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Logic, Language

CDD: 149.7

A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA DE


PENÉLOPE MADDY
CÉSAR FREDERICO DOS SANTOS

Programa de Pós-Graduação em Filosofia


Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC
Florianópolis, SC, Brasil

cesarfredericosantos@gmail.com

Resumo: A filosofia segunda de Penelope Maddy parece ir de encontro aos avanços em


filosofia da ciência que sucederam a obra de Thomas Kuhn ao defender que não cabe à
filosofia criticar a atividade científica a partir de um ponto de vista filosófico. Neste
artigo pretendemos mostrar que tal oposição aparente não se sustenta, e que há uma
forte semelhança entre esses dois programas filosóficos notadamente no que se refere à
concepção de racionalidade científica.

Palavras-chave: filosofia segunda, Penelope Maddy, racionalidade científica.

Abstract: Penelope Maddy’s second philosophy seems to be contrary to the


developments carried out by the new philosophy of science after Thomas Kuhn’s
works. She defends that philosophy can’t criticize science from a first philosophical
point of view. In this paper we aim to show that there isn’t such disagreement, quite
the contrary, there is a striking similarity between the two philosophical programs,
mainly concerning the conception of scientific rationality.

Keywords: second philosophy, Penelope Maddy, scientific rationality.

1. INTRODUÇÃO

A concepção tradicional de racionalidade científica está


intimamente relacionada à ideia de método científico. A boa prática
científica, de acordo com essa concepção, é aquela que segue
estritamente o método científico, e segui-lo garante racionalidade,

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objetividade e imparcialidade, características reconhecidas por todos


como essenciais da prática científica. Essa concepção foi dominante até
a primeira metade do século XX, cabendo destacar entre seus principais
representantes os positivistas lógicos e Karl Popper. Foi a partir da
publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas por Thomas Kuhn,
em 1962, que a concepção tradicional de ciência em geral, e da
racionalidade científica em particular, começou a ser abalada. Como é
sabido, a filosofia da ciência desenvolvida desde então tem mostrado
que a ciência está longe de ser aquela atividade idealizada pela filosofia
da ciência tradicional. Os filósofos dessa nova filosofia da ciência
voltaram sua atenção mais para a ciência tal como ela é praticada de
fato pelos cientistas, concedendo maior importância à história da
ciência, e menor para uma tentativa de normatizar a atividade científica
a partir de concepções filosóficas pré-estabelecidas. Nesse exame mais
detido da prática científica real, descobriu-se que é problemática a
defesa da prevalência de um método científico único – os métodos
empregados por uma ciência baseada principalmente em experimentos
conduzidos em laboratório, como a química, são bastante diversos
daqueles empregados por uma ciência que não pode conduzir
experimentos e dispõe apenas da observação, como a astronomia1 – e
que, além dos métodos, há muitos outros fatores que interferem na
prática científica, sendo até essenciais para seu sucesso, tais como
valores sociais2, experiência pessoal do cientista3 e juízos não
metódicos4. A ciência, sustenta a filosofia da ciência pós-Kuhn, sob

1 Para uma discussão sobre a diversidade de métodos científicos veja BAUER


1994.
2 Para uma discussão sobre o papel dos valores na ciência, veja LONGINO

1991.
3 Para uma discussão sobre a influência das habilidades pessoais do cientista na

atividade científica, veja POLANYI (1985).


4 Para uma discussão do juízo pessoal e não guiado por regras veja SANKEY

1994.

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muitos aspectos não difere das demais atividades humanas, estando


sujeita às mesmas influências que elas e até mesmo empregando
expedientes como a retórica, característico de uma atividade não
científica por excelência, a política5. Tudo isso, à primeira vista e de
acordo com a concepção tradicional de ciência, ameaçaria a
racionalidade, a objetividade e a imparcialidade da ciência. Se for assim,
concluem alguns, corremos o risco de não conceder à atividade
científica nenhum privilégio epistemológico especial, situando-a em pé
de igualdade com outras atividades humanas que também se propõem a
fornecer explicações sobre o mundo, tais como religiões, astrologia e
criacionismo.
Para quem toma esse perfil da ciência traçado pela nova
filosofia da ciência como ameaçador da racionalidade científica, pode
parecer impróprio defender a proeminência da ciência em questões de
explicação dos fenômenos do mundo e, mais impróprio ainda, propor a
subordinação da filosofia à ciência. “Ora, sendo a ciência como é, uma
atividade humana como qualquer outra” – podem pensar – “não há
porque conceder-lhe a palavra final na explicação de como o mundo é,
e muito menos conceder-lhe a palavra final em questões filosóficas,
ainda mais levando em conta que foram investigações filosóficas que
revelaram as fragilidades da ciência”. Nos tempos do Positivismo
Lógico, em que não havia dúvida sobre o papel proeminente da ciência
em matéria de conhecimento, subordinar a filosofia à ciência poderia
parecer algo proveitoso. Porém, nem os positivistas lógicos, nem
Popper, chegaram tão longe. Pelo contrário, era justamente por a
ciência estar subordinada a cânones racionais estabelecidos
filosoficamente que, a seu ver, estava assegurada a capacidade cognitiva
superior da ciência.

5Para uma discussão sobre o papel da retórica na atividade científica veja


PERA 1988.

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Defender a proeminência da ciência em questões de explicação


dos fenômenos do mundo e subordinar a filosofia à ciência é
justamente o que intenta Penelope Maddy com seu naturalismo,
autodenominado filosofia segunda. Embora a filosofia da ciência pós-
Kuhn e a filosofia segunda de Maddy pareçam apontar em direções
divergentes – ao passo que a primeira nos adverte sobre as fragilidades
da ciência, a segunda nos recomenda forte adesão à ciência – nosso
objetivo neste artigo é desfazer essa aparência, mostrando que há pelo
menos um ponto de ligação importante entre esses dois programas
filosóficos: ambos rejeitam a concepção tradicional de racionalidade
científica e ambos concordam nos termos em que se deve formular
uma nova concepção de racionalidade. Para tal, começamos por
apresentar uma caracterização sucinta do pensamento naturalista de
Maddy, para em seguida examinar como a filosofia segunda se
posiciona com relação à concepção tradicional de racionalidade
científica e à nova concepção que emergiu da filosofia da ciência da
linha de Kuhn6.

2. O MÉTODO NATURALISTA DA FILOSOFIA SEGUNDA

O naturalismo de Penelope Maddy é grandemente inspirado no


naturalismo de Quine, mas com diferenças importantes. Daí que, para
evitar confusão com outros posicionamentos naturalistas (MADDY
2007, Introdução, p. 1), e também para se opor à ‘filosofia primeira’, o

6 Estamos empregando o termo “nova filosofia da ciência” e também


“filosofia da ciência pós-Kuhn” no sentido empregado por BROWN, 1977.
Não queremos insinuar que existe uma unidade de pensamento entre os
autores que pretendemos abarcar por essa denominação, dentre os quais se
incluem os já citados Bauer, Longino, Sankey, Pera e Polanyi. Queremos
apenas ressaltar características comuns do pensamento desses autores,
características essas difundidas na filosofia da ciência pelo trabalho de Kuhn,
tais como a importância que dedicam ao exame da história da ciência e a
concepção mais alargada de racionalidade científica.

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tipo de filosofia que ela não julga interessante desenvolver (MADDY


2011, p. 40), Maddy chama seu naturalismo de filosofia segunda.
Filosofia primeira, no entender de Maddy, é aquela concebida
antes de qualquer evidência científica ou depois de toda evidência
científica, de forma independente da ciência (MADDY 2011, p. 40).
Um exemplo, citado por Maddy, de filosofia primeira desenvolvida
antes de qualquer evidência científica é a filosofia de Descartes nas
Meditações Metafísicas. O ceticismo metodológico empregado por
Descartes busca remover as falsas crenças, de acordo com Descartes,
da escolástica e da física aristotélica, e lançar bases sólidas sobre as
quais edificaria uma nova ciência, a física cartesiana (MADDY 2007, p.
17). Outro exemplo de filosofia primeira anterior a qualquer evidência
científica que podemos citar é a filosofia da ciência de Popper em A
lógica da pesquisa científica. Popper estabelece a falseabilidade como
critério de demarcação entre ciência e não-ciência de modo a priori
com relação à ciência, usando apenas razões lógicas e filosóficas. Como
exemplo de filosofia primeira posterior a toda evidência científica,
Maddy cita o empirismo de Bas van Fraassen. Segundo Maddy, van
Fraassen admite que a ciência está no bom caminho e não precisa ser
modificada. Tanto que van Fraassen considera que as evidências
apresentadas pelas teorias científicas são suficientes para estabelecer a
existência, para propósitos científicos, de entidades não-observáveis.
Contudo, van Fraassen defende haver propósitos epistemológicos,
extra-científicos, para os quais a evidência científica é insuficiente. O
tipo de evidência exigido por van Fraassen para assegurar a existência
de não-observáveis sob o ponto de vista filosófico, totalmente isolado
da ciência, denota o caráter de filosofia primeira do empirismo
construtivo de van Fraassen (MADDY 2007, seção IV.1).
A filosofia segunda, por sua vez, é aquela que nasce dentro da
ciência (MADDY 2007, p. 14). Um jeito fácil e direto de caracterizar a
filosofia segunda seria dizer que ela emprega apenas os métodos da
ciência, que aceita apenas o conhecimento estabelecido cientificamente,

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e que, portanto, não subordina a ciência à filosofia, antes o contrário,


subordina a filosofia à ciência. Porém, dadas as inúmeras dificuldades
em demarcar a fronteira entre ciência e não-ciência, como revela a larga
literatura de filosofia da ciência sobre esse tema, afirmar que a filosofia
segunda é “científica” é apenas um modo fácil, mas pouco esclarecedor,
de caracterizar a posição de Maddy. Na verdade, Maddy talhou a
filosofia segunda de tal modo a não ser importante haver um critério de
demarcação entre filosofia e ciência. Elas são tomadas como atividades
entrelaçadas, que se complementam mutuamente. A aceitação ou
rejeição de uma tese não está calcada em ser ela científica ou filosófica,
mas sim em ser plausível ou não de acordo com o ponto de vista da
filosofia segunda.
Podemos começar a entender como a filosofia segunda encara
a relação entre filosofia e ciência a partir do mote central do
naturalismo de Maddy, que diz que um empreendimento bem sucedido deve ser
julgado em seus próprios termos (MADDY 1997, p. 184). A apreciação do
sucesso de um empreendimento é feita, primeiro, identificando seus
objetivos e, segundo, avaliando se os meios empregados para alcançar
aquele objetivo são efetivos, isto é, se os meios realmente atingem a
meta (MADDY 1997, p. 194). No caso da ciência, seu objetivo é
explicar como o mundo é7, que coisas existem, quais suas relações e
propriedades8. Os métodos que a ciência emprega, em cada área de
estudos particular e em cada época, são os melhores disponíveis
naquele contexto para alcançar essas explicações, o que é uma opinião
compartilhada por grande parte de filósofos e cientistas. Isso qualifica a

7 Mesmo havendo vasta discussão sobre a natureza das explicações – se elas


são verdadeiras, ou apenas empiricamente adequadas ou não passam de
instrumento para solução de problemas – o fato é que fornecer explicações é
um objetivo amplamente reconhecido da ciência.
8 Esse também é o objetivo da filosofia segunda (MADDY 2011, p. 38). Para

Maddy, filosofia e ciência são muito próximas, por isso não é de estranhar que
compartilhem os mesmos objetivos.

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ciência como um empreendimento bem sucedido, daí que o conselho


do naturalismo é que a ciência seja julgada em seus próprios termos, e
não em termos filosóficos.
Que um empreendimento reconhecidamente bem sucedido
deva ser julgado em seus próprios termos é algo cuja defesa pode
começar por afirmar sua quase obviedade: se admiti-se que uma dada
atividade ou procedimento é o melhor meio de que se dispõe para
completar uma dada tarefa, não é sensato julgá-lo ou propor modificá-
lo com base em argumentos alheios a ele ou à tarefa que ele deve
desempenhar. Tal insensatez pode ser vista mesmo em atividades
cotidianas. Por exemplo, quem queira pregar um prego na parede, tem
na maioria das vezes como melhor meio disponível o uso de um
martelo, o manejo do qual envolve empunhá-lo corretamente e aplicar
força na medida certa. Quando quem prega não é um perito
carpinteiro, o procedimento de pregar sem dúvida pode ser criticado, e
as críticas vão girar em torno da força aplicada, do desvio do prego, etc.
Não seria sensato criticar o carpinteiro por não ter higienizado a
madeira com um antisséptico antes de pregar, ou por não ter se
questionado sobre a real existência do prego, por que tais coisas
absolutamente não dizem respeito à atividade de pregar. É claro que se
pode negar por razões diversas que o manejo do martelo seja o melhor
meio de pregar, mas aí já não se está reconhecendo essa atividade como
bem sucedida. Igualmente se pode defender que pendurar objetos em
pregos não é desejável, mas nesse caso não é o procedimento que está
em julgamento, mas a sua finalidade. Postura semelhante é o que pede
o naturalismo de Maddy com relação à ciência. Se a ciência é
reconhecida como um empreendimento bem sucedido no seu objetivo
de fornecer explicações sobre o mundo – o que é muito difícil de se ir
contra – então ela deve ser julgada nos seus próprios termos.
O argumento de Maddy a favor do mote central do seu
naturalismo é mais robusto que a defesa de sua quase obviedade feita
no parágrafo anterior. De acordo com Maddy, o exame atento da

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história da ciência mostra que os argumentos que os cientistas


realmente levam em conta para decidir questões científicas são os
argumentos de caráter científico, e não os filosóficos. Um exemplo
muito estimado por Maddy é o estabelecimento da existência de
átomos, questão que preocupava físicos e químicos no início do século
XX. Embora a teoria atômica já se encontrasse bastante desenvolvida e
fosse capaz de resolver vários problemas com sucesso, ainda restavam
dúvidas sobre se átomos seriam apenas uma ficção útil ou se realmente
existiam. Essa questão preocupou Einstein, que idealizou um
experimento que, se realizado, poderia confirmar ou refutar a existência
de átomos. O experimento foi levado a cabo por Perrin, e teve como
resultado a confirmação da existência de átomos, o que sossegou até
muitos que levantavam sérias suspeitas sobre sua existência, como
Poincaré (MADDY 1997, p. 135-143). Desse episódio podem-se tirar
algumas lições. Primeiro que, ao contrário do que pregam algumas
correntes filosóficas, os cientistas não se contentam apenas com
adequação empírica das teorias ou com resoluções de problemas que
apenas salvam as aparências, mas há sim uma preocupação em
estabelecer a existência das entidades teóricas de uma forma segura
cientificamente que vai além da constatação de que a entidade proposta
“funciona” instrumentalmente. Segundo que, apesar de toda a
discussão filosófica que rodeia a existência ou não de entidades
inobserváveis ou mesmo observáveis, o que realmente importa para
pacificar uma questão científica são razões científicas – no caso dos
átomos, a prova esperada era o sucesso de um experimento. Uma
versão atualizada da discussão em torno da existência de átomos pode
ser vista na discussão sobre a existência da partícula subatômica bóson
de Higgs. Espera-se que a prova da sua existência saia dos
experimentos conduzidos no Grande Colisor de Hádrons, o acelerador
de partículas do CERN9. Embora muita discussão filosófica continue

9 Como é sabido, CERN é o acrônimo de Conseil Européen pour la Recherche

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sendo produzida em ontologia, os físicos não se sentem compelidos


por ela, e mesmo filósofos reconhecem que o melhor que cientistas têm
a fazer é continuar a fazer ciência sem levar em conta as discussões
filosóficas10. Se os físicos estivessem convencidos que questões de
existência fossem tão problemáticas por razões como as que Descartes
elenca na primeira meditação (cf. DESCARTES, 2005), dificilmente se
empenhariam tanto para provar a existência de uma partícula, o que
seria prejudicial para o avanço da ciência. Entretanto, alguns filósofos
defendem que mesmo que o Grande Colisor de Hádrons confirme
cientificamente a existência do bóson de Higgs, ainda restam dúvidas
filosóficas sobre sua existência. Dado que os debates científicos podem
chegar a termo mesmo que os debates filosóficos continuem em aberto,
o que se pode concluir é que os debates científicos não foram
resolvidos com base em considerações filosóficas11. Isso valida o mote
naturalista em relação à ciência. A ciência deve ser julgada em termos
científicos e não em termos filosóficos, dado que considerações
filosóficas são irrelevantes para a ciência e, mais ainda, se levadas a sério
podem cercear o desenvolvimento da ciência.

Nucléaire. Para informação rápida e acessível sobre o bóson de Higgs, visite o


sítio do CERN:
http://cms.web.cern.ch/cms/Physics/HuntingHiggs/index.html.
10 Maddy cita Kant, Carnap, Putnam e van Fraassen como exemplos de

filósofos que admitem estar tudo em ordem com a ciência e seus métodos,
mas que apesar disso sustentam haver um âmbito extra-empírico no qual
questões puramente filosóficas, de filosofia primeira, têm lugar (MADDY
2007, p. 308).
11 Maddy desenvolve um raciocínio semelhante a esse em MADDY 1997, p.

191, mas com respeito a debates metodológicos em matemática, e não debates


científicos. Segundo Maddy, a história da matemática mostra que debates
metodológicos foram resolvidos, embora questões filosóficas a respeito da
natureza dos objetos matemáticos continuem em aberto, o que mostra que os
debates metodológicos não foram resolvidos com base em considerações
filosóficas. Adaptamos o argumento para tratar da relação entre filosofia e
ciência.

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De acordo com a filosofia segunda, para tratar questões


científicas, sejam elas metodológicas ou teóricas, argumentos
adequados são os científicos. Essa afirmação pode ser chocante para
filósofos não naturalistas, pois parece contrariar a concepção geral de
que cientistas sempre se movem dentro de um framework filosófico, sem
esquecer dos episódios da história da ciência que mostram que
posicionamentos filosóficos foram essenciais para descobertas
científicas. Além do mais, vedar a influência da filosofia sobre a ciência
poderia ser nocivo para a ciência, já que esta se tornaria uma atividade
sem crítica. Mas é bom lembrar que a filosofia segunda não demarca a
fronteira entre ciência e filosofia, de sorte que é enganador entender
“argumentos científicos” como se houvesse uma divisão clara entre as
duas coisas.
Há uma filosofia que se desenvolve dentro da própria ciência,
continuamente com a ciência (MADDY 1997, p. 188). A filosofia
segunda pretende ser uma filosofia desse tipo, e portanto com
legitimidade para agir dentro da ciência, usando argumentos científicos
para avaliar os métodos da ciência, propor correções, constatar
limitações. Quando atuando dentro da ciência, a filosofia segunda é
ciência, isto é, o praticante de filosofia segunda procede tal qual um
cientista procederia (se empenhar em filosofia segunda exige, pois,
conhecimento do debate científico). É claro que experiência em
filosofia, mesmo em filosofia primeira, pode ajudar no trabalho de
julgar e criticar a ciência a partir de dentro, mas o resultado final do
trabalho da filosofia segunda não difere do trabalho que um cientista
poderia fazer. Aliás, a história da ciência mostra que os cientistas de
fato adotam uma postura crítica com relação a seus métodos e
framework filosófico, fazendo correções de rumo quando as
necessidades científicas exigem, independentemente do debate
filosófico. O mecanicismo, um padrão de explicação científica muito
influente durante três séculos, é um exemplo citado por Maddy de
como os cientistas adotam e depois rejeitam uma máxima

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metodológica, com base unicamente em razões científicas. O


mecanicismo começou com Galileu e se consolidou como uma tradição
de pesquisa que se empenhava em explicar todos os fenômenos físicos
em termos de partículas e forças agindo ao longo de linhas entre as
partículas, dependendo somente da distância. O método mecanicista se
mostrou muito frutífero – vários problemas científicos foram
explicados em termos mecanicistas – e prevaleceu na ciência até
meados do século XIX. No entanto, fenômenos elétricos e magnéticos
e relacionados com a luz nunca foram tratados adequadamente por
meios mecanicistas. Esses fenômenos só receberam tratamento
adequado com Maxwell, que abandonou a tentativa de explicação
mecanicista em favor da concepção de campos eletromagnéticos. O
sucesso da teoria de Maxwell e sua fertilidade para explicar fenômenos
que não eram bem explicados pelo mecanicismo levaram os cientistas a
abandonar o mecanicismo em favor da nova concepção de campos
(MADDY 1997, p. 111-115). O mecanicismo e a concepção de
campos, assim como posturas mais fundamentais, como o realismo,
podem ser considerados como fazendo parte do framework filosófico da
ciência – mecanicismo e a concepção de campos encerram cada um
uma visão particular sobre o mundo, um vê o mundo como interação
entre partículas e forças, o outro como interações entre campos. O caso
do mecanicismo mostra que os cientistas aceitam uma concepção
filosófica – no caso, uma que surgiu dentro da própria ciência – se ela é
eficaz e se sustenta com base em argumentos científicos. Quando não é
mais possível sustentá-la cientificamente, a concepção filosófica é
abandonada, novamente por razões científicas. Isso nos leva a imaginar
que, se um dia o realismo vier a ser rejeitado na ciência, será por razões
científicas, as quais ainda não estão presentes, e não por razões
filosóficas.
Toda essa “filosofia” interna à ciência está de acordo com a
filosofia segunda e com o mote naturalista que afirma que um
empreendimento bem sucedido deve ser tratado em seus próprios

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termos. Isso porque essa filosofia também pode ser chamada de


ciência, e esse é exatamente o espírito da filosofia segunda, a dualidade
entre filosofia e ciência, atividades colaborativas e sem fronteiras
definidas, ambas empenhadas em descrever como o mundo é, que
coisas existem, quais suas características e relações. Assim, questões
tipicamente filosóficas emergem da própria prática científica: os
métodos empregados pela ciência são adequados para conhecer a
realidade? As entidades propostas pelas teorias científicas existem?
Como teoria e realidade se relacionam? Como se explica o sucesso da
matemática nas teorias científicas? e assim por diante. Essas questões
também são sobre a constituição do mundo, e os melhores métodos
disponíveis para respondê-las, defende a filosofia segunda, também são
aqueles que tendemos a chamar de científicos.
Mas há ainda outro tipo de filosofia, a filosofia primeira, que
parece não estar envolvida nesse esquema colaborativo entre filosofia
segunda e ciência. Sem critério demarcatório entre ciência e filosofia, a
filosofia primeira não pode simplesmente ser posta de lado. A sugestão
de Maddy é que cada tese de filosofia primeira seja avaliada caso a caso,
se é pertinente, se pode melhorar os métodos da ciência, se pode
alcançar algum conhecimento confiável, enfim, se tem contribuições a
oferecer. É mais ou menos isso que Maddy faz na primeira parte de
Second Philosophy. Ao mesmo tempo em que vai caracterizando a
filosofia segunda, avalia se vale a pena embarcar nas teses de filosofia
primeira de Descartes, Kant e outros. Avaliando a filosofia de
Descartes, Maddy acaba por rejeitar seu ceticismo metodológico, mas
não deixa de pontuar que, se o ceticismo metodológico pudesse
produzir algum conhecimento útil e confiável, “ela não teria escrúpulos
em usá-lo”. Mais ainda, nesse caso ela estaria inclinada a classificar o
ceticismo metodológico de Descartes como “científico” (MADDY
2007, p. 18, nota 14).
O segundo mote do naturalismo diz que, havendo discordância
entre filosofia e uma prática bem sucedida, é a filosofia que deve ceder (MADDY

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1997, p. 171). Coma a ciência é uma prática bem sucedida, havendo


discordância entre filosofia e ciência, é a filosofia que deve ajustar sua
posição. Em se tratando de debate sobre questões científicas, o
segundo mote é uma consequência do primeiro, já que questões
científicas devem ser julgadas em seus próprios termos, e não em
termos filosóficos. Porém, o segundo mote diz mais que isso. Mesmo
naquelas que pensamos como questões filosóficas, a ciência tem
prioridade. É claro que essa prioridade não deriva de uma autoridade
especial concedida à ciência ou de uma crença dogmática no poder da
ciência, ideias de que a filosofia segunda não compartilha. É por haver
semelhança de objetivos entre a filosofia e a ciência – ambas estão
empenhadas em fornecer explicações sobre o mundo – e por se
reconhecer que aqueles métodos que tendemos a associar com a ciência
são os mais bem sucedidos em fornecer tais explicações, que devemos
concluir que teses filosóficas fundadas em métodos filosóficos (no
sentido de filosofia primeira) que divirjam de resultados científicos
devem ser recusadas. Tais teses de filosofia primeira incorrem em erro
metodológico. A filosofia segunda também não alimenta uma crença
dogmática nos métodos científicos, pelo contrário, ela está sempre
aberta a criticar, rever e ajustar seus métodos. Uma tese de filosofia
primeira não deve ser descartada apenas porque não empregou
métodos científicos. Como mencionado acima, a ausência de critério
demarcatório entre filosofia e ciência exige uma abordagem caso a caso,
em que cada tese filosófica e seus métodos sejam avaliados e julgados
em termos dos métodos e resultados já obtidos, como procede a ciência
em geral com novas teorias. Se a tese e seus métodos se mostrarem
frutíferos e conseguirem angariar a necessária comprovação empírica,
devem ser aceitos e incorporados ao rol dos métodos disponíveis à
filosofia segunda.
Várias tentativas filosóficas de revelar o método científico por
excelência e de justificá-lo filosoficamente foram apresentadas ao longo
da história da filosofia, mas a filosofia segunda não toma para si tarefa

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semelhante. Parafraseando o que Maddy diz a respeito da matemática,


assim como uma perspectiva fundamentalmente naturalista opõe-se a
criticar a ciência com base em considerações extra-científicas, opõe-se
também a justificar a ciência com base em considerações extra-científicas
(MADDY 2011, p. ix). Se existe algum procedimento comum,
compartilhado por todos os métodos empregados pelas mais diversas
ciências, que poderia ser chamado de o método científico, é uma
questão relevante, que pode fazer parte das preocupações que a
filosofia segunda guarda com relação a seus procedimentos, mas não é,
em absoluto, uma questão essencial. A filosofia segunda não dispõe de
nenhum teste de cientificidade que pudesse aplicar aos métodos para
avaliar se são admissíveis ou não. Cada método deve ser encarado
como um caso particular, avaliado em vista dos objetivos a que se
propõe, se é bem sucedido em produzi-los ou não. Os próprios
métodos naturalizados que a filosofia segunda propõe são tratados
nesses termos, e encontram parte da sua justificativa na sua fertilidade
para resolver problemas filosóficos tradicionais.
Em linhas gerais, o modo de proceder da filosofia segunda se
caracteriza pelos dois motes naturalistas expostos acima, pela
convergência de objetivos entre filosofia e ciência e pela ausência de
separação entre elas. Maddy usa um artifício literário interessante para
ilustrar a maneira de proceder da filosofia segunda. Ela cria a figura de
uma pesquisadora imaginária, a filósofa segunda, que começa o seu
empreendimento de conhecer como o mundo é a partir das suas
percepções sensoriais ordinárias e gradativamente vai desenvolvendo
métodos de observação e experimentação mais apurados, bem como
métodos mais sofisticados de construção e teste de teorias. A filósofa
segunda se sente completamente à vontade com seus companheiros de
jornada das mais diversas ciências empíricas, desde antropologia e
psicologia até química e física. Ao longo do seu percurso, a filósofa
segunda percebe que seus métodos são falíveis, que as teorias que ela
elabora estão sujeitas à revisão, e então também passa a se dedicar a

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estudar seus próprios métodos para aperfeiçoá-los. Ela tem consciência


de que esse é um empreendimento sempre em aberto, para o qual não
há receita de sucesso garantido, um método totalmente eficaz nem uma
teoria definitiva (MADDY 2011, p. 38). As perguntas filosóficas
tradicionais emergem naturalmente nesse ambiente, e para respondê-las
a filósofa segunda emprega os métodos e conhecimentos acumulados
ao longo de sua jornada. Ela tem consciência de que suas repostas,
assim como todo o resto do conhecimento acumulado, não são
definitivas, mas ela acredita que “gradualmente sabemos mais sobre o
mundo, que nossas opiniões se aperfeiçoam, e que examinar como
atingimos o ponto que ocupamos agora pode ajudar-nos a evitar repetir
antigas filosofias que não são mais viáveis” (MADDY 2011, p. 2). Daí
que, se abordada por um filósofo cartesiano saído das páginas iniciais
das Meditações Metafísicas com a traiçoeira pergunta “você sabe se você
tem mãos?”, a filósofa segunda responderá explicando-lhe o
funcionamento da percepção humana e sua relação com a estrutura dos
objetos físicos ordinários, como as retinas são estimuladas pela luz, a
reação dos neurônios, as condições sob as quais pode haver ilusões,
como as provocadas por drogas, alterações na iluminação, etc., e depois
do exame cuidadoso das condições em que ela e a mão diante dela se
encontram, concluirá que é razoável para ela crer que ela tem mãos, e
por isso a filósofa segunda sabe sim que tem mãos (MADDY 2007, p.
16).

3. A CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE RACIONALIDADE


CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA

Opondo-se à ideia de que teorias científicas de diferentes


épocas sejam incomensuráveis, Larry Laudan declara: “... esses autores
(tais como Hanson, Quine, Kuhn e Feyerabend) têm traçado algumas
conclusões muito pessimistas sobre a possibilidade de racionalidade na
ciência” (LAUDAN, 1977). Mesmo que a reação inicial à obra de Kuhn

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342 CÉSAR FREDERICO DOS SANTOS

tenha percebido nela uma séria ameaça à racionalidade científica, tal


como expressa a frase de Laudan, como é sabido o desenvolvimento
subseqüente da filosofia de Kuhn e de seus seguidores mostrou que
não se trata de acusar a ciência de irracional, mas sim de modificar o
conceito de racionalidade, aproximando-o da ciência tal qual ela é
praticada. Ou seja, o objetivo da filosofia ao modo de Kuhn não é
denunciar a irracionalidade da ciência, mas sim denunciar a inadequação
do conceito filosófico tradicional de racionalidade (cf. CUPANI, 2000,
p. 38).
Assim entendido, o objetivo da nova filosofia da ciência está de
acordo com a filosofia segunda. Dado que a concepção tradicional de
racionalidade é extra-científica – são considerações filosóficas que
levam à formulação dessa concepção, a qual a ciência deve aderir se
quiser ser racional – a filosofia segunda a classificaria como filosofia
primeira. Essa concepção já está inicialmente sob suspeição, do ponto
de vista da filosofia segunda, por pretender ser uma imposição
filosófica à ciência, o que contraria o mote naturalista. Por outro lado, a
nova concepção de racionalidade científica parte do pressuposto de que
a ciência é racional, e a partir do exame da prática científica procura
formular um conceito de racionalidade adequado. Isso está mais de
acordo com a postura naturalista da filosofia segunda: a divergência
entre a concepção filosófica de racionalidade científica e a prática
científica deve ser resolvida a favor da ciência, pela modificação do
conceito filosófico e não pela alteração da prática científica, uma vez
que a ciência é reconhecida como uma atividade racional e bem
sucedida. Contudo, dada a ausência de demarcação entre ciência e
filosofia e a postura aberta da filosofia segunda, antes de descartar a
concepção tradicional por preconceito filosófico, convém avaliar se

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A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA 343

aderir a ela seria proveitoso de alguma forma aos propósitos da


ciência12.
De acordo com a concepção tradicional, o principal elemento
da racionalidade científica é o método científico, entendido, seja
indutivamente, ou na forma nomológico-dedutiva. Em linhas gerais, a
atividade racional em ciência consiste, de acordo com essa concepção,
na explicação dos eventos mediante hipóteses e teorias, cuja
sistematização e teste envolve apenas indução, dedução e aplicação de
recursos matemáticos. A partir da divisão entre contexto de descoberta
e contexto de validação, a concepção tradicional reconhece que muitas
vezes a descoberta não acontece exatamente de acordo com o método,
mas o que importa para a aceitação e consolidação de uma teoria,
conforme essa concepção, é, além da comprovação empírica, a sua
validação lógica por um processo dedutivo ligando os dados à teoria.
Esse método garantiria que fatores vistos como extra-científicos, tais
como inclinações pessoais do cientista, valores sociais, interesses
políticos, etc., não tomassem parte nas teorias científicas, que se
constituiriam desse modo em produtos racionais autônomos.
Ocorre que essa concepção filosófica tradicional de
racionalidade científica não se sustenta quando confrontada com a
história da ciência. A “virada histórica” operada na filosofia da ciência
em meados do século XX mostrou, por meio do estudo da história da
ciência, que fatores considerados extra-científicos foram fundamentais
para o sucesso de teorias científicas amplamente aceitas. Um exemplo
bastante ilustrativo é o trabalho de Pera sobre o papel da retórica na
ciência. Primeiro, Pera advoga que qualquer metodologia, por mais
detalhada que seja, é limitada, isto é, deixa lacunas que o sujeito que a

12 Embora, aqui e no que vem a seguir, estejamos seguindo um modo de


proceder inspirado na avaliação que Maddy faz de algumas teses de filosofia
primeira, como em Maddy 2007 parte I.1, Maddy não aborda diretamente a
questão da racionalidade científica nem o conflito entre a concepção
tradicional e a concepção da filosofia da ciência ao modo de Kuhn.

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aplica deve suprir usando recursos extra-metodológicos. Assim, diz


Pera, para aplicar os métodos usuais da sua área de pesquisa, o cientista
deve escolher que método vai empregar, interpretar as regras do método
enquadrando-as na situação em tela, avaliar se os resultados observados
são confiáveis ou não, etc., ações sobre as quais o método cala, mas que
nem por isso são totalmente discricionárias – é esperado que o cientista
justifique suas decisões racionalmente. Ainda que se tentasse criar um
método de justificativa das decisões não regidas pelos métodos
científicos usuais, a situação não ficaria melhor, pois as dificuldades
recairiam sobre esse novo método, já que as justificativas para empregá-
lo não seriam metodológicas novamente. De acordo com a concepção
tradicional de racionalidade científica, se Pera estiver certo, está aberta
uma porta para a irracionalidade na ciência. Mas Pera não encara a
situação tão tragicamente, e se pergunta “o que podemos adicionar à,
ou pôr no lugar da, metodologia para manter a racionalidade das
decisões científicas?” (PERA, 1988, p. 260). A retórica é a resposta: os
argumentos que sustentam as decisões não regidas pelo método são
retóricos. A característica marcante dos argumentos retóricos é que eles
são persuasivos mesmo quando a conclusão não é consequência lógica
das premissas. Assim, quando o cientista argumenta que uma dada
teoria T “deve ser aceita porque, digamos, ela é mais unificadora, ou
vale a pena trabalhar com T porque ela é promissora”, ou que uma
dada observação é “relevante, grave, nova, etc., porque ela possui tais e
tais propriedades”, ele está se apoiando em argumentos retóricos, “que
não são nem dedutivos nem indutivos, pois não são formalmente
conclusivos nem empiricamente contundentes (...); eles visam persuadir
e convencer oferecendo boas razões em situações em que não há prova
melhor” (PERA, 1988, p. 267). A história da ciência está repleta de
exemplos em que o uso da retórica foi essencial para a aceitação de
teorias, e Pera cita ninguém menos que Darwin, apontando as situações
em que Darwin recorreu a diversos argumentos retóricos para sustentar
sua teoria da evolução. Inicialmente frágil mas muito promissora,

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A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA 345

podemos assentir que foram tais argumentos que promoveram a


aceitação da teoria de Darwin, o que mostra que a retórica, longe de ser
um fator de irracionalidade que compromete a ciência, é um modo de
argumentação largamente aceito, que normalmente não é encarado
como irracional e que desempenha papel crucial no desenvolvimento
científico. Acrescentamos a isso que a distinção tradicional entre
contexto de descoberta e contexto de validação não funciona, no caso
de Darwin, para deixar a retórica restrita ao contexto de descoberta;
pelo contrário, a retórica foi importante justamente na validação da
teoria, já que a evidência empírica de que Darwin dispunha e a
argumentação lógica eram insuficientes para validar a teoria e sustentá-
la contra seus opositores.
A filosofia segunda não dispõe de um teste último para
cientificidade, ou para aceitação ou rejeição de teses de filosofia
primeira, mas um aspecto valorizado pela filosofia segunda é a
fecundidade das teses, apreciada de um ponto de vista, por assim dizer,
científico. Assim, assumindo a avaliação de Pera, fica evidente que a
concepção tradicional de racionalidade científica é restritiva e limita o
campo de ação do cientista, deixando sem socorro os que precisam
defender teorias inovadoras para as quais ainda se dispõe de pouca
evidência no sentido usual. Constranger a prática científica por um
conceito de racionalidade tão restrito mutilaria a ciência. Disso
podemos concluir que a filosofia segunda não endossaria a concepção
tradicional de racionalidade, dentre outros motivos por não encontrar
vantagem na sua adoção.
Embora Maddy não se ocupe diretamente da noção de
racionalidade científica, podemos encontrar um indício de que ela
rejeitaria a concepção tradicional na discussão que ela desenvolve em
MADDY 2007, p. 293-294, sobre a pertinência de lógicas
paraconsistentes na compreensão de teorias científicas inconsistentes.
Teoria inconsistente é aquela que possui entre seus teoremas uma
contradição. De acordo com a lógica clássica, se isso acontece, a teoria

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é trivial, isto é, prova qualquer coisa exprimível na linguagem da teoria.


Tanto na história das ciências naturais quanto na história da matemática
encontram-se teorias inconsistentes, tais como a teoria do átomo de
Bohr ou a versão original do Cálculo Diferencial e Integral de Newton.
Apesar da inconsistência, nem Newton nem Bohr tiraram conclusões
quaisquer de suas teorias, como aconteceria se estivessem aplicando à
risca a lógica clássica. Eles concluíram apenas o que era apropriado
concluir. Suas teorias eram inconsistentes, mas não triviais. O desafio
que esses casos históricos colocam é explicar o que bloqueia a
trivialização dessas teorias. Conforme aderimos à concepção tradicional
de racionalidade científica, ou a uma concepção mais flexível, a resposta
a esse desafio será diferente. Mantendo-nos com a concepção
tradicional, em que conclusões são obtidas apenas por dedução lógica
(ou a partir de evidência empírica, por indução), os casos de teorias
inconsistentes parecem apontar contra a lógica clássica, pois de acordo
com essa lógica tais teorias deveriam ser necessariamente triviais, o que
elas não são. Isso posto, a lógica subjacente a essas teorias deve ser uma
lógica paraconsistente, isto é, uma lógica que admite inconsistências
sem que o resultado seja a trivialização da teoria. Essa é a posição de
Priest, que conclui: “Claramente, uma vez que admitimos a existência
de tais teorias, sua lógica subjacente tem que ser paraconsistente”
(PRIEST et al, 2004). Por outro lado, preferir uma noção mais flexível
de racionalidade científica, que consente que meios não-lógicos são
também racionais, permite preservar a lógica clássica e atribuir a não
trivialização das teorias inconsistentes a esses fatores não-lógicos.
Opondo-se a Priest, é isso o que faz Maddy: “O que esses casos
mostram, me parece, é que grandes cientistas estão sempre aptos a
navegar ao largo de severas imperfeições em suas teorias, usando seus
melhores instintos para decidir como proceder e como não proceder”.
Mais a frente, Maddy continua: “Seja o que for que Newton (…) e
Bohr estivessem fazendo, isso estava intimamente ligado a
complexidades do assunto de cada qual, e ao seu profundo, ainda que

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A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA 347

incipiente entendimento de seus meandros” (MADDY 2007 p. 294, 295,


grifos nossos).
Essas passagens deixam claro que Maddy não vê problema em
admitir que fatores tradicionalmente vistos como subjetivos e deixados
de fora da concepção tradicional de racionalidade científica, tais como
os instintos do cientista ou o seu entendimento particular do assunto,
sejam decisivos ao desenvolvimento de teorias científicas. Os casos de
teorias inconsistentes não nos obrigam a abandonar a lógica clássica
simplesmente porque a dedução lógica não é o único recurso que o
cientista tem para tirar conclusões, há outros recursos racionais à
disposição, dentre os quais Maddy menciona diretamente os instintos e
as habilidades do cientista. Maddy não recorre à distinção entre
contexto de descoberta e contexto de validação para deixar instintos e
habilidades do cientista confinados à descoberta, e nem seria
interessante que recorresse, pois se assim fizesse teria que conceder que
no contexto de validação precisa-se de uma lógica paraconsistente, o
que ela não aceita. Mesmo na validação de teorias fatores não-lógicos,
mas ainda assim racionais, continuam atuando.
Outra aproximação que cabe destacar entre a filosofia segunda
de Maddy e a filosofia da ciência pós-Kuhn é o exame recorrente da
história da ciência, de que ambos lançam mão para subsidiar suas
posições. É largamente sabido o quanto Kuhn se apóia na história da
ciência para formular seus principais conceitos, como os de revolução
científica e paradigma. Maddy, de modo similar, se apóia na história da
matemática para defender, por exemplo, aquela que talvez seja sua tese
central em filosofia da matemática, qual seja, que o que decide questões
de existência de entidades matemáticas não é alguma metafísica
subjacente, mas os benefícios matemáticos que se obtêm pela
introdução dessas entidades. Para justificar sua posição, ela se debruça
sobre a história da teoria dos conjuntos para mostrar que, apesar da
farta discussão filosófica, a consecução de metas matemáticas foi o

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fator decisivo na introdução de conjuntos na matemática (cf MADDY


2011, cap. II).
Uma distinção tradicional em filosofia da ciência é aquela entre
história interna e história externa da ciência. A primeira se concentra na
história da evolução das ideias e debates científicos, ao passo que a
segunda diz respeito à interação entre a ciência de uma época e a
sociedade em que ela estava inserida. Maddy valoriza muito a história
interna da ciência, mas vê com certa desconfiança a explicação do
desenvolvimento científico com base na história externa. Referindo-se a
como, no século XIX, certos ramos da matemática pura se originaram
da matemática aplicada, Maddy comenta:

“Em alguns círculos atualmente, afirma-se que desenvolvimentos


históricos desse tipo representam simplesmente mudanças nos
costumes, ou em arranjos sociais, em governos, em estruturas de
poder ou que tais, mas eu rejeito a força total desse modo de
pensar, apegando-me à noção da velha escola de que gradualmente
sabemos mais sobre o mundo, que nossas opiniões se aperfeiçoam,
e que examinar como atingimos o ponto que ocupamos agora pode
ajudar-nos a evitar repetir antigas filosofias que não são mais
viáveis (MADDY 2011, p. 2).”

Isso parece indicar que Maddy não estaria satisfeita com uma
análise da atividade científica que concedesse papel preponderante à
influência de valores sociais, como a desenvolvida em LONGINO,
1990. Segundo Longino, o sucesso do pensamento mecanicista pode
ser explicado, em parte, por corresponder aos anseios da burguesia
emergente, que vislumbrava benefícios econômicos na aplicação
tecnológica do conhecimento obtido por moldes mecanicistas com o
fim de controlar e manipular processos naturais. Outros modos de
conhecimento científico que não privilegiavam o controle da natureza
não trariam benefícios econômicos similares e por isso não floresceram
nesse ambiente. Maddy desaprova esse tipo de raciocínio e prefere
vincular a adoção do mecanicismo diretamente ao seu sucesso
científico.

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Certamente há muitos pontos de discordância, como o


mencionado acima, entre a filosofia segunda e as variadas filosofias da
ciência que sugiram a partir da segunda metade do século XX no rastro
de A Estrutura de Kuhn. Porém, há também muito em comum. A visão
superficial dos dois programas traça um cenário em que, por um lado, a
filosofia segunda parece tão profundamente imersa na ciência a ponto
de sujeitar a filosofia às rédeas da ciência, e por outro a nova filosofia
da ciência parece problematizar tanto a concepção tradicional de ciência
a ponto de alimentar dúvidas sobre a sua racionalidade. O que
apuramos ao final deste artigo é que tais aparências não se sustentam.
Na verdade a imersão da filosofia segunda na ciência está longe de ser
acrítica, e a filosofia, embora agora entendida de outro modo, como
filosofia segunda, continua desempenhando um papel importante para
a ciência. Ao mesmo tempo, constatamos que a problematização da
atividade científica levada a cabo pela nova filosofia da ciência não é
realmente ameaçadora da racionalidade científica, de modo que
podemos continuar a apostar nossas fichas na ciência como meio por
excelência de alcançar conhecimento confiável sobre o mundo. Tudo
isso nos leva a concluir que, no que tange ao debate filosófico em torno
da concepção de racionalidade científica, o espírito da filosofia segunda
está de acordo com o espírito da nova filosofia da ciência. Ambas
rejeitam a concepção tradicional e concordam que, se há discordância
entre o conceito filosófico de racionalidade e a prática científica, é a
filosofia que deve ceder.

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