores como perdeu sua relevância em
de economia e consumo e até
do agronegócio e do poder quase todos os outros temas na
um novo humanismo para o
econômico elegem parlamentares arena internacional.■
debate sobre a preservação do
comprometidos com a destruição
planeta?
do meio ambiente e a extinção de 4 REDD (do inglês Reducing Emissions from Defores-
tation and Forest Degradation; em português, “Redu-
Cláudio Ângelo - Não entendo ção de emissões decorrentes do desmatamento e
3 Romero Jucá (1954): é um economista e político bra- nada de ecologia integral, mas da degradação de florestas”): é uma série de passos
sileiro. Está em seu terceiro mandato como senador. projetados para utilizar incentivos de mercado e finan-
Foi ministro do Planejamento do Brasil no governo mudar padrões de consumo é ceiros visando à redução de emissões dos gases do
de Michel Temer, pedindo exoneração após a divul- efeito estufa decorrentes degradação das florestas e
gação de uma gravação com Sérgio Machado, da fundamental, já que é o nosso do desmatamento. É um mecanismo que, em tese,
Transpetro, publicada pela Folha de S.Paulo, em que consumo que está nos levando à tem como finalidade atacar as causas do aquecimen-
Jucá sugere um “pacto” para barrar a Lava Jato. (Nota to global, reduzindo o desmatamento e a degradação
da IHU On-Line) breca. ambiental em geral. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- Mudanças Climáticas. Impactos, adaptação e vulnerabilidade. Revista IHU On-Line núme-
ro 443, de 19-5-2014, disponível em http://bit.ly/2mFeg4d.
- A Convenção do Clima em Copenhague. Um debate. Revista IHU On-Line número 311, de
19-10-2009, disponível em http://bit.ly/2lHzKy6.
- A vingança de Gaia. Mudanças climáticas e a vulnerabilidade do Planeta. Revista IHU On-
-Line número 171, de 13-3-2006, disponível em http://bit.ly/2lHEELG.

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Preservar a Mata Atlântica é melhorar a


qualidade de vida da população
O geógrafo e ambientalista Mário Mantovani destaca que cerca de 60% dos
brasileiros vivem na área onde originalmente o bioma se estendia

João Vitor Santos e Vitor Necchi

A
Mata Atlântica – uma das mata e de restaurar áreas degradadas,
maiores biodiversidades do Mantovani aposta no relacionamento
planeta – é um bioma brasi- das florestas com qualidade de vida.
leiro que se estende do Piauí até o Rio “Este é o grande esforço que temos para
Grande do Sul, abrangendo 3.429 mu- a sociedade entender, foi por isso que
nicípios, cerca de 60% da população e a evitamos o colapso.”
maior parte do PIB brasileiro. “Ou seja,
pressão total em cima dessa floresta”, Mário Mantovani é geógrafo e dire-
avalia o geógrafo e ambientalista Má- tor de Políticas Públicas da Fundação
rio Mantovani, da Fundação SOS Mata SOS Mata Atlântica, criada em 1986,
Atlântica. Quando perceberam que o primeira organização não governamen-
Brasil perdia em floresta o equivalen- tal destinada a defender os últimos re-
te a um campo de futebol a cada qua- manescentes de Mata Atlântica no país.
34 tro minutos, e que havia apenas 8% da Ele é um dos mais importantes militan-
área original, “começamos a perceber tes pela preservação ambiental do país,
que era preciso estancar a hemorragia”, em atuação desde 1973.
lembra em entrevista concedida por te-
lefone para a IHU On-Line. No dia 13 de junho, das 19h30min às
22h, ele profere a conferência Mata
Para compreender a importância do Atlântica e seus ecossistemas. Desma-
bioma, Mantovani destaca um dos prin- tamento, conflitos e políticas ambien-
cipais benefícios da floresta: “A água tais, dentro da programação do evento
que a gente bebe vem da floresta”. Sem Os biomas brasileiros e a teia da vida,
a mata, não se cumpre o ciclo da água. promovido pelo IHU. Veja a programa-
A cobertura florestal também interfere ção completa em http://bit.ly/biomas-
diretamente na temperatura dos mi- brasileiros .
croclimas. Para conscientizar as pesso-
as acerca da necessidade de preservar a Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Mata da Mata Atlântica1, define que vai do especificidades desse bioma,
Atlântica cobre o Brasil do Rio Piauí, passa pelo Ceará e desce até o que abrange regiões tão
Grande do Norte ao Rio Grande Rio Grande do Sul, e também pega distintas, e seus ecossistemas?
do Sul... parte da Argentina – na região de Foz
Mário Mantovani – É uma das
do Iguaçu, no canal do rio Paraná – e
Mário Mantovani – Na verdade, maiores biodiversidades do planeta.
praticamente o Paraguai todo.
do Piauí até o Rio Grande do Sul. Na região de Itacaré, na Bahia,
Antigamente, até os anos 80, havia IHU On-Line – Quais as por exemplo, foram encontradas
o mapa do IBGE [Instituto Brasileiro 456 espécies vegetais de porto
de Geografia e Estatística]. O último 1 Lei da Mata Atlântica: Lei Nº 11.428, de 22 de dezem- arbóreo por hectare. Na Europa,
mapa, quando se definiu os biomas, bro de 2006. Dispõe sobre a utilização e a proteção são 20. Não há como comparar.
da vegetação nativa do bioma Mata Atlântica. (Nota
no final dos anos 2000, depois da Lei do IHU On-Line). Há muita biodiversidade. Tem uma

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Tínhamos uma floresta que es-


tava sobre onde se localizam
3.429 municípios. Cerca de 60%
da população brasileira vive onde
um dia teve Mata Atlântica”

área contínua entre São Paulo e talvez tenha sido a reunião sobre tempo atrás. Havia mais informação
Paraná. Santa Catarina ainda tem meio ambiente mais importante do da Mata Atlântica com os botânicos
muita cobertura florestal. Outra mundo –, nós perdíamos de floresta, de Nova York e da Europa do que com
característica é a grande ameaça naquele momento, o equivalente a os daqui. Isso fez com que o Brasil
que houve contra este bioma, por um campo de futebol a cada quatro tivesse um imenso problema com
isso a importância da Lei da Mata minutos. E nós apuramos que relação aos biomas. Nos anos 70, da
Atlântica. Quando começamos o tínhamos apenas 8% da área original Amazônia se falava “integrar para
SOS Mata Atlântica, tínhamos uma da Mata Atlântica. Tínhamos uma não entregar”6, então se destruía sem
marca: estão tirando o verde de nossa floresta que estava sobre onde se saber o que se estava destruindo, a
terra. Era praticamente intuitivo, localizam 3.429 municípios. Cerca Transamazônica7, essa coisa toda.
porque imaginávamos que estava de 60% da população brasileira vive Nós, da Mata Atlântica, também
tendo um desmatamento muito onde um dia teve Mata Atlântica vivíamos essa destruição por total
grande. Quando fizemos os dados no seu quintal. A maior parte do desconhecimento. No Vale do Rio
do atlas2 que apresentamos na ECO PIB brasileiro está nessa região. Ou Doce – que teve recentemente esta 35
923 – quando o [José] Lutzenberger4 seja, pressão total em cima dessa tragédia em Mariana8 –, a floresta
ainda era ministro do Collor5, e floresta. Começamos a perceber que foi destruída em menos de cem
era preciso estancar a hemorragia. anos. Devastada totalmente, e hoje é
2 Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlânti- A mata era como alguém em uma uma das realidades mais complexas,
ca: disponível em http://mapas.sosma.org.br/ UTI com 8% de chance de viver e,
3 Rio 92: Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento – CNUMAD (Rio 92), em vez de colocar soro e sangue, 6 Integrar para não entregar: lema do Projeto Rondon,
realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Um dos iniciativa do governo brasileiro coordenada pelo Mi-
principais resultados do evento foi a Convenção sobre
continuavam drenando. Estancar a nistério da Defesa, em colaboração com a Secretaria
Diversidade Biológica – CDB, instrumento internacio- hemorragia é algo muito importante de Educação Superior do Ministério da Educação –
nal relacionado ao meio ambiente que funciona como MEC. De 1967 a 1989, ano em que foi extinto, o pro-
um guarda-chuva legal/político para diversas conven- e característico dessa floresta. É o jeto envolveu mais de 350 mil estudantes de todas as
ções e acordos ambientais mais específicos. A CDB regiões do país. O lema expressava um ideário de-
é o principal fórum mundial na definição do marco
único bioma do Brasil que tem uma senvolvimentista articulado à doutrina de segurança
legal e político para temas e questões relacionados regulamentação. Impressiona que, nacional. O projeto promovia atividades de extensão
à biodiversidade (168 países assinaram a CDB). (Nota universitária levando estudantes voluntários às comu-
da IHU On-Line) na Constituição de 1988, quando se nidades carentes e isoladas do interior do país, onde
4 José Lutzenberger (1926-2002): agrônomo e eco- definiu os patrimônios nacionais – participavam de atividades de caráter notadamente
logista brasileiro que participou ativamente da luta assistencial, organizadas pelo governo. Segundo
pela conservação e preservação ambiental. Foi se- Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal os críticos do projeto, a iniciativa também cumpria
cretário-especial do Meio Ambiente da Presidência funções de cooptação do movimento estudantil. Em
da República de 1990 a 1992. Em 1971, depois de 13 –, não colocaram nem Cerrado e 2005, o Projeto Rondon foi relançado pelo governo
anos como executivo da Basf, abandonou a carreira
para denunciar o uso indiscriminado de agrotóxicos
nem Caatinga. federal, a pedido da União Nacional dos Estudantes
(UNE). (Nota da IHU On-Line)
nas lavouras do Rio Grande do Sul. A partir de então, 7 Rodovia Transamazônica (BR-230): projetada duran-
se dedicou à natureza e defendeu o desenvolvimento te o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici
sustentável na agricultura e no uso dos recursos não IHU On-Line – Nem o Pampa? (1969 a 1974), é uma das chamadas “obras faraôni-
renováveis, alertando para os perigos do modelo de cas” realizadas pelo regime militar devido às suas
globalização em vigor. Participou da fundação da proporções gigantescas. É a terceira maior rodovia
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natu-
Mário Mantovani – O Pampa do Brasil, com 4 mil quilômetros de comprimento, cor-
ral (Agapan), uma das entidades ambientalistas mais também não. Era uma visão muito tando os estados brasileiros da Paraíba, Ceará, Piauí,
antigas do país, e criou a Fundação Gaia. Leia mais Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas. Nasce na ci-
na edição 18 da revista IHU On-Line, intitulada Lut- ruim que se tinha de bioma até pouco dade de Cabedelo, na Paraíba, e segue até Lábrea, no
zenberger: uma vida em favor da natureza, publicada Amazonas. Em grande parte, principalmente no Pará
em 20 de maio de 2002, disponível em http://migre. e no Amazonas, não é pavimentada. Planejada para
me/5uSsx. Leia, também, a entrevista com a jornalis- (1964-1985). Seu governo foi marcado pela implemen- integrar melhor o norte brasileiro com o restante do
ta Lilian Dreyer, intitulada A atualidade do legado de tação do Plano Collor, pela abertura do mercado na- país, foi inaugurada em 30 de agosto de 1972. (Nota
Lutzenberger, na edição 395 da revista IHU On-Line, cional às importações e pelo início de um programa da IHU On-Line)
de 4-6-2012, disponível em http://bit.ly/L9KRnY. (Nota nacional de desestatização. Seu plano, que no início 8 Desastre de Mariana: na tarde de 5 de novembro de
da IHU On-Line) teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a 2015, a barragem de Fundão – localizada no subdis-
5 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista, recessão econômica, corroborada pela extinção, em trito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do centro
economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito 1990, de mais de 920 mil postos de trabalho e uma do município de Mariana (MG) – rompeu e transfor-
de Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas inflação na casa dos 1.200% ao ano; junto a isso, de- mou toda a localidade em um grande mar de lama
de 1987 a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º núncias de corrupção política envolvendo o tesoureiro e destruição. A Samarco é a empresa da área de mi-
presidente do Brasil, de 1990 a 1992, e senador por de Collor, Paulo César Farias, feitas por Pedro Collor neração responsável pela barragem. A seção Notícias
Alagoas de 2007 até a atualidade. Foi o presidente de Mello, irmão de Fernando Collor, culminaram com do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
mais jovem da história do Brasil e o primeiro presiden- um processo de impugnação de mandato (impeach- publicou diversos materiais sobre o caso. Confira em
te eleito por voto direto do povo após o Regime Militar ment). (Nota da IHU On-Line) http://bit.ly/2bSer8z. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

porque virou praticamente um garantiu uma atenção maior do aplicado em qualquer cidade. Um
deserto, o rio sumiu de tanta erosão. poder público em relação à floresta outro ponto importante tem a ver
e suas especificidades. É um bioma com a fertilidade dos solos. Todos os
A questão da biodiversidade é
que, do ponto de vista institucional, benefícios que pudermos imaginar,
muito importante. Outra questão é a
está totalmente regulamentado a floresta tem.
definição dos biomas e a importância
da Constituição até chegar ao
de se ter uma legislação. A legislação Com relação a outros biomas, na
município. E hoje os municípios
da Mata Atlântica foi construída pela Mata Atlântica está a maioria da
– e talvez esta seja a questão mais
sociedade. Isso é muito legal. Houve população brasileira e das cidades.
importante – podem fazer valer
um debate nacional, uma mobilização Isso é muito importante: reconhecer
a Lei da Mata Atlântica com os
muito grande para entender o que essa floresta está no nosso
planos municipais10. Isso foi muito
que era bioma, para estancar a quintal e como poder recuperá-la.
bom, porque o município, além da
hemorragia. Artistas, universidades O Brasil assumiu agora uma meta
regulamentação feita pelos estados,
– principalmente universidades, que de restauração florestal, por meio
pode agir se tiver alguma questão
definiram biomas –, organizações do Acordo de Paris11, de restaurar 12
própria. Como fez Caxias do Sul, o
não governamentais, sociedade civil, milhões de hectares e pastos. Hoje,
caso que eu mais gosto no Brasil,
o que se puder imaginar aconteceu onde há mais mata degradada é na
onde há um dos melhores trabalhos
de mobilização. Nós conseguimos Mata Atlântica. Do ponto de vista
em meio ambiente do país. Lá
fazer uma legislação que fosse uma dos biomas, a Mata Atlântica é o
fizeram o plano municipal, provando
lei muito interessante, porque a que tem mais impacto direto na vida
que as pequenas propriedades não
palavra não inexiste nela. Não é dos brasileiros. Por isso há muita
destroem a Mata Atlântica – pelo
aquele esquema não pode, não faz, pressão, até por conta do tamanho
contrário, elas garantem.
não acontece. É uma lei que diz o dela. Temos o calor extremo no
que pode. No seu caput, é dito que IHU On-Line – Como Piauí e o frio extremo no Rio Grande
a lei garante o uso e a proteção da compreender a função desse do Sul. É uma floresta de grande
floresta. Não imobiliza. bioma no grande conjunto diversidade de espécies, porque vai
dos ecossistemas brasileiros do nível do mar até as montanhas
Em 1992, o Lutzenberger – quando e sua relação com o Oceano
36 viu este dado que se perdia da de Minas Gerais. A floresta tem uma
Atlântico, já que é o primeiro característica muito diferenciada,
floresta o equivalente a um campo bioma para quem entra no
de futebol a cada quatro minutos, muito distinta do Cerrado, por
continente vindo do mar? exemplo, onde há tanta diversidade,
e que só havia ainda 8% – fez o
Decreto 7509, que foi promulgado Mário Mantovani – A melhor mas há uma homogeneidade. A
no ano seguinte. O texto dizia não forma de falar disso é falar dos Amazônia é muito homogênea. A
pode, não pode, não pode, e na benefícios da floresta. Por exemplo, Mata Atlântica, ao contrário, tem
dúvida, não pode também. Isso foi a água que a gente bebe vem da mangues, restingas, araucária,
muito ruim, todo mundo passou a floresta. Se não tiver árvores, se entre outras fisionomias florestais.
odiar a floresta, porque estava todo não houver infiltração no solo Esta riqueza é diferente. Todo
mundo incriminado. A Lei da Mata da água da chuva, se não houver esse conjunto que forma o bioma
Atlântica, que foi construída por todo evapotranspiração, se não tiver interage com a Amazônia e com o
mundo, tira essa coisa do não pode e uma condição boa de umidade, não Cerrado nas zonas de transição. Por
apresenta o como pode se fazer. Aí haverá agricultura, não haverá água exemplo, no meio do estado de São
aconteceu algo muito legal. Como para beber na cidade. A questão Paulo, tem Cerrado, mas com cara
todo mundo estava ligado nisso, de ter cobertura florestal interfere de Mata Atlântica, porque tem uma
ou amava ou odiava, conseguimos diretamente, por exemplo, na mistura. Esta é a característica mais
que cada um dos 17 estados onde temperatura do microclima. Em marcante da Mata Atlântica.
há Mata Atlântica regulamentasse São Paulo, a SOS Mata Atlântica
IHU On-Line – Qual a atual
o que ela é. Não é aquela lei de apoiou um estudo que mostra que
situação do bioma Mata
Brasília, que nunca vai se cumprir. há até oito graus de diferença na
Atlântica? Em que regiões do
Cada região definiu conforme suas temperatura entre bairros mais
Brasil é mais degradado e em
especificidades. Por exemplo, a verdes e menos verdes. Isso pode ser
que lugares é mais preservado?
definição de uma floresta secundária
em estágio médio no Rio Grande 10 Plano Municipal de Conservação e Recuperação Mário Mantovani – Desde 1985,
da Mata Atlântica (PMMA): previsto na Lei da Mata
do Sul é diferente da elaborada em Atlântica (Lei nº 11.428/06, a Lei da Mata Atlântica), a SOS Mata Atlântica monitora
que estabelece que os municípios devem assumir
Santa Catarina ou no Paraná. Isso sua parte na proteção dessa importante floresta atra-
vés dos instrumentos de planejamento. O PMMA reú- 11 Acordo de Paris: tratado no âmbito da Convenção-
ne e normatiza os elementos necessários à proteção, Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Cli-
9 Decreto nº 750: assinado em 10 de fevereiro 1993, à conservação, à recuperação e ao uso sustentável ma (UNFCCC, sigla em inglês), que regula medidas
dispõe sobre o corte, a exploração e a supressão de da Mata Atlântica. A elaboração e implementação do de redução da emissão de dióxido de carbono a partir
vegetação primária ou nos estágios avançado e mé- PMMA deverá ser efetivada em cada município desse de 2020. O acordo foi negociado durante a COP-21,
dio de regeneração da Mata Atlântica, e dá outras bioma pelas prefeituras e pelos conselhos de Meio em Paris, e aprovado em 12 de dezembro de 2015.
Providências. Ambiente. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

isso todo ano, através de imagens importante. A expansão urbana meio ambiente. A Mata Atlântica
de satélite. Antigamente com uma é uma grande ameaça, e temos o é determinante para a maioria dos
escala maior, porque os satélites desafio de fazê-la dentro de uma rios que temos.
não tinham tanta capacidade. Hoje, legislação que proteja mais a
IHU On-Line – A Mata
conseguimos ver qualquer alteração natureza. O desconhecimento das
Atlântica era tida como o
de três hectares, o equivalente a três pessoas em relação à lei também é
primeiro desafio para os
campos de futebol. O monitoramento uma grande ameaça, apesar de a lei
exploradores que chegavam
da SOS revelou que o lugar que ter sido construída pela sociedade,
ao Brasil. Ao longo da história,
mais teve pressão nos últimos anos de ter sido muito falada, mas a
maioria dos municípios ainda não o bioma sempre foi muito
foi Minas Gerais, em função da
tem o plano municipal da Mata desmatado em decorrência do
siderurgia, que estava em alta, e fazia
Atlântica. Trata-se de um grande avanço da população e suas
carvão da floresta. Havia registro de
desafio, porque isso vai combater atividades econômicas. Mas,
crianças trabalhando nos fornos,
todos os problemas decorrentes as ameaças que persistem. hoje, por que o desmatamento
do desmatamento. Agora, a maior persiste? Quais os limites e
IHU On-Line – De que forma avanços da legislação brasileira
pressão sobre a Mata Atlântica não
o desequilíbrio no bioma para proteção desse bioma?
é de conversão de área de mata para
pode impactar nas reservas
agricultura, mas a questão urbana, Mário Mantovani – O
hídricas do Brasil?
a expansão das cidades. É incrível, desmatamento existe hoje por conta
porque o mercado imobiliário Mário Mantovani – O impacto da pressão da expansão urbana. Ele
aproveita a mata como atrativo para é direto, porque, sem a mata, não foi resultado dos ciclos econômicos,
vendas, “compre seu lote, compre se cumpre o ciclo da água. Ela é mas hoje se deve, sobretudo,
sua casa com vista para a mata, perto um dos principais fatores, abastece à expansão urbana e a alguns
da mata”. A mata é tão valorizada as nascentes, garante a qualidade momentos da economia. Minas foi
hoje e, assim mesmo, tão agredida. da água que se bebe. Por conta da campeã de desmatamento porque a
erosão, os rios estão ficando cada siderurgia estava em alta no Brasil,
IHU On-Line – O que mais vez mais rasos, com terra dentro. então usava-se carvão vegetal. O
contribuiu para degradação Cada vez mais temos enchentes, mundo todo estava comprando
37
da Mata Atlântica foi o principalmente nas cidades. Todas
adensamento urbano, o fato de a produção, então havia pressão
as intervenções feitas na floresta direta em Minas. Tirar da natureza
ela ser costeira? impactam diretamente o rio, a é mais fácil do que plantar para
Mário Mantovani – Hoje, qualidade e a quantidade de água. colher na frente. Isso foi um grande
é o adensamento urbano. Não existe fábrica de água. Não há impacto que tivemos, um repique
Historicamente, foram os ciclos como fazer água, a não ser dentro da mineração, que lá no passado
econômicos. A cana-de-açúcar no da floresta. Podemos até chamar a destruiu a Mata Atlântica e agora, de
Nordeste, os ciclos da mineração e o floresta de fábrica de água. novo.
ciclo do café, em particular, foi um IHU On-Line – Como a
desastre. Ainda sobre a pressão da
degradação dos rios impacta
economia, hoje vemos a questão dos
IHU On-Line – Quais os no bioma Mata Atlântica?
portos em alguns lugares. A maior
maiores desafios para a Mário Mantovani – A biodiversidade do planeta está em
preservação e as maiores degradação dos rios é resultado Itacaré, na região de Serra Grande,
ameaças ao bioma? do impacto da Mata Atlântica. na Bahia. Agora propuseram fazer
Mário Mantovani – O maior Sem a proteção da mata ciliar, o um porto em cima desta área, que
desafio agora é cumprir as metas agrotóxico chega dentro do rio, poderia ser uma referência para
brasileiras com a restauração a terra chega ao rio por conta da um bioma que está no limite. Lá
das áreas degradadas – por erosão, principalmente naquelas poderia ser o banco genético dessa
exemplo, onde se plantou café encostas de morro sem cobertura floresta.
– e a restauração das áreas com florestal. O rio é um termômetro de
Outro problema muito grande
maior inclinação, como as beiras como estão a sociedade e a floresta.
da floresta – e isso pode ser o mais
de rio, as matas ciliares, que Se for visto terra nele, sabe-se
importante do que estamos falando
perderam proteção com o novo que o solo está sendo mal usado.
Se for visto esgoto, sabe-se que a – é o fato de que termos 8% de
Código Florestal12, e isso é muito
população está doente. A qualidade floresta remanescente não quer dizer
12 Novo Código Florestal: O Instituto Humanitas Uni- do rio expressa a qualidade do que se trata de uma área integral.
sinos – IHU vem publicando uma série de texto sobre São milhares e milhares de pequenas
o tema. Entre eles “Rio+20 é o piso, e não é o teto” é
uma frase triste e o recibo oficial do resultado pífio. ações contra Código Florestal, publicado nas Notícias ilhas, fragmentos de florestas que
Entrevista especial com André Lima, publicada nas
Notícias do Dia de 27-6-2012,no sítio do IHU, disponí-
do Dia de 31-3-2013, no sítio do IHU, disponível em
http://bit.ly/Vy10fM. Leia mais sobre o tema em ihu.uni-
estão dentro das propriedades,
vel em http://bit.ly/MAzSD6, e Subprocuradora propõe sinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line) isoladas por agricultura. Com isso,

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

tem um fenômeno que se chama Mário Mantovani – Chegou a criar incentivos. Por exemplo,
efeito de borda. Fogo, veneno, vento, um quase colapso. A ideia da lei e da pagamento de serviços ambientais
semente, tudo isso vai agredindo o reação da sociedade foi justamente é uma lei discutida em Brasília para
fragmento que está isolado. Outro para evitar o colapso. Até se falava ajudar esses proprietários a fazerem
fenômeno que ocorre pelo fato de na época que ambientalistas gostam restauração, para reconhecer aqueles
uma porção da mata estar isolada destes temas de fim de mundo, de que protegerem. Isso é importante,
se chama erosão genética. Ele previsões apocalípticas, mas não porque o Brasil pode cumprir suas
ocorre quando as espécies acabam se trata disso – é a realidade. São metas facilmente. Não precisa de 200
se reproduzindo entre elas. Além Paulo, por exemplo, esse dado da milhões de hectares para 200 milhões
da expansão urbana e do repique da diferença de temperatura de oito de bois. A média, no mundo, é de
economia, ainda há esses problemas graus entre bairros. Segundo a quatro a seis bois por hectare, e nós
seríssimos da erosão genética e do Faculdade de Saúde Pública da USP temos um. Se colocássemos dois bois
efeito de borda, que precisamos [Universidade de São Paulo], há 8 por hectare, teríamos 100 milhões de
combater de alguma forma. mil mortes por ano em decorrência hectares para restaurar os pastos.
de problemas respiratórios, que se
IHU On-Line – O fato de agravam com a poluição e a mudança IHU On-Line – Esta meta é
haver metrópoles na Mata de temperatura. Não estamos em quanto tempo?
Atlântica ajuda a devastar. Por falando da floresta que fica na mata,
outro lado, isso não daria mais Mário Mantovani – O Brasil
onde tem o mico-leão-dourado. propõe começar esta meta agora e
consciência de preservação? Estamos falando da floresta que está levá-la pelos próximos 20 anos.
Mário Mantovani – É o que dentro da cidade. Caxias do Sul fez
tentamos fazer. Quando a própria um trabalho legal, um projeto de IHU On-Line – A mata é
especulação imobiliária apresenta arborização urbana com espécies da facilmente regenerável?
a natureza como um atributo para mata atlântica, que tem frutas, que
Mário Mantovani – Não. Há
venda, é algo muito louco. Mas o traz a biodiversidade. É importante
alguns lugares com facilidade.
mais importante é relacionar isso relacionar as florestas com a
Onde foi muito devastado, como
com a água que bebemos. qualidade de vida das pessoas. Este
38 em encostas, em áreas onde se
é o grande esforço que temos para a
IHU On-Line – Até porque é plantou café há muitos anos e
sociedade entender, foi por isso que
uma pauta contemporânea, e virou um pasto tão ruim que não
evitamos o colapso.
a escassez do recurso hídrico consegue sustentar uma cabeça de
ameaça as metrópoles. IHU On-Line – O senhor falou gado, tem que começar a restaurar.
antes em meta de restauro. Que É um pouco caro. Precisa de muito
Mário Mantovani – São Paulo, meta é esta? recurso.
Piauí, Ceará não tem mais água,
Natal não tem mais água, Brasília Mário Mantovani – O Brasil IHU On-Line – É uma
não tem mais água. A crise hídrica, assinou o compromisso em Paris, mistura de conscientização
que era de São Paulo, está batendo comprometendo-se a evitar o com altos recursos.
em outros lugares. Temos que desmatamento e a restaurar 12
milhões de hectares com florestas Mário Mantovani – Muitos
aprender logo. Em Santa Catarina, recursos, mas que podem gerar
o rio Itajaí está ameaçado porque nativas e os pastos que ficaram
abandonados. No Brasil todo, temos muitos empregos também. Talvez
o vale foi devastado, e o porto está a restauração possa ser um novo
850 milhões de hectares; hoje, 200
totalmente assoreado. Em todos os ciclo da agricultura. Por exemplo,
milhões são pasto para 200 milhões
lugares há problemas decorrentes do
de bois – mais de um hectare por boi. reconhecer quem produz água em
mal uso da floresta.
Temos 60 milhões de hectares com seu território. É preciso pensar
IHU On-Line – Já se pode falar agricultura, que vai de abobrinha uma nova relação da natureza
em colapso ambiental ou seria até soja. O Brasil vai ter que pegar com a sociedade, não só aquela
muito drástico? Quando se essas áreas que ficaram dentro usuária, de tirar, tirar, tirar,
fala em apenas 8% da floresta dos pastos e dentro das áreas de como foi na Mata Atlântica e que
original parece tão ínfimo. agricultura e começar a restauração, sustentou a economia.■

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A vida no Pantanal é ritmada


pela inundação
O professor Pierre Girard afirma que o bioma ainda tem
um bom estado de conservação ecológica e de sua
biodiversidade, mas isso não quer dizer que não haja riscos
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

O
Pantanal é a maior planície de Pierre Girard é professor da gradu-
inundação do mundo, e toda ação e da pós-graduação do Instituto
a vida neste bioma é ritma- de Biociências da Universidade Federal
da pelo pulso de inundação, afirma o de Mato Grosso – UFMT. É graduado
professor Pierre Girard. Em entrevista em Geologia pela McGill University, no
concedida por e-mail à IHU On-Line, Canadá, mestre em Geologia Dinâmica,
ressalta que o “Pantanal tem ainda um com enfoque em hidrologia, pela Uni-
bom estado de conservação ecológica e versité Pierre et Marie Curie, Paris VI e
de sua biodiversidade”. Isso não quer Écoles des Mines de Paris, e doutor em
dizer que não haja riscos. As ameaças Hidrologia Isotópica pela Université du
mais frequentes na planície pantaneira Québec à Montréal – UQAM.
são desmatamento, contaminação por
derivados de petróleo, de pesticidas e No dia 20 de março, das 19h30min às
de fertilizantes, grandes obras de in-
39
22h, ele profere a conferência Pantanal
fraestrutura, ocupação humana não brasileiro: características, biodiversi-
planejada, turismo predatório e inva- dade e delimitações para a sua prote-
são por espécies exóticas. A pecuária ção, dentro da programação do evento
tradicional não chega a ser uma ame- Os biomas brasileiros e a teia da vida,
aça. A ameaça proveniente da cons- promovido pelo IHU. Veja a programa-
trução de barragens decorre do fato de ção completa em http://bit.ly/biomas-
que elas interrompem as rotas de mi- brasileiros.
gração para reprodução das espécies
de peixes nobres no Pantanal. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- a este ambiente aquático. Mas, se ainda muito pouco descoberto.
ender a vida no bioma Panta- o visitante voltar ao mesmo lugar Em que medida isso vale para o
nal? em julho/agosto, terá dificuldade Pantanal?
de acreditar que realmente voltou
Pierre Girard – Tem que Pierre Girard – Não é à toa
onde já esteve: tudo é seco. Quando
se entender que toda a vida no que a Amazônia é tomada como
se anda nos campos e nos cerrados,
Pantanal é ritmada pelo pulso de exemplo: trata-se de um gigante
os passos levantam poeira, e o ar
inundação. Neste momento, em de mais de 5 milhões de km2 que
resseca as narinas. É melhor não se
março, por exemplo, o visitante no o Brasil compartilha com Guiana
esquecer de levar água, pois a sede
Pantanal Norte vê imensas áreas Francesa, Suriname, Guayana,
é grande. Olhando bem, vê-se que
alagadas: nos cerrados, campos e Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia.
a flora, a fauna e as pessoas são tão
matas ciliares, tem uma lâmina de O Pantanal, mesmo que seja grande
bem adaptadas a esse ambiente seco
água que varia de alguns centímetros (mais de 200 mil km2, do tamanho
quanto eram ao aquático.
a alguns metros. Água até onde da Inglaterra), em comparação é
a vista alcança. Não por acaso o IHU On-Line – A Floresta pequeno. Em nenhum lugar do
Pantanal já teve nome de mar dos Amazônica é sempre mudo existe tanta diversidade
Xaraés. E todas as plantas, animais tomada como exemplo de biológica quanto na Amazônia. Por
e até os humanos estão adaptados biodiversidade, de um mundo exemplo, estima-se que existam

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

“O Pantanal é a maior planície de inun-


dação do mundo. Como ela é uma sava-
na (um cerrado) que alaga anualmente,
existem poucos equivalentes no mundo”

mais de 30 mil espécies de plantas IHU On-Line – Quais humana não planejada; turismo
no bioma amazônico, enquanto tem particularidades e diferenças predatório e invasão por espécies
ao redor de 2 mil no Pantanal. Na há entre o Pantanal brasileiro exóticas. A possibilidade de drenar
Amazônia, há povos que ainda nem e outras áreas alagadiças no áreas para agricultura da soja
foram contatados. É realmente um mundo? constitui também uma nova ameaça
mundo pouco descoberto. na borda da planície.
Pierre Girard – O Pantanal é
Isso não quer dizer que o Pantanal a maior planície de inundação do Fora da planície, temos o uso da
não seja um mundo a descobrir, mundo. Como ela é uma savana terra nas bacias de drenagem dos
mas, para o pantaneiro, ele é (um cerrado) que alaga anualmente, rios que formam o Pantanal, o que
familiar e bem conhecido. A sua existem poucos equivalentes no pode provocar assoreamento no
biodiversidade é grande (mesmo que mundo. Por exemplo, o delta interior Pantanal, assim como transporte
menor do que a amazônica) e tem do Okavango, no centro da África de contaminantes proveniente da
40 espécies animais, como a arara-azul, (Botsuana), é também um tipo de agricultura e também modificação
que no resto do país tem população savana que inunda, mas é muito no ciclo da água e dos sedimentos
diminuta, enquanto é grande no menor (6 mil km2). Outras grandes provocados por barragens e
Pantanal. áreas parecidas são os Everglades, mudanças climáticas.
nos Estados Unidos (20 mil km2), e
IHU On-Line – O que se sabe IHU On-Line – De que
as áreas úmidas de Kakadu, no norte
hoje sobre a diversidade e as forma alterações no bioma
da Austrália (20 mil km2). Mas estas
potencialidades desse bioma? Pantanal podem impactar nas
diferem do Pantanal e do Okavango
mudanças climáticas? E como
Pierre Girard – Já se tem um porque são compostas em parte por
essas mudanças impactam,
conhecimento bom da diversidade deltas marinhos.
por exemplo, na vida das
vegetal e animal do Pantanal. IHU On-Line – Qual a situação populações urbanas do Sudeste
Há vários estudos científicos a do Pantanal hoje? Quais as e de outras regiões?
respeito. Mesmo assim, é possível maiores ameaças e quais os
ainda descobrir novas espécies no Pierre Girard – O Pantanal
desafios para sua preservação?
Pantanal: insetos, anfíbios, peixes... é uma grande planície onde,
Mas já temos um bom conhecimento Pierre Girard – O bioma anualmente, o calor do ar evapora
da diversidade de mamíferos, de Pantanal tem ainda um bom estado imensas quantidades de água. O
aves, de répteis, de peixes. de conservação ecológica e de Pantanal então “resfria” a região.
sua biodiversidade. Nas últimas Num sentido, o Pantanal, com suas
Quanto às potencialidades: são décadas, houve diversos estudos funções hidrológicas preservadas,
diversas. Há potencialidades mais sobre as ameaças ao Pantanal. vem amenizar os efeitos previstos
conhecidas, como o turismo, pela Podemos pensar em ameaças de da mudança climática: um aumento
facilidade de avistar animais – dentro da planície pantaneira e de de 4 a 6 graus até 2100. Qualquer
principalmente aves e grandes fora dela. Na planície pantaneira, alteração na dinâmica das águas
mamíferos, como onças –, o que as ameaças mais frequentemente do Pantanal que venha reduzir a
não acontece na Amazônia. Existem listadas são o desmatamento (aqui área alagada e/ou o período de
também atrativos pelo turismo de incluo destruição das pastagens alagamento irá reduzir este benefício.
pesca. Tem novas potencialidades do nativas); contaminantes derivados Da mesma forma, o Pantanal
lado da bioprospecção: espécies de de petróleo, de pesticidas e regulariza as cheias e o aporte de
plantas pantaneiras estudadas para fertilizantes, entre outros; grandes sedimentos para as regiões a jusante.
produzir fitoterapêuticos, remédios obras de infraestrutura como, por Alterações no regime hidrológico
ou ainda inseticidas naturais. exemplo, a hidrovia e ocupação do Pantanal, como as que podem

13 DE MARÇO | 2017
ENTREVISTA REVISTA IHU ON-LINE

resultar da construção de uma ecológica. Todas as formações versão moderna da pecuária que
hidrovia – em que se prevê canalizar vegetais dependem de nutrientes. consiste em remover as pastagens
parte do leito do rio Paraguai –, irão Elas são a fonte de alimento para naturais e desmatar os bosques
diminuir a capacidade da planície de todas as cadeias alimentares. Uma existentes para substituí-los por
amenizar cheias e reduzir transporte redução na quantidade de nutrientes pastagens plantadas. Esta prática
de sedimentos para o território a pode significar produtividade vem reduzir a biodiversidade vegetal
jusante. O que estamos vendo com vegetal reduzida e também redução e também destruir numerosos
a mudança climática é um aumento de recursos alimentares para os habitats para as espécies animais.
de eventos extremos como cheias animais. Estudos sobre este tópico
de grandes portes. Um Pantanal IHU On-Line – Qual o impacto
são urgentemente requeridos!
perturbado não terá a mesma do turismo no bioma Pantanal?
capacidade de “tamponar” grandes Enfim, praticamente todo barra-
mento significa perda de rotas de Pierre Girard – Quando se
cheias, o que poderia resultar em considera o turismo de pesca,
mais inundações e assoreamento a migração para a reprodução das es-
pécies de peixes que são considera- há possibilidade de sobrepesca,
jusante. ainda que não exista ainda hoje
dos como nobres no Pantanal (pacu,
IHU On-Line – De que forma pintado, cachara, dourado, jaú...) e um monitoramento adequado dos
hidrelétricas e outros tipos de que têm valor comercial no bioma. estoques pesqueiros do Pantanal.
barragens podem representar Já existem ao redor de 40 hidrelétri- No Pantanal, o turista vem
riscos ao Pantanal? cas (grandes e PCHs) em funciona- principalmente para avistar
Pierre Girard – Hidrelétricas mento e mais de 90 são planejadas. a fauna (aves e mamíferos).
com grandes reservatórios, como a Acredita-se que poderia se perder ao Alguns empreendimentos têm
barragem do Manso, por exemplo, redor de um terço das potenciais ro- tido comportamentos agressivos,
têm capacidade de regularizar tas de migração desses peixes. como construções em lugares
a vazão do rio Cuiabá, um dos IHU On-Line – A pecuária inadequados, ocasionando remoção
principais formadores do Pantanal. impacta e pode se configurar de matas ciliares ou de outras
Atualmente, a regra de operação da como ameaça ao ecossistema formações arbóreas. No entanto,
barragem reproduz mais ou menos os empreendimentos turísticos 41
pantaneiro?
o regime natural desse rio. Nada ocupam uma área reduzida e
diz que será sempre assim, pois Pierre Girard – A pecuária geram impactos limitados quando
se trata de uma decisão política. A tradicional com certeza tem comparados à pecuária “moderna”
capacidade existe. Regularizar o rio modificado o ambiente original do e a grandes obras de engenharia,
significa diminuir os picos de cheia Pantanal, mas, visto a quantidade por exemplo, ou ainda à recente
e aumentar o nível de água durante de espécies que ali vivem, a pecuária “invasão” da plantação de soja no
as estiagens. Para o Pantanal, isso tradicional consegue “conviver” Pantanal.
quer dizer uma perda do pulso de bem com os ecossistemas naturais.
inundação, que é o que confere ao O mesmo não pode ser dito da IHU On-Line – O que as
Pantanal sua principal característica pecuária praticada nas regiões de experiências do pantaneiro
ecológica. planalto, onde grandes áreas de nativo ensinam sobre a
cerrado estão sendo transformadas preservação do ambiente?
Também todas as barragens, tanto
em pasto plantado, o que pode Pierre Girard – Ensinam que
as grandes quanto as pequenas
ser considerado como uma forma a pecuária, do modo tradicional,
centrais hidrelétricas (PCHs),
de devastação do bioma Cerrado.
possuem reservatórios que retêm boa convive com a conservação da
Devastação também provocada pela
parte do sedimento e dos nutrientes biodiversidade. Depois de mais de
agricultura industrializada.
que deveriam chegar ao Pantanal. O 200 anos de pecuária extensiva no
Pantanal já é um ambiente pobre em Hoje, no Pantanal, novos Pantanal, temos ainda um sistema
nutrientes, e não se tem ideia do que pecuaristas vindos de outras regiões ecológico saudável que garante
uma redução da entrada deles pode do país estão chegando. Uma boa a manutenção de uma grande
acarretar para a sua produtividade parte dentre eles quer aplicar uma biodiversidade.■

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Ineficiência de políticas públicas em


uma Caatinga cada vez mais árida
O biólogo Rodrigo Castro alerta que a região está se
tornando cada vez mais seca devido ao aquecimento global
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

A
Caatinga é um ambiente na- da/seca”, e as perspectivas de reverter
tural encontrado somente no este quadro não são alvissareiras, pois
Brasil. Essa prerrogativa foi “as ações públicas infelizmente têm se
insuficiente para sensibilizar os par- mostrado insuficientes na tentativa de
lamentares responsáveis pela Consti- frear o processo de degradação da Ca-
tuição de 1988, que incluíram apenas atinga”.
os biomas Mata Atlântica, Amazônia
e Pantanal como patrimônios nacio- Rodrigo Castro é graduado em Ci-
nais, deixando de fora a Caatinga e o ências Naturais pela Escola Politécnica
Cerrado. “Há mais de 18 anos tramita Federal de Zurique, mestre em Estu-
dos do Desenvolvimento pela National
no Congresso Nacional uma Proposta
University of Ireland e doutorando em
de Emenda Constitucional – PEC que
Ecologia e Recursos Naturais pela Uni-
visa a corrigir uma injustiça histórica”,
42 versidade Federal do Ceará. É coorde-
destaca o biólogo Rodrigo Castro, em
nador-geral do Projeto de Conservação
entrevista concedida por e-mail à IHU
do Tatu-bola (Tolypeutes tricinctus).
On-Line.
No dia 25 de maio, das 19h30min às
A Caatinga ocupa aproximadamen-
22h, ele profere a conferência Bioma
te 10% do território nacional. “Mais
Caatinga: biodiversidade, riquezas e
de 60% da sua área já foi desmatada, fragilidades, dentro da programação
e a região sofre com a maior seca dos do evento Os biomas brasileiros e a teia
últimos cem anos”, afirma Castro. Há da vida, promovido pelo IHU. Veja a
um crescente estresse hídrico na re- programação completa em http://bit.
gião, que se torna muito vulnerável ao ly/biomasbrasileiros .
aquecimento global. A tendência é que
a Caatinga “se torne cada vez mais ári- Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que con- um dos mais ricos em biodiversidade hídrico é crescente nesta região do
siste o bioma Caatinga? Quais no planeta. Ocupa aproximadamen- país altamente vulnerável ao aque-
suas riquezas e fragilidades? te 10% do território nacional e nele cimento global. A segurança hídrica
vivem 28 milhões de brasileiros que da população está cada vez mais em
Rodrigo Castro – O bioma Ca- direta ou indiretamente dependem risco, e o processo de desertificação
atinga é um ambiente natural úni- dos seus recursos naturais. está em expansão. A degradação da
co no planeta, somente encontrado terra aliada ao contínuo processo de
no Brasil. A Caatinga é uma flores- IHU On-Line – Qual a situação
queima e desmatamento, à caça pre-
ta tropical seca onde um terço das da Caatinga brasileira hoje?
datória, à baixa difusão de tecnolo-
espécies de plantas são exclusivas Rodrigo Castro – Atualmente gias sociais/sustentáveis adequadas
deste ambiente (só ocorrem lá). É mais de 60% da sua área já foi des- para a gestão dos recursos naturais
o ambiente natural que predomina matada, e a região sofre com a maior na região, à ausência de políticas
no semiárido brasileiro, tornando-o seca dos últimos cem anos. Estresse públicas de incentivo ao manejo e/

13 DE MARÇO | 2017
ENTREVISTA REVISTA IHU ON-LINE

“A segurança hídrica da popu-


lação está cada vez mais em
risco, e o processo de deserti-
ficação está em expansão”

ou proteção da floresta e ao baixo lução seguramente passa pela mas- atinga se torne cada vez mais árida/
número de áreas protegidas existen- sificação de tecnologias de convivên- seca devido ao aquecimento global.
tes neste ambiente são algumas das cia com o semiárido (preparando o Além de menos chuva, espera-se que
principais razões para o estado atual homem para os desafios climáticos os períodos chuvosos se tornem ain-
da Caatinga. cada vez maiores), criação de incen- da mais curtos.
tivos ao uso racional e à proteção de
IHU On-Line – Como com- IHU On-Line – O que se co-
recursos naturais e ampliação das
preender a relação da Caatinga nhece sobre a biodiversidade
áreas protegidas (com o objetivo de
com os demais biomas brasi- da Caatinga e como esse conhe-
assegurar a manutenção de serviços
leiros? E de que forma a degra- cimento circula entre a popula-
ecossistêmicos).
dação dessa região impacta em ção?
outros biomas? IHU On-Line – A aridez do
Rodrigo Castro – Existe um co-
Nordeste brasileiro cria uma
Rodrigo Castro – Todos os bio- nhecimento superficial da socieda-
relação específica da população 43
mas estão interligados, e a degra- de em relação à biodiversidade da
com a terra. Como compreen-
dação de um afeta direta e indireta- Caatinga. Infelizmente ainda tem
der essa relação e quais os de-
mente o outro. No caso da Caatinga, prevalecido no imaginário das pes-
safios para aliar atividades eco-
a principal interface geográfica é soas a imagem da Caatinga sendo
nômicas com preservação?
com o Cerrado e a Mata Atlântica, pobre, sofrida, degradada, seca e
ambos extremamente degradados Rodrigo Castro – Diante do sem potencialidades. O maior papel
(restam apenas 8% da Mata Atlân- crescente processo de degradação da educação ambiental em prol des-
tica e cerca de 50% do Cerrado). A da Caatinga e dos efeitos negativos te ambiente natural talvez seja aju-
degradação do Cerrado e da Mata do aquecimento global para o regi- dar a mudar esse estigma e mostrar
Atlântica impacta negativamente me hídrico da região, a população à sociedade que também existe um
a Caatinga e vice-versa. Principais encontra-se em situação cada vez outro lado desta história. Precisa-
impactos: redução de serviços ecos- mais desafiadora. Como essa po- mos continuar a disseminar “o novo
sistêmicos, erosão e pressão sobre os pulação conseguirá adaptar-se no olhar” sobre a Caatinga, retratando o
recursos naturais. futuro a este ambiente em rápida ambiente na sua exuberância, rique-
transformação? O manejo e a pro- za e possibilidades. Conseguiremos
IHU On-Line – A Caatinga é
teção do capital natural, a amplia- avançar com a valorização deste am-
um dos biomas brasileiros com
ção de investimentos em pesquisas biente único pela sociedade a partir
maior densidade populacional.
sobre uso de produtos florestais e de um maior conhecimento dos as-
Quais os impactos desse aden-
respectivos potenciais econômicos, pectos positivos deste ambiente. A
samento nos ecossistemas?
além do pagamento por serviços partir desta nova percepção, espera-
Rodrigo Castro – A alta densi- ambientais, são caminhos promis- -se engajar outros setores públicos
dade populacional coloca especial sores para garantir a manutenção e privados para voltarem esforços
pressão sobre os recursos naturais das florestas e, desta forma, assegu- para a preservação e o uso racional
da Caatinga, principalmente no que rar qualidade de vida para as popu- dos recursos naturais da região.
diz respeito à exploração irracional lações.
IHU On-Line – Como avalia a
e sem planejamento destes recursos.
IHU On-Line – É possível per- legislação, as políticas públicas
Com a crescente urbanização do ser-
ceber alterações na Caatinga e as ações do governo brasilei-
tão, e a consequente transformação
em consequência das mudan- ro para proteção e preservação
das paisagens, questões como segu-
ças climáticas? Quais? da Caatinga? E como estão as
rança hídrica, conforto ambiental e
reservas e áreas protegidas?
qualidade de vida tornam-se cada Rodrigo Castro – Os modelos
vez mais desafiadoras. Parte da so- indicam que a tendência é que a Ca- Rodrigo Castro – As ações pú-

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

blicas infelizmente têm se mostrado vação da espécie. Qual foi o em nenhum momento apoiou os
insuficientes na tentativa de frear o retorno dessa visibilidade em esforços para reduzir o risco de
processo de degradação da Caatin- termos de ações de preserva- extinção do animal, mesmo que
ga. Na realidade, isso não é exclu- ção? Quanto a Fifa aplicou em tenha sido o evento mais lucrati-
sivo da Caatinga. Em um país onde ações de proteção e como foi vo do gênero na história e que boa
o meio ambiente ainda é enxergado investido o recurso? parte deste lucro tenha sido gera-
como questão periférica e menos do com a venda de souvenirs con-
Rodrigo Castro – O tatu-bola,
importante, não poderia ser diferen- tendo o personagem Fuleco. Em
te. O descumprimento da legislação símbolo da luta pela preservação
suma, os organizadores souberam
ambiental, a ausência de políticas da Caatinga, foi indicado pela
explorar comercialmente muito
públicas inovadoras no setor e o Associação Caatinga, a partir de
bem a imagem do animal e nada
baixo investimento e desempenho campanha virtual, para mascote
fizeram para reduzir o seu risco de
do poder público na área ambiental da Copa do Mundo 2014. O evento
extinção.
são reflexo desta realidade. Conse- seguramente ajudou a dar maior
quentemente o número, o tamanho visibilidade à espécie ameaçada IHU On-Line – Deseja acres-
e a distribuição das áreas protegidas de extinção. Essa visibilidade, por centar algo?
pela Caatinga seguem muito abaixo sua vez, tornou o animal e seu ha-
Rodrigo Castro – Há mais de 18
do razoável. Vale destacar aqui uma bitat (Caatinga) mais conhecidos
anos tramita no Congresso Nacional
grata exceção neste cenário, repre- dentro e fora do Brasil junto ao
uma Proposta de Emenda Constitu-
sentada pelas iniciativas voluntárias público, mobilizou o governo fe-
cional - PEC que visa a corrigir uma
de conservação em terras privadas. deral a colocar o tatu-bola como
injustiça histórica. Na Constituição
Proprietários e proprietárias de Re- espécie prioritária para a conser-
de 1988, a Caatinga e o Cerrado não
servas Particulares do Patrimônio vação, induziu a criação de nova
foram incluídos como patrimônios
Natural - RPPN têm feito uma gran- política pública federal de prote-
nacionais, diferentemente da Mata
de diferença para a preservação dos ção da espécie, priorizou a elabo-
Atlântica, da Amazônia e do Pan-
recursos naturais e a manutenção de ração do Plano de Ação Nacional
tanal. Este fato contribuiu histori-
serviços ecossistêmicos. No Brasil, para a conservação da espécie em
camente para a desvalorização da
44 existem hoje 1,4 mil RPPN e somen- 2014, alavancou a campanha “Eu
Caatinga e de seu rico patrimônio,
te na Caatinga já são 60. Protejo o Tatu-bola” e possibi-
dando ao ambiente um tratamento
litou o início da implementação
IHU On-Line – O tatu-bola, secundário, de menor importância.
do Programa de Conservação do
animal símbolo da Caatinga, A PEC já foi aprovada pelo Senado e
Tatu-bola mantido pela Associa-
foi escolhido como mascote aguarda votação no plenário da Câ-
ção Caatinga através do apoio da
dos jogos da Copa do Mundo mara, onde já foi colocada na ordem
Fundação Grupo O Boticário de
de 2014. Na época, a Fifa dis- do dia pelo menos três vezes, sem a
Proteção à Natureza.
se que o animal, apelidado matéria ter sido apreciada devido ao
de Fuleco, era perfeito como Infelizmente o evento Copa do baixo interesse dos congressistas na
mascote e que sua adoção cha- Mundo 2014 não se sensibilizou matéria. O que poderíamos esperar
maria atenção para a preser- com a realidade do tatu-bola e dos nossos deputados?■

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

O desconhecimento da Caatinga
e o mito da seca
Para Haroldo Schistek, é preciso conhecer o ambiente
e adaptar suas necessidades de produção a ele. Do contrário,
o resultado é pouca comida e muitas áreas degradadas
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

P
recisamos concordar que não o clima. “A roça de milho morreu por
existe seca no Semiárido. Exis- causa da seca? Foi não! Pois, se tivesse
te, sim, falta de conhecimento plantado sorgo, em vez de milho, teria
sobre a realidade climática e, em con- uma roça abundante apesar da pouca
sequência, o que pode plantar ou criar. chuva. Foi a seca que matou tua vaca e
A seca na cabeça das pessoas é a pior os bezerros? Foi não, mude para a cria-
das secas”. A fala contundente é de Ha- ção de caprinos e ovinos e terá suces-
roldo Schistek, militante do Semiárido so”, exemplifica.
brasileiro, que desde o fim dos anos 80
vem lutando para que se conheça mais Haroldo Schistek é teólogo pela
essa região do país e, assim, se consiga Universidade de Salzburgo, Áustria,
conciliar a necessidade de produção de agrônomo pela Universidade de Agri-
cultura em Viena. Foi ele quem idea-
alimentos com a preservação do bioma.
46 Segundo ele, esse desconhecimento
lizou o Instituto Regional da Pequena
Agropecuária, com sede em Juazeiro,
vem desde os portugueses. “O interesse
na Bahia. O Instituto atua desde fins
estava concentrado na faixa litorânea,
da década de 1980 no Semiárido, pro-
procurando pau-brasil ou plantando
põe um desenvolvimento dentro do seu
cana-de-açúcar”, recorda. Mas a ne-
contexto edafoclimático (relação plan-
cessidade de criar gado empurrou os
ta-solo-clima, visando plantio), levan-
vaqueiros para o centro do país. A par-
do a população e os tomadores de deci-
tir daí, encrusta-se a cultura de impor
são à compreensão da especificidade do
forma de produção a uma região tão
Semiárido Brasileiro em conjunto com
peculiar.
a preservação do ecossistema.
Schistek é o idealizador da perspec- No dia 31 de maio, das 19h30min às
tiva da Convivência com o Semiárido 22h, ele profere a conferência Bioma
– CSA. “Em outras regiões áridas ou Caatinga: políticas de conservação/
semiáridas, as populações nativas sele- preservação e o paradigma da “Con-
cionaram ao longo de milhares de anos vivência com o Semiárido”, dentro
plantas para cultivar, domesticaram da programação do evento Os biomas
animais silvestres resistentes ao clima, brasileiros e a teia da vida, promovido
tudo que não tem acontecido aqui”, pelo IHU. Veja a programação comple-
destaca em entrevista concedida por e- ta em http://bit.ly/biomasbrasileiros .
-mail à IHU On-Line. É por isso que
aposta nessa relação de associação com Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se carac- e a área do domínio da Caatinga não 982.563 km², enquanto a área da
teriza o semiárido brasileiro, coincidem. Na definição dos crité- Caatinga abrange 844.453 km².
também chamado de Caatinga? rios do Semiárido Brasileiro foram
incluídas áreas limítrofes, não pro- As principais características do SAB
Haroldo Schistek - As superfí- priamente semiáridas, por ques- são as chuvas irregulares na sequên-
cies do Semiárido Brasileiro - SAB tões administrativas. O SAB cobre cia temporal, a distribuição geográ-

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Falando de ‘seca’ em relação ao


Seminário Brasileiro, revela como
é pobre o conhecimento sobre
a realidade climática da região”

fica e a alta evaporação potencial e cos fotossintéticos, vida mediana a agrícolas não conseguem completar
extremamente variável no volume longa. Estas plantas se beneficiam seu ciclo.
a cada precipitação. Caracterizar o especialmente pelas chuvas muitas Falando de “seca” em relação ao
SAB por ser pouco chuvoso passaria vezes curtas, intensas, molhando so- SAB, revela como é pobre o conhe-
no cerne da questão. Em Juazeiro da mente os primeiros centímetros do cimento sobre a realidade climá-
Bahia registramos uma precipitação solo, características do SAB. tica da região. Revela que o con-
média anual de 525 mm, semelhan-
sideramos uma região “normal”,
“Para brecar
te a cidades como Berlim, na Ale- quer dizer de chuva pouca, mas
manha, ou Viena, na Áustria. O que regular. Consideramos que a pre-
nos difere dessas cidades é que lá a
evaporação potencial fica em torno o aquecimen- cipitação “média” é algo que teria
que ocorrer a cada ano. Falamos 47
de 320 mm, enquanto em Juazeiro
pode chegar a 3.000 mm por ano. to e chuva es- de “ano normal”, quer dizer um
ano de chuva o suficiente regular,
A principal característica da Caa- cassa no SAB: para uma safra agrícola satisfató-
ria. Enquanto o “normal” no SAB
tinga, considerando aqui a porção
vegetal, é que possui uma adapta- desmatamento é a chuva irregular no espaço ge-
ográfico e na sequência temporal.
zero e recaa-
ção perfeita ao clima semiárido com
suas chuvas irregulares e grande À pergunta modificada: De que
evaporação potencial. Podemos dis-
tinguir três tipos de plantas, pelo uso tingamento em forma a chuva irregular é cons-
titutiva do bioma caatinga? Há
da água:
- Uso intensivo: gramíneas e plan-
grande escala” 10 a 8 mil anos, houve uma mu-
dança climática bastante abrupta
tas anuais. Possuem raízes rasas/ que deu início à formação do que
profundas, densas, mostram uma IHU On-Line - De que forma chamamos hoje de Caatinga. An-
rápida recuperação depois de perí- a seca é constitutiva do bioma tes a área era coberta por um tipo
odos sem chuva, rápida reprodução Caatinga? de mata atlântica, intercalado por
e vida curta. Aparecem somente em manchas semelhantes ao cerrado.
Haroldo Schistek - Em primeiro
anos de chuva suficiente. Seu tama- Evidentemente o clima é o fator
lugar, devemo-nos perguntar qual predominante na formação da co-
nho depende da água disponível. o nosso imaginário quando falamos
- Uso extensivo: por exemplo, an- bertura vegetal em qualquer parte
de “seca”. No SAB existe seca? A do mundo. O que destaca o clima
gico, juazeiro, aroeira, caatin-
meu ver, não existe. No deserto do da região não é de ser somente se-
gueira, pau ferro, jurema preta.
Saara existe seca? Também não, e miárida, mas também de chuvas
Possuem raízes muito profundas,
folhas adaptadas aos períodos sem ninguém ousaria chamar de “seca” irregulares.
chuva, vida longa. Buscam água quando a chuva cai só a cada poucos
Quando desenrolamos a sequência
em fendas muito profundas. anos. O clima do Saara é assim mes- mensal, ano por ano, tomando o caso
- Uso acumulador: por exemplo, mo. Como seca, podemos chamar da depressão sertaneja do médio São
cactáceas, faveleiro, umbuzeiro, um evento quando, numa região de Francisco, podemos observar um
bromeliáceas, umburuçu. Possuem precipitações normalmente regula- padrão geral no período chuvoso:
raízes muito rasas, órgãos de arma- res, de repente cessa a chuva ou cai as chuvas se concentram em quatro
zenamento de água, em parte tron- em quantidade inferior e as culturas meses, dezembro, janeiro, fevereiro

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

e março. Os oito meses do ano po- gnaisse…), com solos muito rasos mais no SAB. Quais são os proble-
dem ser considerados secos, com – 60 cm de profundidade – e a ine- mas aqui do SAB, quais as soluções?
talvez alguns milímetros no período xistência de um lençol freático. A
O Ministério do Meio Ambiente in-
de São João. Mas no outro lado, não outra parte são solos sedimentares
forma que 46% da Caatinga foi des-
observamos nenhum padrão na inci- (calcários, arenitos) que possuem
matada. Existem dados que indicam
dência de chuvas mensais. Podemos solos profundos a muito profundos
mais, existem áreas desertificadas,
afirmar: cada ano possui um padrão e lençol freático abundante, espe-
sem retorno, e muito da Caatinga foi
de chuva diferente. Em um ano cho- cialmente no caso dos arenitos. Na raleada. Quer dizer, foram retiradas
ve bastante em dezembro, em outro parte do embasamento cristalino árvores de maior porte para constru-
ano somente em fevereiro. Seria difí- a vegetação é mais rala e de menor ção civil, fabricação de móveis, para
cil encontrar um ano no qual a chuva porte. Impressiona viajar pelo inte- carvoarias, para lenha doméstica, de
seja distribuída uniformemente pe- rior e observar o porte das plantas e
los quatro meses do período chuvo- padarias, olarias e até reformadoras
a densidade muito maior quando o de pneus. Algo que não é recente. Na
so. subsolo muda de cristalina para cal- construção de casarões de Salvador
cário – embora a quantidade de chu- foi usado madeira de lei da Caatinga,
A dinâmica semiárida pela di- va seja exatamente a mesma.
nâmica da planta no século XIX. Um grande estrago
na vegetação nativa foi causado pelos
Se já representa um grande de-
safio para uma planta se adaptar a
“A seca é ca- navios vapores que navegaram no Rio
São Francisco, pois usavam a madeira
um regime de chuvas tão escassas, racterizada para aquecer suas caldeiras.
ter água para brotar, crescer, florar
e frutificar somente em quatro me- por algo que Quem anda pelas estradas olhando
para dentro da Caatinga, pode pensar
não existe, por
ses e depois esperar mais oito me-
que seja uma Caatinga mais rala. Mas
ses para um novo período chuvoso,
se embrenhando na vegetação perce-
maior ainda é o desafio se as chuvas
caem de maneira irregular. A planta algo que não be por toda parte os restos mortais,
troncos de então árvores frondosas.
48 precisa ter um mecanismo de extre-
ma maleabilidade para adaptar seu ocorreu, quer Mas também a retirada de plantas
para alimentação de animais, em anos
crescimento e seu ciclo reprodutivo
às grandes lacunas entre as precipi- dizer a chuva. mais secos, reduziu também a densi-
dade das plantas. Isto, especialmente,
tações, vamos dizer um intervalo de
40-60 dias entre uma primeira e a
Como comba- para manter gado bovino que não é

ter o nada, o
adaptado para as condições de semia-
próxima chuva.
ridez. Desta forma foram sacrificadas

inexistente?”
Ou se tratando de plantas anuais grandes áreas de bromeliáceas, e todo
ou de sementes de árvores e de ar- tipo de cactáceas.
bustos, elas mostram uma resistên-
cia impressionante contra água: se Uma porção de terra desnuda ou ve-
a chuva for pouca, as sementes não IHU On-Line - Apesar das ca- getação rala ou com vegetação predo-
nascem. Somente depois de dias se- racterísticas do semiárido de minantemente baixa, fica muito mais
guidos de chuva, umedecendo tam- baixa umidade, de que forma exposta à radiação solar, esquentan-
bém camadas mais profundadas do as mudanças climáticas têm do. Do solo vai subindo um ar quente,
solo, a semente brota. Assim terá a impactado na região de Caatin- que empurra as nuvens para camadas
garantia de poder firmar raízes em ga, intensificando fenômenos mais altas, impedindo a chuva. Porém,
profundidades, onde a água fica como a seca prolongada? quanto mais alto as nuvens são eleva-
armazenada. (Diferente de milho das, chegam em camadas frias e desá-
Haroldo Schistek - Antes de
ou feijão que nasce muito rápido e guam em chuvas torrenciais. Porém,
procurar a culpa na mudança cli-
morre logo, se as chuvas desconti- não consegue penetrar no solo, criar
mática, que ninguém de raciocínio
nuarem.) Mas o desenvolvimento de uma camada impermeável e arrasta a
claro pode negar, vamo-nos voltar camada fértil da superfície do solo. Re-
plantas não depende unicamente da para eventuais componentes locais
precipitação, depende também do sumindo: chuvas escassas, mais irre-
que possam ser causadores de chu- gulares ainda no tempo e no espaço e o
tipo de solo, do subsolo e do relevo. vas escassas. Mas aí existe muito es- solo degradado não permitem à planta
No SAB podemos observar diferen- paço para discussão, para teorias. A cultivada sobreviver os veranicos.
ças impressionantes na densidade maioria dos cientistas aponta chuvas
da cobertura vegetal e na ocorrên- mais escassas para o Nordeste e o Fracasso do eldorado
cia de espécies, conforme o subsolo. SAB, enquanto alguns veem a pers-
Entre 70 e 80% do SAB possui um pectiva de maneira positiva: com Um exemplo contundente encon-
embasamento cristalino (granito, o aquecimento global deve chover tramos na região de Irecê, na Bahia.

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Situada em cima de um dos melho- adequado construir políticas silvestres resistentes ao clima, tudo
res solos do Brasil (calcário), era o públicas voltadas às popula- que não tem acontecido aqui, pois a
grande e seguro fornecedor de feijão ções que vivem nestas regiões? população nativa vivia em nível de
para Salvador. E registra também caçador e coletor. Os colonizadores
Haroldo Schistek - Uns dizem
chuvas um pouco mais abundantes. portugueses introduziram plantas,
“combater a seca”, outros, “com-
Eram pequenas roças cortadas na ve- animais e tecnologias em desequi-
bater os efeitos da seca”. Que ideia
getação densa da Caatinga. Estas cla- líbrio com a realidade climática. A
mais abstrusa. Combater incêndio,
reiras não chegaram a influenciar o CSA é nada mais do que observar e
sim, mas a seca? Como seria? Pode-
clima geral da região. Era o eldorado escutar o que a natureza nos mos-
-se combater algo que existe: o ini-
do feijão. Delfim Neto1, ministro do tra como viável e depois organizar a
migo, doenças, incêndio. Mas a seca?
Planejamento, ordenou transformar vida das pessoas, as tecnologias e a
A seca é caracterizada por algo que
a região num novo polo agrícola, o do produção agropecuária de maneira
não existe, por algo que não ocorreu,
feijão. Tratores com correntes derru- apropriada.
quer dizer a chuva. Como combater
baram tudo, inclusive a árvore sagra-
o nada, o inexistente? Só pode ter sa- A CSA tem que virar política públi-
da do sertanejo, o umbuzeiro. Muita
ído do jargão militar. ca, senão o SAB vira um deserto.
terra foi grilada, muito dinheiro foi
investido, máquinas compradas. Mas
o eldorado durou pouco: a chuva co-
“Combater os efeitos da seca” faz
um pouco mais de sentido. Mas vai “Precisamos
meçou a falhar, as máquinas foram
devolvidas para os pátios dos bancos,
na mesma direção, pois o efeito da
seca é falta de comida, falta de água, concordar que
pois em Brasília não se tinha conheci-
mento do clima peculiar do SAB, nem
falta de plantas nas roças, animais
mortos… De novo, combater o nada.
não existe seca”
da importância decisiva da Caatinga Entretanto, transformando a pers- IHU On-Line - Historicamen-
em pé. pectiva em “amenizar ou anular os te, como se deu a ocupação da
efeitos da seca”, faria mais sentido. Caatinga? Como a presença hu-
Depois, os agricultores começaram
a investir em perfuração de poços, mana impactou no semiárido?
Perspectivas de futuro
aspersão etc. A região virou o polo Haroldo Schistek - Os portu- 49
da cenoura, mas não se estabilizou Mas só estou falando de coisas pas- gueses, de início, não mostraram
mais. Pois a quantidade de água em sadas, que já ocorreram e não têm nenhum interesse em ocupar o SAB.
subsolo de calcário é limitada e não mais jeito. O leite foi derramado e Algumas expedições chegaram à al-
deu, e nem dá para todo o mundo não adianta combater leite derrama- tura de Jacobina, Juazeiro e Curaçá,
que quer irrigar. do. Primeiro, precisamos concordar procurando metais e pedras precio-
Para brecar o aquecimento e chuva que não existe seca no SAB. Existe, sas e minérios. O interesse estava
escassa no SAB: desmatamento zero sim, falta de conhecimento sobre a concentrado na faixa litorânea, pro-
e recaatingamento em grande esca- realidade climática e, em consequ- curando pau-brasil ou plantando
la. O Instituto Regional da Pequena ência, o que pode plantar ou criar. A cana-de-açúcar. Mas para produzir
Agropecuária Apropriada - Irpaa seca na cabeça das pessoas é a pior cana precisa de gado bovino, para
tem mostrado que recaatingamento das secas. transportar a cana para os engenhos,
é possível e facilmente alcançável, A roça de milho morreu por cau- para mover o próprio engenho, para
porém a longo prazo. sa da seca? Foi não! Pois, se tivesse fazer do couro baús para transportar
plantado sorgo, em vez de milho, o açúcar e, evidentemente, para ter
IHU On-Line - Faz sentido
teria uma roça abundante apesar carne para os senhores e escravos.
combater a seca ou seria mais
da pouca chuva. Foi a seca que ma- E o gado necessita de pasto, fican-
1 Antônio Delfim Netto (1928): economista, professor tou tua vaca e os bezerros? Foi não, do cada vez mais escasso na medida
universitário e político brasileiro. Foi membro da Equi-
mude para a criação de caprinos e que as plantações de cana-de-açúcar
pe de Planejamento do Governo Paulista de Carlos Al-
berto de Carvalho Pinto em 1959, Membro do Conse- ovinos e terá sucesso. Morreram por se expandiram. E, numa época sem
lho Consultivo de Planejamento (CONSPLAN), órgão
de assessoria à Política Econômica do Governo Cas- falta de comida nos meses sem chu- arame farpado para cercas, vacas e
telo Branco em 1965 e do Conselho Nacional de Eco- va? Não foi por causa da seca, foi por bois invadiam as plantações.
nomia no mesmo ano. Foi secretário de Fazenda do
Governo Paulista de Laudo Natel nos anos de 1966 e falta de estoque de alimento animal, Assim, por decreto foi estabelecido
1967, nomeado Ministro da Fazenda nos anos de 1967
a 1974 e Embaixador do Brasil na França entre 1974 e preparado durante os meses de chu- que o gado precisa ser criado no in-
1978, nomeado Ministro da Agricultura em 1979 e do va. terior, longe das plantações de cana-
Planejamento de 1979 a 1985. Deputado Constituinte
por São Paulo de 1987 a 1988 e Deputado Federal por
São Paulo desde 1988. Em junho de 2016, foi intimado A Convivência com o Semiárido - -de-açúcar. E não demorou muito:
pela Polícia Federal, pela delegada da Operação Lava
Jato, para prestar esclarecimentos aos investigadores
CSA é a saída deste dilema. Em ou- em 1640 se instalou o primeiro cur-
sobre por que recebeu, segundo seu sobrinho, R$ 240 tras regiões áridas ou semiáridas, as ral para bovinos nas imediações da
mil em dinheiro vivo entregues pelo “departamento de
propina” da maior empreiteira do país em 22 de outu- populações nativas selecionaram ao hoje cidade de Curaçá, BA. No pri-
bro de 2014 no escritório do advogado e sobrinho do
ex-ministro Luiz Appolonio Neto, na capital paulista.
longo de milhares de anos plantas meiro século, o gado bovino se deu
(Nota da IHU On-Line) para cultivar, domesticaram animais bem, devido à Caatinga intocada até

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

então. Pode ser também por um in- Sesmarias não cumpriam a sua fi- Não fossem as dificuldades impos-
tervalo de uma pequena glaciação no nalidade. Tantas sesmarias escritu- tas à ocupação livre da terra, pos-
hemisfério norte que teria baixado radas, mas o lucro, impostos e pro- sivelmente a estrutura da região,
as temperaturas e trazido mais chu- dução não se equipararam. Assim, tanto do ponto de vista econômico
va. Mas já depois um século, o gado já em 1699, uma ordem régia can- como social e político, teria sido
criado com o pasto natural de Caa- cela todas as doações de sesmarias bem diferente. O vaqueiro teria
tinga perdeu a preferência. Os bois desocupadas, mas a Casa da Torre tido facilidade para transformar-se
do norte de Minas Gerais tinham ignorou. Os Garcia D’Ávila podiam em proprietário autônomo e os que
uns bifes mais macios. Só que o es- se dar ao luxo de não atender uma chegassem à região se tornariam
trago estava feito. Daí, então, o gado ordem régia, pois eram importantes agricultores livres com forte pos-
bovino está presente no SAB, que para o rei, mantinham a ordem, fa- sibilidade de que aqui fosse criada
come mais do que produz e esfarela ziam coleta de impostos. Os Garcia uma sociedade semelhante à do sul
com suas pisadas fortes o solo frágil D’Ávila eram a mão do rei no Brasil. do Brasil, que se beneficiou enor-
nos longos meses sem chuva. memente com a imigração da Euro-

“A principal res-
pa central no século XIX.
Política de ocupação da terra
Estatuto da Terra
A principal responsabilidade pela
degradação da Caatinga ao longo
ponsabilidade O “Estatuto da Terra” promulga-
destes 500 anos foi a política de ocu- pela degrada- do em 1964 pelos militares, embo-
pação territorial empenhada pelos
ção da Caa-
ra bem elaborado, nunca foi posto
portugueses. Ou a falta de uma polí- em prática. Somente a Constituição

tinga ao longo
tica em relação à terra. As capitanias Federal de 1988 inova, cria o prin-
hereditárias não deram muito certo. cípio da “função social da terra”.
O instituto jurídico das sesmarias,
modelo adotado em Portugal já no destes 500 anos Mas parece que já foi tarde, pois as
estruturas fundiárias dominantes se

50
século XIV, onde funcionou de al-
guma forma, poderia ter colocado a foi a política endureceram de uma forma que será
difícil de criar justiça na terra.
terra para aqueles que queriam pro-
duzir nela. Porém, no Brasil somen-
de ocupação Relação entre água, terra e
te ajudou para estabelecer grande
propriedades, ao exemplo da Casa
territorial em- suas pessoas

da Torre cujo domínio se estendia


da metade da Bahia até o Maranhão.
penhada pelos E a relação água–terra? No am-
biente semiárido as plantas não dão
Semelhante à Casa da Ponte que
acumulou sesmaria por sesmaria na
portugueses” uma lição: ficam distantes umas das
outras, pois precisam de uma área
mão de uma única pessoa. grande em torno de si para captar
Mas a corte em Lisboa não acei- a umidade da água da chuva. Num
O morgado da Casa da Torre per- tava a desobediência. Em 1729, evento, em Casa Nova, Bahia, fi-
durou por quase 300 anos e engloba- emitiu uma nova ordem, que nova- zemos uma demonstração sobre o
va quase um milhão de quilômetros mente foi desrespeitada. Porém, os barreiro trincheira, também conhe-
quadrados. Os donos do morgado, tempos mudaram em 1753, quando cido como caxio. São escavações,
a família dos Garcia D’Ávila, nunca outra carta régia reafirma o cance- atingindo o subsolo de piçarra, pelo
estiveram no interior para conhecer lamento. A Casa da Torre já tinha menos com quatro metros de pro-
suas posses. Estes latifundiários ti- perdido o interesse pelas terras,
fundidade, cinco de largura e com-
nham como única prioridade extrair assim alguns conseguiram proprie-
primento que pode ter 20, 50, 100
o máximo das terras, com o mínimo dades. Finalmente em 1822, acaba
metros. Diferente das lagoas que
de investimento. Não importa a des- a sesmaria como doação pura e
são bacias largas e rasas, no barrei-
truição, pois a área é tão grande que simples e não se colocou nenhum
ro trincheira a perda por evapora-
nunca faltara terra nova no espaço substituto que regulamentasse a
ção é muito reduzida.
de uma vida humana. Bem diferente questão da terra: começaram as
a um colono que mora com sua famí- “décadas sem lei”, décadas selva- Veio um agricultor, e disse que
lia na gleba. gens na qual os mais ricos e pode- queria muito um barreiro trinchei-
rosos se aproveitaram da brecha ra, mas não podia. Dizia que sua
IHU On-Line – Como compre-
para expandir suas ocupações ter- propriedade é muito pequena e
ender os problemas das popu-
ritoriais. Somente em 1850 surgiu imaginava que o lugar ideal seria
lações que vivem na Caatinga?
uma nova legislação, a “Lei das exatamente onde planta todo ano a
Haroldo Schistek - O rei de Por- Terras”, que permitia o a acesso à sua roça. Ele saiu triste, de cabeça
tugal percebeu muito cedo que as propriedade a pessoas ricas. baixa. O programa 1 milhão de cister-

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nas se viu muitas vezes confrontado trão proibiu. Evidentemente ele não espaço para armazenar água, terá
com a seguinte situação: uma senho- tem dificuldade de mandar embora diversas formas de relevo que faci-
ra na reunião sobre a implantação do a família, quando ele quiser, para ela litam a construção de sistemas de
programa de cisterna no município, não criar vínculos físicos com a terra. captação da água da chuva e terá
sob lágrimas conta que não vai acei- sempre um lugar propício para
tar a cisterna no pé da casa, pois o pa- Uma terra apropriada ao SAB terá perfurar um poço.■

Leia mais
- Caatinga, um bioma desconhecido e a “Convivência com o Semi Árido”. Entrevista com
Haroldo Schistek, publicada na revisa IHU On-Line número 389, de 23-4-2012, disponível
em http://bit.ly/2nnhUNq.
- Campanha pioneira pelas cisternas de água de chuva, pilar da Convivência com o
Semiárido. A memória de um bispo. Entrevista especial com Haroldo Schistek, publicada
nas Notícias do Dia de 13-7-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2mrOrme .

51

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Cerrado é laboratório antropológico


ameaçado pela desterritorialização
Altair Barbosa analisa os movimentos de variadas formas
de vida ao longo de eras no bioma e como a ação do
ser humano contemporâneo é uma ameaça a todas
João Vitor Santos

O
Cerrado brasileiro abriga não alerta. E, segundo Barbosa, isso tem ge-
só riqueza em termos de fau- rado consequências num ritmo nunca
na e flora. Destruir esse bioma antes visto, afetando formas de vida no
significa mexer com questões geológi- campo e na cidade. “Com o incremen-
cas e hídricas que trará repercussões a to da tecnologia e o avanço do capital,
todo o Brasil. Além disso, pode signifi- comunidades inteiras são desestrutura-
car uma perda arqueológica e de formas das e desabrigadas, criando o fenôme-
de vidas que existem há milênios. É por no da desterritorialização”, completa.
isso que o antropólogo Altair Sales Bar-
bosa propõe um olhar mais complexo Altair Sales Barbosa possui gradu-
sobre o bioma. “O sistema do Cerrado, ação em Antropologia pela Pontificia
Universidad Católica de Chile, doutora-
dos chapadões centrais do Brasil, pela
do em Arqueologia Pré-Histórica pela
posição geográfica, pelo caráter florís-
52 tico, faunístico, geomorfológico e pela
Smithsonian Institution - National Mu-
seum of Natural History, de Washing-
história evolutiva, constitui o ponto de
ton, Estados Unidos. É coordenador do
equilíbrio desses variados ambientes”,
projeto Enciclopedia Virtual do Cerra-
exemplifica.
do pelo Instituto Histórico e Geográfico
Nesta entrevista concedida à IHU de Goiás, do qual é sócio titular.
On-Line por e-mail, além de deta-
No dia 16 de maio, das 19h30min às
lhar o bioma do Brasil central, observa
22, ele profere a conferência O Sistema
como o ser humano vai agindo nesse
Biogeográfico do Cerrado, as comu-
ambiente, promovendo modificações
nidades tradicionais e cultura, dentro
com objetivos apenas econômicos e da programação do evento Os biomas
desconsiderando a dinâmica de todo brasileiros e a teia da vida, promovido
Cerrado. “Nos tempos atuais da nossa pelo Instituto Humanitas Unisinos
contemporaneidade, também sem le- - IHU. Veja a programação completa
var em consideração a vocação da terra em http://bit.ly/biomasbrasileiros.
e a vocação cultural do que ainda resta
de autêntico na cultura do Homem do Confira um trecho da entrevista. A
Cerrado, uma nova onda globalizada de versão completa será publicada no Ca-
invasões chegou e está se instalando”, dernos IHU ideias.

IHU On-Line - Como compre- Ab’Saber1, em 1977, como Domínios Morfoclimáticos e Fitogeográficos.
ender as formas de vida no Cer- Outros estudos as denominam Bio-
rado, desde a perspectiva bioló- 1 Aziz Ab’Saber: geógrafo, professor emérito da Fa-
mas, embora o conceito de bioma
gica à relação com os povos? culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da não seja muito apropriado, pois
USP, autor de diversas teorias e projetos inovadores
na geografia brasileira, tendo recebido o Prêmio San- tende a enfatizar ou realçar um clí-
Altair Sales Barbosa – Fisio- tista e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, oferecido max vegetacional, muitas vezes não
pelo CNPq. Ab’Saber concedeu algumas entrevistas à
graficamente, o Brasil possui sete IHU On-Line: “Meu grande sonho é que haja menos
grandes matrizes ambientais. Essas diferenças sociais no Brasil”, na edição 60, de 19-05-
2003 e O aquecimento é bom para a floresta, edição
matrizes foram denominadas por 321, de 15-03-2010, disponível em http://bit.ly/bM6jE8. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

“O sistema do Cerrado cons-


titui o ponto de equilíbrio des-
ses variados ambientes”

corroborado pela história evolutiva mas tropicais de caráter subúmido, No Brasil, o cerrado e os campos re-
do espaço em questão. A partir de com duas estações ­-­uma seca, outra cebem denominações diferentes, de
1992, tenho sugerido a utilização do chuvosa. Constitui o grande domínio acordo com a região: Gerais, em Minas
conceito biogeográfico, classificando do Trópico Subúmido, coberto por e Bahia; Tabuleiro, na Bahia e outras
cada grande matriz ambiental como uma paisagem que constitui um mo- áreas do Nordeste; e ainda Campina,
um sistema. Essas grandes matrizes saico de tipos fisionômicos que varia Costaneira e Carrasco, dependendo
ambientais podem ser agrupadas da desde campos até áreas florestadas. da região. Nenhuma dessas designa-
forma seguinte: Sistema Biogeográ- Estas sete matrizes ambientais for- ções populares reflete sua totalidade
fico Amazônico; Sistema Biogeográ- mam, na maior parte dos casos, in- ecológica, referindo-se apenas a uma
fico Roraimo-Guianense; Sistema trincados sistemas ecológicos inter- modalidade fisionômica, às vezes, as-
Biogeográfico das Caatingas; Siste- dependentes. O sistema do Cerrado, sociada a uma ou outra configuração
ma Biogeográfico Tropical Atlântico; dos chapadões centrais do Brasil, geomorfológica. Por estas razões, o
Sistema Biogeográfico dos Planaltos pela posição geográfica, pelo caráter paradigma puramente botânico não
Sul-Brasileiros; Sistema Biogeográ- tem sido suficiente para demonstrar
53
florístico, faunístico, geomorfológico
fico das Pradarias Mistas Subtropi- e pela história evolutiva, constitui o a totalidade e a importância ecológica
cais, e por último temos o Sistema ponto de equilíbrio desses variados do Cerrado, já que destaca ou enfatiza
Biogeográfico do Cerrado. ambientes, uma vez que se conecta, apenas parcelas fragmentadas de sua
por intermédio de corredores hidro- composição. Quando isso acontece, o
Atualmente, o modelo fisiográfico
gráficos, com esses e com outros am- caráter da biodiversidade, elemento
sofreu modificações, por questões
bientes continentais. Os chapadões marcante da ecologia do Cerrado, não
não ambientais, mas de geopolítica
centrais do Brasil, cobertos pelo recebe a importância merecida, nem
ou especificamente políticas e eco-
Sistema Biogeográfico do Cerrado, sequer pode ser compreendida em
nômicas. Para ilustrar, citamos o
constituem a cumeeira do Brasil e seus aspectos fundamentais.
caso do Pantanal Mato-Grossense,
também da América do Sul, pois dis-
que não passa de um subsistema in- A utilização do paradigma Bioge-
tribuem significativa quantidade de
tegrante do Sistema do Cerrado. En- ográfico tem demonstrado ser um
água que alimenta as principais ba-
tretanto, como existe um movimento referencial de grande importância
cias hidrográficas do continente.
social crescente para incluir o Cerra- para que se possa entender o Cer-
do como Patrimônio Nacional, mo- O Cerrado abrange os Estados de rado, em sua globalidade. Compre-
vimento este que entra em contradi- Goiás, Tocantins, Mato Grosso do endendo os diversos matizes, tanto
ção com o Planejamento Econômico Sul e Distrito Federal. Inclui a parte abertos e ombrófilos2, como subsis-
do Brasil, que considera o Cerrado sul e leste de Mato Grosso, oeste da temas interatuantes3 e integrantes
área de expansão da fronteira agríco- Bahia, oeste e norte de Minas Gerais, decisivos de um sistema maior, o
la, desmembrou-se o Pantanal deste sul e leste do Maranhão, grande parte conceito Biogeográfico tem ressal-
ambiente, transformando-o em Pa- do Piauí e prolonga-se em forma de tado a importância que o Cerrado
trimônio Nacional. No entanto, não corredor até Rondônia e, de forma exerce para o equilíbrio dos demais
significa que esteja livre da expansão disjunta, ocorre em certas áreas do ambientes do continente, além de
agropastoril, trata-se apenas de uma nordeste brasileiro e em parte de São demonstrar que a principal carac-
ilusão ou artifício. Paulo. Ecologicamente, relaciona-se terística da sua biocenose é a inter-
às Savanas, e há quem afirme que o dependência dos componentes aos
Cerrado e suas relações cerrado seja configuração regiona- diversos ecossistemas.
lizada destas. Entretanto, este am-
O Sistema Biogeográfico do Cerra- biente possui uma história evolutiva 2 Ombrófilo: em que há muita chuva, ou que é adap-
do está situado nos planaltos cen- muito diferente das savanas africanas tado à chuva. (Nota da IHU On-Line)
3 Subsistemas interatuantes: aqueles que se integram
trais do Brasil, onde imperaram cli- e australianas. entre si. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Populações do passado sando entropias de ordem biológica termos de paisagem vegetal. O mais
e geológica. correto é correlacionar os diversos
O Cerrado exerce papel fundamen- fatores que compõem sua biocenose6
tal na vida das populações pré-his- Agricultura e defini-la como um Sistema Bioge-
tóricas que iniciaram o povoamento ográfico. Um sistema que abrange
das áreas interioranas do continente O potencial agrícola que o Cer- áreas planálticas, o Planalto Central
sul-americano. Na região do Cerra- rado demonstra, associado ao fato Brasileiro, com altitude média de
do, essas populações desenvolveram de ser uma das últimas reservas da 650 metros, clima tropical subúmi-
importantes processos culturais que terra capaz de suportar, de modo do de duas estações, solos variados
moldaram estilos de sociedades bem imediato, a produção de grãos e a e um quadro florístico e faunístico
definidas, em que a economia de formação de pastagens ligado ao extremamente diversificado e inter-
caça e coleta imprimiu modelos de desenvolvimento das técnicas mo- dependente. A fauna variada do Cer-
organização espacial e social com ca- dernas de cultivo, tem atraído re- rado, que transita noutros ambien-
racterísticas peculiares. Os proces- centemente grandes investimentos tes, por exemplo, a caatinga, tem sua
sos culturais indígenas, que se segui- e criado modificações significati- maior concentração registrada no
ram a este modelo, trouxeram pouca vas, do ponto de vista da infraes- Sistema Biogeográfico do Cerrado,
modificação à fisionomia sociocultu- trutura de suporte. O fato da não em virtude das possibilidades ali-
ral e, embora ocorresse o advento da existência de uma política global mentares durante todo ciclo anual.
agricultura incipiente, exercida nas para a agricultura tem provocado o
Há um estrato gramíneo que sus-
manchas de solo de boa fertilida- êxodo rural e o crescimento desor-
tenta uma fauna de herbívoros du-
de natural, existentes no Cerrado, a denado dos núcleos urbanos. To-
rante boa parte do ano, enquanto
caça e a coleta, em particular a vege- dos esses fatores, em seu conjunto,
não está seco. Antes de aparecerem
tal, ainda constituíam fatores decisi- têm como consequências situações as flores, as queimadas naturais,
vos na economia dessas sociedades. nocivas ao meio ambiente natural por um lapso de tempo, provêm os
A partir do século XVIII, o panora- e social, com perspectivas preocu- animais com cálcio e sais minerais.
ma regional começou a sofrer sensí- pantes. Logo aparecem as flores que, durante
54 veis modificações, com o incremen- uma determinada época, substituem
to da colonização que se embrenha “Nos tempos como alimento as gramíneas. O final
pelo interior do país, em busca de das floradas coincide com o início da
ouro, pedras preciosas e índios es- atuais, uma estação chuvosa, que faz rebrotar os

nova onda glo-


cravos. Nesse contexto, e a partir pastos secos e a maturação de várias
dessa data, surgiram os primeiros espécies frutíferas. Acompanhando
aglomerados urbanos, e a explora-
ção mais intensa dos recursos mine- balizada de os herbívoros e atrás, também, de
recursos vegetais, animais com ou-
rais que começava a se incrementar
já provocava os primeiros sinais de invasões che- tros hábitos formam uma complexa
cadeia. Em termos vegetais, este sis-
degradação. Findo o ciclo da mine-
ração, a região do Cerrado perma-
gou e está se tema é complexo e nunca pode ser
entendido como uma unidade, pois
neceu economicamente dedicada à
criação extensiva de gado e à agri-
instalando” há o predomínio do cerrado stricto
sensu como paisagem vegetal, mas
cultura de subsistência. há também seus variados matizes,
como campo e cerradão, além de
Alguns desses modelos econômi- Fauna e flora
formações florestadas, como matas e
cos ainda subsistem em espaços lo-
A região do Cerrado não pode ser matas ciliares e ainda são comuns as
calizados até os dias atuais, e outros
entendida como uma unidade zoo- veredas e ambientes alagadiços.
modelos mais simples, baseados no
extrativismo, são adotados por po- geográfica4 particularizada, porque As áreas florestadas são constituí-
pulações caboclas, habitantes atuais não apresenta esta característica, das pelas matas ciliares que ocorrem
de espaços restritos. O isolamento tampouco pode ser considerada uma nas cabeceiras dos pequenos córre-
que a região manteve em relação unidade fitogeográfica5, por não gos e rios, em suas margens, como
às áreas mais populosas e econo- se tratar de uma área uniforme em também se espalham em áreas mais
micamente dinâmicas do Brasil, extensas acompanhando as manchas
4 Zoogeografia: é uma área de estudo que faz parte
até meados da década de 1960, fez da chamada biogeografia. Esse campo de estudo é
com que este quadro permanecesse voltado à distribuição geográfica das espécies ani-
mais. (Nota da IHU On-Line)
6 Biocenose, biota ou comunidade biológica: criado
pelo zoólogo alemão Karl August Möbius, em 1877, o
basicamente inalterado, fato que a 5 Fitogeografia ou geobotânica: é uma disciplina mul- termo tem o objetivo de ressaltar a relação de vida em
tidisciplinar que versa sobre a distribuição geográfica comum dos seres que habitam determinada região. A
implantação de Brasília alterou con- dos vegetais e de comunidades nas diversas regiões biocenose de uma floresta, por exemplo, compõe-se
sideravelmente, desestruturando os do globo conforme as zonas climáticas e fatores que
possibilitam a sua adaptação, principalmente fatores
de populações de arbustos, árvores, pássaros, formi-
gas, microrganismos etc., que convivem e se inter-re-
sistemas sociais implantados e cau- do meio físico. (Nota da IHU On-Line) lacionam. (Nota da IHU On-Line)

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de solo de boa fertilidade natural. de outros fatores, que apresentam formas vegetais e animais.
Por exemplo, as matas do rio Cla- a seguinte organização: Subsiste-
ro e outras vertentes do Paranaíba ma dos Campos, Subsistema do Desterritorialização
e o outrora chamado “Mato Grosso Cerrado Stricto Sensu; Subsistema
de Goiás”. As veredas e ambientes do Cerradão; Subsistema das Ma- Nos tempos atuais da nossa con-
alagadiços são mais abundantes, tas; Subsistema das Matas Ciliares; temporaneidade, também sem le-
a partir do centro da área nuclear Subsistemas das Veredas e Ambien- var em consideração a vocação da
(sudoeste de Goiás), toma a dire- tes Alagadiços. terra e a vocação cultural do que
ção norte e leste e sul e, à medida ainda resta de autêntico na cultura
Essa diversidade de ambiente é um
que se aproxima do Pantanal Mato- do Homem do Cerrado, uma nova
-Grossense, ficam mais evidentes fator muito importante para a di-
onda globalizada de invasões che-
os ambientes alagadiços com con- versificação faunística, permitindo
a ocorrência de animais adaptados gou e está se instalando. Isso tem
tornos diferenciados. gerado forte impacto sobre o meio
a ambientes secos e, também, a am-
bientes úmidos. Da mesma forma, ambiente e causado a desestrutu-
Um cerrado de muitos siste- ração da população rural e urbana,
mas propicia tanto a ocorrência de for-
mas adaptadas a áreas ensolaradas e num ritmo nunca visto na história
Nessa perspectiva, o Sistema Bio- abertas, como favorece a ocorrência da humanidade. Com o incremento
geográfico do Cerrado pode ser sub- de formas ombrófilas. Esses fatores da tecnologia e o avanço do capital,
dividido em subsistemas específi- atribuem ao Sistema Biogeográfi- comunidades inteiras são desestru-
cos, caracterizados pela fisionomia co do Cerrado um caráter singular, turadas e desabrigadas, criando o
e composição vegetal e animal, além distinguindo-o pela diversidade de fenômeno da desterritorialização.■

Leia mais 55

- Cerrado: “dor fantasma” da biodiversidade brasileira. Entrevista com Altair Sales Barbo-
sa, publicada na revista IHU On-Line número 382, de 28-11-2011, disponível em http://bit.
ly/2n24YNj.

- A complexa teia hídrica que brota do Cerrado está ameaçada. Entrevista especial com
Altair Sales Barbosa, publicada nas Notícias do Dia de 25-10-2014, no sítio do Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2mTcxJv.

- “O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água”. Entre-
vista com Altair Sales Barbosa, publicada por Jornal Opção e reproduzida nas Notícias do
Dia de 17-10-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2lTyK54.

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

A floresta disseminada pelos


índios e que hoje vive ameaçada
Flávio Zanette destaca que a mata de araucária deveria ser considerada um
bioma pelas inúmeras formas de vida que se estabelecem ao seu redor
João Vitor Santos

O
legado dos povos originais em pé, se a legislação permitisse”, deta-
para as populações atuais é lha. Para ele, a floresta segue ameaçada
imensurável. Entretanto, um “porque nossa política pública referen-
dos problemas da humanidade hoje te à espécie só se preocupa em impedir
é não só não reconhecer esse legado, a derrubada, mas não fomenta o plan-
como ainda destruí-lo. É mais ou me- tio”. Zanette ainda ressalta que esses
nos o que ocorre com a floresta de arau- bosques poderiam ser considerados
cária, presente do norte do Rio Grande um bioma específico. “Se justifica pela
do Sul até o estado do Paraná. “A arau- grande área que ocupa, pela quase ex-
cária dependeu dos índios para sua dis- clusividade do Brasil e pelas inúmeras
seminação e agora depende de nós para particularidades da espécie e das que
sua preservação”, destaca o professor convivem com ela”, diz.
da Universidade Federal do Paraná -
56 UFPR Flávio Zanette, que se dedica
Flávio Zanette é graduado em Enge-
nharia Agronômica pela Universidade
a pesquisar essas florestas. O proble-
Federal do Paraná - UFPR, mestre em
ma é que essa preservação não ocorre
Fitotecnia pela Universidade Federal
como deveria. No início dos anos 1940,
do Rio Grande do Sul - UFRGS e dou-
a mata de araucária compunha 15%
tor em Fitotecnia pela Universite de
do território gaúcho, 25% do território
Clermont II. Atualmente é professor
catarinense e 35% do paranaense. Em
da UFPR, onde atua no Laboratório de
menos de 80 anos, foi reduzida a 1,5%
Micropropagação Vegetal, pesquisando
no Rio Grande do Sul, em torno de 3% técnicas de enxertia da araucária.
em Santa Catarina, e no Paraná, confor-
me o levantamento feito pela Fundação No dia 14 de junho, das 19h30min às
de Ciências Florestais, não chega a 1,5% 22h, ele profere a conferência Bioma
de mata virgem em relação ao original. Araucária: riquezas e fragilidades de
um bioma ameaçado, dentro da pro-
Na entrevista a seguir, concedida por gramação do evento Os biomas brasi-
e-mail à IHU On-Line, o professor ex- leiros e a teia da vida, promovido pelo
plica por que a araucária é tão cobiça- IHU. Veja a programação completa em
da. “Sua fragilidade é seu grande valor http://bit.ly/biomasbrasileiros .
econômico e por isso os proprietários
das terras não deixariam uma só árvore Confira a entrevista.

IHU On-Line - A floresta de seguindo com a classificação ecossistema no bioma da Mata


araucária1, que tecnicamente, do IBGE2, está inserida como Atlântica, pode ser considerada
um bioma? Por quê?
1 A mata de araucária também é conhecida como flo- caracterizada pela presença da Araucaria angustifo-
resta ombrófila mista, ou floresta de araucária, floresta lia que nela imprime um aspecto próprio e único. As Flávio Zanette – Recentemente,
com araucária ou, ainda, araucarieto. É um ecossis- florestas de araucária também foram definidas como
tema com chuva durante o ano todo, normalmente uma ecorregião de floresta tropical no domínio da
em altitudes elevadas, e que contém espécies de Mata Atlântica pela organização WWF. (Nota da IHU elabora, em 2004, em parceria com o Ministério de
angiospermas mas também de coníferas. Encontrada On-Line) Meio Ambiente, o Mapa de Biomas do Brasil, e clas-
no Brasil principalmente nos estados de Santa Cata- 2 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – sifica seis grandes biomas no Brasil. São eles: Pampa,
rina, Paraná e Rio Grande do Sul, faz parte do bioma IBGE compreende o termo bioma como um sinônimo Pantanal, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e Amazô-
Mata Atlântica, segundo classificação do IBGE, e é de “província biogeográfica”. É nessa perspectiva que nia. (Nota da IHU On-Line)

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“Araucária não é peça de museu,


é necessário fomentar seu plantio,
pois ela não se regenera no interior
da floresta porque necessita de luz”

numa defesa de tese, manifestei meu a legislação permitisse. Está amea- borações de políticas de fomento,
desejo de ver um dia o bioma Arau- çada porque nossa política pública especialmente para produção de
cária fazer parte dos biomas brasilei- referente à espécie só se preocupa pinhões.
ros. Se justifica pela grande área que em impedir a derrubada, mas não
IHU On-Line - E em que me-
ocupa, pela quase exclusividade do fomenta o plantio. Como todo o ser
dida a ecologia em torno da
Brasil e pelas inúmeras particulari- vivo, necessita de renovação da po-
araucária pode inspirar refle-
dades da espécie e das que convivem pulação, pois um dia todos morre-
xões sobre as inúmeras e com-
com ela. rão de velhos. Araucária não é peça
plexas relações que compõem
de museu, é necessário fomentar
IHU On-Line - Quais as ri- a teia da vida no planeta?
seu plantio, pois ela não se rege-
quezas e fragilidades da mata
nera no interior da floresta porque Flávio Zanette - O quanto tem-
de araucária? E por que é tão
necessita de luz. po uma espécie vegetal já vive no
ameaçada?
planeta tendo superado todas as 57
IHU On-Line - Quais os im-
Flávio Zanette – Bastaria falar mudanças climáticas que ocorre-
pactos da degradação da arau-
da araucária e do xaxim3, que vivem ram. Isto poderia ocorrer também
cária noutros biomas e ecos-
neste bioma há muitas dezenas de conosco!
milhões de anos. Sua fragilidade é sistemas?
IHU On-Line - Como as mu-
seu grande valor econômico e por Flávio Zanette – Com o desapa-
danças climáticas, a poluição
isso os proprietários das terras não recimento da araucária, seu ecos-
e até a diminuição da fauna,
deixariam uma só árvore em pé, se sistema certamente será afetado
como populações de passa-
pelo comportamento das espécies
3 Xaxim: pode se referir a certas pteridófitas (avencas dores, podem impactar no
ou samambaias) arborescentes, ou ainda, ao tronco parceiras. E, principalmente, mui-
destas, o qual pode ser serrado em pequenos seg- desenvolvimento das araucá-
mentos e usado de vaso para outras plantas. A es- tas espécies animais seriam afeta-
pécie mais conhecida destas plantas é a Dicksonia
rias?
sellowiana, da família das dicksoniáceas, nativa da
das.
Mata Atlântica e América Central (no Brasil, especial- Flávio Zanette - A araucária
mente dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, IHU On-Line - Quais os maio-
São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do dependeu dos índios para sua dis-
Sul). O xaxim também é conhecido pelos nomes de res desafios para a preserva-
samambaiaçu, sambambaiaçu e samambaiaçu-im- seminação e agora depende de nós
perial. Devido a sua beleza, praticidade e diferenciais, ção da araucária?
a exploração do seu caule para fabricação de vasos
para sua preservação. A fauna se
se tornou bastante comum, bem como sua utilização
em projetos de jardins e construções. O modismo do
Flávio Zanette - Preservá-la beneficia muito das sementes da
uso do xaxim, como suporte para orquídeas e bromé- pelo uso com base no conhecimen- araucária, mas pouco ou nada pode
lias, também surgiu por ser muito mais barato do que
um vaso de barro. (Nota da IHU On-Line) to científico/técnico atual e ela- fazer para salvá-la.■

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Cultivo de soja é a maior


ameaça ao Pampa
Para o professor Marcelo Dutra da Silva, os danos vão mais longe, pois o uso
de glifosato pode estar contaminando solo, água e alimentos
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

H
á pouco tempo, achava-se que mo que o Brasil seja um país biodiverso,
a expansão do eucalipto colo- abrigando ambientes diversos, a legisla-
caria em risco o Pampa, mas ção ambiental ficou impregnada da força
a leitura dos fatos agora é outra. “Sem simbólica da floresta. “A nossa principal
medo de errar, hoje a maior ameaça lei de proteção e regramento do espaço
ao Pampa vem dos cultivos de soja”, nasceu como Código Florestal e assim
garante o professor Marcelo Dutra da é conhecida até hoje, mesmo que tenha
Silva. “Basta sair por aí para perceber sido revisada recentemente”, ilustra Sil-
que os antigos campos de coxilha, tra- va. “O próprio processo de licenciamen-
dicionalmente utilizados para a criação to ambiental parece ter mais cuidados e
de gado, remanescentes de um modelo exigências quando o assunto é supressão
econômico em extinção, pelo menos em de florestas, diferente do campo, que não
solo gaúcho, estão sendo rapidamente enfrenta as mesmas restrições.”
58 convertidos em lavouras de soja.”
Marcelo Dutra da Silva é graduado
Conforme o pesquisador, o impacto em Ecologia pela Universidade Católica
imediato do cultivo da soja “é a subs- de Pelotas - UCPel, mestre e doutor em
tituição dos campos por lavoura e, no- Ciências pelo Programa de Pós-Gradua-
vamente, a perda de habitats”. Mas as ção em Agronomia da Universidade Fe-
ameaças vão mais longe. “A soja depende deral de Pelotas - UFPel. É professor do
da aplicação de insumos perigosos, entre Instituto de Oceanografia - IO e mem-
eles o glifosato que, apesar da sua utilida- bro permanente do Programa de Pós-
de agrícola, o seu consumo em lavouras -Graduação em Gerenciamento Costeiro
pode estar contaminando o solo, a água e da Universidade Federal do Rio Grande
os alimentos”, projeta. Silva salienta ain- - FURG. Coordena o Laboratório de Eco-
da que há recentes estudos que relacio- logia de Paisagem Costeira - LEPCost.
nam a substância a casos de câncer e de
degeneração neural. “E se a contamina- No dia 21 de março, das 19h30min às
ção é um risco para as águas superficiais, 22h, ele profere a conferência Pampa:
certamente também é para as subterrâ- um bioma em transformação, dentro da
neas”, afirma. programação do evento Os biomas bra-
sileiros e a teia da vida, promovido pelo
A herança cultural imprimiu no imagi- IHU. Veja a programação completa em
nário da sociedade a “impressão de que http://bit.ly/biomasbrasileiros.
o campo é um vazio”, como se a riqueza
da vida fosse própria da floresta. Mes- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as maio- ao Pampa vem dos cultivos de soja. lha, tradicionalmente utilizados para
res ameaças ao Pampa e quais os Há pouco tempo, era a expansão do a criação de gado, remanescentes de
desafios para a sua preservação? eucalipto, mas a soja está batendo um modelo econômico em extinção,
Marcelo Dutra da Silva – Sem recordes. Basta sair por aí para per- pelo menos em solo gaúcho, estão
medo de errar, hoje a maior ameaça ceber que os antigos campos de coxi- sendo rapidamente convertidos em

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“O pampa é um sistema amplo, que


se espraia por outros países, fa-
zendo fronteira com outros biomas
de características bem distintas.”

lavouras de soja. Na minha região, glacial –, hoje mais quente e mais está impregnado na nossa legisla-
onde o arroz é muito forte, a soja úmido, dá conta de uma condição ção e conduta. A nossa principal lei
vem substituindo, inclusive, as la- mais favorável ao desenvolvimento de proteção e regramento do espaço
vouras de arroz e as pastagens pró- de florestas e ambientes arbustivos. nasceu como Código Florestal e as-
ximas. No entanto, ao longo da história, os sim é conhecida até hoje, mesmo que
pastadores de grande porte, o gado tenha sido revisada recentemente. O
IHU On-Line – Qual a impor-
e as atividades humanas de cultivo próprio processo de licenciamento
tância do bioma Pampa para o
interferiram nesse processo, e as ambiental parece ter mais cuidados
ecossistema gaúcho e da Amé-
árvores da Mata Atlântica avança- e exigências quando o assunto é su-
rica do Sul?
ram com dificuldade. Resultado: boa pressão de florestas, diferente do
Marcelo Dutra da Silva – O parte das áreas abertas que encon- campo, que não enfrenta as mesmas
Pampa compreende um sistema de tramos hoje, pelo menos na maior restrições. E quando defendemos a
fisionomias campestres e não cam- parte do Pampa brasileiro (em solo reserva legal e a proteção das áre-
pestres, ou seja, nem tudo no Pam- gaúcho), seria fechada, coberta por as de preservação permanente, não 59
pa é campo e nem todos os campos floresta, se não estivéssemos aqui. E faltam produtores justificando: “na
são iguais. Na prática, a coleção de já que o clima não está conseguindo minha propriedade, não tem flores-
fisionomias do Pampa repercute em imprimir efeitos sobre a fisionomia e ta, aqui só tem banhado e campo”.
paisagens variadas, formadas por sim o agente humano, o nosso Pam- Enfim, distorções que moldaram a
diferentes ecossistemas e formas de pa está mais para um antropobioma nossa percepção, mas que felizmen-
ocupação. Tais diferenças abrigam do que para um bioma natural, pelo te não feriram a nossa identidade. A
condições distintas e uma ampla di- menos por aqui. paisagem aberta está no nosso DNA,
versidade biológica, pouco comum e a ideia de transformar o Pampa
IHU On-Line – O visual do
em outras regiões brasileiras ou em floresta não foi bem aceita, mes-
Pampa remete à ideia de cam-
da América. E é justamente no Rio mo por aqueles menos preocupados
po, o que faz com que muitas
Grande do Sul que essas diferenças com o campo.
pessoas o vejam como campo
são mais evidentes, talvez marcadas
vazio e propício para a produ- IHU On-Line – Como compre-
pela complexidade físico-geológica
ção agrícola. É nessa perspec- ender os avanços da silvicultu-
dos terrenos.
tiva, por exemplo, que entra a ra no Pampa e quais os riscos?
IHU On-Line – Como se dá a silvicultura e sua “propaganda” Que espécies são mais utiliza-
interação entre o Pampa e os de florestar o Pampa. Como das e quais os impactos sobre o
demais biomas ao sul das Amé- subverter essa perspectiva? bioma?
ricas?
Marcelo Dutra da Silva – A im- Marcelo Dutra da Silva – A ex-
Marcelo Dutra da Silva – O pressão de que o campo é um vazio pansão da silvicultura no Rio Gran-
Pampa é um sistema amplo, que se é da nossa herança cultural, passada de do Sul aconteceu em um mo-
espraia por outros países, fazendo de geração a geração. Aprendemos, mento oportuno. Com a economia
fronteira com outros biomas de ca- desde criança, que a riqueza da vida tradicional dos campos em declínio,
racterísticas bem distintas. No sul está na floresta, que lá moram as abundância de terras e o empobre-
do Brasil (Rio Grande do Sul), onde espécies mais importantes, que a cimento da metade sul do Estado,
o Pampa ocorre, chama atenção a re- Amazônia é o pulmão do planeta... a silvicultura é apresentada como
lação de disputa ou de tensão ecoló- O Brasil é um país biodiverso porque a salvação da lavoura, o que logo
gica formada com a Mata Atlântica. abriga ambientes diversos, o que in- se viu que não era bem assim. Uma
Uma análise histórica de longo pra- clui o Pampa, suas características e economia forte é uma economia di-
zo, em consideração às mudanças no sua riqueza biológica, que é única e versificada e não baseada em uma
clima – a partir do último período que só encontramos aqui. Aliás, isso única fonte. A experiência com o

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

eucalipto foi válida, mas não apren- que mais uma vez batemos o recorde ecossistemas e da biodiversidade.
demos a diversificar e, no momento, de produção de grãos, e a soja mais O único aspecto lamentável é que o
estamos apostando as nossas fichas uma vez lidera, com a maior produ- ZEE avança em detrimento do Zo-
no monocultivo da soja. Os riscos do ção dos últimos dez anos. neamento Econômico e Ecológico
cultivo de eucalipto estão associados IHU On-Line – A possibilida- Costeiro - ZEEC, que ficou esqueci-
ao impacto direto, de substituição do de de venda de terras a estran- do por este governo, por considerar
habitat e de expulsão das espécies, geiros pode representar um a costa contemplada no zoneamento
como se passássemos uma borracha risco ao bioma Pampa? maior. No entanto, o ZEE e ZEEC
na paisagem, apagando partes do es- são semelhantes, apenas, no nome.
paço contínuo do campo. O impac- Marcelo Dutra da Silva – Não O ZEEC compreende escalas e limi-
to indireto está associado ao efeito vejo problema, pois as preocupa- tes diferentes. A costa está exposta
fragmentação, com o crescimento ções quanto ao uso permanecem as às atividades marinhas, ao assenta-
dos maciços criam-se obstáculos ao mesmas, independentemente da na- mento urbano concentrado, portos e
fluxo espacial das espécies, que são cionalidade. O que importa é o cum- rodovias de alto fluxo. Além disso, a
nativas do espaço aberto. Também primento da lei, a fiscalização do Es- costa está compreendida no Pampa e
interferimos no vento, no acúmulo tado e a garantia de avançarmos com nos revela paisagens únicas e exclu-
da umidade e aceleramos a transfor- qualidade e segurança. sivas.
mação das manchas remanescentes IHU On-Line – A reformula- IHU On-Line – Quais os efei-
de campo, que evolui para uma fi- ção do Código Florestal impac- tos da pecuária no Pampa?
sionomia diferente (campo sujo, às ta no bioma Pampa?
vezes arbustivo). Marcelo Dutra da Silva – Os
Marcelo Dutra da Silva – A re-
efeitos da pecuária são variados,
IHU On-Line – Quais os efei- forma do Código Florestal aliviou a
porém mais positivos do que nega-
tos da plantação de soja em áre- pressão sobre os usos e favoreceu
tivos. Pastadores constantes, o gado
as próximas ou dentro do bio- os grandes proprietários de terra. O
permite manter as áreas abertas e
ma Pampa? Quais os impactos cultivo de grãos (arroz, soja e milho)
íntegras. Aliás, se tem uma atividade
nos reservatórios subterrâneos e a atividade da silvicultura normal-
60 de água? mente são encontradas em grandes
capaz de ser desenvolvida no Pampa,
sem comprometer o campo nativo, é
áreas agrícolas, onde raramente as
Marcelo Dutra da Silva – No a pecuária. Obviamente, não é qual-
exigências legais do Código Florestal
que compreende o cultivo da soja, quer pecuária, e sim aquela prati-
são atendidas. Aliás, o Rio Grande
o impacto imediato é a substituição do Sul está entre as unidades fede- cada com características de susten-
dos campos por lavoura e, novamen- rativas mais resistentes ao Cadastro tabilidade, baixa lotação e conforto
te, a perda de habitats. Mas isso é só Ambiental Rural, que no fundo é animal. Na verdade, esta parece ser
o início. A soja depende da aplicação algo bom e importante. Infelizmente a única alternativa viável para a con-
de insumos perigosos, entre eles o não estou acompanhando o desen- servação das nossas manchas rema-
glifosato que, apesar da sua utilida- volvimento do ZEE [Zoneamento nescentes de campo.
de agrícola, o seu consumo em la- Ecológico-Econômico, também cha- IHU On-Line – Quais os de-
vouras pode estar contaminando o mado Zoneamento Ambiental] no safios para sensibilizar as po-
solo, a água e os alimentos. Estudos Estado, mas espero que os envolvi- pulações, mostrando como o
recentes levantam a suspeita da sua dos estejam atentos às fisionomias cuidado com o meio ambiente
exposição aos novos casos de câncer dos nossos biomas, particularmente significa, em última medida, o
e degeneração neural. E se a conta- às macrofisionomias que compõem cuidado com as pessoas mais
minação é um risco para as águas o bioma Pampa. O zoneamento do carentes?
superficiais, certamente também é espaço é um belo instrumento de
para as subterrâneas. Infelizmente, gestão, que permite avançar no pla- Marcelo Dutra da Silva – Em
não existe uma rotina de monito- nejamento e na definição de estra- última análise, meio ambiente é
ramento do glifosato, e não temos tégias de conservação da natureza e SAÚDE. Cuidar da natureza é cuidar
a menor ideia do grau de contami- ajustes dos usos reais praticados às das pessoas. Em algum momento vai
nação a que estamos submetidos. potencialidades sugeridas. Portan- deixar de funcionar a justificativa do
Muito importante: neste momento, to, zoneamentos bem construídos tudo pelo econômico. Afinal, a terra
acaba de ser anunciado na Expodire- qualificam o uso da terra e direcio- é uma só, e os recursos são natural-
to, no município de Não-me-Toque, nam os esforços de conservação dos mente finitos.■

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

A histórica e eterna entrega


da terra brasilis ao estrangeiro
Mozar Dietrich analisa o que está por trás da proposta de flexibilizar a regra
para venda de terras brasileiras a estrangeiros
João Vitor Santos

C
om a empáfia do conquistador do à soberania nacional”. Além disso,
que quer se apossar do mundo, observa que primeiro se quer vender a
o europeu chega ao Brasil e co- terra e depois a intenção é flexibilizar a
meça a tecer as estratégias para tomar legislação ambiental para assegurar a
esse chão como seu. Basta uma rápida exploração mercantil. “Mesmo que es-
folheada nos livros de História do Brasil sas empresas consigam adquirir terras
para perceber que, mesmo fixados aqui, com as mudanças nas legislações, se
tanto portugueses quanto seus descen- mantidas as atuais exigências ambien-
dentes já nascidos no país sempre ce- tais, elas dificilmente obterão autori-
deram à corte do estrangeiro que estava zação para o plantio, pois não há como
de olho na riqueza de suas terras. Para harmonizar monocultivo de eucaliptos
o advogado Mozar Dietrich, essa gênese em vasta escala com proteção ambien-
se atualiza hoje na proposta do governo tal”, alerta.
62 de Michel Temer de flexibilizar as re-
Mozar Artur Dietrich é advogado,
gras para venda de propriedades a não
foi diretor de Cidadania do Governo do
brasileiros. “A cobiça sobre o Brasil é
Estado do Rio Grande do Sul na gestão
imensa, pois, além do Pré-Sal, temos a
Olívio Dutra, entre 1998 e 2001, asses-
Floresta Amazônica, as maiores jazidas
sor especial do ministro do Desenvol-
de ferro e nióbio do mundo, terras com
vimento Agrário no primeiro mandato
imenso potencial agrícola, pois somos o
de Lula, e superintendente Estadual do
país com a maior área de insolação/ano
Instituto Nacional de Colonização e Re-
do mundo, extensas praias para insta- forma Agrária – Incra-RS, entre 2006
lação de parques eólicos, e, no caso do e 2010.
nosso Pampa, imensas áreas cobiçadas
pelas empresas produtoras de pasta de De março a junho, o Instituto Huma-
celulose”, completa. nitas Unisinos – IHU promove o ciclo
de palestras Os biomas brasileiros e a
Na entrevista, concedida por e-mail à teia da vida. Veja a programação com-
IHU On-Line, Mozar analisa as con- pleta em http://bit.ly/biomasbrasilei-
sequências dessas ações sobre os bio- ros.
mas brasileiros. E dispara: “o risco para
o país é imenso, trata-se de um atenta- Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como compre- Mozar Dietrich - Primeiramen- que doação de praticamente todas
ender as questões de fundo na te, precisamos elucidar alguns pon- as terras brasileiras para estrangei-
proposta de mudança de regras tos deste tema candente. Ele não ros. Falido o sistema das capitanias,
é, absolutamente, um tema novo. passou-se ao processo de concessões
para venda de terras no Brasil O Brasil já nasceu vendido para os de sesmarias. Inicialmente também
para estrangeiros? Por que as estrangeiros, pois as capitanias he- eram feitas doações de áreas de até
terras brasileiras interessam? reditárias não eram nada mais do dez léguas quadradas (aproximada-

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“Somos um dos países com


a maior concentração de ren-
da do mundo e certamente o de
maior concentração de terras”

mente 430 mil hectares), tanto para -se a Faixa de Fronteira para 150 rio, que os estrangeiros não podem
nacionais, quanto para estrangeiros. Km de largura, que é a mesma de adquirir mais do que um quarto
nossos dias, pois foi reafirmada pela da área dos municípios, e pessoas
Em 1808, Dom João VI1 alargou
Constituição de 1988. Todas essas de uma mesma nacionalidade não
ainda mais esse processo de conces-
constituições, no entanto, impuse- podem adquirir mais do que 40%
são de sesmarias a estrangeiros.
ram uma condição para a venda de deste um quarto. Ora, aplicando-se
Em 1850, com a primeira Lei de terras nas faixas de fronteiras para essas “restrições” a um município
Terras do Brasil, a Lei 601, pela pri- estrangeiros: que fosse previamente como São Félix do Xingu, no Pará,
meira vez, já em 350 anos de exis- consultado o então Conselho de Se- por exemplo, os estrangeiros podem
tência do Brasil, passou-se a res- gurança Nacional, atual Conselho de comprar cerca de 2.105.325 hectares
tringir um pouco essas concessões a Defesa Nacional. Sem essa consulta, desse município. Isto é de uma lar-
estrangeiros. Essa Lei também criou prévia, os negócios, mesmo concre- gueza absurda. Tanto é assim que
a Faixa de Fronteira, com 6 léguas tizados, eram nulos. Esta legislação este instituto foi mantido na propos-
de largura (66 Km). Nessa faixa não ainda vige, apesar de abertamente ta de abertura total que o governo 63
podiam ser vendidas terras para ser burlada e não existirem meca- Temer agora pretende implantar.
estrangeiros sem o prévio consen- nismos eficazes de fiscalização de Outra contradição é que tais vendas
timento do Conselho de Defesa Na- irregularidades, como, por exemplo, eram até mesmo facilitadas e mesmo
cional. Desse momento em diante, cartórios que simulam vendas legais utilizadas como política pública. Veja
os governos brasileiros, antes aber- a estrangeiros à margem da lei, omi- o exemplo da doação que o Império
tamente favoráveis à venda de terras tindo dados sobre a nacionalidade fez à Royal Ferry, empresa inglesa
a estrangeiros, passaram a impor ou usando laranjas para titular as que construiu a ferrovia RS–SP. Essa
algumas restrições. Isto ocorreu no terras adquiridas. empresa simplesmente ganhou uma
bojo de um crescente nacionalismo faixa de terras de 10 Km de largura
no mundo, que se acentuou no início Além da zona de fronteira ao longo de toda a via nos dois lados.
do século XX. Os Estados passaram Imagine-se uma faixa de terras de
a buscar o aumento de suas posses- No restante do país, entretanto, 20 Km de largura do RS a SP doada
sões e não a entrega das mesmas aos fora da faixa de fronteira, sempre para estrangeiros. Foi essa concessão
estrangeiros. houve uma maior liberalização de e o trabalho de expulsar os posseiros
venda de terras para estrangeiros, e moradores dessa área (índios, ne-
Na Constituição Federal de 1934, com algumas restrições. Essas res- gros, mestiços, cafuzos) que gerou
criou-se uma figura nova, a faixa de trições legais, no entanto, carregam a Revolta do Contestado2, em Santa
segurança, que era de 100 Km de lar- várias contradições. Por exemplo,
gura em nossas fronteiras, e, depois, áreas com até três módulos (No Sul 2 Guerra do Contestado: conflito armado entre a po-
na Constituição de 1937, aumentou- e Leste isto representa algo em torno pulação cabocla e os representantes do poder esta-
dual e federal brasileiro travado entre outubro de 1912
de 80 hectares. Já no Centro e Norte e agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e
1 D. João VI de Portugal (1767-1826): cognominado madeira disputada pelos estados brasileiros do Paraná
O Clemente, foi rei de Portugal de 1816 até sua morte. pode chegar a 450 hectares) podem e de Santa Catarina. Originada nos problemas sociais,
Segundo dos filhos de D. Maria I de Portugal e de seu decorrentes principalmente da falta de regularização
tio Pedro III, herdeiro da coroa como príncipe do Bra-
ser vendidas a estrangeiros sem ne- da posse de terras e da insatisfação da população
sil e 21º Duque de Bragança após a morte do irmão nhuma restrição. Para adquirir áreas hipossuficiente, numa região em que a presença do
mais velho, José, Duque de Bragança em 11 de se- poder público era pífia, o embate foi agravado ainda
tembro de 1788, vitimado pela varíola. Em novembro de 3 até 50 módulos, que é o limite, pelo fanatismo religioso, expresso pelo messianismo
de 1807, D. João VI decidiu pela transferência da corte e pela crença, por parte dos caboclos revoltados, de
portuguesa para o Brasil, evitando ser aprisionado
já há necessidade de procedimentos que se tratava de uma guerra santa. A região fronteiriça
com toda a família real e o governo, tornando possí- especiais e fiscalizados por cartórios entre os estados do Paraná e Santa Catarina recebeu o
vel manter a autonomia portuguesa a partir do Rio de nome de Contestado devido ao fato de que os agricul-
Janeiro. Sobre a vinda da família real ao Brasil, leia a e pelo Incra. tores contestaram a doação que o governo brasileiro
IHU On-Line número 263, de 24-06-2008, intitulada A fez aos madeireiros e à Southern Brazil Lumber & Co-
Corte Portuguesa no Brasil. Mitos e verdades, dispo-
nível para download em http://migre.me/KtFM. (Nota
No entanto, por outro lado, essas lonization Company. Como foi uma região de muitos
conflitos, ficou conhecida como Contestado, por ser
da IHU On-Line) legislações afirmam, desde o Impé- uma região de disputas de limites entre os dois estados

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

Catarina, no início do século XX, que atual governo pretende ao alargar propriedade e cercadas por empre-
terminou num banho de sangue de para 100.000 ou 200.000 hecta- sas hoteleiras europeias, sem falar
toda essa população pobre. res a liberação de vendas de terras no vergonhoso Caso Jari4 (em ple-
a estrangeiros. no regime militar). Mas, como o
Ataque a povos indígenas governo atual já está vendendo a
Freio para aquisições Petrobras e o Pré-Sal, nossa maior
Outro exemplo ainda mais grotes- riqueza, a venda de terras aos es-
co e triste é o do Serviço de Proteção Outro ponto importante a desta- trangeiros é um problema menor
ao Índio e Localização de Trabalha- car inicialmente e que desnuda e para esses entreguistas. A cobiça
dores Nacionais, o SPILTN, mais denuncia a indecência desta atual sobre o Brasil é imensa, pois, além
conhecido por SPI (órgão federal proposta do governo Temer em es- do Pré-Sal, temos a Floresta Ama-
antecessor da Fundação Nacional cancarar as terras brasileiras aos zônica, as maiores jazidas de fer-
do Índio - Funai). O SPI é de triste estrangeiros, é que, mesmo que já ro e nióbio do mundo, terras com
memória por ter sido tomado por haja na legislação atual a liberação imenso potencial agrícola, pois
grandes casos de corrupção, tor- de venda de terras para estran- somos o país com a maior área de
turas e morte de índios e venda de geiros dentro da faixa de frontei- insolação/ano do mundo, extensas
patrimônios florestais e de terras in- ra, há o limite expresso em leis de praias para instalação de parques
dígenas, mas nunca é lembrado pe- somente vender até 3 mil hectares eólicos, e, no caso do nosso Pampa,
las outras três siglas de seu nome, o por adquirente. E essa limitação já imensas áreas cobiçadas pelas em-
LTN, de Localização de Trabalhado- vem desde 1850 e se fortaleceu sé- presas produtoras de pasta de celu-
res Nacionais. E isto foi o mais grave culo XX adentro. Ou seja, até agora, lose, que enxergam no Pampa uma
da ação do SPILTN, pois cabia-lhe a um estrangeiro pode, sim, comprar imensa monocultura de eucaliptos.
política pública de assentar, nas ter- dentro da faixa de fronteira até 3
mil hectares, isto somando todas as IHU On-Line - No que consiste
ras já ocupadas pelos índios, os di-
terras que ele venha a adquirir. O especificamente a proposta de
tos trabalhadores nacionais (negros,
que se quer agora é passar simples- mudança de regras para ven-
mulatos, cafuzos, caipiras, sertane-
mente de 3 para 100 ou 200 mil. da de terras a estrangeiros que
jos, caboclos – os filhos de ninguém,
64 está na pauta do governo de Mi-
segundo Darcy Ribeiro3).
chel Temer?
Esses trabalhadores nacionais “O Brasil já Mozar Dietrich – Basicamente,
nasceu ven-
eram de fato jogados sobre as ter- as diferenças entre as legislações já
ras indígenas e sobre os próprios centenárias no Brasil sobre aquisi-
índios. Mas, enquanto isto, os tra-
balhadores estrangeiros (migrantes dido para os ção de terras por estrangeiros e as
propostas de mudança dessas legis-
alemães, italianos, japoneses, polo-
neses) eram assentados largamente estrangeiros” lações pelo atual governo são as se-
guintes:
em terras que a União ou os estados
iam liberando para esses estrangei- a. Não há mais diferencia-
Assim, a grosso modo, podemos
ros. Eram as grandes colonizações dizer que desde 1850 há um certo ção de tamanho de pro-
por trabalhadores estrangeiros que freio à aquisição de terras por es- priedade a ser adquirida
foi largamente aplicada em todo sé- trangeiros. Pelo menos na faixa de dentro da faixa de fron-
culo XIX e parte do XX. Contudo, a fronteira, que é uma área conside- teira ou fora dela. Mesmo
bem da verdade, essas concessões de rável de nosso país, pois representa em faixas de fronteira se
terras a estrangeiros eram pequenas, 27% das terras brasileiras e que ain- poderá adquirir áreas
lotes de colonizações em torno de 40 da possuem uma oferta ou possibi- com centenas de milha-
hectares. Muito diferente do que o lidade de aquisição, pois são áreas res de hectares. Apenas
ainda grandes e pouco habitadas, é mantida a exigência de
brasileiros. (Nota da IHU On-Line)
3 Darcy Ribeiro (1922-1977): etnólogo, antropólogo, onde mora menos de 5% de nossa que tais aquisições, em
professor, educador, ensaísta, romancista e político população. faixa de fronteira, tenham
mineiro. Completou o curso superior na Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, no ano de 1946.
Trabalhou como etnólogo no Serviço de Proteção ao E essa legislação impunha um cer- 4 Projeto Jari (Jari Florestal e Agropecuária): é o
Índio, e, em 1953, fundou o Museu do Índio. Foi pro- nome de uma fábrica existente às margens do Rio
fessor de etnologia e linguística tupi na Faculdade
to freio à liberação de venda de ter- Jari, para a produção de celulose e outros produtos,
Nacional de Filosofia e dirigiu setores de pesquisas ras aos estrangeiros, apesar de ser que teve início em 1967. O projeto foi idealizado pelo
sociais do Centro de Pesquisas Educacionais e da bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig e seu
Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetis- elástica, pois há casos vergonhosos sócio Joaquim Nunes Almeida. Ele mandou construir
mo, além de ocupar, no biênio 1959/1961, o cargo de no Brasil, como as extensas áreas uma fábrica de celulose no Japão, na cidade de Kobe;
presidente da Associação Brasileira de Antropologia. usando tecnologia finlandesa da cidade de Tampere,
Foi eleito em 8 de outubro de 1992 para a Cadeira n. do oeste da Bahia já ocupadas por foram construídas duas plataformas flutuantes com
11 da Academia Brasileira de Letras. Ainda sobre Dar- uma unidade para a produção de celulose e outra
cy Ribeiro, leia também nesta edição da IHU On-Line a fazendeiros norte-americanos, ou para a produção de energia. A unidade de energia
entrevista com Paulo Ribeiro, presidente da Fundação
Darcy Ribeiro, sobre o antropólogo e educador brasi-
extensas áreas de litoral nordes- produzia 55 megawatts e era alimentada por óleo BPF
a base de petróleo com opção para consumo de ca-
leiro. (Nota da IHU On-Line) tino, de praias paradisíacas, já de vacos de madeira. (Nota da IHU On-Line)

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o assentimento prévio do no Brasil ou no exterior”. foi a de que se respeitassem as leis.


Conselho de Defesa Nacio- Ora, qualquer compa- Recebemos na ocasião uma série de
nal. Esse assentimento do nhia, mesmo estrangeira denúncias de que empresas do setor
Conselho, no entanto, não que possua negócios em de celulose estavam adquirindo e re-
é nenhum problema ou qualquer bolsa de valores, gistrando em cartórios locais cente-
entrave, pois a absoluta estará livre da lei para nas de áreas no bioma Pampa (todas
maioria dos conselheiros adquirir terras no Brasil. em faixa de fronteira). Notificamos
são membros do governo, Me parece que tudo está as empresas e os cartórios, conforme
além do presidente e do permitido. Assim, essa determina a Lei, para que viessem
vice. Os membros milita- nova lei vai permanecer ao Incra realizar o procedimento de
res do Conselho, que po- somente para dar uma análise desses negócios e para que o
deriam representar uma roupagem de oficialidade Incra encaminhasse os processos ao
oposição com viés nacio- ao ato, mas é um ato com- assentimento prévio do Conselho de
nalista, que poderiam se pletamente entreguista de Defesa Nacional.
opor à venda de nosso nossas terras.
território até mesmo por
simples questões geopolí- c. Pode parecer estranho, “Uma imensa
ticas, são minoria. mas não é, o fato de a
proposta manter a dis- parcela de pro-
b. As legislações atuais são
relativamente exigentes
pensa de qualquer auto-
rização para a aquisição
dutores rurais
quanto à caracterização
do que seja uma empre-
por estrangeiros quando
se tratar de imóveis com
que caíram
sa estrangeira e empresa
nacional. Para ser empre-
áreas não superiores a
dez módulos. Ou seja, até
no engodo do
sa nacional tem que ter
sede no Brasil, ter capital
dez módulos (cerca de
1.500 hectares no Centro
plantio de eu-
e acionistas majoritaria-
mente brasileiros. Já a
e Norte) não precisará au- caliptos e agora 65
torização. Nas legislações
proposta de Temer sub-
verte esses conceitos total-
atuais essa liberalidade é não há merca-
do para essas
sobre áreas com até três
mente. Diz que “as restri- módulos. Contudo, na le-
ções estabelecidas na Lei
não se aplicam às pesso-
as jurídicas brasileiras,
gislação atual, para um
estrangeiro adquirir áre- vendas e suas
ainda que constituídas ou
as de 3 a 50 módulos tem
que realizar um procedi- terras estão
praticamente
controladas direta ou in- mento junto aos cartórios
diretamente por pessoas
e Incra. A proposta atual,
inutilizadas”
privadas, físicas ou jurídi-
por um lado, libera geral
cas estrangeiras”. Ou seja,
até 1.500 hectares e, por
é um engodo, pois pessoas
outro, silencia sobre tetos Nossa grande surpresa foi consta-
jurídicas brasileiras, mes-
máximos acima desses tar que já havia centenas de áreas
mo que constituídas fora
1.500. Portanto, não é es- adquiridas e a maioria registrada
do Brasil, controladas
tranho, trata-se de uma em cartórios, tudo de forma ilegal.
direta ou indiretamente
cortina de fumaça para Uma das empresas, inclusive, criou
por estrangeiros, não são
esconder o “liberou geral”. uma subsidiária brasileira para
consideradas estrangei-
ras. Como assim, uma em- dar caráter nacional ao ato, mas o
presa “brasileira”, consti- sócio presidente era o mesmo da
IHU On-Line - Durante sua
tuída fora do Brasil, com empresa-mãe multinacional. Mes-
passagem pelo Incra, o senhor
capital e sócios majori- mo que os procedimentos fossem
combateu a compra de terras
tariamente estrangeiros, irregulares, as empresas se compro-
por empresas estrangeiras.
não é estrangeira? É qua- meteram seguir, a partir de então,
Como se deu essa resistência
se um escárnio. E mais: procedimentos legais. Ocorre que
e quais os obstáculos que tive-
diz ainda a proposta que tais procedimentos requerem uma
ram de ser enfrentados?
“a proibição não se aplica complexa ação, como a análise das
às Companhias de Capital Mozar Dietrich – Na verdade, a cadeias dominiais, análise de con-
Aberto com ações nego- única ação que procuramos aplicar tratos, pareceres jurídicos. Tudo foi
ciadas em bolsa de valores no Incra, no período de 2006 a 2010, feito da maneira correta e acabou

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que emitimos pareceres ao Conselho defendidos pelo atual gover- IHU On-Line - De que forma
de Defesa Nacional dando conta das no? a liberação de terras a estran-
irregularidades e crimes cometidos, geiros se configura como uma
Mozar Dietrich – A necessidade
inclusive pelos cartórios, e opinamos ameaça ao bioma Pampa?
pelo indeferimento das solicitações e de flexibilização dos licenciamen-
tos ambientais para a exploração Mozar Dietrich – Certamente o
a nulidade de todos os negócios fei-
de monoculturas de eucaliptos no Pampa será o bioma mais afetado
tos.
bioma Pampa, por exemplo, é das por essa nova legislação, pois 100%
Isto causou uma grande e furiosa principais reivindicações desses do Pampa se situa na Faixa de Fron-
reação, pois a maioria dessas cen- teira brasileira. As terras do Pampa
setores. Mesmo que essas empre-
tenas de áreas já havia sido paga, os são em sua maioria muito férteis e
sas consigam adquirir terras com
antigos proprietários já haviam saído se prestam para várias culturas com
as mudanças nas legislações, se
das terras, e as empresas já estavam plena observância dos ditames de
mantidas as atuais exigências am-
inclusive plantando eucaliptos, a proteção ambiental. A produção de
maioria ainda sem licenças ambien- bientais, elas dificilmente obterão gado de corte e leiteiro já tem sécu-
tais. Houve uma correria à Brasília autorização para o plantio, pois não los e convive harmonicamente com
de bancadas ruralistas pressionando há como harmonizar monocultivo o Pampa. A crescente produção de
o Ministério do Desenvolvimento de eucaliptos em vasta escala com frutíferas e oleaginosas também é
Agrário e o próprio Conselho de De- proteção ambiental. Simplesmente assim. A maior ameaça que, diga-se
fesa Nacional. Vários deputados in- não há como. de passagem, já está acontecendo, é
clusive, além de atacar o Incra, que
estava apenas cumprindo e fiscali- “Certamente a monocultura do eucalipto.
Mesmo com as legislações atuais,
zando a lei, propuseram até mudan-
ças na legislação de faixa de frontei- o Pampa será que já vimos são um pouco permis-
sivas, essa triste realidade de deser-
ra, alegando que no Rio Grande do
Sul não havia mais a necessidade o bioma mais tos verdes de eucaliptos já impera
em imensas áreas em nosso Estado,
66
dessas ressalvas em nossas frontei-
ras. Os procedimentos se arrastaram
afetado por imagine com uma lei que libera total,

essa nova le-


que não impõe freios. Não deixa de
por anos e tudo ficou sobrestado. As
ser estranha, além de triste, essa ob-
empresas alegaram perda de ativos e
prejuízos e abandonaram inclusive
projetos de construção de plantas de
gislação, pois sessão do governo Temer de entre-
gar tudo a estrangeiros. O Pré-Sal,
celulose em municípios da Fronteira
Oeste. Recentemente, uma matéria
100% do Pam- nossa maior riqueza, já foi. Os maio-
res recursos do orçamento da União
jornalística mostrou uma imensa pa se situa na estão sendo drenados para pagar ju-
ros dos rentistas mundiais, por isto
Faixa de Fron-
parcela de produtores rurais que ca-
necessitam retirar dos gastos sociais,
íram no engodo do plantio de euca-
da saúde, da educação, da seguran-
liptos, e agora não há mercado para
essas vendas e suas terras estão pra- teira brasileira” ça, da previdência. Agora, querem
vender nossas terras, com um pálido
ticamente inutilizadas.
e mentiroso discurso de que isto tra-
Até o presente momento, essas Esta foi mais uma tentativa dessas rá investimentos da ordem de 45 bi-
mobilizações não tiveram êxito na empresas junto ao Incra na ocasião. lhões de dólares nos próximos anos.
alteração legal e na facilitação da Buscaram o órgão com projetos de
plantio consorciado com outras cul- O risco para o país é imenso, trata-
compra de terras por estrangeiros.
turas, com criação de gado bovino e -se de um atentado à soberania na-
Frente ao atual quadro, no entanto,
cional. E o estranho é que o Brasil
se o governo Temer conseguir modi- ovino. Tinham o descaramento de
está indo na direção contrária à do
ficar a tal ponto as legislações como afirmar que esses consórcios eram
mundo, pois os demais países estão
se comentou antes, tudo cairá por possíveis nos dois a três primeiros
se fechando, no mínimo economi-
terra; nossas fronteiras, que já são anos, mas depois não eram mais pos-
camente, e jamais sequer falam em
abertas, serão escancaradas aos es- síveis, pois as florestas se fechavam e vender suas terras.
trangeiros. só mais eucaliptos permaneciam. A
ideia de seus belos powerpoints na IHU On-Line - Como a produ-
IHU On-Line - Que relação é
ocasião era obter a anuência do In- ção em terras geridas por em-
possível se estabelecer entre
cra para os licenciamentos ambien- presas multinacionais pode im-
a proposta de mudança de re-
pactar na produção agrícola do
gras para venda de terras para tais. Ficou evidente que era mais um
Pampa?
estrangeiros e a flexibilização engodo e o Incra não deu sua anuên-
de licenciamentos ambientais, cia aos licenciamentos. Mozar Dietrich – Na verdade,

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este impacto já está ocorrendo em me todo o volume de chuvas que cai as estruturas agrárias da região, es-
vasta escala. Quem viaja pelo Rio na região, impedindo a infiltração sencialmente composta por grandes
Grande do Sul, na região do Pampa, de excedentes no subsolo. Por sua latifúndios. Costuma-se dizer que a
que praticamente é a metade sul do vez, isto altera os fluxos dos cursos metade Sul do estado (Bioma Pam-
estado, depara-se com imensas e in- d’água, inclusive secando córregos pa) é a metade pobre, ao passo que
findáveis plantações de monocultura e riachos. Isto é um agravamento a metade Norte é a parte rica. Este
de eucaliptos. Mas das estradas ain- de um fenômeno já visto há déca- discurso esconde nitidamente o ob-
da não se tem a noção real do qua- das nas grandes regiões de plantio jetivo de impedir ou atacar o proces-
dro. Quem tem acesso à ferramenta de arroz, em nossa Fronteira Oeste, so de reforma agrária, parcelamento
Google Earth pela Internet pode onde se verificam inúmeros arroios e redistribuição de terras na região.
fazer um passeio aéreo pelo Pampa que secaram. O problema, portanto,
Gaúcho e verá o que de fato já está
ocorrendo, e que, no meu entender,
é das monoculturas em larga escala.
“Não deixa de
A destruição total do solo, tanto
é desastroso. por seu esgotamento devido à mo- ser estranha,
além de triste,
As imensas manchas verdes que se nocultura dos eucaliptos, quanto ao
estendem para todas as regiões são que resta após as colheitas. Muito
monoculturas de eucaliptos que já
destruíram imensos nichos ecológi-
se fala nos desertos verdes onde há
os monocultivos dos eucaliptos, mas essa obsessão
cos do Pampa, e isto inexoravelmen-
te. Essa imensa massa verde, que
pouco se fala dos desertos dos tocos
que restam após a colheita, que tor- do governo
não produz nada de alimentos, so-
mente pasta de celulose para expor-
nam a terra absolutamente imprati-
cável, a não ser mediante grandes in- Temer de en-
tação, traz pelo menos três grandes e
graves consequências:
vestimentos. Trata-se de uma terra
morta com o plantio dos eucaliptos
tregar tudo a
Uma alteração grande e repentina
e uma terra arrasada após a colheita,
que se presta, quando muito, a mais
estrangeiros”
nas cadeias produtivas e sociais das
regiões, contribuindo para o êxodo
uma safra de eucaliptos. Existe um 67
caso emblemático que exemplifica
rural, a destruição de cadeias pro- isto. Em 2006, o Incra-RS recebeu Quem ataca os processos de refor-
dutivas já instaladas, a diminuição da União uma área de terras de 25 ma agrária quer manter latifúndios
da produção de alimentos. Milhares hectares próxima ao centro de Pelo- que serviriam somente para a pro-
de produtores rurais estão venden- tas, para o assentamento de famílias dução de gado de corte em sistema
do ou arrendando suas terras para o que poderiam produzir hortigranjei- extensivo. A metade Norte do Esta-
plantio de eucaliptos. Esse processo ros. Contudo, tratava-se de uma área do é rica exatamente porque nela foi
inclusive já vem promovendo uma onde houvera um plantio de eucalip- feito um quase completo processo de
reconcentração de terras na região, tos. Na Autarquia a área era conheci- parcelamento, com as imensas co-
mesmo em regiões onde o Instituto da como a “Área dos Tocos”. O Incra lonizações. Foi isto que propiciou o
Nacional de Reforma Agrária, o In- acabou tendo que desistir da área, crescimento e a riqueza, minifúndios
cra, já promovera redistribuições de pois a mesma tinha seu valor de mer- e população. Portanto, com relação à
terras. cado em torno de R$ 300.000,00, ao metade Sul, o que existe na verdade
Um grande impacto nos processos passo que o orçamento de maquiná- é o contrário do que se propala. Tra-
de recarga dos lençóis freáticos, in- rio para o destoque e recuperação de ta-se de terras altamente produtivas,
clusive no Aquífero Guarani5, pois, solo ultrapassava os R$ 500.000,00. ricas em mananciais de água, clima
a par de não haver comprovação de Ou seja, plantar monoculturas de excelente para determinadas cultu-
que plantios de eucaliptos secam eucaliptos destrói a flora, a fauna e a ras, como se vê recentemente com a
e drenam solos, é consenso que o própria terra. Sob qualquer aspecto, uva, frutíferas, produção de leite.
consumo de água por esses vegetais trata-se de um deserto, que infeliz-
mente avança sobre o Pampa. Mas, desgraçadamente, ainda são
equivale ao índice pluviométrico do
imensos e inumeráveis latifúndios.
Pampa como um todo. Eucalipto IHU On-Line - Quais os desa- Assim, o grande desafio é transfor-
pode não secar o solo diretamente, fios para se aliar preservação mar a prática dos monocultivos em
mas seca indiretamente, pois conso- à produção de alimentos no larga extensão, e daí não se pode so-
Pampa?
5 Aquífero Guarani: uma das mais importantes re- mente criticar o eucalipto, mas tam-
servas hídricas do planeta, sua manutenção está re- Mozar Dietrich – O bioma Pam- bém a soja e outras monoculturas. O
lacionada à capacidade de recarga, que ocorre em
território brasileiro, no estado de Mato Grosso do Sul. pa não é uma região de baixa produ- desafio é a diversidade de plantios,
Sobre o aquífero guarani, confira a entrevista especial
realizada pelo site do Instituto Humanitas Unisinos – ção, de terras pouco produtivas, ou com culturas que se adaptam ao solo
IHU, Águas do Aquífero Guarani: um recurso nobre,
com Ricardo Hirata, em 02-08-2006, disponível em
de secas sazonais, como costumam e ao clima, como também tem sido o
http://bit.ly/1uZOXWl. (Nota da IHU On-Line) alardear os que mantêm e defendem exemplo da olivicultura, de coopera-

EDIÇÃO 500
TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

tivas de produção de uva, leite e seus começou a operar, mesmo contra de fato o posseiro acaba ganhando
derivados. O desafio também é o de a pressão dos povos indígenas da a terra em detrimento do proprie-
planejar ambientalmente as regiões, região. A Funai alega que não deu tário que não cuidava de sua posse.
preservando corredores ecológicos, anuência para essa mineração. Es- Ocorre que isto é somente verdadei-
áreas de mananciais, de recarga de pecialistas dizem que o montante de ro em pequenas causas, de um pe-
aquíferos, e demais Áreas de Preser- dejetos e rejeitos dessa mineração queno posseiro contra um pequeno
vação Permanente será maior do que o da Samarco, proprietário. Quando passamos as
cujas barragens se romperam e cau- grandes lides, onde grupos de pos-
Essencialmente o grande desafio
saram o maior desastre ecológico da seiros reivindicam áreas de terras
é desconcentrar a terra, redistri-
história do Brasil. Mas, ao que pare- ocupadas sobre latifúndios rurais,
buindo-a para implantar regiões de
ce, o governo Temer ignora tanto as ou latifúndios urbanos mantidos por
agricultura familiar. É necessário
legislações quanto os efeitos dessa imobiliárias ou proprietários que es-
também povoar ou repovoar o Pam-
ação. E os índios não têm consegui- peculam nos mercados de terras, daí
pa, pois a baixíssima concentração
do barrar o processo, nem da Belo a posse vira pura ficção mesmo.
humana na região também é um en-
Monte, e nem agora da extração de
trave ao desenvolvimento com sus- Nessas situações o normal é haver
ouro.
tentabilidade. decisão judicial contrária aos possei-
ros e despejos de massas de pobres.
IHU On-Line - Além do Pam-
pa, que outros biomas podem
ser impactados pela liberação
“Querem ven- Nesses casos nossos juízes privile-
giam a propriedade e não a posse.
da venda de terras a estrangei-
ros?
der nossas ter- Por quais razões? Este tema deveria
ser debate permanente e profundo

Mozar Dietrich – Não há como


ras, com um tanto na sociedade, quanto nos tri-
bunais, quanto nas academias, pois
evitar que todos nossos biomas se-
jam atingidos drasticamente por
pálido e men- o país ainda possui imensos vazios
populacionais, tanto rurais, quanto
essa medida. Além do Pampa, já ci-
tei outros dois biomas que já estão
tiroso discurso urbanos, ao passo que temos imen-
sas massas humanas ainda sem ter-
68
sofrendo esses impactos: a Mata
Atlântica, pela pressão imobiliária/
de que isto tra- ras para plantar ou mesmo morar.
Mas, infelizmente, se dá o contrário
hoteleira sobre nosso maravilhoso
litoral nordestino, que já incrustou
rá investimen- em nosso país, até mesmo porque as
bancadas ruralistas e seus parceiros
feudos naquelas praias, mesmo ile- tos da ordem são maioria no Congresso.
galmente, e o Cerrado no oeste baia-
no, onde se sucedem imensas e con- de 45 bilhões Função social da terra

de dólares nos
tíguas “farms” norte-americanas,
produzindo soja ao estilo cowboy. Nossa Constituição é explícita e
forte ao anunciar que a proprieda-
Acredito, no entanto, que o maior
alvo e cobiça estrangeira seja a Flo-
próximos anos” de, e aí está incluída a propriedade
urbana, tem que cumprir sua função
resta Amazônica, pois ela agrega as social, caso contrário deve ser desa-
IHU On-Line - Em que medi-
maiores potencialidades tanto de propriada e destinada a assentamen-
da a discussão sobre a terra no
flora, quanto de minérios do planeta. tos urbanos ou rurais. Mas o Incra
campo pode impactar no deba-
O fato já recentemente consumado, não tem forças suficientes, nem é
te sobre a terra urbana? E por
também absolutamente vergonhoso dotado por instrumentos e normati-
que é tão importante discutir
e triste para todos nós brasileiros, é vas robustas para fazer frente a essa
sobre posse da terra, seja no
o caso da Golden Sun, empresa mi- realidade, nem temos exemplos de
campo ou na cidade?
neradora de ouro canadense, que re- prefeitos que tenham assumido es-
cebeu do governo Temer a liberação Mozar Dietrich – A questão da sas lutas para distribuir terras urba-
de extração de ouro na grande volta posse da terra é uma das maiores fic- nas com mais justiça e igualdade.
do Xingu, parte do rio que secou com ções do Direito no Brasil. Somos de
o fechamento das comportas de Belo uma tradição jurídica, ensinam nos- Resultado disto é que o Coeficien-
Monte6. sos doutos, na qual se diz que a posse te de Gini8 tem demonstrado que a
é mais importante do que a proprie-
A Golden Sun já se instalou ali e
dade. Quem ensina isto sempre uti- sitiva. (Nota da IHU On-Line)
8 Coeficiente de Gini: é uma medida de desigualda-
liza o exemplo do usucapião7, onde de desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini,
6 Na seção Notícias do Dia, no sítio do Instituto Huma- e publicada no documento “Variabilità e mutabilità”
nitas Unisinos – IHU, é possível conferir diversos textos (“Variabilidade e mutabilidade” em italiano), em 1912.
sobre a questão. Entre eles, “Os Estados Unidos ga- 7 Usucapião: é um modo de aquisição da proprieda- É comumente utilizada para calcular a desigualdade
nham no Brasil. Artigo de Raúl Zibechi”, publicado nas de e ou de qualquer direito real que se dá pela posse de distribuição de renda, mas pode ser usada para
Notícias do Dia de 28-10-2015, disponível em http://bit. prolongada da coisa, de acordo com os requisitos le- qualquer distribuição. Ele consiste em um número en-
ly/2ndDMvo. (Nota da IHU On-Line) gais, sendo também denominada de prescrição aqui- tre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade

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concentração de terras tem aumen- os esforços feitos pelos governos completamente nosso mercado de
anteriores ao atual. Somos um dos terras aos estrangeiros? Não preci-
tado no Brasil, mesmo após todos
países com a maior concentração sa ser vidente ou especialista para
de renda (português brasileiro) ou rendimento (por- de renda do mundo e certamente ver o que vai acontecer. Nos pró-
tuguês europeu) (onde todos têm a mesma renda) e
1 corresponde à completa desigualdade (onde uma
o de maior concentração de terras. ximos anos o Coeficiente de Gini
pessoa tem toda a renda (português brasileiro) ou
rendimento (português europeu), e as demais nada
O que esperar que aconteça com as irá mostrar que aumentou a con-
têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em medidas já anunciadas pelo gover- centração de terras, tanto urbanas,
pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplica-
do por 100). (Nota da IHU On-Line) no Temer e mais esta agora de abrir quanto rurais. Certamente.■

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TEMA DE CAPA | BIOMAS BRASILEIROS E A TEIA DA VIDA

O canto que corre solto


no pampa do sul da terra
Demétrio Xavier descreve as especificidades da cultura
do pampa no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina
Ricardo Machado

P
ensar a produção cultural, es- -cordilheira ou do oeste argentino são
pecialmente a música, e suas incluídos ‘na grande Pampa’”, comple-
relações com a geografia de menta.
onde emerge é um exercício que requer
ultrapassar o caráter caricaturesco de Demétrio Xavier é um músico por-
sua aparência mais superficial. Demé- to-alegrense, especializado na música
trio Xavier, músico especializado em crioula do Uruguai e da Argentina. Atu-
música crioula sulista, faz isso com o ando no Rio Grande do Sul e nos dois
rigor que o tema merece. “Em alguma países platinos, enfatiza sua pesquisa
medida, os horizontes amplos, o deser- na obra do argentino Atahualpa Yupan-
to, o vento, a planura... timbram o can- qui, tendo traduzido e gravado, em ver-
to de raiz folclórica. Lembro que Yu- são bilíngue, seu poema maior, “O Pa-
panqui dizia que, segundo seu pai, ao jador Perseguido”. Venceu a Califórnia
70 aproximar-se de alguém, deve-se usar o da Canção Nativa, festival de música
caminho mais largo, para ser visto por gaúcha, em 2009, com uma poesia mu-
todos os lados”, conta Demétrio, em sicada por Marco Aurélio Vasconcellos,
entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A Sanga do Pedro Lira”. Conduz na
“‘Pampa’ – muitas vezes flexionado no FM Cultura de Porto Alegre o programa
feminino, formato hispano-americano Cantos do Sul da Terra, dedicado à mú-
que nunca havia sido utilizado pelos li- sica e à literatura do sul do continente e
teratos do estado passa a ser o universo indicado em 2012 para o Prêmio Press.
de intersecção identitária do Rio Gran-
de do Sul com o Prata. Ritmos da pré- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se ca- ra... timbram o canto de raiz folclóri- mais largo, para ser visto por todos
racterizam os “cantos do sul da ca. Lembro que Yupanqui1 dizia que, os lados. Um dia, repeti essa frase a
terra”, especialmente os rela- segundo seu pai, ao aproximar-se um amigo crioulo das serras de Cór-
cionados ao bioma Pampa? de alguém, deve-se usar o caminho doba. Ele disse que não reconhecia
sua gente nela; o serrano é cheio
Demétrio Xavier – Há uma re-
1 Atahualpa Yupanqui (1908-1992): pseudônimo de de esconderijos, atalhos, cavernas,
lação entre a paisagem e o discurso Héctor Roberto Chavero, foi um compositor, cantor,
curvas, horizontes mais próximos...
artístico popular que vai além do violonista e escritor argentino. É considerado um dos
mais importantes divulgadores da música folclórica como a paisagem que o abriga.
determinismo redutor ou caricatu- daquele país. Suas composições foram cantadas
por reconhecidos intérpretes, como Mercedes Sosa,
resco, do tipo “tropical, logo alegre Alfredo Zitarrosa, Víctor Jara, Dércio Marques, Ángel Talvez, sim, os cantos pampianos
e sensual” ou “temperado, logo inti- Parra, Marie Laforêt e Elis Regina, entre outros, con- encontrem na milonga, no estilo, na
tinuando a fazer parte do repertório de vários artistas
mista e reflexivo”. Não por outra ra- na Argentina e em diferentes partes do mundo. Filho huella, no triunfo, em grande parte,
de pai quéchua e mãe basca, mudou-se ainda crian-
zão, sábios originários conceberam a ça com a família para Agustín Roca, em cuja ferrovia
uma expressão da paisagem.
consigna “Runa Allpakamaska – O seu pai trabalhava. Na adolescência, começa a tomar
aulas de violão com o concertista Bautista Almirón, IHU On-Line – Como a geogra-
Homem é Terra que anda”. viajando diariamente os 15 quilômetros que o separa-
vam da casa do mestre. É dessa época o pseudônimo fia do Pampa impacta na produ-
Em alguma medida, os horizontes Atahualpa Yupanqui, em homenagem a Atahualpa e
Tupac Yupanqui, os últimos governantes incas. (Nota
ção cultural, especialmente na
amplos, o deserto, o vento, a planu- da IHU On-Line) música?

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REVISTA IHU ON-LINE

“O serrano é cheio de esconde-


rijos, atalhos, cavernas, curvas,
horizontes mais próximos como
a paisagem que o abriga”

Demétrio Xavier – O Bioma em- song book chamado Estética do Mesmo assim, na região do bioma
presta fauna e flora, clima e imagética, Frio, cuja referência comparati- Pampa se encontrará grande diversi-
para serem ingredientes da música. va é a música popular brasileira. dade de sonoridades. As milongas dos
A demografia – os grandes espaços Para os uruguaios, no entanto, o três países, por exemplo, tão emble-
abertos – e as formas tradicionais de pampa frio é o da Argentina. Que máticas, não são idênticas. Há ainda
produção, assim como a constituição semelhanças e diferenças há na ritmos que não têm vigência no Rio
étnica, concluem esse desenho. produção musical pampiana Grande, como a Cifra, compartilhada
IHU On-Line – Que pampa é nestes três países? pelos países platinos – e representati-
este cantado em verso no cancio- vidade diferente no uso de instrumen-
Demétrio Xavier – Uruguaios di-
neiro sulista? tos como o acordeom.
zem “más desubicado que brasilero en
Demétrio Xavier – De algum invierno”. Sem dúvida o clima se pres- IHU On-Line – Como a música
tempo para cá, os compositores e es- ta para uma definição de identidade de Atahualpa Yupanqui expres-
critores vêm usando uma circunscri- em traços básicos. Uruguaios não sa uma ethicidade do pampa ar-
71
ção algo mágica do Pampa. Trata-se costumam chamar seu campo, sua gentino?
de um espaço que não corresponde penillanura (quase planície, por causa
Demétrio Xavier – Yupanqui é
ao bioma, mas também não considera das coxilhas) de pampa. A Argentina
um autor capaz de cobrir um território
que paisagens bem distintas das que o possui pampas específicos, como no-
musical imenso. O pampa é um dos
compõem também se chamam “pam- mes de localidade oriundos de uma
ambientes em que sua música transi-
pa”, nos países vizinhos. “Pampa” – condição de planície sem maiores aci-
ta. Em suas milongas, estilos, huellas,
muitas vezes flexionado no feminino, dentes e povoações. Assim, a chama-
enfim, no que de pampiano há em seu
formato hispano-americano que nun- da Pampa Húmeda, semelhante ao
cancioneiro e em sua literatura, apa-
ca havia sido utilizado pelos literatos sudoeste gaúcho, em nada se parece a
rece a honradez, a gravidade, a intros-
do estado, passa a ser o universo de Pampa de los Guanacos3, Pampa del
pecção, a generosidade, a coragem, o
intersecção identitária do Rio Grande Infierno4 ou Pampa de Achala5.
amor ao silêncio, como itens constitu-
do Sul com o Prata. Ritmos da pré-
-cordilheira ou do oeste argentino são número 264, de 30-6-2008, da IHU On-Line, intitulada
tivos dessa identidade.
A “estética do frio” e a identidade rio-grandense, dispo-
incluídos “na grande Pampa”. nível em http://bit.ly/2nlHgMq. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Qual a influên-
3 Pampa de los Guanacos: é uma localidade da ci-
De todos os modos, segundo bons dade de Copo, na provincia de Santiago del Estero, cia da cultura indígena na cultu-
autores, Pampa sempre foi antes uma
Argentina. (Nota da IHU On-Line) ra pampiana?
4 Pampa del Infierno: é uma localidade argentina na
cidade de Almirante Brown, província do Chaco. (Nota
referência literária e intelectual do que da IHU On-Line) Demétrio Xavier – Há um aporte
popular – o que pode estar mudando 5 Pampa de Achala: é o nome dado a uma vasta
imenso na linguagem e forte ainda na
região que se encontra no centro das Serras de Cór-
com a consolidação do Bioma. doba, localizadas nas serras pampianas do centro- culinária, em certos costumes típicos.
noroeste argentino. Trata-se de uma área escarpada,
IHU On-Line – O cantor e com- com vegetação escassa, encontrada a uma altitude Musicalmente, essa influência será
média de 2 mil metros. A região é protegida e foi cria-
positor Vitor Ramil2 tem um da a “Reserva Hídrica Provincial Pampa de Achala”, mais notável na zona do litoral argen-
por se tratar de uma fonte de água importante para tino, com o chamamé e outros forma-
cursos de água da província de Córdoba. (Nota da
2 Leia a entrevista com Vitor Ramil concedida a edição IHU On-Line) tos.■

Leia mais
- Misa Criolla, o cristianismo latino na sonoridade do Sul da Terra. Reportagem pulicada na revista
IHU On-Line, nº 462, de 30-3-2015, disponível em http://bit.ly/2mEIapt.

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CRÍTICA INTERNACIONAL | CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNISINOS

A projeção ideológica da Operação


Lava Jato na América Latina
Bruno Lima Rocha

A s escolhas do lulismo levaram ao crescimento a


partir das capacidades existentes (sem tentar alte-
rar termos de troca) e no ajuste Estado-Empresa.
Daí o emprego vulgar dos termos Bismarckismo Tropical,
Campeões Nacionais e Pacote de Bondades ter sentido e re-
levância. Junto ao banco de fomento e a real competência
de alguns oligopólios nacionais, com a liderança inconteste
da construção pesada e do complexo de óleo e gás, nosso
país teve uma expansão do capitalismo para além das fron-
teiras.
Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em Ciência Polí-
tica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFR-
GS, graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ e professor de Relações Internacio-
nais da Universidade do Vale do Rio do Sinos – UNISINOS.
Eis o artigo.
72

A Operação Lava Jato, levada a cabo por uma Força Tarefa baseada em Curitiba (PR) e
subordinada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4, com sede em Porto Alegre e
com jurisdição nos estados da Região Sul), tem uma dimensão que supera, e muito, as fron-
teiras do Brasil. A lógica é bastante simples nos efeitos, mas tem certa complexidade para o
pensamento crítico.
Durante os governos do ex-presidente Lula (2003-2010) e no governo e meio da ex-pre-
sidenta Dilma (2011-2016), o Brasil exerceu – com variações de intensidade – uma política
externa assertiva e com uma linha diplomática bastante alinhada com a primeira. Assim,
houve um bom nível de coerência interna em alguns setores de primeiro, segundo e terceiro
escalão do Estado brasileiro, em consonância com o capital nacional (baseado em controles
familiares e poucas expertises) e também com as transnacionais aqui instaladas. Logo, os
fundamentos de um crescimento econômico em país de capitalismo tardio e semiperiférico
foram cumpridos. Tais práticas (a serem generalizadas na sequência) criaram possibilidades
concretas de excedentes de poder, acompanhados de fatores externos (tanto regionais como
globais), dando chance para uma janela de oportunidade devidamente aproveitada pela apa-
rente concertação de elite dirigente e classe dominante brasileira.
O Brasil, por suas dimensões continentais, capacidade instalada e a projeção através da
América Latina e ao Atlântico Sul, caso exerça ajustes internos e consiga algum consenso
na hegemonia dominante, tem as condições básicas tanto para o crescimento como para o
desenvolvimento, com a respectiva expansão de excedentes de poder. As escolhas do lulismo
levaram ao crescimento a partir das capacidades existentes (sem tentar alterar termos de
troca) e no ajuste Estado-Empresa. Daí o emprego vulgar dos termos Bismarckismo Tropi-
cal, Campeões Nacionais e Pacote de Bondades ter sentido e relevância. Junto ao banco de
fomento e a real competência de alguns oligopólios nacionais, com a liderança inconteste da
construção pesada e do complexo de óleo e gás, nosso país teve uma expansão do capitalis-
mo para além das fronteiras.

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“A criminalização dos contratos com


a Odebrecht leva à suspeição sobre
o capitalismo exercido pelo Brasil”

O processo de internacionalização de empresas sem perda de controle decisório dentro do Con-


selho de Administração é um passo obrigatório para qualquer Estado que queira disputar espa-
ços no Sistema Internacional (SI). Dentro do SI, buscar uma melhor posição na perversa Divisão
Internacional do Trabalho (DIT), é o caminho mais apropriado na projeção de poder do país
líder e seus associados. Foi justo isso o que ocorrera no Brasil e daqui para Argentina, Uruguai,
Peru, Colômbia, Venezuela, Panamá, Equador e Cuba, dentre outros países latino-americanos.
Expansão semelhante, mas com um grau maior de dependência – quase absoluta – se deu nos
investimentos brasileiros em países da África.
Infelizmente, é preciso constatar que a natureza das práticas políticas e empresariais em nos-
sos países sob os governos de centro-esquerda, não foi alterada substantivamente. Assim, con-
dições de privilégios, acessos diferenciados aos nichos de poder (barreira à entrada político-
-institucional e também técnico-científica), indicações de postos-chave em função de interesses
partidários, usos de fundos não declarados para financiamento de campanhas e lavagem de di-
nheiro para fins de enriquecimento ilícito, teriam sido abundantemente praticadas. Tais práticas
seriam correntes tanto no Brasil como nos países que receberam investimentos brasileiros, com
especial atenção para Odebrecht e Petrobras. Até aqui temos fatos quase incontestáveis. Agora
entramos em terreno mais pantanoso.
73
Pelos dados divulgados no portal da Procuradoria Geral da República (ver: http://migre.me/
wcYzA), a Operação Lava Jato teria realizado até abril de 2016, 91 pedidos de acordos de coope-
ração legal para 28 países. No momento da publicação do documento, havia mais 13 pedidos de
cooperação destinados a outros 11 países. À exceção dos Estados promotores de combate a lava-
gem de dinheiro e exercício de supremacia em escala global (como Estados Unidos e países eu-
ropeus), os demais países além de cooperarem no nível legal também receberam investimentos
de empresas brasileiras. Como estamos observando investigações e narrativas de criminalização
dos atos de governo que assinaram contratos com a Odebrecht em escala latino-americana, logo,
chegamos à conclusão que temos o excedente de poder capitalista exercido pelo Brasil também
sendo visto com suspeição.
Considerando que há um enorme desgaste – merecido por sinal – tanto das oligarquias políti-
cas como das frações de classe dominante ainda detentoras de capital na América Latina, logo,
a suspeição reforça teses que vão ao encontro de ideias transnacionais. A lógica de tão simples,
é quase simplória. As carreiras de Estado de procuradores, promotores, magistrados e autorida-
des das carreiras jurídicas e policiais têm uma apreciação cada vez maior em nossos países, in-
versamente proporcional ao decadente apreço das elites tradicionais. Assim, ao seguir os passos
da Operação Lava Jato, os correspondentes aparelhos de Justiça do Continente terminam por
ajudar a deslegitimar a atuação das oligarquias políticas ascendentes – como as “bolivarianas” –
e se legitimam como tecnocratas essenciais para assegurar a punição aos crimes de elite.
Se formos observar a criminalização da política nos países vizinhos, veremos uma reprodu-
ção quase idêntica ao ocorrido no Brasil. Por um lado, é justificada a enorme desconfiança da
população para com os oligarcas, empresários e até mesmo os “bem intencionados” de centro-
-esquerda. Por outro, não há democracia de massas que se sustente em uma legitimação de pro-
fissionais de carreira com sentido de pertencimento transnacional, ideologicamente vinculado
ao liberalismo conservador propagado mundialmente pelos EUA.

Expediente
Coordenador do curso: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 500
CINEMA

Botão de Pérola, de Patricio Guzmán (2010)

74

No espaço do tempo infinito,


a obsessão pela memória
Os dois últimos documentários do chileno Patricio Guzmán, Nostalgia da Luz
e Botão de pérola, retomam a história das vítimas da ditadura de Pinochet
Ricardo Machado

O cinema minimalista de Patricio Guzmán em Nostalgia da Luz (2010) e Botão de


pérola (2015) é capaz de apresentar nossa condição humana desde um minúsculo
grão de areia ou gota de água até a imensidão do cosmos. Enquanto em Nostalgia da
Luz o documentário é ambientado na árida região do Atacama, local mais seco do mundo, em
Botão de pérola é a água que conduz a história, na Patagônia do Chile. A linha do tempo que
atravessa os filmes e a vida na terra é costurada com o fio da existência do próprio universo, com
seus silêncios desérticos e seus oceanos de vapor de água no espaço sideral.

É pelas lentes de Guzmán e pela sombra do passado que os mortos voltam para “assombrar”
o presente de quem esqueceu de olhar para trás. Muito do que sabemos do universo, dos plane-
tas, nebulosas e estrelas, o sabemos pelos satélites posicionados no Deserto do Atacama, no Chi-
le. Não muito distante dos cientistas que olham para o céu, é para o chão que olham as mulheres
– filhas, esposas e mães – dos desaparecidos políticos do regime de Pinochet. Buscam corpos,
mas não os celestes, e observam a terra na tentativa de um pedaço de memória. Às vezes, trata-se
de uma parte de carne e osso, dado que o local é tão seco que, mesmo décadas depois de serem

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

enterrados em valas comuns, há corpos em relativo estado de conservação. É na encruzilhada do


encontro da astronomia, antropologia e política que Nostalgia da luz se realiza. A memória do
deserto é implacável, lá se pode ver das inscrições multisseculares dos povos pré-colombianos
aos vestígios da crueldade da ditadura militar chilena.

O estreito e comprido país latino guarda pouca semelhança entre a metade norte e sul. O
que une os pontos da história é a execução de todos aqueles que não cabem no projeto hegemô-
nico de poder, em suas diferentes expressões. O primeiro passo à marcha do extermínio humano
na costa chilena foi dado ainda no século 19, quando navegadores ingleses passaram pelo Pacífi-
co Sul e viram pessoas às quais descreveram como “pantagones”, que significa algo como “seres
de patas grandes”. Para a civilização ilustrada europeia ávida por colonização, aqueles povos
não eram sequer dignos de serem chamados de humanos, por isso o termo “seres”. É desde o
litoral chileno de mais de 4 mil quilômetros que a história de Botão de Pérola é contada. A água
é o elemento central do documentário e é a partir dela que a história dos Kawashkar, Yamana
e Selk’nam, etnias indígenas que vivem há séculos na patagônia chilena, é contada. Os poucos
sobreviventes aos colonizadores e à exploração dos territórios durante a ditadura chilena foram
obrigados a abandonar quase todos seus modos de vida. A água, que para estes povos não é
somente um bem natural, mas um modo de existência, tornou-se um recurso domesticado, do
qual não têm o direito de usufruírem nem mesmo da imensidão do mar sem serem interpelados
pela guarda costeira.

O que une os dois filmes, além da divagação metafísica e o apuro poético-cinematográfico


e textual de Guzmán, é a brutalidade da ditadura chilena. A geleira de silêncio sobre os perse- 75
guidos durante a era Pinochet, presidente entre 1973 e 1990, e mesmo depois de sua morte em
2006, vai se derretendo pouco a pouco. Longe dali, o passo vem à tona nos pequenos detalhes
do tecido de uma roupa que “emerge” de um corpo no Atacama. O mar, que esconde segredos
para os que conhecem apenas sua superfície, revela verdades aos que arriscam conhecer suas
profundezas. O minimalismo de ambas produções reside na conexão de tudo com tudo, no olhar
complexo sobre a infinitude do espaço e sua relação com a pequenice de nossa existência, na vã
esperança dos apoiadores do regime militar de ocultar o passado debaixo das salgadas águas do
Pacífico.

Com sua voz calma, mas cheia de emoção, Patricio


Guzmán nos conduz por suas divagações obsessivas
em transformar o deserto em memória, em transfor-
mar o oceano em um livro de história, em transformar
o esquecimento em vida. No fundo, esse parece ser o
grande projeto político dos documentários, trazer à
vida os desaparecidos políticos do regime de exceção
chileno. Enquanto não chega a última produção da
trilogia, ainda sem título, mas que deve ter como eixo
central a cordilheira dos Andes, Nostalgia da Luz e Bo-
tão de pérola são dois enormes tratados sobre nossa
(des)humanidade, a partir de episódios chilenos que
reconstroem o mural da barbárie humana, não para
ser admirado, mas para jamais ser esquecido.■

Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán (2010)

EDIÇÃO 500
PUBLICAÇÕES

A Liberdade Vigiada: sobre Privacidade,


Anonimato e Vigilantismo com a Internet

A edição 250 do Cadernos IHU ideias debate o anonimato na Inter-


net. Deve ser abolido em geral, por causa da Internet? A dita “neu-
tralidade da rede” deve ser defendida? Para as respostas positivas,
como? Com que medida de eficácia, ou quais efeitos colaterais, na esfera ju-
rídica? E a
privacidade? Prepare-se para a ciberguerra.

O processo legislativo que culminou


na promulgação do chamado Marco
Civil da Internet (Lei 12.965, de 2014)
ensejou várias discussões e debates
públicos sobre o papel dos provedo-
res de acesso à Internet no teatro e no
combate ao cibercrime. Diante da re-
76 levância atual do assunto,
este artigo apresenta algumas con-
siderações referentes a uma corrente
de opinião que se manifestou nesse
debate, frequentemente defendida
em listas de discussões de cunho ju-
rídico, que podemos chamar de antia-
nonimista. Ao longo deste artigo, de-
senvolvemos algumas considerações
sobre essas opiniões, com algumas
reflexões gerais pertinentes ao con-
texto desta publicação.
Tal corrente presume, às vezes ex-
plicitamente, a existência de um
“mito da incompatibilidade entre a
privacidade, o anonimato e a respon-
sabilização”. O anonimato é incompa-
tível com a responsabilização no âm-
bito jurídico, isto é fato. Mas também
é fato que o âmbito jurídico não existe
no vácuo; ele existe num espaço de
valores sociais que muitas vezes con-
flitam entre si.
Esta e outras edições do Cadernos IHU ideias podem ser obtidas di-
retamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço
humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 51 3590 8213. ■

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Laudato Si’ e os Objetivos de


Desenvolvimento Sustentável: uma
convergência?

A edição 117 do Cadernos Teologia Pública retoma o debate em


torno da Carta Encíclica Laudato Si’ – sobre o cuidado da casa
comum, de autoria de Gaël Giraud e Philippe Orliange, da Agência
Francesa de Desenvolvimento (AFD).
Por ter sido publicada em 18 de junho de 2015, alguns meses antes da Con-
ferência de Paris sobre o clima, a encíclica Laudato Si’ foi voluntariamente
lida, no contexto das negociações internacionais sobre o clima, como uma
contribuição da Santa Sé para o esforço coletivo de se chegar a um acordo
universal. Na França, a realização da Conferência de Paris ofuscou um pou-
co os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos em
setembro de 2015 sem debate nem
encenação, após um processo de ne-
gociações iniciado em 2013.
No entanto, é com os ODS e a Agen- 77
da 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, das Nações Unidas, que
se deve comparar a encíclica de Fran-
cisco. Laudato Si’ e os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável têm
uma ambição universal em comum:
ambos examinam as relações entre
clima e desenvolvimento, ambos for-
mulam respostas coletivas para desa-
fios mundiais. Porém, o lugar ocupa-
do por cada uma das duas instituições
portadoras desses dois registros de
discurso é certamente muito diferen-
te: de um lado, a Igreja católica e, do outro, a “comunidade internacional” em
sua perspectiva onusiana. Haveria uma visão convergente? O que ela signifi-
caria nas relações que a Igreja mantém, hoje, com “a” sociedade globalizada?
Esta e outras edições do Cadernos Teologia Pública podem ser obtidas dire-
tamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo
da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone 51 3590 8213.■

EDIÇÃO 500
78

13 DE MARÇO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

O ECOmenismo de Laudato Si’

Edição 469 | Ano XV | 3-8-2015

“A edição 469 da revista IHU On-Line debate a Carta Encíclica do Papa


Francisco Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum e coloca em causa
o lugar do ser humano na contemporaneidade. O documento pontifício
foi publicado no contexto das mudanças climáticas que desafiam o cuida-
do da casa comum e dentro do contexto da realização da 21ª Conferência
das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas
– COP 21, a ser realizada em Paris, de 30 de novembro a 11 de dezembro
de 2015.”

Edgar Morin e o pensamento complexo


79

Edição 402 | Ano XII | 10-9-2012

“O pensamento complexo seguindo as rotas abertas por Edgar Morin é


o tema da revista IHU On-Line desta semana. Pesquisadores e pesquisa-
doras de várias áreas do conhecimento contribuem no debate Edgard de
Assis Carvalho, Jean Louis Le Moigne, Basarab Nicolescu, Laércio Pilz,
Gerson Egas Severo, Mario Novello e Angelita Maders.”

A Convenção do Clima em Copenhague. Um


debate
Edição 311 | Ano IX | 19-10-2009

“O mundo tem 40 anos para reduzir suas emissões de gases de efeito


estufa em 80% e apenas uma década para atingir metas que correspon-
dam a 20%. O futuro climático do planeta discutido entre os dias 7 e 18
de dezembro de 2009, reuniu representantes de 190 países que partici-
param da Convenção do Clima em Copenhague, capital da Dinamarca.
O encontro tinha como objetivo estabelecer novas metas de emissão de
gases e os mecanismos de Redução de Emissões para o Desmatamento e
Degradação - REDD.”

EDIÇÃO 500
80

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