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George Conto de Maria Judite de Carvalho NDAM lentamente, mais do que se pode, como quem Iuta sent for- ¢as contra o vento, ou como quem cantinba, também pode ser, na pesada, espessa, gua do mar. Mas nao hd dgua nem vento, s6 calor, wa longa rua por onde George volta a passar depois de mais de vinte anos, calor e também aquela aragem macia e conto que redonda de forno aberto, que talvez venha do sul on de qualquer outra panto cardeal ou colateral, perdeu a biissola nao sabe onde nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a brssola, Perdew ou abandonou. Caminham pois lentamente, George ¢ a outra cujo nome quase quis esquecer, quase esquecen. Trazem ambas vestidos claros, amplos, € a ara- gem empurraos ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, 0 outro para o lado direito de quem vent, ambos na mesma direccao, halt ralmente. O rosto da jovem que se aproxina é vago ¢ sent contornos, uma pin- celada clara, e quando os tiver ele serd 0 rosto de uma fotografia que tem corride mundo no fundo de uma mala qualquer, que tem: morado no fundo de muitas gavetas, 0 inico fétiche de George. As suas feigdes ainda sao incertas, salpicando a mancha pdlida, como acontece com o rosto das pes- soas mortas, Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter uma vox muito real ¢ viva, uma vox que a cal ¢ as pds de terra ea pedra e o tempo, e ainda a distancia e a confusio da vida de George sao prejudicaram. Quando falar nio criaré espanto, um simples mal-estar. Agora esto mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olbos largos, semicerrados, unra boca fina, eabelos escuros, lisos, sobre um pes- cogo alto de Modigliani. Mas nesse tempo, dantes, nao sabia quent era Modigliani, nao eam artistas ld em casa, os pais tinham sido condenados pelas instincias supremas & quase ignordncia, gente de trabalho, diziam como se os outros nao trabalhassem, e sorriam um pouco com a superic ridade dessa mesma ignorducia se a ouviam falar de ume livro, de um filme, de um quadro nem pensar, 0 tinico que tinham visto talvez fosse a estampa do Angelus que estava na casa de jantar. Com superioridade, pois, e tam- 72 bém com uma certa indignagao. Ou seria mesmo vergonha? Como quem ouve um filbo atrasado dizer inépcias diante de gente de fora que depois, Senhor, pode ir contar ao mundo o que ouvin. E rir. E rir. Ja nao sabe, néo quer saber, quando saiu da vila e partiu & descoberta da cidade grande onde, dizia-se lé em casa, as mulberes se perdem. Mais tarde partin por além terra, por além mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, unt dia ruivos por cansaco de si, mais tarde castanhos, loiros de nowo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, grandes e nao tanto, definitivos e passageiras, simples amo- res, casou, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora esti, até quando? em Amsterdao, Depois de ter deixado @ vila vivew sempre em quartos alugados mais ou menos madestos, depois ent casas mobiladas mais ou raenos agradaveis As dltimas foram mesmo francamente confortdveis. Vives numa casa mobi lada sem nada de teu? Mas deve ser um horror, como podes? teria dito 4 mie, se soubesse. Néo o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca tinbam sido minuciosas, de resto detestava escrever cartas ¢ 86 muito rara~ mente o fazia. Depois 0 pai morreu e a mie logo a seguir. Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mos livres, de rua nova a espera dos seus pés. As Pessoas fican tio estupidamente presas a um médvel, a um tapete ja gasto de tantos passos, aos bibelots acumulados ao longo das vidas e cheios de recordagées, de vozes, de otbares, de maos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra ¢ ali esté algo de quem umm dia aparece com rosas. Tem alguns livros, was poucos, coma os amigos que julga sinceros, sé-lo-do? Aos outros livros dé-os, vende-os a peso, que leve se sente depois! «Parece-me que as veres fazes isso, enfim, toda essa desertificacéo, com esforco, com sofrimentov, disse-lhe um dia a seu amor de entéo. «Talvex, responden, talvez. Mas prefira néo pensar no caso.» Queria estar sempre pronta para partir sem que os objectos a envolvessem, a segurassem, a obrigassent a demorar-se mais um dia que fosse. Dispontvel, pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. Mesmo para estar onde estava. Os pais nto sabiam compreender esse deseja de liberdade, por isso se Joi um dia com uma pequena mala de cabedal, nao havia outra ld em casa. Mas prefere niio pensar nos primeiros tempos. E as suas malas agora sto caras, leves, malas de voar, A outra esta perto. Se bouve um momento de nitidez no seu rosto, ele jé passou. George nio deu por ele. Esté novamente esfumado. A proxi- midade destroi ultimamente as imagens de George, por isso a vai vendo pior & medida que ela se aproxima. E certo que podia pér os éculos, mas sabe que nao vale a pena tal trabalho. Param ao mesmo tempo, espantam- -se em unissono, embora o espanio seja relativo, um pequeno espanto inver- dadeiro, preparado com tempo. Tu? Tu, Gi? Tio jovem, Gi. A rapariguinha fragil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a pintar, primeiro d maneira de Modigliani, depois @ sua pré- pria maneira, a de George, pintora jd com nome nos marchands das gran- des cidades da Europa. Gi com um pregador de oira que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer de Lisboa. Em tempos tao dificeis. Vim vender a casa Ah, a casa. E esquisito no the causar estranbeza que Gi continue tao jovem que podia ser sua filba, Quieta, de olhar esquecido, vazio, e que nto se espante com a venda assim anunciada, tio subitamente, sent preparag#o, da casa onde talvez ainda more. Que pensas fazer, Gi? Partir, nfo €? Em que se pode pensar aqui, neste cu de Judas, sendo em partir? Ainda nao me fui embora por causa do Carlos mas... O Carlos pertence a isto, nunca se ird embora. $6 a ideia o apavora, nfo €? Sim. S6 a ideia. Ri-se de partir como nés nos rimos de uma coisa impossivel, de uma ideia louca, Quer comprar uma terra, construir uma casa a seu modo. Re- cebeu uma heranca ¢ sé sonha com isso. Creio que é a altura de eu... Creio que sim. Pois nao € verdade? Ainda desenhas? Se nao desenhasse dava em maluca. E cles acham que eu tenho muito jeitinho, que hei-de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exem- plar, uma mie perfeita, tudo isso com muito jeito para o desenho. Até posso fazer retratos das criangas quando tiver tempo, nao € verdade? E o que eles acham, nao ¢? A mic esté a acabar o meu enxoval, Eu sei. Hé um breve siléncio, depois George diz devagar: Que calor, cheira a queimado, o ar. Teré sido sempre assim? Farto-me de dizer: cheira a queimado, o ar, Ninguém me ouve. Ninguém ouve ninguém, nao sabes? Que aprendeste com a vida, mulher? ‘A sua vor esté mole, pegajosa, dificil, as palavras perdem o fim, desinteressadas de si proprias, € como se se preparassem para 0 sono. Creio que estou atrasada, diz entéo olbando para o relégio. Estou mesmo, acrescenta olbando melhor. E nao posso perder o comboio. Ama- nha bem cedo sigo para Amsterdio. Estou a viver em Amsterdfo, agora. ‘Yenho 1d um atelier. = Amsterdio, €? Onde fica isso?

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