A reflexão(1) sobre os problemas educacionais inevitavelmente nos levará à questão
dos valores. Com efeito, se esses problemas trazem a necessidade de uma reformulação da ação, torna-se necessário saber o que se visa com essa ação, ou seja, quais são os seus objetivos. E determinar objetivos implica definir prioridades, decidir sobre o que é válido e o que não é válido. Além disso - todos concordam - a educação visa o homem; na verdade, que sentido terá a educação se ela não estiver voltada para a promoção do homem? Uma visão histórica da educação mostra como esta esteve sempre preocupada em formar determinado tipo de homem. Os tipos variam de acordo com as diferentes exigências das diferentes épocas. Mas a preocupação com o homem, esta é uma constante. E a palavra homem significa exatamente aquele que avalia.(2) Se o problema dos valores é considerado como uma das questões mais complexas da filosofia atual, no entanto, todos sabem quão trivial é a experiência da valoração: a todo momento nós somos sujeitos ou testemunhas dessa experiência. Uma vez que a experiência axiológica é uma experiência tipicamente humana, é a partir do conhecimento da realidade hu- 35 ▲ mana que podemos entender o problema dos valores. E como a educação se destina (senão de fato, pelo menos de direito) à promoção do homem, percebe-se já a condição básica para alguém ser educador: ser um profundo conhecedor do homem. Mas... que é o homem? Evidentemente, a complexidade da questão não nos permite tratá-la exaustivamente dentro dos limites desse texto. Aqui tentaremos apenas uma aproximação ao tema a fim de estabelecer um ponto de partida necessário à colocação do problema dos valores e objetivos na educação. Observando o dado-homem, notamos desde logo que ele se nos apresenta como um corpo, e por isso, existindo num meio que se define pelas coordenadas de espaço e tempo. Este meio condiciona-o, determina-o em todas as suas manifestações. Este caráter de dependência do homem se verifica inicialmente em relação à natureza (entendemos por natureza tudo aquilo que existe independentemente da ação do homem). Sabemos como o homem depende do espaço físico, clima, vegetação, fauna, solo e subsolo. Mas não é só o meio puramente natural que condiciona o homem. Também o meio cultural se impõe a ele inevitavelmente. Já ao nascer, além de uma localização geográfica mais ou menos favorável, o homem se defronta com uma época de contornos históricos precisos, marcada pelo peso de uma tradição mais ou menos longa, com uma linguaja estruturada, costumes e crenças definidos, uma sociedade com instituições próprias, uma vida econômica peculiar e uma forma de governo ciosa de seus poderes. Este é o quadro da existência humana. E neste quadro, o homem é encaixado - é enquadrado. O homem é, pois, um ser situado. Situação é, com efeito, o termo que sintetiza tudo quanto foi dito. E esta é uma condição necessária de possibilidade da existência humana. A vida humana só pode se sustentar e desenvolver a partir de um contexto determinado; é daí que o homem tira os meios de sua sobrevivência. Por isso ele é levado a valorizar os elementos do meio-ambiente: a água, a terra, a fauna, a flora, etc. (no domínio da natureza) e as instituições, as ciências, as técnicas, etc. (no domínio da cultura). Antes mesmo de se dar conta disso, o homem está exercendo a atitude axiológica perante tudo que o cerca. Na verdade, valorizar é não ser indiferente.(3) Assim, a situação compõe-se de uma multiplicidade de elementos que em si mesmos não valem nem deixam de valer; simplesmente são; estão aí. Ao se relacionarem com o homem, entretanto, eles passam a ter significado, passam a valer. Isto nos permite entender o valor como uma relação de não indiferença entre o homem e os elementos com que se defronta. A situação abre, pois, ao homem um campo imenso de valores; é o domínio do prático- utilitário. O homem tem necessidades que precisam ser satisfeitas e este fato leva à valorização e aos valores. Mas se o homem não fica indiferente às coisas, isso significa que ele não é um ser passivo. Ele reage perante a situação, intervém pessoalmente para aceitar, rejeitar ou transformar. A cultura não é outra coisa senão, por um lado, a transformação que o homem opera sobre o meio e, por outro, os resultados dessa transformação. O homem é então capaz de superar os condicionamentos da situação; ele não é totalmente determinado; é um ser autônomo, um ser livre. E a liberdade abre ao homem um novo campo amplo para a valorização e os valores. Sendo a liberdade pessoal e intransferível, impõe-se aqui o respeito à pessoa humana; como eu sou um sujeito capaz de tomar posições, de avaliar, fazer opções e engajar-me por elas, assim também aquele que vive ao meu lado, perto ou longe, é igualmente um sujeito e jamais um objeto. Como a liberdade é sempre uma liberdade situada, este segundo campo conjuga- se com o primeiro. Trata-se de sujeitos concretos que não são indiferentes diante de uma situação também concreta. Daí exercer o homem um domínio sobre as coisas, subordinando- as aos seus desígnios. Esta relação vertical de dominação jamais poderá, contudo, ser estendida em sentido horizontal, ou seja, nas relações de homem a homem. O domínio do prático-utilitário tem seus limites no domínio humano, do mesmo modo que este tem seus limites naquele. E, dialeticamente, o domínio prático-utilitário se amplia com a ampliação da liberdade humana, do mesmo modo que o domínio humano se amplia a partir da ampliação das potencialidades da situação. O caráter pessoal e intransferível da liberdade não significa, entretanto, que não seja possível a relação horizontal de homem a homem; ao contrário. O fato de não ser indiferente à pessoa dos outros, o fato de reconhecer o valor do outro, a sua liberdade, indica que o homem é capaz de transcender a sua situação e as opções pessoais para se colocar no ponto de vista do outro, para se comunicar com o outro, para agir em comum com ele, para ver as coisas objetivamente. E aqui se abre ao homem outro campo amplo para a valoração e os valores. Ver as coisas objetivamente significa aceitar o valor da verdade. E esta transcende as pessoas como tais tornando-se fonte de comunicação e entendimento entre os homens. Assim, se a relação vertical do homem para com as coisas é uma relação de dominação, a relação horizontal do homem para com os outros será uma relação de colaboração. E nessa colaboração dos homens atuando sobre a situação e se comunicando entre si, descobre-se que o domínio do 37 ▲ prático-utilitário não satisfaz: "o homem é aquele animal para o qual o supérfluo é necessário".(4) E outro campo se abre ao homem para a valoração e os valores: são as formas estéticas, a apreciação das coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de relacionar-se com elas. Do ponto de vista da educação o que significa, então, promover o homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma tarefa que deve ser realizada. Isto nos permite perceber a função da valoração e dos valores na vida humana. Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve serem contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformarei que é naquilo que deve ser. Essa distância entre o que é e o que deve ser constitui o próprio espaço vital da existência humana; com efeito, a coincidência total entre o ser e o dever ser, bem como a impossibilidade total dessa coincidência seriam igualmente fatais para o homem. Valores e valoração estão intimamente relacionados; sem os valores, a valoração seria destituída de sentido; mas, em contrapartida, sem a valoração os valores não existiriam. Desvincular os valores da valoração equivalerá a transformá-los em arquétipos de caráter estático e abstrato, dispostos numa hierarquia estabelecida "a priori". O caráter concreto da experiência axiológica nos permite substituir o concerto de hierarquia, tradicionalmente ligado a uma concepção rígida e estática, pois, "a sociedade sempre teve interesse em reificar certas hierarquias que correspondem mais aos interesses dos seus grupos privilegiados",(5) pelo conceito de prioridade, mais dinâmico e flexível. Com efeito, a prioridade é ditada pelas condições da situação existencial concreta em que vive o homem. Exemplifiquemos. De acordo com a noção de hierarquia, os valores intelectuais seriam, por si mesmos, superiores aos valores econômicos (veja-se a hierarquia proposta por M. Scheler,(6) a mais generalizada e aceita correntemente). Assim, se vou educar; seja num bairro de elite, seja numa favela, sempre irei dar mais ênfase aos valores intelectuais do que aos econômicos. No entanto, a nossa experiência da valoração nos mostra que na favela os valores econômicos tornam-se prioritários, dadas as necessidades de sobrevivência, ao passo que num bairro de elite assumem prioridade os valores morais, dada a necessidade de se enfatizar a responsabilidade perante a sociedade como um todo, a importância da pessoa humana e o direito de todos de participar igualmente dos progressos da humanidade. Indicando-nos aquilo que deve ser, os valores nos colocam diante do problema dos objetivos. Com efeito, um objetivo é exatamente aquilo que ainda não foi alcançado, mas que deve ser alcançado. A partir da valoração é possível definir objetivos para a educação. Considerando-se que a educação visa a promoção do homem, são as necessidades humanas que irão determinar os objetivos educacionais. E essas necessidades devem ser consideradas em concreto, pois a ação educativa será sempre desenvolvida num contexto existencial concreto. Os objetivos indicam os alvos da ação. Constituem, como lembra o nome, a objetivação da valoração e dos valores. Poderíamos, pois, dizer que se a valoração é o próprio esforço do homem em transformar o que é naquilo que deve ser, os objetivos sintetizam o esforço do homem em transformar o que deve ser naquilo que é. O esquema seguinte facilita a compreensão do que foi dito: Como a definição de objetivos educacionais depende das prioridades ditadas pela situação em que se desenvolve o processo educativo, compreende-se que tal definição pressupõe uma análise da situação em questão. É preciso, então, encarar o problema do ponto de vista da realidade existencial concreta do homem brasileiro. Qual a situação do homem brasileiro? Como ele valoriza os seus elementos? Como ele se utiliza deles? Uma análise mais detida revelará que o homem brasileiro, no geral, não sabe tirar proveito das possibilidades da situação e, por não sabê-lo, frequentemente acaba por destruí-las. Isto nos revela a necessidade de uma educação para a subsistência: é preciso que o homem brasileiro aprenda a tirar da situação adversa os meios de sobreviver Mas como pode o homem utilizar os elementos da situação se ele não é capaz de intervir nela, decidir, engajar-se e assumir pessoalmente a responsabilidade de suas escolhas? Sabemos quão precárias são as condições de liberdade do homem brasileiro, marcado por uma tradição de inexperiência democrática, marginalização econômica, política, cultural. Daí, a necessidade de uma educação para a libertação: é preciso saber escolher e ampliar as possibilidades de opção. Como, porém, intervir na situação sem uma consciência das suas possibilidades e dos seus limites? E esta consciência só se adquire através da comunicação. Daí, o terceiro objetivo: educação para a comunicação: é preciso que se adquiram os instrumentos aptos para a comunicação intersubjetiva. Tais objetivos, contudo, só serão atingidos com uma mudança sensível do panorama nacional atual, quer geral, quer educacional. Daí, o quarto objetivo: educação para a transformação. Em resumo: a consideração do problema dos valores em face da realidade existencial concreta do homem brasileiro nos permite definir os seguintes objetivos gerais para a educação brasileira.(8) 1. Educação para a subsistência; 2. Educação para a libertação; 3. Educação para a comunicação; 4. Educação para a transformação. Como, porém, realizar esses objetivos? Com que instrumentos podemos contar? É preciso buscar nas ciências elementos que nos permitam estruturar técnicas adequadas para se atingir os objetivos propostos. 8. Esses objetivos são discutidos mais amplamente em um texto inédito denominado "Esboço de formulação de uma ideologia educacional para o Brasil,"