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Copy r i ght © Lui z

Copy r i ght © Edi tor a Pl anet a do Br asi l , 2016


T odos os di r ei tos r eser v ados.

Preparação: Ana Cl em ent e


Revi são: I sabel Jor ge Cur y e M ar i a Ai k o Ni shi j i m a
Di agramação: Vi v i an Ol i v ei r a
Capa: M at heus Val adar es
Adapt ação para eBook: H ondana

CIP- BRASI L. CAT ALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SI NDICAT O NACI ONAL DOS EDI T ORES DE LI VROS, RJ

P524f

Pondé, Lui z Fel i pe

Fi l osof i a par a cor aj osos / Lui z Fel i pe Pondé. - 1. ed. - São Paul o :
Pl anet a, 2016.

I SBN 978- 85- 422- 0751- 45

1. Fi l osof i a. I. T í tul o.

CDD
16- 100
32902 CDU
1
2016

T odos os di r ei tos dest a edi ção r eser v ados à


EDI T ORA PLANET A DO BRA SI L LT DA.
Rua Padr e João M anoel , 100 – 21º andar
Edi f í ci o H or sa I I – Cer quei r a César
01411- 000 – São Paul o – SP
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at endi m ent o@ edi t or apl aneta.com .br
T al é a t r i st eza i nsepar áv el d e t oda a v i da f i ni ta, um a t r i st eza, por ém ,
que nunca se t or na r eal i dade e ser v e tão só par a dar al egr i a et er na de a
super ar . Del a v em o v éu de pesar que se est ende sobr e t oda a
nat ur eza, a m el ancol i a pr of unda e i ndest r ut ív el de t oda a v i da.

Apenas na per sonal i dade há v i da; e t oda a per sonal i dade se assent a
num f undam ento som br i o, que, não obstante, t em t am bém de ser v i r
de fundam ent o ao conheci m ent o.

F. W. J. Schel l i ng, A essênci a da li berdade humana


Para mi nha net a Améli e
SUM ÁRI O

APRESENTAÇÃO. UMAFILOSOFIAPARACORAJOSOS

PARTEI. UMAFILOSOFIAEM PRIMEIRAPESSOA


1. QUEM SOU EU QUEFALO COM VOCÊ?POR QUEMETORNEI UM FILÓSOFO
2. ALGUNSREPAROSINTRODUTÓRIOSANTESDEIR PARAOQUEINTERESSA
3. QUERO SER LIVRE QUANDO PENSO: FILOSOFIA EM PRIMEIRA PESSOA COMO
LIBERDADEDEPENSAMENTO EAÇÃO
4. ROMANTISMO COMO REVOLTA CONTRA A VIDA ROUBADA: O MAL-ESTAR COM
AMODERNIDADE

PARTEII. GRANDESTÓPICOSDAFILOSOFIAAO LONGODO TEMPO


5. NOSSO COROPARTICULAR DEDEMÔNIOS
6. RELIGIÃO EESPIRITUALIDADE
7. RELIGIÃO × CETICISMO: CONTRAOSPICARETASDO ESPÍRITO
8. METAFÍSICA
9. O SOBRENATURAL
10. DEUSEXISTE?
11. O HOMEM ÉUM SER RACIONAL?
12. MATERIALISMO
13. MORAL OU ÉTICA
14. AÉTICADOSVALORES
15. HEDONISMO
16. MARKETING DECOMPORTAMENTO OU MARKETING MORAL
17. DEMOCRACIA, APALAVRAMÁGICADAPOLÍTICACONTEMPORÂNEA
18. APOLÍTICACOMO SALVAÇÃO
19. NÃO HÁNADAMAISSEM RUMO DO QUEAEDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
20. ACIÊNCIATRISTEDAECONOMIA
21. AECONOMIAALEGRE, AECONOMIASOLIDÁRIA

PARTEIII. POR QUEACHOO MUNDO CONTEMPORÂNEO RIDÍCULO?


22. O CONTEMPORÂNEO, O QUEÉISSO?
23. ACADEIAALIMENTAR COMO MODELO PROFUNDO DAVIDASOCIAL
24. O NARCISISMO
25. EXISTEUM EU VERDADEIRO?
26. UMACULTURADEDIREITOSENÃO DEDEVERES
27. É POSSÍVEL UM MUNDO EM QUE TODOS SÃO IGUAIS? O BLÁ-BLÁ-BLÁ DA
DESIGUALDADESOCIAL
28. O MUNDO ESTÁ FICANDO MAIS DESUMANIZADO? CULPA DA MANIA DE
PERFEIÇÃO
29. ÉBOM VIVER TANTOTEMPO ASSIM?OSTRAUMASDALONGEVIDADE
30. O SILÊNCIO DOMUNDO
APRESENTAÇÃO

Uma filosofia para corajosos

A i nt enção pr i m ei r a dest e l i v r o é aj udá- l o a pensar com a sua pr ópr i a


cabeça. Pensar f i l osof i cam ent e o m undo em que v ocê v i v e pode ser
bom ou r ui m . Não há gar ant i as de que v ocê sej a m ai s fel i z por que
pensa sua v i da f i l osof i cam ent e (ex i ste um a cont r ov ér si a enor m e
sobr e se a f i l osof i a nos dei x a m ai s ou m enos fel i zes, m as v am os
dei x ar i sso par a depoi s). Por t anto, quem pr om et e a v ocê que ser á
m ai s f el i z com a f i l osof i a é um m enti r oso que só quer ganhar seu
di nhei r o. Eu t am bém quer o ganhar seu di nhei r o, m as di zendo a
v er dade par a v ocê. Ou pel o m enos o que eu, a par t i r de tudo o que j á
l i , l ei o, escr ev o e penso, j ul go ser v er dade. Se v ocê f or capaz de
aguentar i sso, aqui se i ni ci a um a boa am i zade. Se não f or , m el hor
v ol t ar a l er um desses l i v r os v agabundos de aut oaj uda. Você tem
al guém per to de v ocê que com pr a l i v r os de autoaj uda? Coi t ado.
Este l i v r o é um a espéci e de hi st ór i a da f i l osof i a v i st a pel os
m eus ol hos. Na l i nguagem do gr ande f i l ósof o Fr i edr i ch Ni et zsche
(sécul o XI X), pensar com sua pr ópr i a cabeça ou f azer um a hi st ór i a da
f i l osofi a v i st a pel os seus pr ópr i os ol hos é “ apr ender a f al ar sua
pr ópr i a l í ngua” . Fazer i sso não é t ar ef a par a cov ar des. Se v ocê f or um
cov ar de, m el hor se concent r ar em sua al i m ent ação bal anceada.
Cui dado: r ecent em ent e a OM S, Or gani zação M undi al da Saúde, um
br aço da estat al i ncom petent e que é a ONU, di sse que bacon, sal am e e
sal si cha dão câncer ! M el hor f i car na al f ace.
É necessár i o t er cor agem par a di zer o que se pensa. Par a
f azer i sso, é t am bém necessár i o conhecer al gum as i dei as que os
f i l ósofos e out r os pensador es pensar am antes de nós. Pr i m ei r o v ou
f al ar com v ocê sobr e essa i dei a do Ni etzsche (de f azer f i l osofi a com
sua pr ópr i a l í ngua), depoi s v am os di scut i r al guns dos tem as m ai s
i m por t ant es da f i l osof i a e v er , quem sabe, com o essa di scussão pode
t or nar seu coti di ano, se não m ai s f el i z, pel o m enos um pouco m enos
m edí ocr e, por que a cor agem não sal v ar á sua v i da, m as pel o m enos
f ar á v ocê se sent i r m ai s v i v o .
Ai nda um pequen o r epar o: a ci t ação ant er i or que f aço do
f i l ósofo r om ânt i co al em ão Schel l i ng (sécul o XVII I / XI X) é a sí nt ese do
m eu espí r i t o fi l osóf i co: há um a t r i st eza no pensam ento; essa t r i steza
é a r ai z de toda a per sonal i dade. Esse car áter som br i o da r ai z de nossa
al m a é t am bém o fundam ent o de t odo conheci m ento v er dadei r o.
Com o di zi a out r o r om ânt i co, o di nam ar quês Sor en Ki er k egaar d
(sécul o XI X), todo conheci m ent o v er dadei r o com eça com um
pr ofundo ent r i steci m ent o consi go m esm o. Schel l i ng, por sua v ez,
f al ou da r el ação ent r e tr i st eza, per sonal i dade f or t e e conheci m ent o
num a obr a à qual el e deu o n om e de A essênci a da li berdade humana.
Nunca ser em os l i v r es, m as a v i da com cor agem pode ser m ai s bel a.
Ex i st em todas as r azões do m undo par a t er m os m edo, por i sso a
cor agem foi apont ada desd e a Ant i gui dade com o sendo um a das
v i r t udes essenci ai s na v i da.
Este l i v r o est á di v i di do em t r ês gr andes par t es. A
pr i m ei r a, cham ada “ Um a f i l osofi a em pr i m ei r a pessoa” , descr ev e o
m eu m odo de f azer f i l osof i a. A segunda, cham ada “ Gr andes t ópi cos
da f i l osof i a ao l ongo do t em po” , t r ata de um r eper t ór i o bási co de
t em as de que um a pessoa pr eci sa par a ser capaz de f i l osof ar com o
m í ni m o de segur ança sobr e o que pensa. A t er cei r a, e úl t i m a,
cham ada “ Por que acho o m undo cont em por âneo r i dícul o?” , é o
f echam ent o do l i v r o, no qual el enco al guns t r aços essenci ai s de por
que ent endo que v i v em os na época m ai s r i dí cul a da hi st ór i a da
hum ani dade at é hoj e. Boa l ei t ur a.
PARTEI

Um a f i l osofi a em pr i m ei r a pessoa
CAPÍTULO 1

Quem sou eu que falo com você?Por que me t ornei um filósofo

O ano er a 1979. Eu er a est udant e de m edi ci na na época. E assi m


per m aneci por m ai s al guns anos. Num a aul a de i m unol ogi a,
est udáv am os casos hi potét i cos de paci entes t er m i nai s. Pessoal m ent e,
nunca pensei na m or t e. Sei que pode par ecer estr anho par a um
f i l ósofo, m as assi m que é. T er r or es m et af ísi cos nunca f or am o m eu
f or t e. Você sabe o que é ter r or m etaf í si co? Se não, saber á em
i nst ant es. E m ui t as out r as coi sas, por i sso est ou escr ev endo este
l i v r o. Par a m ost r ar par a v ocê que fi l osof ar é al go que se apr ende com
f aci l i dade. E por que é fáci l ? Por que a f i l osofi a é um a ar t e enr ai zada
na ex per i ênci a concr eta da v i da das pessoas e não num m undo
abst r at o do sex o dos anj os. Apr ender a f i l osof ar é apr ender a
sobr ev i v er num m undo em que, em par t e, só o Homo sapi ens habi ta o
m undo das i dei as, da i m agi nação, da l i nguagem , enfi m , um m undo
do senti do. Qual out r o ani m al se i ndaga acer ca de seu dest i no? Da
v i da e da m or t e? Do bem e do m al ? Ex i ste al gum l ugar em que essas
r espost as ex i st am esper ando por nós? Pl at ão achav a que si m .
Ni et zsche achav a que não. Al guém aci m a de nós det ém essas
r espost as? Os r el i gi osos acham que si m , os ateus acham que não. Não
há cer tezas. Ent ão, al guns f i l ósofos acham que si m , out r os acham que
não. Vam os conv er sar com al guns del es.
Vol t ando àquel e di a na f acul dade de m edi ci na e àquel a aul a
sobr e paci ent es t er m i nai s h i potét i cos. Per gunt ei ao m eu pr of essor
com o aquel es paci ent es v i am o f ato de que est av am i ndo em di r eção
ao nada. O pr ofessor f ez si l ên ci o por al guns i nstant es e m e di sse: “ O
senhor est á na aul a er r ada, dev er i a est ar na aul a de f i l osof i a” .
Lev ei al guns ano s, e um l ongo t r aj et o, par a fazer o que
m eu pr of essor m e di sse naqu el a aul a. El e t i nha r azão. M as os anos na
m edi ci na não f or am per di dos de t odo. Nem o l ongo tr aj eto que fi z
ent r e a m edi ci na at é m e t or nar um fi l ósof o, passando pel o t eatr o e
pel a psi canál i se. A m edi ci na m e ensi nou a pensar a r eal i dade com o
el a é. A f i l osof i a m e ensi nou a v er a r eal i dade al ém do que el a par ece
ser . O t eatr o é m i nha pai x ão r ecol hi da. A psi canál i se é, par a m i m ,
um a r efer ênci a absol ut a com o r ef l ex ão pr of unda acer ca do suj ei t o
m oder no. Um a das coi sas i m por t ant es em f i l osof i a, penso, é a
gr at i dão par a com todos os que pensar am antes de v ocê, ai nda que
v ocê di scor de del es. O m u ndo ser i a um t édi o pi or ai nda se não
ex i st i ssem aquel es com os quai s di scor do. De cer t a for m a, a f i l osofi a
só ex i st e na gr at i dão par a com o pensam ent o dos outr os e na
gener osi dade em doar o seu pensam ento par a os out r os. Sei que a
i dei a é est r anha, m as penso que a fi l osof i a sej a o encont r o ent r e a
gr at i dão e a gener osi dade. Se el a é um a ar te do conheci m ent o, nem
por i sso a at i t ude do suj ei t o do conheci m ento dei x a de ser m or al .
Esse er a o sent i do de Pl atão di zer em seu di ál ogo O banquete que o
que m ov e o f i l ósofo é o am or (Er os) pel o conheci m ento, e não por si
m esm o.
M ui t as v ezes pensam os em f i l ósof os com o pessoas que
v i aj am na m ai onese, r ef l et i ndo sobr e coi sas que não ex i st em . I sso é
m ai s ou m enos v er dade. E quando acont ece é um pr obl em a. Um
pouco de cui dado cont r a esse r i sco é necessár i o quando v ocê quer
sobr ev i v er no m undo do pen sam ent o. Se depender dest e l i v r o, v ocê
não cor r er á esse r i sco. Vam os pensar sem pr e m ar geando a cost a do
cot i di ano, por que esse é o obj eto de um m anual par a o cot i di ano.
Pensar par a onde v am os depoi s da m or t e ou com o nos
sent i m os quando sabem os que v am os m or r er l ev ant a, de car a, um a
quest ão, ent r e t antas out r as: por que o susto em saber que v am os
m or r er quando sabem os o t em po t odo que v am os m or r er um di a?
T al v ez por que a cer teza da dat a é que nos causa hor r or . A i ncer t eza do
quando v am os m or r er é a v i da nor m al que t em os ent r e o nasci m ent o
e a m or te. Com o f azem os par a não ent r ar em pâni co o t em po t odo
um a v ez que sabem os (l em br am os?) que som os m or t ai s? O
ant r opól ogo Er nest Beck er (sécul o XX) di zi a que a capaci dade de
r epr i m i r o pâni co di ant e da consci ênci a da m or t e é um ganho
ev ol uci onár i o. Os que não consegui r am l i dar com i sso
desapar ecer am por que m or r er am ant es de at i ngi r a i dade
r epr odut i v a. M as essa capaci dade t em um cust o psí qui co enor m e,
por i sso el e di al oga com a psi canál i se, par a ent ender a di nâm i ca
desse cust o. Esse pâni co se m ani fest a de for m as v ar i adas na cul tur a,
i ncl usi v e nas nossas t ent at i v as de l i dar com el e na fi l osof i a,
l i ter at ur a, ar t e, ci ênci a, r el i gi ão. E na m el ancol i a, el e se m ost r a em
sua t er r ív el concr et ude. Não se pode f azer f i l osof i a sem ár eas com o
ar t e, r el i gi ão e ci ênci as. E sem um a dose de m el ancol i a. Só al m as
m ui t o super f i ci ai s são al egr es o t em po t odo. Lem br e- se do que
di scut i m os sobr e o r om ânti co Schel l i ng ant er i or m ent e.
E se não ex i st i r v i da após a m or te, t udo é per m i t i do? E se
não ex i st i r Deus, t udo é per m i t i do? Essa per gunt a foi f ei t a por um
gr ande escr i t or r usso, Fi ódor Dost oi ésv k i (sécul o XI X). Essa
per gunt a é m ui to i m por tant e por que i m pl i ca o segui nt e: se m or r o e
v i r o pó e ni nguém descobr e os absur dos que f i z na v i da, e não ex i ste
al guém ou al go que m e f aça pagar pel o que f i z nest a v i da “ no out r o
m undo” , i sso si gni f i ca que t udo bem m atar . Ser á que a v er gonha de
f azer al go er r ado bast a par a l i m i t ar m eu com por t am ento? Acho que
não. E v ocê? M as o f ato de, tal v ez, pr eci sar m os de um “ Deus” par a
gar ant i r a m or al e o bem não i m pl i ca a sua ex i st ênci a, cer to? O m ai s
l egal da f i l osofi a é v ocê apr ender a pensar sem m edo das r espost as.
T al v ez Deus não ex i st a e ai nda assi m cont i nuem os a pr eci sar que El e
ex i st a.
Enfi m , quest ões sem f i m . Penso nel as com o nosso cor o
par t i cul ar de dem ôni os. São i nfi ni t os, m as não m enos i m por tantes
ou ur gent es. Não os t i nha na cabeça naquel e di a na f acul dade de
m edi ci na. O que eu t i nha er a um espant o com a i dei a de al guém di ante
da m or t e. E a fi l osof i a, com o di zi a o m est r e Pl atão, nasce do espant o.
Quem per de o espant o pel as coi sas, per de a v i da em gr ande par t e. Se
m ant enho o gost o pel a v i da, apesar de não ser um a pessoa de
t em per am ent o al egr e, é por q ue nunca per di o espanto pel a v i da. E o
espant o é o i r m ão gêm eo do encantam ent o.
Por que m e t or nei um f i l ósofo? Por que sou m ov i do pel o
espant o. A v i da sem espanto é bur ocr át i ca, e t udo que é bur ocr áti co
com pr om et e a bel eza das coi sas. E Dost oi év sk i di zi a que a bel eza
sal v ar á o m undo. Par a m i m , a f i l osof i a é um a f or m a de confi ssão
dessa bel eza. E quer o par t i l há- l a com v ocê.
Com o j á di sse em out r os m om ent os, super ei a angúst i a de
t er um m ét odo. Por t anto, est e l i v r o não t em nenhum m ét odo
especí f i co, a não ser di v i di r com v ocê m eu espant o ao l ongo desses
anos em que pr at i co a f i l osof i a com o acho que el a dev e ser pr at i cada,
par a al ém dos m ur os da uni v er si dade – que tem um a f unção
essenci al na f or m ação de f i l ósof os pr of i ssi onai s, ni nguém se engane
acer ca di sso. Se Descar tes (sécul o XVI I) estav a cer t o, e t er m ét odo é
um a confi ssão de hum i l dade por que só Deus não pr eci sa de um
m ét odo, ent ão que eu sej a condenado por essa pequena ar r ogânci a.
Ai nda assi m , pr ef i r o a m áx i m a do r usso Dostoi év sk i , ci tado ant es.
Você v er á que, m ui t as v ezes, a fi l osof i a é m ai s bem pr ati cada por
ar t i st as e escr i t or es do que por fi l ósof os, pr i nci pal m ent e quando
est es se t or nam bur ocr at as da fi l osof i a, que dedi cam a v i da i ntei r a a
t or nar a f i l osof i a um a fer r am ent a quase i nút i l . Com o al guém que
pr ef er e a m astur bação a penetr ar num a pessoa r eal .
Repi to a m áx i m a de Dost oi év sk i : “ A bel eza sal v ar á o
m undo” . Não acho que sej a o m étodo que nos sal v e da ar r ogânci a,
m as si m a per cepção de que ex i st e um a gi gantesca bel eza no at o de
pensar , um gozo que l he é especí f i co, e que essa bel eza não é um a
si m pl es cr i ação m i nha ou su a. El a é acessada quando di al ogam os com
t oda um a tr adi ção de pensam ent o. Por tanto, pr ef i r o o gozo f i l osófi co
ao m ét odo fi l osóf i co. Ni et zsche e não Descar t es. E é i sso que v am os
f azer ao l ongo deste l i v r o, que não dei x a de ser um a hi st ór i a da
f i l osofi a, ou m el hor , a m i nha hi stór i a da f i l osof i a. Um a f i l osofi a do
espant o.
CAPÍTULO 2

Alguns reparos int rodut órios ant es de ir para o que int eressa

Ant es de com eçar m os esse di ál ogo com a f i l osof i a, são necessár i os


al guns r epar os, no m í ni m o par a af ast ar os chat os. O que é um chat o
aqui ? Al guém que acha que só se pode f i l osof ar em al em ão. O al em ão
é um a l í ngua m ar av i l hosa par a const r ui r subst anti v os pr eci sos,
i ncl usi v e abst r atos, do t i po “ nadi dade” , ou sej a, aqui l o que f az al go
ser “ o nada” ou “ um nada” . M as, com o eu di zi a ant es, aqui m e
i nt er essa m ai s o fat o de que t odos nós t em os um par ent esco
pr ofundo com o nada do que a nadi dade do nada. Ri sadas? M er eci das.
Afi nal , f al ar da nadi dade do nada é, apar ent em ente, um a v i agem na
m ai onese. M as não é. Aqui é desnecessár i o.
Em f i l osof i a esse “ pr ofundo” cham a- se ontol ógi co,
por que t em a v er com o que é essenci al , com o o “ ser ” (ont o em
gr ego) das coi sas. Vi em os do nada e v am os v ol t ar par a o nada. Esse é
o par ent esco pr of undo com o nada. Fi l osof a- se m ui to bem em
al em ão, m as di zer que só se f i l osof a em al em ão é um ex ager o, um a
af et ação de quem nada t em na v i da al ém do f ato de que fal a al em ão. O
f i l ósofo r usso Ni col au Ber di aev (sécul os XI X e XX) di zi a que esse
nosso par entesco com o nada nos obr i ga a pensar sem pr e nel e e a
enf r ent á- l o sem m edo. Pr ef i r o pensar o nada assi m , com o Ber di aev ,
a f i car pensando na nadi dade do nada. Cr ei o que se f i l osofa m el hor
com o desesper o do que com um a l í ngua especí fi ca. Em nosso caso
aqui , sem pr e ser á em por tuguês.
M as nem t udo são f l or es, e, de fat o, pr eci sam os dei x ar
al gum as poucas coi sas cl ar as par a nos l i v r ar m os dos chat os. Ai nda
que um a car act er í sti ca dos chatos sej a que el es são sem pr e um a
l egi ão. Andam em bando, com o a m edi ocr i dade.
As pal av r as, ou os concei t os, são um a f er r am enta
i m por t ant e em f i l osofi a. Às v ezes, o que um f i l ósof o quer di zer com
um a pal av r a não é o que out r o quer di zer com a m esm a pal av r a
t r aduzi da par a o por tuguês (a com eçar que, m ui t as v ezes, as pal av r as
são tr aduzi das a par t i r de l ín guas di f er ent es! ).
Por ex em pl o, a pal av r a “ bem ” par a Sant o Agost i nho
(sécul os I V e V), um cr i st ão, não é a m esm a coi sa que a pal av r a
“ bem ” par a Pl atão (428- 348 a.C.), um gr ego pagão. Par a Agost i nho,
o bem é Deus e tudo o que Del e em ana. Fazem os o bem quando
f azem os o que El e quer e nos apr ox i m am os Del e. Par a Pl atão, o bem é
um a i dei a, um a f or m a i m at er i al , i m óv el , que ex i ste no m undo das
i dei as (um l ugar onde essas i dei as per f ei t as ex i st em e a par t i r de onde
nosso m undo é fei t o ou copi ado), não pessoal , com o o Deus de
Agost i nho, m as que ger a o m undo pel a abundânci a de sua bondade.
Em Pl at ão, o bem ger a o m undo pel a for ça de sua abundânci a ou
r i queza. Em Agost i nho, o bem , Deus, cr i a pel a v ont ade l i v r e que t em .
As i dei as não são absol ut am ente di st ant es, m as não são i guai s.
Puder a, Agosti nho é um cr i stão l ei t or do Vel ho T est am ent o hebr ai co,
Pl at ão é um gr ego ateni ense que, a pr i ncí pi o, nunca ouv i u f al ar dos
hebr eus e seu Deus absol ut o, que é um a pessoa ao m esm o tem po.
Com o v am os enf r entar quest ões assi m ? Quando f or necessár i o
enf r ent á- l as, sem usar ter m os em al em ão ou gr ego. E, apont ando,
quando for necessár i o, as di f er enças. O que nos pr ot eger á é, no
l i m i t e, a si ncer i dade de nosso desej o em usar a f i l osofi a par a l i dar
com o m undo. E enfr entar a v i da com o el a é.
Out r o pr obl em a é a quest ão da hi stór i a em si . Com o
col ocar Ni et zsche e Descar t es, um do sécul o XI X, o outr o do sécul o
XVI I, par a conv er sar se duzent os anos os separ am ? Si m pl esm ente
col ocando. Per dem os al go ni sso? Pode ser , m as não cr ei o que Pl at ão
est i v esse pr eocupado com i sso quando est abel eceu as bases da
f i l osofi a t al com o a conhecem os. I nter essa- m e, aqui , m ui to m ai s a
f úr i a de quer er ent ender as coi sas e enf r ent ar o m undo que nos cer ca
do que ser um bachar el em concei t os pur os.
Resum i ndo a óper a: f azem os fi l osof i a do ponto de v i sta
do usuár i o, e i sso não é “ t r ai r ” a fi l osof i a, é t or ná- l a r el ev ant e.
Quando se di z que na Gr éci a a fi l osof i a t i nha m ui t o de ter api a da
al m a, não er a out r a coi sa que se ti nha em m ent e. A f i l osof i a dev er i a
nos aj udar a enf r entar o m undo, a v i da e a m or t e. Cl ar o, se v ocê f or se
t or nar um f i l ósofo pr of i ssi onal , acadêm i co, si nt o di zer que t er á,
si m , de conhecer l í nguas, com eçando pel o gr ego de Pl at ão. M as aqui
não é o caso; aqui o caso é apr ender a usar a f i l osof i a par a que, quem
sabe, v ocê l ev ant e de m anhã m enos per di do do que f az quase t odo
di a. Ou, quem sabe, m enos m ent i r oso sobr e si m esm o e sobr e o que
sent e e v ê. Ou, quem sabe, ent enda m el hor o t em po em que v i v em os.
Enfi m , com o di zi a Ni etzsche, f azer f i l osofi a em sua pr ópr i a l í ngua.
Esper o que a m i nha f i l osofi a em m i nha pr ópr i a l í ngua aj ude v ocê a
encontr ar a sua. Essa é um a das r azões que t enho par a escr ev er l i v r os
de f i l osof i a e par a ser pr of essor , e est e l i v r o é dedi cado a essa
i nt enção.
CAPÍTULO 3

Quero ser livre quando penso: filosofia em primeira pessoa como liberdade de
pensamento e ação

O que v em a ser f azer f i l osof i a em sua pr ópr i a l í ngua ou em pr i m ei r a


pessoa? Essa é um a i dei a do gr ande f i l ósofo al em ão Fr i edr i ch
Ni et zsche, que v i v eu no sécul o XIX. Ni et zsche er a um fi l ósof o
r om ânt i co, e par a ent ender o que é fazer fi l osof i a em sua pr ópr i a
l í ngua é necessár i o entender o que foi o Rom ant i sm o e com o esse
Rom ant i sm o chega ao pensam ent o de Ni et zsche, e a sua pr oposta de
f azer f i l osofi a em sua pr ópr i a l í ngua, em v ez de f azê- l a na l í ngua dos
outr os.
Vej am os ent ão, par a com eçar , o que é f azer f i l osofi a na
l í ngua dos out r os – com ecem os pel o negati v o par a depoi s descobr i r
o que é o posi ti v o nesse caso. Aqui , l í ngua dos outr os não si gni f i ca
l í ngua estr angei r a; é m ai s sof i st i cado do que i sso. Ant es de f al ar
sobr e o que é a l í ngua dos out r os, l em br em os do sent i m ent o que
m ov e Ni et zsche quando el e r et or na ao seu tr abal ho sobr e o
nasci m ent o da tr agédi a gr ega e f al a que naquel a época, quando
escr ev eu esse tr abal ho, ai nda não er a capaz de f al ar em sua pr ópr i a
l í ngua e, ent ão, f oi obr i gado a f al ar na l íngua dos out r os. Ni et zsche
t r at a, aqui , da capaci dade de fal ar das coi sas a par t i r de si m esm o e da
cor agem que i sso dem anda. O m ai s fáci l é passar a v i da f al ando na
l í ngua dos out r os. No caso especí fi co de Ni et zsche, f al ar na l í ngua
dos outr os er a di zer o com um , o conheci do sobr e a or i gem da
l i ter at ur a t r ági ca. Fazer “ m er a” hi st ór i a da l i t er atur a t r ági ca gr ega (é
f azer o que se faz at é hoj e, quase sem pr e, na v i da acadêm i ca, por i sso
el a é quase i r r el ev ant e). Fal ar na sua pr ópr i a l íngua, par a Ni etzsche,
er a assum i r sua f i l osof i a t r ág i ca, er a se r econhecer com o um f i l ósof o
t r ági co gr ego em pl ena Al em anha do sécul o XIX. Er a r econhecer ,
com o os t r ági cos gr egos, que a v i da não t em nenhum sent i do m ai or
al ém de enfr ent ar o conf l i t o que el a é, e, quem sabe, ser l em br ado
pel a cor agem e di sposi ção a se el ev ar aci m a do banal . E a par ti r daí
f al ar do m undo e par a o m undo. I sso é fi l osof ar com o m ar t el o, com o
di zi a nosso r om ânt i co.
M ui t as v ezes, em f i l osofi a, assum i r a pr ópr i a l í ngua é se
r econhecer num a det er m i n ada concepção de m undo (no caso de
Ni et zsche, e do m eu, na concepção t r ági ca gr ega), e assum i r seu l ugar
par t i cul ar nel a. Não se t r at a de r ei nv ent ar a r oda, m as di zer
l i v r em ente o que se quer di zer par a seus sem el hant es acer ca do
m undo, sem pr e a par ti r da t r adi ção de pensam ent o à qual um
pensador se f i l i a. E par a f azer i sso é essenci al que se t enha al gum
r eper t ór i o f i l osófi co. E cor agem par a fal ar em pr i m ei r a pessoa.
Quem nunca l eu nada não t em opi ni ão sól i da sobr e nada, apenas
achi sm o, um a opi ni ão v azi a, com o di zi a Pl at ão, quando fazi a a
di f er ença ent r e ter opi ni ão (doxa) e conhecer al go (epi steme).
Conhecer dem anda tr abal ho , conv er sar com out r as pessoas e l er
al guns l i v r os. Na m ai or i a d os casos, conv er sar com m or t os. Um a
opi ni ão v azi a, qual quer bêbado tem .
Fal ar a l í ngua dos outr os f az par t e de um senti m ent o m ai s
am pl o, que é, de cer ta f or m a, v i v er um a v i da que não é a sua. M ui tas
v ezes t em os a sensação de que est am os v i v endo a v i da dos out r os e
não a nossa. Essa sensação apar ece quando senti m os que f azem os o
que os outr os quer em e não o que nós quer em os. Esses “ out r os”
podem ser o que cham am os de soci edade, pai s, f am í l i a, m ar i do ou
m ul her , f i l hos, o m er cado, o Est ado, “ Deus” , o m undo. Pouco
i m por t a aqui se é o m undo o u a soci edade esse outr o; o que i m por t a é
a sensação de que não est am os f azendo o que v er dadei r am ente
quer em os. E por que não consegui m os f azer o que quer em os?
Por m i l r azões, en tr e el as por que nunca sabem os ao cer t o
o que quer em os. E quem di sser que sabe, o di z por que é m enti r oso,
i m atur o ou i gnor ant e. T al v ez por que não ex i st a de f at o esse “ eu
v er dadei r o” que quer f azer o que el e quer v er dadei r am ente f azer . Não
v ou ent r ar aqui em quest ões do ti po “ esse eu é m eu cér ebr o ou m i nha
al m a i m or t al ou o r esul t ado de her ança bi ol ógi ca e soci al em
i nt er ação?” . Ou “ sou um a const r ução soci al ?” . Não por que essas
quest ões não i m por tem ; el as i m por tam , m as por que não é i sso que
quer o di scuti r agor a. Enfi m , ex i sta ou não esse eu v er dadei r o, o
sent i m ento de f al si dade consi go m esm o, ou de fazer o que os out r os
quer em que façam os, é a m ai s pur a r eal i dade cont em por ânea, e fazer
f i l osofi a em l í ngua pr ópr i a passa por ser capaz de r om per , de cer t a
f or m a, com essa sensação, que m ui t as v ezes se apr esenta à
consci ênci a e ao afet o de quem a tem , com o um a espéci e de
escr av i dão. A fr ase que v em à nossa cabeça é “ sou um escr av o do
m undo e não sou l i v r e” . A per gunta é: posso escapar di sso? Acho que
em al gum a m edi da si m . Vam os v er .
M as antes de v er i fi car essa sensação, que m e par ece
v er dadei r a, i ndependent em ent e de ser possí v el de f ato ou não di zer
de onde el a v em , ex i st em o utr os m ot i v os par a v i v er m os um a v i da
que não sent i m os que sej a a nossa. Um desses m ot i v os par a não
consegui r m os v i v er a nossa pr ópr i a v i da pode ser m ai s pr osai co e
banal : não ter m os gr ana e ser m os obr i gados a ser m ot oboy , e
pr onto. Ou t r abal har em tel em ar k et i ng. Est á na m oda gent e boni t i nha
f al ar que os m ai s j ov ens est ão m udando seus v al or es par a com o
t r abal ho. Bobagem : j ov ens com gr ana podem , ai nda bem , escol her o
que fazem . É só i sso. E com o t udo hoj e v i r a um st at ement (um a
af i r m ação “ de v al or ” ), fi ca boni t i nho na fi t a posar de “ nov a
consci ênci a” na r el ação com o t r abal ho. Não ex i st e nov a consci ênci a
com o tr abal ho; ex i st e gent e que pode escol her o que f az por que tem
gr ana, e ex i st em pr of i ssi onai s que pr egam em em pr esas (e ganham
um a put a gr ana com i sso) que há, si m , um a nov a consci ênci a par a
f azer os coi tados esm agados pel o cot i di ano cor por at i v o acr edi tar em
que consegui r ão um di a escol her o pr ópr i o t r abal ho – di fi ci l m ente
consegui r ão. Esses gur us cor por ati v os são uns m er cador es de
esper ança bar ata.
Val e di zer , v ocê pode ser um a pessoa super cor aj osa e
m andar tudo par a aquel e l ugar e f azer o que quer , m as é quase cer t o
que o est ôm ago v ai f al ar m ai s al t o, na m ai or i a das pessoas nor m ai s.
Às v ezes, ser nor m al é ser banal . M as, se v ocê t i v er gr ana, pode
v encer m ai s f aci l m ent e essa escr av i dão ao est ôm ago.
Vol t em os à v er dad e da sensação de que v i v em os um a v i da
que não é a nossa. Vej am os essa sensação num sent i do m ai s pr ofundo
do que apenas a quest ão da gr ana. Par a f azer m os i sso, ter em os de
enf r ent ar a quest ão do Rom anti sm o, par a al ém da i dei a si m pl i st a de
que Rom anti sm o si gni f i ca som ent e am or r om ânt i co.
O Rom ant i sm o f oi um m ov i m ent o l i t er ár i o, fi l osóf i co e
r el i gi oso que nasceu na r egi ão m ai s t ar de cham ada Al em anha, em
m eados do sécul o XVI I I. Esse m ov i m ent o, apesar de estar associ ado
no i m agi nár i o das pessoas à i dei a de am or entr e um hom em e um a
m ul her , e aos sof r i m ent os decor r ent es desse am or (com o no
r om ance de Goet he Os sof ri ment os do j ovem Wert her), f oi m ui t o m ai s
que i sso. Par a ent ender m os o que o Ni etzsche t i nha na cabeça quando
f al ou sobr e a i m por tânci a de fazer f i l osofi a em pr i m ei r a pessoa, é
necessár i o saber m os o que f oi o Rom ant i sm o de f ato, por que a
af i r m ação de f azer f i l osof i a em pr i m ei r a pessoa é um a af i r m ação
r om ânt i ca. É o que v er em os a segui r .
CAPÍTULO 4

Romantismo como revolta contra a vida roubada: o mal-estar com a


modernidade

O que é Rom ant i sm o, afi nal ? Com o eu j á di sse, f oi um m ov i m ent o


l i ter ár i o e f i l osóf i co que nasceu na Al em anha em m eados do sécul o
XVI II e v ar r eu a Eur opa e as Am ér i cas. O Rom ant i sm o é um gr ande
l am ent o com a m oder ni zação e seus ef ei t os i ndesej áv ei s. Quai s
ef ei tos são esses?
A f or m a m ai s f áci l de descr ev er esse sent i m ent o é
l em br ar m os quando nos senti m os um m er o núm er o num a cadei a
pr odut i v a, ou quando nos senti m os um a peça genér i ca nessa m esm a
cadei a. Já sent i u i sso? Se não, é por que v ocê é um daquel es
pr i v i l egi ados, com o eu, que t r abal ham , a m ai or par t e do t em po, em
al go cr i at i v o e que faz sent i d o par a v ocê. A m ai or i a só ganha di nhei r o
par a sobr ev i v er . Ganhar di nhei r o t am bém pode ser um a ati v i dade
cr i ati v a, m as não é esse o caso par a a m ai or i a das pessoas.
O m undo m oder no bur guês em que v i v em os é um l ugar
pautado pel a l ógi ca da ef i cáci a em que t odo m undo é m edi do pel o seu
v al or “ i nst r um ent al ” , ou di t o de out r a f or m a, pel o seu v al or “ de
uso” . Você v al e pel o que f az f unci onar nest e m undo. I dosos hoj e não
v al em nada, apesar de di zer em o cont r ár i o. Fi cam br i ncando com
com putador es e Facebook par a par ecer par t e deste m undo. Cl ar o, os
i dosos com gr ana t êm seu l ugar na cadei a de consum i dor es de bens
de v al or . Ant es, quando os i dosos er am r ar os, v al i am m ai s; hoj e, que
são m ui t os, seu v al or est á i nf l aci onado, al ém do fat o de que, com o
av anço das t ecnol ogi as de i nfor m ação, que el es desconhecem em
gr ande par te, os i dosos dei x ar am de nar r ar a v i da, com o di zi a o
f i l ósofo al em ão Wal t er Benj am i n (sécul o XX). Nar r ar a v i da si gni f i ca
aj udar os m ai s j ov ens a com pr eender a v i da del es a par ti r da
ex per i ênci a acum ul ada das ger ações. M as hoj e ger ação é coi sa da
publ i ci dade e suas l et r as: X , Y e Z. O r esul t ado é que os i dosos, na
m el hor das hi pót eses, acabar am v i r ando um “ m er cado de ser v i ços
par a i dosos” , e est ão à m ar gem da soci edade pr odut i v a. Sor t e de
quem ganha com i sso.
Fi cou chocado com o que eu di sse aci m a? Si nto m ui to. É
m ei o fei o m esm o, m as o que f i z f oi um a anál i se i nstr um ental do
i doso em nosso m undo cont em por âneo. Um a anál i se com o essa
desnuda o que um a pessoa “ v al e” par a a cadei a pr oduti v a de bens, e
um i doso, na m ai or i a dos casos, não v al e nada. I m agi no que di ante
di sso v ocê er guer á a v oz, quase t r em endo, di zendo que sua av ó é
f undam ent al par a v ocê. Sei que v ocê am a sua av ó, m as a m ai or i a de
nós est á per di da ent r e as obr i gações de sobr ev i v ênci a e a cul pa por
r econhecer , às v ezes com do r , às v ezes com m enos dor , que a av ó
f i cou par a t r ás.
Out r o ex em pl o f áci l di sso é a desv al or i zação da
m at er ni dade. Ser m ãe não paga sal ár i o; l ogo, pouco v al e. Não é à t oa
que as m ul her es em anci padas não quer em ser m ães de m ui t os fi l hos
por que pr ef er em t er um a i nser ção m ai or na cadei a pr odut i v a de bens.
O f at o m ai s pr ofu ndo dessa quest ão das m ães é que, apesar
da i m por t ânci a da ger ação de f i l hos, a sensação de que a m at er ni dade
pode ser v i st a com o i m pr odut i v a (ai nda que as m ul her es não
confessem esse fat o escondi do) é ai nda m ui t o dol or i da par a m ul her es
em anci padas. A soci edade cont em por ânea av ança à m edi da que el a
abr e espaço e am pl i a a v i da na sua di m ensão de i nst r um ent o de
pr odução de bens e ser v i ços. T em um l ado bom ni sso, que são os
ganhos em enr i queci m ent o da v i da m at er i al par a a m ai or i a das
pessoas. O m undo nunca foi t ão r i co com o desde o sécul o XVI I I. M as
t udo tem um l ado som br i o. É nesse l ado som br i o que est ão o
Rom ant i sm o e o sent i m ent o de que não podem os pensar na nossa
pr ópr i a l í ngua: por que nossa l íngua pode com pl i car nossa v i da na
cadei a “ of i ci al ” de pr odução de bens. Posso não ser v i r par a nada
sendo quem eu sou ou fal ando o que quer o fal ar . Essa cadei a
pr odut i v a pode ser um a em pr esa ou um a uni v er si dade, m esm o que
est a úl t i m a sej a o l ugar con tem por âneo por ex cel ênci a da pr odução
quase i r r el ev ant e. Ou pode ser sua fam í l i a. Fam í l i as m oder nas
t ol er am pouco el em ent os i m pr odut i v os que f unci onam com o m al a
sem r odi nhas no cot i di ano.
Sendo assi m , a v i da encai x ada na soci edade i nst r um ent al
t em suas v antagens e desv an tagens. Um a das v antagens é o pr ópr i o
sent i m ento de que v ocê é um ser pr oduti v o chei o de possi bi l i dades
na v i da. Um a das desv ant agens é a sensação de que al go nos é r oubado
à m edi da que pensam os só no sucesso m ater i al e esquecem os que
al go de nós “ não pensa com ef i cáci a” o tem po t odo e, se o f i zer ,
enl ouquecem os. Pr est e atenção na segui nte si t uação que ser v e com o
si nopse par a o dr am a r om ânt i co di ante da soci edade do sucesso e da
ef i cáci a em que todos v i v em os – m enos os desgr açados em ger al .
I m agi ne que v ocê t enha chegado aos ci nquent a anos m ui t o
bem de v i da. Que v ocê tenha saúde, sex o à v ont ade, gr ana e um a puta
casa. Agor a i m agi ne que v ocê acor da no m ei o da m adr ugada depoi s
de um pesadel o e se debat e na cam a. Ol ha ao r edor e est á só, por que
v i v e só. Suas opções ao l ongo dos anos f or am sem pr e em f av or das
gar ant i as pr of i ssi onai s. I sso “ pagou bem ” , m as, às v ezes, com o
agor a, às t r ês da m anhã, v ocê se sente m i ser av el m ent e só. T em
f i l hos, m as nunca os v ê por que el es t am bém estão ocupados com a
v i da del es. O espect r o da so l i dão do v el ho o at or m enta. O cor po, j á
não t ão j ov em , com eça a dar si nai s, m ostr ando que el e é seu dono e
não v ocê o dono del e. Você se l ev ant a, anda pel a enor m e casa v azi a e
se per gunt a: o que eu f i z da m i nha v i da? Onde est ão m eus v í ncul os
af et i v os dur adour os? Ser á que v ocê os di ssol v eu no sucesso
pr ofi ssi onal e no desej o nar císi co de só pensar em si m esm o?
Lam ento di zer , m as v ocê est á em m ei o à cr i se r om ânti ca
quando al go assi m l he acont ece. I sso pode despont ar em m ei o ao
t r ânsi to ou em m ei o a um fer i adão. Pel o m enos, sai ba que v ocê não
est á sozi nho nessa m i sér i a m oder na.
Esse é o m al - est ar com a m oder ni dade que car act er i za o
Rom ant i sm o. Bem - v i ndo à sua casa.
A v i da r oubada é aqui l o que v ocê pr oj et a com o sendo t udo
o que per deu quando est av a ocupado sendo obj et i v o e ef i caz. M as não
adi ant a pôr a cul pa nos outr o s; v ocê bem que tev e al guns gozos nesse
pr ocesso. Conf esse com o gozou enquant o m el hor av a de v i da. Não
f aça com o esses m i m ados que r ecl am am de t udo. Assum a seu papel .
Ai nda assi m , o senti m ent o de m al - est ar é v er dadei r o: v ocê não é um
m ent i r oso por que se sent e di v i di do ent r e a f el i ci dade com o sucesso
m oder no e o senti m ent o de que al go se per deu ni sso. A per gunta que
f i ca é: com o enf r ent ar esse m al - est ar ? Podem os f azer al go par a que,
est ando em m ei o a tudo i sso, consi gam os r esgat ar al gum a por ção
daqui l o que par ece per di do e que é nosso?
Penso que em al gum a m edi da si m , podem os, e os
capí t ul os r estantes deste l i v r o são dedi cados a essa i dei a. Fal ar em
sua pr ópr i a l í ngua é, ant es de t udo, t er cor agem de enfr ent ar os
pr obl em as que a f i l osof i a nos t r az, sem m edo de ser m os obr i gados a
pensar em coi sas de que não gost am os. É desi st i r de agr adar quando
se pensa. É ser (quase) i ndi f er ente a quem t em qual quer ex pect ati v a
sobr e quem v ocê é e o que v ocê pensa. É pensar sem quer er constr ui r
“ um m undo m el hor ” . É pensar de m odo “ ex t r am or al ” , com o di zi a
Ni et zsche. É não quer er “ f azer o bem ” enquant o pensam os. Em
sí nt ese, é pensar acom pan hado pel o que cham o de nosso cor o
par t i cul ar de dem ôni os, e por i sso v am os com eçar por el es. O m al -
est ar que i sso pode t r azer é par te do pr ocesso, si nt o m ui t o.
PARTEII

Gr andes t ópi cos da f i l osof i a ao l ongo do t em po


CAPÍTULO 5

Nosso coro part icular de demônios

O que é um cor o par t i cul ar de dem ôni os? É um a m et áfor a par a f al ar


de cer t as coi sas que nos at or m entam há m i l êni os e a cada di a de
nosso cot i di ano. A f i l osofi a, em sua or i gem gr ega, sur ge par a
“ concor r er ” com as r el i gi ões e seus m i t os na t ent at i v a de r esponder
a esse cor o de dem ôni os. Rel i gi ões e m i tos ex i stem , ent r e outr as
coi sas, par a ex pl i car esse cor o de dem ôni os. Você pode m e per guntar
por que, af i nal , eu uso essa m etáf or a cor o de dem ôni os aqui . Vou
ex pl i car .
A i dei a de cor o de dem ôni os v em do cr i st i ani sm o anti go,
quando os m onges i am par a o deser to (sécul os I I , I II , I V) e buscav am
enf r ent ar t odos os t i pos de t ent ação. Essas t entações, em ger al
associ adas a m ul her es, r i qu ezas e poder , v i nham com o v i sões e
v ozes bat i zadas de cor o de dem ôni os. Ao usar essa m et áfor a, quer o
t r azer par a a nossa conv er sa seu sent i do de ansi edade e r i sco. Ex i stem
quest ões que nos ator m entam , e a hi st ór i a da fi l osof i a é um el enco
dessas questões. Som am - se a essas per guntas as r espost as que
m ui t os f i l ósofos e af i ns pr oduzi r am ao l ongo da v i da.
Este capí tul o é um a t entat i v a de el encar al gum as del as e
al gum as de suas r espost as, sem buscar esgotar nenhum a. Lem br e
sem pr e que não tenho nen hum a i nt enção de r esol v er t odas as
quest ões f i l osóf i cas nest e m anual ; só gente chat a t em i nt enções com o
essa. Nos dem ai s capít ul os, m ai s t em áti cos, segui ndo gr andes ár eas
da f i l osofi a, acabar ei r et om ando al guns desses dem ôni os. Neste
capí t ul o, m i nha i nt enção é dei x ar v ocê um pouco at or m ent ado com
esse cor o i nf er nal . Vej a- o com o um a espéci e de “ aqueci m ent o” par a
o que v em depoi s. Vam os l á. Pr oponho dez pequenos dem ôni os par a
aquecer sua f i l osof i a em l í ngua pr ópr i a. Só v al e a pena f i l osofar
sobr e o que nos t i r a o sono. Abai x o, m ando dez per guntas par a gente
cor aj osa que det est a aut oaj uda.

1. O que est amos f azendo aqui no mundo?

Ni nguém tem a m í ni m a i dei a. Os m ai s r el i gi osos e


m et afí si cos, que acr edi tam em um m undo al ém da m atér i a, gent e
com o Pl at ão (que v i v eu ent r e os sécul os I V e V ant es de Cr i sto), Sant o
Agost i nho (que v i v eu ent r e os sécul os I V e V depoi s de Cr i st o) e,
t al v ez, sua av ó, ent endem que Deus ou al go si m i l ar sust enta tudo o
que ex i st e, e, por tant o, t em um a r esposta. Par a essas pessoas,
est am os aqui por que esses ser es super i or es e di v i nos t êm al gum a
f or m a de pl ano ou pr oj eto par a nós e par a o m undo. Cl ar o, nós que
est am os pr esos nesse cot i di ano, às v ezes, i nf er nal , t em os di fi cul dade
de entender qual ser i a esse pl ano m ar av i l hoso, m as aquel es que têm
f é ent endem que tudo dar á cer to no f i nal .
Ex i st em out r os m et af ísi cos (gent e que cr ê neste m undo
i m ater i al de al gum a f or m a d i v i no) que são m ai s est r anhos. Gnósti cos
ou m ani queí st as (gent e que v i v eu ent r e os sécul os I I e V depoi s de
Cr i st o), cr i st ãos bem esqui si tos, acr edi t av am que o m undo f oi cr i ado
por um deus m au e por i sso nossa v i da é um sof r i m ent o
i nt er m i náv el . Um a das pr ov as de que esse deus cr i ador er a m au par a
essa gent e é que os ser es v i v os t êm de com er uns aos outr os par a
v i v er ; por t ant o, a m oeda desse deus m au (cham ado por m ui t os de
dem i ur go, que nada t i nha a v er com Jesus, que v ei o aqui nos av i sar
da fr i a em que est am os) é nossa dor , nosso desej o e nossa agoni a.
Essa m et af ísi ca do m al não aj uda m ui to a r esponder por que est am os
no m undo, a não ser que a r espost a sej a per v er sa (Sade, no sécul o
XVI II , t am bém pensav a assi m ) e cr uel .
Já par a f i l ósof os com o Ni et zsche, Sar t r e e Cam us, estes
doi s úl t i m os do sécul o XX, ent r e out r os ant i m et af ísi cos, e par a gente
que só “ cr ê” na ci ênci a, nada nos cr i ou, e, por t ant o, est am os aqui
par a nada. Gent e assi m pr esu m e que estam os aqui por que nosso pai
gozou na nossa m ãe. Já par a os m etaf í si cos, nosso pai gozou na nossa
m ãe por al gum a r azão super i or à v ontade de el es t r ansar em . Espí r i tas
em ger al est ão no gr upo que acr edi ta hav er um a r azão m ai or par a a
gozada do nosso pai . Sei que soa estr anho f azer fi l osof i a em ci m a de
um or gasm o, m as, se v ocê qui ser pensar fi l osof i cam ente par a v al er ,
t em de ser capaz de ol har coi sas óbv i as com o estando car r egadas de
um si gni fi cado que nos escapa à pr i m ei r a v i st a. I sso é que é pensar
“ f or a do senso com um ” , com o se di z em f i l osof i a.
Pensar no por que estam os aqui nos l ev a a pensar nas
consequênci as da r espost a q ue dam os a essa per gunta. Por ex em pl o,
se penso com o um m etaf í si co nor m al (não com o os gnósti cos
pessi m i stas), ol ho par a o so fr i m ent o com o al go a ser ex pl i cado pel a
v ontade de um deus bom e seu pr oj et o. Se penso com o os m et af ísi cos
pessi m i stas, ol ho par a o sof r i m ent o com o al go que pr ov a que Deus é
m au. Se penso com o os m at er i al i stas anti m et afí si cos que não cr eem
em nada di v i no, ol ho par a o sof r i m ento com o al go que não t em um a
ex pl i cação m ai or . Essa posi ção é r ar a na hum ani dade e é v i st a com o
t r ági ca por que i m pl i ca que nossa v i da não t em um sent i do m ai or . No
m undo m oder no, el a é um pouco m ai s com um dev i do ao av anço da
ci ênci a, m as ai nda assi m é m ai s r ar a por que par ece ser m ui t o
dol or i da.

2. Exist e vida após a mort e?

Eu acho que não, m as não há com o ter cer t eza. O t em a,


par a al guns, é de v i da ou m or t e. Afor a a i r oni a, essa é um a quest ão
que at or m ent a m ui t os por que par a el es, se não ex i st i r v i da após a
m or t e, não há por que r espei t ar a m or al , um a v ez que m or r eu,
acabou. Logo, t udo é per m i t i do. Por out r o l ado, se ex i sti r v i da após a
m or t e, pensam el es, podem os ser j ul gados por Deus ou r eencar nar
num a si t uação m ui t o r ui m , por causa das m al dades que fi zem os
nest a v i da. Nor m al m ente, quem cr ê em v i da após a m or t e o f az com o
f or m a de al í v i o da angúst i a da ani qui l ação absol ut a que a m or te
par ece si gni f i car .
Eu gost ar i a de apr esent ar duas possi bi l i dades sobr e o
assunt o que podem par ecer pouco com uns. A pr i m ei r a é que pode
hav er , si m , v i da após a m or t e e ser péssi m a. Ni nguém pensa nessa
possi bi l i dade. E não por que v ocê se m atou, com o no k ar deci sm o, e,
por tant o, v i v er á num l i m b o de al m as penadas sui ci das, m as si m
por que a v i da eter na ser á com o um a pr i são da qual nem m or r endo
v ocê escapa, nem se m at ando – cl ar o, v ocê j á m or r eu e não pode
m or r er de nov o! Dependendo do que v ocê t er á de f azer l á ou com
quem conv i v er á, a v i da eter na pode ser um a agoni a sem f i m . Nunca
ent endi por que as pessoas pensam que v i v er um a v i da et er na é
sem pr e um a boa i dei a. Per gunt em aos v am pi r os.
Out r a possi bi l i dade em que os am ant es da v i da eter na não
pensam , é que a m or t e pode ser um a l i ber t ação da consci ênci a. O
r epouso no pó, com o pensam aut or es do ti po Em i l Ci or an e Phi l i p
Rot h, am bos do sécul o XX, pode ser um descanso da consci ênci a,
não? Um a espéci e de r edenção pel a i nconsci ênci a na pedr a. Al gum as
f or m as de espi r i t ual i dade or i ental ar r i scam al go nessa l i nha,
at i ngí v el em pr ocessos m edi t at i v os que am pl i am nossa consci ênci a
da efem er i dade de t udo o que ex i st e à nossa v ol ta.
M as a m ai or i a de nós não consi der a i sso um a boa i dei a
por que tem e a ani qui l ação absol ut a. Ent endo: som os ser es
desesper ados m esm o.

3. Se Deus não exist ir, t udo é permit ido?

Decor r ent e da quest ão l ev ant ada aci m a, podem os l ev ant ar


est a: se Deus não ex i st e, tudo é per m i t i do? Essa per gunta f am osa foi
f ei ta pel o per sonagem I v an Kar am ázov , no r om ance Os i rmãos
Karamázov, de Fi ódor Dostoi év sk i , no sécul o XI X. Essa quest ão
decor r e da anter i or por que a i nex i stênci a de Deus supõe que, um a v ez
t endo escapado da l ei dos hom ens, um a pessoa est ar á segur a de que
não enfr entar á nenhum out r o j ui z absol ut o no pós- m or t e. Por i sso, a
i m or t al i dade da al m a associ ada à ex i st ênci a de Deus (ou al go si m i l ar )
nos l ev ar i a à sust ent ação de um j ul gam ent o m or al et er no.
Nem t odo m undo acei t a que se Deus não ex i s t i r , tudo sej a
per m i t i do, por que entende que som os ser es m or ai s al ém de suj ei t os
à l ei . H av er i a em nós a capaci dade de i nt r oj etar nor m as que nos
t or nar i am por t ador es de um a consci ênci a m or al . I sso depender i a dos
v al or es f am i l i ar es e soci ai s. Outr os v ão m ai s l onge e afi r m am que
pessoas que pr eci sam de u m Deus par a segur ar seus i m pul sos
i m or ai s ou v i ol ent os são na v er dade i di ot as m or ai s, por que não são
capazes de ati ngi r a m ai or i dade m or al , pr oduto de um a v i da r aci onal
e or gani zada. Gent e com o I m m anuel Kant (sécul o XVII I ), pensav a
assi m , ai nda que el e não fosse ateu. Secul ar es e ateus de t odos os
t i pos pensam assi m , m ui t as v ezes.
Concor do, em gr ande m edi da, que pessoas não cr ent es
podem ter com por t am ento s m or ai s const r uti v os, i ncl usi v e pel o
m edo e pel a v er gonha de não tê- l os. Não acho que “ v al or es
r aci onai s” nos i m peçam de agi r de m odo i m or al m ai s do que a
v er gonha e o m edo. Apost o m ai s nel es do que na r azão. Não concor do
com Kant nessa. E tam bém penso que r el i gi osos de t odos os m at i zes
podem agi r de m odo i m or al , i ncl usi v e, m ui tas v ezes, por que cr eem
em al gum a f or m a agr essi v a de t eol ogi a, com o nos casos dos
t er r or i stas i sl âm i cos. Por t ant o, apesar de r econhecer que as r el i gi ões
t êm al gum a pr ev al ênci a em com por t am entos m or ai s, ent endo que
i sso acont ece m ai s por causa da pr essão que o gr upo r el i gi oso tem
sobr e o i ndi v í duo do que pel o f at o de a r el i gi ão “ f azer de nós pessoas
m el hor es” . Já se m at ou m ui t o em nom e de Jesus, que par ece ser um
car a l egal .
Penso que a psi col ogi a com por tam ent al da m or al ai nda
est á engati nhando e que m ui to do que f al am os sobr e nós m esm os,
em ter m os de m or al , é m ai s f r uto da busca de um a aut oper cepção
posi t i v a do que de um a v er dadei r a “ bel eza” m or al que ser i a nossa
car act er íst i ca com o ser es h um anos. Gostam os de pensar em nós
m esm os com o car as l egai s e tem os di f i cul dade de nos av al i ar m os
m or al m ent e, com o i ndi v í duos e com o espéci e. Por out r o l ado, um a
aut oav al i ação negati v a i ndi v i dual ou col et i v a pode ser fr ut o de
al gum a concepção bastant e pessi m i st a quant o a si m esm o ou quant o
à hum ani dade, e ent ão di zem os que som os “ m aus” ai nda que i sso
não possa ser “ pr ov ado ci ent i fi cam ent e” . T udo bem que gost am os de
m at ar , e m at ar é v i st o com o um ato i m or al . M as m at ar pode ser
i m por t ant e e necessár i o em al gum as si tuações (ai nda que Jesus não
apr ov e); o dar w i ni sm o m e d ar i a r azão aqui .
Entr et ant o, a per gunt a de Dostoi év sk i não é se pessoas
cr ent es ou não cr ent es são m ai s ou m enos m or ai s (se não m ai s ou
m enos “ boas” ou “ r ui ns” ). Essa quest ão ser i a, de al gum a for m a,
m enor par a Dost oi év sk i . Sua per gunta é m ai s pr of unda. Se Deus não
ex i st e, t udo é per m i ti do si gni f i ca que se v ocê f or bom na v i da e sai r
per dendo, na som a t ot al do cosm os, v ocê f ez um a m á escol ha,
por que se v ocê fosse m au, não f ar i a nenhum a di f er ença no f i nal das
contas, j á que não hav er i a fundam ent o absol ut o par a o bem . Essa
per gunt a é um a per gunta ni i l i st a, ou sej a, o per sonagem que a f az,
I v an Kar am ázov , é tam bém o que ar qui t et a a m or te do pai no
r om ance Os i rmãos Karamázov; por tant o, é o m esm o que pr ega o
cr edo segundo o qual não ex i st e na v i da m ai s do que át om os – l ogo,
est am os sozi nhos nesse enor m e bur aco que é o uni v er so.
Estam os, aqui , di al ogando com o “ dem ôni o” do ni i l i sm o
e sua negação de qual quer sent i do m ai or par a as coi sas, al ém do que
nós i nv entam os. Ser í am os capazes de pr oduzi r sent i do por nós
m esm os, assi m com o podem os constr ui r pont es? Essa per gunt a é
i nf er nal , m as a dei x em os par a depoi s. É um a das per gunt as m ai s
r ecor r ent es no m undo m oder no, ai nda que no si l ênci o e na sol i dão
de um a noi t e i nsone. Eu, pessoal m ent e, acho que Dost oi év sk i tem
r azão, em bor a não par t i l he de sua f é em Deus. Por t ant o, suspei to que
haj a al go de ni i l i sta em m i m . E em v ocê?

4. Exist e evolução moral na humanidade?

Eu acho que não. M as a per gunt a é cont r ov er sa e posso


est ar er r ado. Antes de tudo, por que não dá par a t er cer t eza de f at o.
Não há com o col ocar a hum ani dade num l abor at ór i o de anál i se de
com por tam ent o. Não dá par a f azer i sso com um só hom em , quant o
m ai s com a hum ani dade. M as, m esm o sem cer teza – o bom é
sust ent ar um a posi ção sem cer t eza al gum a, al i ás, com o o fazem os
cada v ez que r espondem os par a nossos fi l hos coi sas com o “ v al e a
pena ser honesto na v i da? – , acho que não há ev ol ução m or al da
hum ani dade e v ou di zer o por quê di sso.
Cr ei o que ex i st e, si m , um a ev ol ução t écni ca na
hum ani dade e i sso, às v ezes, aj uda o hom em a se com por m el hor
com seus sem el hant es, e, às v ezes, aj uda o hom em a destr ui r seus
sem el hant es com m ai s efi cáci a – acho que ser i a desnecessár i o
di scut i r a obv i edade desse f at o aqui , não? Um detal he i nt er essant e de
obser v ar é que soci edades que se desenv ol v em em com ér ci o e técni ca
t endem a f i car r el at i v i stas e a acom odar v i sões m or ai s cont r adi tór i as
com o “ t udo bem o deus que v ocê ador a, cont anto que pague a fat ur a
do car tão Vi sa, ok ?” . Gente q ue v i aj a m ui to f i ca m ai s r el at i v i st a pel o
cosm opol i t i sm o, que é a con sequênci a nor m al de quem v i aj a m ui t o.
M as o que é “ r el ati v i sm o” ? Rel at i v i sm o é suspei tar que não sabem os
ao cer t o o que sej a cer t o e er r ado, e, por tant o, t enham os di fi cul dade
em di zer com cer t eza se estam os “ i ndo na di r eção m or al cer t a” . Par a
di zer que ex i ste ev ol ução m or al na hum ani dade ser i a necessár i o
t er m os um cr i tér i o absol ut o, uni v er sal e segur o do que é cer to e do
que é er r ado. E i sso não ex i st e. Chegam os a pensar , pessoas secul ar es
e não r el i gi osas com o nós, assi m com o é a m ai or i a de quem escr ev e,
pensa e publ i ca no m undo, que quem supõe a ex i st ênci a de tal
cr i t ér i o sej a um f anát i co r el i gi oso.
M as al guém pode di zer que a ev ol ução na hum ani dade sej a
chegar a essa soci edade da “ l i ber dade de escol ha” que o Oci dent e
pr oduzi u. Ao m esm o tem po, al guns chat os gr i t ar ão que o capi t al
dest r ói t udo, e que essa l i ber dade de escol ha é f al sa. A esses coi t ados,
desej am os a Cor ei a do Nor t e com o ender eço. Um ar gum ent o m ai s
sér i o é que essa r i queza que sust ent a nossas soci edades l i ber ai s de
m er cado estej a a fazer de t odos nós uns m i m adi nhos e f r oux os,
i ncapazes de sustent ar v í ncul os m ai s l ongos do que a de um
consum i dor com o i Food. I ncapazes de ter f i l hos (os índi ces de
f er t i l i dade das soci edades r i cas despencam a cada di a), supondo que
não t er f i l hos sej a essenci al par a usuf r ui r um a v i da m el hor (e, pi or ,
esse ar gum ent o pode ser f or t e na v er dade), cam i nham os,
paul at i nam ente, par a o est our o da pr ev i dênci a e o env el heci m ent o
m ór bi do da hum ani dade. Onde est á a ev ol ução m or al aí ? Ai nda que
bobi nhos achem que av ançam os por que el es j ur am f i del i dade à
r úcul a e j ur am am or às chi nchi l as, a concl usão é que não é possív el
deduzi r ev ol ução m or al de um a coi sa que nós, i ncl usi v e eu,
consi der am os m or al m ent e boa, com o a l i ber dade i ndi v i dual das
soci edades l i ber ai s de m er cado. Nossa l i ber dade pode v i r a ser nosso
dest i no f at al , afogados em l ux os e di r ei t os de gent e cov ar de e
m i m ada.

5. Dinheiro compra amor verdadeiro?

Com o todos sabem (ou dev i am saber ), essa per gunt a é


baseada na afi r m ação do dr am atur go e j or nal i st a Nel son Rodr i gues:
“ Di nhei r o com pr a tudo, at é am or v er dadei r o” .
Ex per i m ente f azer essa per gunt a num j antar i nt el i gente
com seus am i gos psi canal i st as, j or nal i st as e ar qui t et os, t odos m ui t o
i nt el i gentes. O gr au de hi pocr i si a del es ser á pr opor ci onal ao m odo
enf át i co com o negar ão essa m áx i m a r odr i gui ana. Nel son Rodr i gues é
um dos pensador es br asi l ei r os m ai s consi st ent es e v er dadei r os.
Gente i ntel i gent e e bem r esol v i da cost um a tor cer o bi co par a essa
per gunt a, dem onst r ando que é m ov i da a v al or es super i or es à gr ana.
Nunca confi e em gent e que af i r m a ser gui ada por v al or es m ai or es que
di nhei r o. Quem di z que f az as coi sas por al go m ai or do que gr ana é
quem pensa só na gr ana, pod e apost ar . Nunca conf i e na bondade dos
bons.
Dei x ando de l ado os chatos e hi pócr i t as, pensem os no
assunt o a sér i o. Di zer que di nhei r o com pr a at é am or v er dadei r o quer
di zer que as condi ções m at er i ai s de um a deter m i nada si t uação podem
ger ar cer t os afet os pr of undos num a pessoa. O ex em pl o que sem pr e
dou é: um fi m de sem ana n a T oscana ou na Pr ai a Gr ande? Se v ocê
di sser que t ant o f az, m ando v ocê par a aquel e j ant ar i nt el i gent e com
psi canal i st as, j or nal i st as e ar qui tet os m enti r osos. O m edo de pensar
ni sso é tem er que ser ei “ m ater i al i st a dem ai s” e conf essar que t enho
um pr eço. T odo m undo t em um pr eço, m enos os que não v al em nada.
T al v ez v ocê sej a um m at er i al i st a, m as não por i sso. O am or dem anda
condi ções par a r espi r ar , assi m com o t udo o m ai s que é v i v o. Posso
m e sent i r um f i l ho da puta por que penso assi m , m as eu di r i a que a
v i da é que é fi l ha da put a por depender da l ei da gr av i dade e da l ei de
m er cado. Conf esso, ent ão, que acho que di nhei r o com pr a am or
v er dadei r o. Esse di nhei r o p ode ser m eu, e, por eu t er condi ções
m at er i ai s de v i da, “ com pr o ” o am or da m ul her que quer o que m e
am e, e com pr o o m eu pr ópr i o am or por el a, um a v ez que t endo
di nhei r o m e si nt o m el hor com as condi ções de v i da que pr oduzo
par a nós doi s. Quando di go “ com pr o o am or da m ul her que quer o
que m e am e” , eu não quer o di zer que f aço del a um a gar ota de
pr ogr am a (que, al i ás, são as m ul her es m ai s bar at as do m undo,
m esm o quando cust am 10 m i l r eai s a noi te! ), m as si m que com
m el hor es condi ções de v i da, nós doi s nos sent i m os m el hor por que
podem os desenv ol v er m ai s nossas potenci al i dades, só i sso. I sso é
m ui t o, se l ev ar m os em cont a a pr ecar i edade que r onda a v i da. E não
est ou f al ando da pr ecar i edade da condi ção hum ana de que fal av a
ant es, f al o da pr ecar i edade “ banal ” da v i da. Se o di nhei r o acaba, a
bel eza da v i da se v ai , por que a pobr eza t udo dest r ói .
Acho que as m eni nas são m ai s desafi adas pel o t em a. E
di go a r azão. No caso das m u l her es, penso, a si t uação é m ai s f áci l de
acont ecer e t al v ez el as sej am m ai s l ev adas a m enti r sobr e o assunt o.
Já car as que “ são l ev ados” par a a T oscana são poucos. No caso del es,
quem não se sent i r m al por “ pegar di nhei r o de m ul her ” (com o di zi a
m eu m est r e Nel son) é m au - car áter m esm o. No caso del as, “ ser
l ev ada par a a T oscana” pode ser sí m bol o de i nv est i m ent o af eti v o. No
caso do car a, “ ser l ev ado par a a T oscana” é sí m bol o de f r acasso par a
am bos. Vi da dur a essa, não? A s f em i ni stas, que não ent endem nada de
m ul her nem de hom em , não entender i am essa f r ase “ sí m bol o de
f r acasso par a am bos” . Par a el e, por que f r acassou em “ bancar ” um a
m ul her ; par a el a, por que f r acassou em ter um hom em “ capaz de
bancá- l a” , se el a assi m o qui ser . A v i da é dur a e sem m i ser i cór di a.
Por tanto, essa fr ase f al a de nossa dependênci a m at er i al
pr ofunda. M as não acho que dev em os nos env er gonhar di sso.
Dev em os nos env er gonhar d e quem m ente sobr e i sso.

6. A democracia é uma boa mesmo ou é um regime que junta quantidades


enormes de idiotas e as joga sobre você?
Fal ar da dem ocr aci a é di f í ci l por que el a é o gr ande dogm a
contem por âneo. Cr i t i cá- l a par ece di zer que v ocê é do m al . Bobagem .
A dem ocr aci a, ent r e os pi or es r egi m es, é o m enos pi or . Em m i l anos,
a dem ocr aci a t er á passado com o um v ent o, e nossa f é nel a t am bém .
Ver ão nossa f é na dem ocr aci a com o a f é dos ant i gos em seus r ei s
com o deuses.
Di to i sso, v ol tem os ao pr obl em a. A dem ocr aci a t em a
v antagem de f unci onar a par t i r da teor i a do poder l i m i t ado – que, em
si , é m ui t o m ai s i m por t ante do que a i dei a do v oto i ndi v i dual . Poder
l i m i t ado, i dei a cr i ada pel o f i l ósof o M ont esqui eu, que v i v eu ent r e os
sécul os XVI I e XVII I na Fr ança, si gni fi ca que nada, nem ni nguém ,
nem i nst i t ui ção al gum a dev e t er o poder tot al ou absol uto sobr e as
pessoas daquel e paí s. E por que não dev e ter ? Por que não som os de
confi ança.
Esse poder l i m i t ado é i m por t ante na dem ocr aci a m oder na
e se car act er i za pel a i dei a l i ber al de que nenhum sober ano o é
pl enam ent e. T odo m undo ador a a coi sa do v oto i ndi v i dual . Cl ar o, el e
é i m por t ant e na m edi da em que é um cr i t ér i o par a deci di r aquel es
que com por ão as i nst i t ui ções, que l i m i t am um a à outr a no poder que
t odas t êm , em par te. Assi m sendo, o v ot o pul v er i za na popul ação a
deci são de quem par ti ci pa da m áqui na do poder . E aqui v em a m i nha
per gunt a i nf er nal : ser á que o v ot o i ndi v i dual não dá poder aos
i di ot as, na m edi da em que os i di otas são sem pr e m ai or i a? Cl ar o que
dá. A r espost a é: si m , a dem ocr aci a é um si st em a que j oga sobr e nós
gr andes quanti dades de i di otas que deci dem por nós. Num a
dem ocr aci a nunca v encer em os a m ai or i a, de i di otas. Essa i dei a é de
Nel son Rodr i gues, em suas pr of undas r ef l ex ões pol í ti cas, di stante
das obv i edades que o dogm a dem ocr át i co nos i m põe.
A v i da é par adox al e não f az nenhum sent i do t otal (v ou
r epet i r i sso v ár i as v ezes par a v ocê ter em m ent e com o a i dei a cent r al
nest e l i v r o par a cor aj osos). Som os v í ti m as do enor m e núm er o de
i di ot as que ex i st em no m undo; r ui m com el es, pi or sem el es. A i dei a
de pul v er i zar as deci sões sobr e quem dev e m andar , m ai s a i dei a de
di v i di r aquel es que v ão m an dar , é o m el hor que consegui m os par a
l i dar com esse enor m e pr obl em a que é “ quem m anda e quem
obedece” . Ao m esm o t em po que a dem ocr aci a é “ l i nda” na di v i são do
pr ocesso do poder , el a é t er r í v el em suas quanti dades de i di ot as.
Lem br e que é possí v el ex i st i r poder l i m i t ado sem v ot o, o que, al i ás,
er a a i dei a de M ont esqui eu, que j am ai s poder i a conceber o poder f or a
das m ãos de quem sem pr e t ev e poder , a ar i stocr aci a. El e i m agi nav a
um a ar i st ocr aci a di v i di da en tr e si no ex er cíci o do poder .
Por tanto, r espon do, de nov o, à questão que col oquei
ant er i or m ent e: a dem ocr aci a j oga sobr e nós quanti dades enor m es de
i di ot as, que nos assol am co m suas i dei as cozi das na i gnor ânci a das
coi sas. Quem sabe, essa m esm a i gnor ânci a nos pr ot ej a da “ sabedor i a
dos m el hor es” , que nem sem pr e é t ão sábi a assi m . M as i sso é
conv er sa par a out r a hor a.

7. Mulher gost a de homem f raco e pobre?

Esta questão está pr óx i m a daquel a outr a sobr e di nhei r o


com pr ar ou não am or v er dadei r o. Est a, por ém , t oca m ai s as m eni nas.
A r esposta par a el a é: não, as m eni nas não gostam de hom ens fr acos e
pobr es. “ Fr acos e pobr es” , aqui , dev em ser com pr eendi dos num
sent i do m ai or que apenas u m papo sobr e di nhei r o e f or ça f í si ca,
apesar de di nhei r o e f or ça f í si ca si gni fi car em m ui t a coi sa.
As m eni nas não su por t am f r aquezas nos hom ens. Eu sei , e
v ocê t am bém sabe, que esse assunt o, m ul her , é um dos t em as sobr e
os quai s m ai s se m ent e nas úl t i m as décadas. Al i m entados pel a j usta
necessi dade de com bat er co i sas r ui ns com o hom ens que bat em em
m ul her es ou r ecusa de m ul her es em post os pr ofi ssi onai s por pur o e
si m pl es pr econcei t o, acabam os por el i m i nar do uni v er so de
ar gum entos fat os óbv i os com o est e: m ul her es detest am hom em
f r acos. Nunca se enganem com i sso, m eni nos e m eni nas m ai s j ov ens,
v ocês que são as m ai or es v ít i m as das “ m ent i r as de gêner o” que
abundam pel o m undo dos i n tel i gent i nhos.
As t eor i as sobr e o por quê de as m ul her es ser em assi m
dei t am r aí zes do ev ol uci oni sm o. Sei que nem t odo m undo concor da
com teor i as de com por tam ent o com r ai z no ev ol uci oni sm o, m as essa
di scor dânci a só as tor na m ai s i nt er essant es. Vam os a el as.
A i dei a bási ca é q ue ao l ongo do t em po m ul her es que não
er am sel et i v as no sex o se der am m al ; l ogo, os genes das que se
der am bem se adapt ar am e f or am passados à sua pr ol e f em i ni na.
Dar w i ni stas costum am di zer que m ul her es cr uzam ol hando par a
ci m a enquant o hom ens cr uzam ol hando par a bai x o. Af or a a m etáf or a
pur am ente f í si ca (hom ens são em ger al m ai s al t os que m ul her es, o
que não i m pede que al gum as poucas sej am m ai s al t as que seus
par cei r os – al guns car as têm at é t ar as com m ul her es m ai s al t as – , o
que tam bém ser v e com o ex ceção par a os com por t am entos que f ogem
à r egr a da m ai or i a), a i dei a é que as m ul her es de nossa espéci e ao
l ongo do t em po per ceber am que o al t o ônus do sex o par a el as dev er i a
ser obj eto de um “ cál cul o ut i l i t ár i o” : um m acho dev er i a v al er a pena
e não só o or gasm o! Um m acho que v al e a pena ser i a aquel e que
est ar i a ao l ado del a na l i da com a pr ol e e na hor a do par t o, gr osso
m odo. De l á par a cá, m esm o com a em anci pação fem i ni na, as
m eni nas cont i nuam pr efer i ndo (não acho que i sso sej a al gum a f or m a
de ser “ i nt er essei r a” ) hom ens que não sej am cov ar des e i ncapazes.
Ai nda que el as não pr eci sem de gr ana, não supor t am hom ens f r acos e
pobr es de espí r i t o e de cor po. Se par a o hom em sem pr e f oi um
i nf er no ser fr aco e pobr e, hoj e em di a é m ui t o di f íci l par a m ui t os
del es, sobr et udo os m ai s j ov ens, l i dar com dem andas f em i ni nas
“ i nv i sí v ei s” , que não são f aci l m ent e t r aduzí v ei s em pr ov er bens
m at er i ai s apenas. Pr eci sar em os de m ai s al guns sécul os (caso um a
cr i se do capi t al i sm o não n os l ev e de v ol t a ao m undo em que as
m ul her es cui dam da pr ol e e os hom ens caçam , m at am e m or r em )
par a que hom ens e m ul her es consi gam se adaptar às nov as dem andas
f em i ni nas: a for ça e a r i qu eza agor a podem t er se t or nado m ai s
sof i sti cadas.

8. Vale a pena ser honest o?

Ser á? M i nha tendênci a é achar que não. E não quer o soar


ni i l i st a. Se est e pequeno m anual não f osse escr i t o par a os br av os, eu
di r i a que si m , a honest i dade paga bem na v i da. M as não escr ev o este
l i v r o par a acom odar o pâni co da cl asse m édi a. Escr ev o par a quem
desej a f al ar sua pr ópr i a l í ngua em f i l osofi a, e o pr i m ei r o passo é não
t er m edo do que pensam os em si l ênci o, apesar de t er m os m edo de
di zer em v oz al t a.
Não, t al v ez a honesti dade não l ev e v ocê a l ugar nenhum .
Sem dúv i da, pr eci sam os acr edi tar em al gum as v i r tudes, do
contr ár i o a v i da pode se t or nar um i nfer no m ai or do que j á é.
Entr et ant o, v em os por t oda par te que pessoas honest as nem sem pr e
se dão bem . Par a com eço d e conv er sa, podem os suspei t ar que a
honesti dade sej a f al sa ou f r ut o de fal t a de opor tuni dade de agi r m os
de out r a for m a. Par a pi or ar , a v er dadei r a v i r t ude é si l enci osa e não
f az m ar k et i ng de si m esm a, o que em nosso m undo, dom i nado pel o
m ar k et i ng, f i ca di f í ci l de ser sust entado. O m undo cont em por âneo é
t agar el a por nat ur eza.
Se v ocê t em um f i l ho e di z par a el e que a honesti dade não
v al e a pena, v ocê pode dar a el e um senti m ent o m ui t o negat i v o de que
na v i da el e pode f azer o que qui ser . Por out r o l ado, se v ocê negar par a
el e que m ui tas v ezes a honest i dade não adi ant a par a nada, v ocê pode
dar a el e um a v i são de m undo i nf anti l e i ngênua.
A honesti dade pode ser ent endi da com o di zer sem pr e a
v er dade, não pux ar o t apet e de ni nguém , e v al or i zar m ai s o que as
pessoas são do que v al or i zar o que el as t êm . Ser á que ex i st e um “ ser ”
das pessoas i ndependent e do que el as “ t êm ” ? Não t enho t ant a cer teza
assi m . No âm bi to da conf i ança que um a cr i ança pr eci sa t er no m undo
e nas pessoas par a cr escer saudáv el , eu di r i a que si m , é necessár i o ser
honesto. M as aqui o f oco não é o que v ocê “ ganhar á” , m as si m que
v ocê dar á a seu f i l ho a possi bi l i dade de confi ar m i ni m am ent e no
m undo, e, com i sso, v i v er nel e, sem ser m ui to i nf el i z. Não di r i a com
cer t eza que a honest i dade v al e a pena, m as sem esper ança a v i da é
i nt r agáv el .

9. O que é melhor: um f ilho ou um cachorro?

A per gunt a par ece absur da, m as é m ui t o cont em por ânea.


O núm er o de cr i anças cai no m undo r i co e o núm er o de cachor r os
sobe. No Br asi l , paí s em q ue as m ul her es ai nda não ati ngi r am a
i nf er ti l i dade dos paí ses m ai s r i cos, j á t em os m ai s cachor r os do que
cr i anças nas f am í l i as. De onde v em i sso?
Cl ar o que fi l hos são m ai s car os, dur am m ui t o e nunca
f azem o que quer em os, e qu ando o fazem , o f azem por que não têm
v i da. T am bém é v er dade que fi l hos são ser es m ui t o m ai s pr ofundos
em af etos do que cachor r os. E afet os pr of undos são sem pr e m ai s
di f í cei s de l i dar . E cachor r os “ sem pr e” nos am am .
O m ot i v o de eu achar cachor r os m el hor es que f i l hos é o
nar ci si sm o contem por âneo. Cada v ez m ai s as pessoas se t or nam
nar ci si stas e j ul gam os v í ncul os sól i dos car os e pesados. Am ar os
ani m ai s – i ndependent em ent e de el es ser em am áv ei s – é um at est ado
de v i da fáci l ; por i sso, t anta gent e chor a por coel hi nhos e babam em
f av or do abor to.
Fal ar di sso é t ocar num a chaga cont em por ânea: a
di f i cul dade de conf i ar no m undo.

10. Ter conhecimento faz de você uma pessoa melhor?

Essa é f áci l de r esponder : não. Quem di z o cont r ár i o é


m ent i r oso ou i gnor ante. Eu não sou nenhum dos doi s. M ent i r , só
sobr e coi sas essenci ai s de v i da ou m or t e. Confessar que o
conheci m ent o não f az de v o cê um a pessoa m el hor é um atest ado de
r eper t ór i o e de confi ança no pr ópr i o conheci m ent o.
Di to i sso, t endo per cor r i do esse pequeno cor o de
dem ôni os, um a pequena of er enda ao seu desej o de pensar
f i l osofi cam ent e a sér i o sobr e as coi sas, v am os par t i r par a nossa
v i agem por al gum as das ár eas m ai s i m por t ant es da f i l osofi a. Não
esper e de m i m qual quer pi edade.
CAPÍTULO 6

Religião e espirit ualidade

Você é r el i gi oso? Se f or , o é por al gum a car ênci a sér i a em v ocê,


di r i am Fr eud, M ar x e Ni etzsche. De cer t a f or m a, som os t odos
car ent es por que som os m or t ai s, l i m i t ados, assustados e fr ágei s
psi col ógi ca e f i si cam ent e. A car ênci a à qual se r ef er em os hom ens de
conheci m ent o ci t ados aci m a é, ant es de tudo, um a car ênci a cogni t i v a,
car ênci a de conheci m ent o. Di ant e da agoni a da f i ni tude e do fr acasso
i m i nent e da v i da que acom etem a todos em al gum m om ento, o
r el i gi oso ser i a aquel e que “ não segur a a onda” e busca socor r o. Essa
i dei a de que ser r el i gi oso i m pl i ca al gum a f or m a de car ênci a
cogni t i v a é com um ent r e pessoas que se j ul gam m ai s cul t as. T enho
dúv i das de que i sso sej a um a v er dade ev i dent e. A m ai or i a das pessoas
que conheço que não acr edi tam em Deus, acr edi t a em bobagens com o
al i m entação bal anceada, espí r i t os i ndígenas, ci ênci a, hi st ór i a,
pol í t i ca ou em si m esm as. Pessoal m ent e, j ul go a cr ença em si m esm o
a m ai s br ega e r i dícul a de t odas.
O sécul o XX f oi m or t í f er o não em nom e de Deus, m as em
nom e da pol ít i ca. Esse é um f at o que, m ui t as v ezes, escapa aos nossos
péssi m os pr of essor es de hi st ór i a que ensi nam bobagens par a nossos
al unos. Na m i nha ex per i ênci a pessoal , acadêm i ca ou na m í di a, não
m e par ece que pessoas não r el i gi osas sej am m ai s sábi as do que
pessoas r el i gi osas. M ui t a gent e par a de cr er em Deus ou deuses e
passa a cr er em si m esm a (com o di sse aci m a), o que acho um a
bobagem ai nda m ai or se l ev ar m os em cont a a f r agi l i dade de nossos
pequenos “ eus” .
O que é r el i gi ão? Si nt o di zer que a r espost a não é um a
ev i dênci a. Par a especi al i st as em r el i gi ão, as r el i gi ões hi st ór i cas são
t ent ati v as m ai s ou m enos or gani zadas de m odo pr át i co, e não apenas
t eór i co, de dar sent i do à v i da. Só f unci onam se v ocê esti v er
subm et i do, de f ato, a el as em seu cot i di ano – esse é o sent i do de
“ pr át i co” ao qual m e r ef er i aci m a. Por ex em pl o, a r el i gi ão só
f unci ona se a sua r el i gi ão deci di r o que v ocê com e ou não, quando
pode ou não com er , quem pode ou não com er quem , o m odo “ j ust o e
sant o” de com er al guém , por ex em pl o, após o casam ent o, com o dev e
educar seus f i l hos, quem está cer to e er r ado em sua condut a, com o
or gani zar seu cal endár i o (di v i di ndo- o em di as sagr ados e pr of anos).
Enfi m , se a r el i gi ão est i v er de al gum a f or m a i ncor por ada aos seus
at os cot i di anos e aos atos das pessoas à sua v ol t a. H oj e em di a,
al gum as pessoas “ m ai s cul t as” pensam que se pode escol her um a
r el i gi ão assi m com o quem escol he um pr at o num m enu (a pal av r a
espi r i tual i dade acabou por f l er tar com essa i dei a de um a “ r el i gi ão
li ght” ). Não, r el i gi ão só t em senti do se el a subm et er v ocê ao conj unt o
de nor m as, r i tos, r i t uai s l i tú r gi cos que el a car r egar com o doutr i nas
i nquest i onáv ei s. Fazer i oga um a v ez por sem ana não dá a v ocê
nenhum a i dei a do que é ser de f ato r el i gi oso, tam pouco um a estadi a
de um m ês na Índi a. O m odo de v i da cont em por âneo pr i m a por cr er
que t udo pode ser v i v i do n a f or m a “ m er cador i a” , com o di sse o
f i l ósofo T heodor Ador no no sécul o XX. Pensam os que “ escol hem os”
um a r el i gi ão com o se escol he um a m ar ca de cr em e na pr atel ei r a do
f ree shop.
A or i gem da r el i gi ão par ece est ar na pr é- hi st ór i a, com o
t udo o que é hum ano. O que os especi al i stas di zem é que um a gam a de
com por tam ent os ou f atos al eat ór i os podem t er , com o tem po e a
t endênci a à or gani zação que car act er i za a i ntel i gênci a do Homo
sapi ens, de “ se j unt ar ” par a dar cor po ao que cham am os de r el i gi ão.
Podem os el encar al guns desses com por tam ent os ou f atos,
com eçando pel os fat os.

• Fat os: t em pestades d estr ut i v as; sons v i ndos de não sabem os


onde, com o o céu ou o subter r âneo; pest es e doenças;
i nv asões de outr os bandos, ani m ai s per i gosos e t em i dos
i dent i fi cados com o “ espí r i tos” ; sonhos assust ador es com
f i gur as est r anhas e pessoas m or t as; a escur i dão do m undo à
noi t e; a r egul ar i dade da nat ur eza – o que dav a, at é hoj e, a
sensação de um a i n tel i gênci a por tr ás del a, entr e out r os
ev entos.
• Com por t am entos: sabedor i as cur at i v as adv i ndas do
conheci m ent o de er v as; pr ev i sões de fat os que acontecem ,
com o i nv asões, t em pest ades, pest es e doenças, por i sso
m esm o par ecem acer t os de pr em oni ção; f i gur as car i sm áti cas
e estr anhas.

Val e di zer um a pal av r a sobr e essa coi sa cham ada


“ espí r i t os” . O que com um ent e cham am os de espí r i t os são v ul tos,
espect r os, f i gur as oní r i cas a quem at r i buím os v i da pr ópr i a e
dr am at ur gi a especí fi ca. O f ato de sonhar m os, por ex em pl o, com
m or t os nos l ev ou a cr er que esses m or t os ai nda v i v i am em al gum
outr o l ugar . A for ça dessa hi pótese r esi de no f at o de que, ai nda hoj e,
m ui t a gente, quando sonha com ent es quer i dos m or t os, cont i nua
acr edi t ando que esses entes quer i dos m or t os per m anecem v i v os em
al gum out r o l ugar . O pr ópr i o k ar deci sm o, um a das sínteses
r el i gi osas m ai s si m pl i st as q ue j á f or am i nv ent adas pel a i m agi nação
hum ana acer ca desses espí r i t os, é um a ev i dênci a de nossa capaci dade
de const r ui r m i t os a par t i r dessa t endênci a a l ev ar a sér i o sonhos
com m or tos ou qual quer out r a ex per i ênci a env ol v endo essa
suposi ção de m ani f est ação de v i da depoi s da m or t e.
O desconheci do e i nex pl i cáv el (f at o que ai nda hoj e
per m anece ex i st i ndo) pode di spar ar nossa i m agi nação com
f aci l i dade. O m el hor m ét odo par a ent ender i sso é nos i m agi nar 100
m i l anos atr ás e supor com o agi r í am os nessas si tuações sendo com o
som os hoj e, por que som os “ os m esm os” . O fat o de poder m os nos
col ocar no l ugar de nosso s ant epassados nos t or na capazes de
ent ender gr ande par te da v i d a na pr é- hi stór i a.
Se pensar m os com cui dado, v er em os que as r el i gi ões são
a associ ação de el em ent os com o os descr i t os, acr esci dos de r i tos,
r i t uai s, l i t ur gi a, nar r at i v as m í ti cas, t ex t os sagr ados e or gani zações
soci ai s e pol í ti cas l i gadas a essa “ t r am a” de el em ent os. Com o passar
do t em po, a “ t r am a” se sof i sti cou, f ez f i l osofi a e t eol ogi a, t ev e
códi gos de condut a, r ei s e sacer dotes, m as a r ai z per m anece na m ente
desse Homo sapi ens que cam i nha sobr e a T er r a sem saber nada de si
m esm o.
Um a per gunt a que se f az sem pr e é a r azão par a que,
m esm o depoi s de tant os “ av anços ci ent íf i cos” , a m ai or par te da
hum ani dade per m aneça r el i gi osa em gr ande m edi da, ai nda que sem
t er um a gr ande adesão est r i ta (os f undam ent al i sm os não chegam a
ser m ai or i a). A r espost a m ai s di r et a é que os “ av anços ci ent íf i cos”
t êm pouco i m pacto nos afet os a v er com nossa car ênci a (cogni t i v a,
m or t e, dor , sof r i m ento, fr acassos, enf i m , nós). M esm o v i v endo
m ai s (o que pode cr i ar m ai s angúst i as), e com m ai or qual i dade
m at er i al de v i da, essas quest ões não são r espondi das. Af i nal , por que
sof r em os sem m er ecer ? Por que o j ust o sofr e? Lem br a o nosso
pequeno cor o de dem ôni os?
Al guns especi al i stas di zem que as r el i gi ões não cedem
di ant e dos “ av anços ci ent í fi cos” por que estão enr ai zadas em nosso
“ cér ebr o atr asado” ou “ ancest r al ” , pouco r aci onal e m ai s af et i v o. A
ci ênci a, ent ão, não ter i a nenhum efei t o nesse cér ebr o habi t ado por
f ant asm as. Cl ar o que os cr entes r espondem à m esm a quest ão di zendo
que as r el i gi ões não cedem por que ex i ste o m undo sobr enatur al , e,
por tant o, descobr i r o át om o ou f azer av i ões nada tem a v er com
acabar com os deuses ou espí r i t os. Enf i m , não par ece que um di a
v er em os as r el i gi ões acabar em por que el as se adapt am , e com o a v i da
é m esm o chei a de dúv i das e i nsegur anças, o t er r eno par a o sapi ens
at or m ent ado nunca acabar á.
Out r a quest ão i m por tant e é: as r el i gi ões di zem a m esm a
coi sa? É possív el t or nar os r el i gi osos t odos i r m ãos no am or e na
paz? Si nt o m ui t o, a r espost a é um cl ar o “ não” . Os r el i gi osos têm
um a hi st ór i a m ai or de v i ol ênci a do que de paz, m esm o que em nom e
do am or de Deus e sua v er dade. Quem est uda a f undo as r el i gi ões de
m odo com par at i v o sabe que el as não di zem a m esm a coi sa por que,
de car a, não f al am a m esm a l í ngua, e, por t ant o, seus concei t os e
i dei as dependem da l íngua e dos cont ex t os hi stór i cos e soci ai s em
que nascer am e se desenv ol v er am . Quem acha que as r el i gi ões di zem
a m esm a coi sa é por que nu nca as est udou ou por que t em um a fé
r el i gi osa de que, ao f i nal , o bem v encer á. E ent ão v em a per gunta:
qual bem ? De quem ? De qual t ex t o? De qual m i tol ogi a? De qual
nar r at i v a m or al r el i gi osa? Quer um ex em pl o bem cl ar o di sso?
Pense em Jesus. Não ex i ste car a m ai s l egal do que el e.
Agor a l em br e que os cr i st ãos cr eem que el e sej a Deus (pel o m enos a
m ai or i a “ of i ci al ” dos cr entes em Cr i st o, cat ól i cos ou pr ot est antes), o
que escandal i za j udeus e m uçul m anos que acr edi tam que Deus (é o
m esm o Deus) j am ai s “ v est i r i a” um cor po hum ano. Os cr i st ãos
pensam que el e é o M essi as que os j udeus esper am . Agor a, i m agi ne
um sem i nár i o que r eúna j ud eus e cr i st ãos par a di scut i r o car át er de
M essi as em Jesus. Penso que o coquet el t er i a de ser l ogo ser v i do,
por que cr i stãos acham que os j udeus per der am o bonde e não
per ceber am que o M essi as j á v ei o 2 m i l anos at r ás, e os j udeus acham
que os cr i st ãos com pr ar am gato por l ebr e ao tom ar Jesus com o
M essi as. A sol ução é f al ar da i m por t ânci a do am or e da t ol er ânci a
ent r e as r el i gi ões, por que di scuti r t eol ogi a v ai dar pau. A úni ca
f or m a de f azer as r el i gi ões d i zer em a m esm a coi sa é desi dr atá- l as de
par t e de suas cr enças: Jesus = M essi as. Nesse caso específ i co, a
com par ação dev e ser ev i t ad a em f av or de t r aços m ai s éti cos com o
am or , gener osi dade, acei t ação do out r o por par te da f i gur a hi stór i ca
de Jesus. I sso ser v e par a t odos os casos. Af i nal , dev em os acei tar
M aom é com o o úl t i m o pr of et a de Deus? Ex i st e r eencar nação ou os
k ar deci st as est ão v i aj ando? Quem t em a úl t i m a pal av r a na
i nt er pr et ação dos t ex t os sagr ados? Dev e- se ou não m at ar bi chos e
of er ecê- l os aos deuses? É um Deus só, um a Deusa ou Deuses? Deus é
contr a m at ar ? No tex t o bí bl i co, el e m ata egípci os, cananeus, hebr eus,
f i l i st eus, e por aí v ai .
A sol ução cont em por ânea é opt ar pel o conv í v i o pol í ti co
de t ol er ânci a dent r o de um a soci edade que só não acei t a que não
paguem os a fat ur a do Vi sa, e não ent r ar em det al hes t eol ógi cos. Por
i sso, dev em os di zer que Jesus, Buda e Che são t odos os m esm os (e
l ut am pel a paz, o que no caso de Che é um a m ent i r a desl av ada) e
ser v i r o j ant ar . E daí cr i ar m os um a teol ogi a que di ga tudo e nada ao
m esm o tem po, par a não cr i ar conf l i tos. Logo, as r el i gi ões não di zem
a m esm a coi sa, nem sem pr e el as pr egam o am or a todos por que os
hom ens não podem am ar a t odos o t em po t odo. Out r a saí da é af i r m ar
que Deus é sem pr e um só, e que os m í sti cos sabem di sso, por que
ent r am em cont ato com El e par a al ém das pal av r as. Ai nda assi m , nem
t odos os m í st i cos di zem a m esm a coi sa, poi s uns f al am do Deus
pessoal , de Jesus; outr os, os or i ent ai s (ou al guns cr i st ãos “ her eges”
com o M est r e Eck har t no sécul o XI V, ou cabal i st as da Espanha
m edi ev al ), fal am de um “ nada” aci m a de Deus ou dos deuses.
M as a si m pl i fi cação a ser v i ço de um a r el i gi ão m enos
confl i tuosa cr i ou um “ pr odut o” que se cham a espi r i t ual i dade,
f azendo uso de um a pal av r a f r ancesa sur gi da, até onde se sabe, no
sécul o XVI I , que si gni fi cav a a v i da do espí r i t o hum ano em contat o
com Deus. O que v em a ser essa t al espi r i tual i dade?
A pal av r a, com o acabei de di zer , na sua or i gem fal a da
v i da do espí r i to em cont ato com Deus. Na Bí bl i a hebr ai ca (que os
cr i stãos cham am de Vel ho T est am ento), Deus dá o espír i t o ao hom em
par a que por el e possam os nos com uni car com El e, Deus; por t ant o, é
um a di m ensão super i or que só hom ens e m ul her es t êm . Na Gr éci a,
espí r i to er a só um ar (pneuma) que saía pel a boca na hor a da m or te
(segundo o f am oso f i l ósofo gr ego Epi cur o, que v i v eu entr e 341e 270
a.C.). Out r os, com o Ar i st ót el es (384- 322 a.C.), f al av am em nous
(i nt el ect o), m as essa i dei a del e foi assi m i l ada por cr i st ãos, j udeus e
m uçul m anos com o “ espír i t o” . No i ní ci o do cr i st i ani sm o, gnósti cos
f al av am em pneum áti cos com o os v er dadei r os cr i st ãos, por que
t i nham pneuma, espí r i t o, m ui t o m ai s pr óx i m o da i dei a hebr ai ca.
A pal av r a espi r i t ual i dade em seu uso contem por âneo e de
senso com um (ou sej a, usada por gent e com um e não especi al i st as)
si gni f i ca t er “ um pouco” de r el i gi ão, m as não m ui t o. O bast ant e par a
v ocê não se sent i r um m at er i al i sta que só acr edi t a em di nhei r o e
át om os. E par a m ostr ar que v ocê é um a pessoa um pouco pr of unda.
Na pr át i ca, si gni f i ca quase nada. T al v ez l er um a r ev i st a sobr e
nat ur eza, t er um a al i m ent ação bal anceada, pr ati car t ur i sm o sel v agem
ou budi sm o li ght par a r i cos e f am osos. M as essa f or m a de
espi r i tual i dade de consum o ser v e pouco na hor a do v am os v er ,
por que não t em aquel e cot i d i ano de que f al ei ant es e se f az necessár i o
par a a r el i gi ão “ f azer ef ei t o” . A v ant agem del a, a l ev eza e a f al t a de
com pr om i sso i nst i tuci onal , que tanto atr aem os m ai s r i cos e
f am osos, na hor a do v am os v er , é sua f r aqueza. Essa espi r i tual i dade
contem por ânea v al e t ant o quant o o v ent o que passa.
Ex i st e al go m ai s a ser di t o sobr e r el i gi ão e
espi r i tual i dade, m as i sso m er ece um capít ul o à par t e, o segui nte.
CAPÍTULO 7

Religião × cet icismo: contra os picaretas do espírit o

Deci di f azer um capí t ul o à par t e opondo r el i gi ão a cet i ci sm o por que


acho que a pr i nci pal cr í t i ca à r el i gi ão, segui ndo a tr adi ção de M ar x ,
Ni et zsche e Fr eud, é nos l em br ar com o pi car et as r oubam o di nhei r o
das pessoas que cr eem nel es. E i sso, dev o di zer , nada tem a v er com
pessoas que v i v em suas cr enças de m odo honesto e dedi cado. Que
f i que sem pr e cl ar o que não acho at eus m ai s ou m enos i nt el i gentes do
que cr entes, nem m ai s ou m enos m or ai s. M as sou obr i gado a
r econhecer que al guns cr entes são m ai s f aci l m ent e t om ados por
pi car et as do espí r i to do que aquel es que são, por t em per am ento,
m ai s descr entes no sobr enatur al . A m ai or i a dos at eus m i l i tantes
sof r e de outr o m al : acr edi t am nos av anços ci ent í fi cos com o r esposta
à v i da, outr a i l usão, m ai s com pl ex a. Não v ou tr at ar del a aqui ; t al v ez,
se m e der v ont ade, m ai s à f r ent e.
O que é um pi car eta do espír i t o? Já di go, m as, antes,
v am os escl ar ecer o que é cet i ci sm o.
Ceti ci sm o é um m odo de v er o m undo nasci do na Gr éci a
ant i ga que ensi na v ocê a du v i dar de t udo. A pal av r a v em do v er bo
gr ego skopei n e si gni f i ca obser v ar , v er com at enção. Um cét i co pode
ser m ui t as v ezes um pent el ho, sobr et udo se “ acr edi tar no cet i ci sm o”
com o úl ti m a r espost a a tudo. Af or a esses chat os, o cet i ci sm o é, si m ,
um a pr át i ca m ui to i m por t ante na fi l osof i a e na v i da cot i di ana,
por que pode aj udar v ocê a escapar de m ui t os pi car et as, espi r i t uai s,
pol í t i cos, afet i v os e com er ci ai s.
O cet i ci sm o é um m ét odo de conf r ont ar teor i as e v ê- l as
r ui r um a a um a, o que cr i a em v ocê um a t endênci a a duv i dar de t udo
de um a v ez. Cui dado, por ém : um di a v ocê pode encont r ar al gum a
t eor i a que o espan te. Um a cer ta l ev eza de espí r i to é necessár i a ao
cét i co; do cont r ár i o, el e pode v i r ar um adol escente boçal que acha
que é a pr i m ei r a pessoa i n tel i gent e na f ace da T er r a. Em al guns
assunt os, a dúv i da par ece se sustent ar com f aci l i dade, e um del es é o
cam po desses pi car et as do espí r i t o. O que é m esm o um pi car et a do
espí r i to? Você j á dev e ter v i sto um .
São gente que di z que pode sal v ar v ocê de al gum a coi sa,
m as quando fi ca doent e v ai ao m édi co e di z que o gui a espi r i tual
av i sou a el e que agor a er a par a v al er . Ri sadas? Se v ocê r i r , el es bem
que m er ecem . Em ger al , pedem di nhei r o par a v ocê de for m a m el osa
ou di zem que um a gr ande am eaça r onda v ocê. Ou que o espí r i t o X,
sábi o e ant i go, pedi u a v ocê essa gr ana par a um a causa m ai or (gr ana
par a o pi car et a do espír i t o pagar as cont as del e). Um a v ez t endo
sent i do m edo de que el e estej a di zendo a v er dade, v ocê est á per di do.
A ar m adi l ha é dar a el e um a ponta de cr edi bi l i dade. Você estar á
per di do. Repi t o par a v ocê l em br ar de m i m na hor a em que um desses
pi car et as at er r i ssar a sua f r ent e. Pr est e at enção no que eu v ou di zer .
Ex i st em t r ês gr andes ár eas de choque na v i da. 1) Saúde e
doença, 2) di nhei r o e t r abal h o e 3) am or e f am í l i a. Quase t udo pode
ser i ncl uí do nessas ár eas, e el as, pel o m enos um a del as, sem pr e dá
pr obl em a, sendo a saúde a def i ni ti v a. Esses pi car et as do espí r i to,
assi m com o os x am ãs pr é- hi st ór i cos f azi am , anunci am coi sas que
sem pr e podem acontecer : v i agem a t r abal ho, doenças na f am í l i a,
opor tuni dades de gr ana, t r ai ções afet i v as. Os coi t ados dos cr entes
que os seguem nunca per ceb em que nada m uda na v i da que possa ser
pr ov ado com o tendo si do r esul t ado da ação desses pi car et as. M as
quando al go de f at o acont ece (sem pr e acont ece, por que essas são
ár eas de choque na v i da), v ocê, pobr e cr ente, acr edi t a que o av i so f oi
um a f or m a de pr ot eção que os gui as desses pi car etas l he der am . Aí,
de nov o, v ocê est ar á per di do. Se al go de r ui m acont ece, el es
av i sar am . Se el es di sser am par a v ocê gast ar um a gr ana par a ev i t ar
que esse al go de r ui m acont eça, quando o “ t r abal ho” f ei t o não
f unci ona, os pi car etas do espí r i t o di zem que não funci onou por que
f al tou al go em v ocê, ou no m at er i al usado (ou sej a, v ocê er r ou em
al go), ou aqui l o de r ui m t i nha de acont ecer par a a sua ev ol ução
espi r i tual .
Esse ar gum ent o de ev ol ução espi r i t ual ser v e par a t udo,
por que ni nguém sabe onde el a com eçou. Uns di zem que com eçou
quando er ám os pedr a, m as com o pedr as não f al am , não t em os com o
ent r ev i st á- l as e checar a i nf or m ação sobr e nosso par entesco com
el as. T al v ez sej a por i sso m esm o que el as ser v em : por que não t em os
com o checar a i nf or m ação! T am pouco sabem os quando a ev ol ução
espi r i tual acaba. Al guns di zem que v i r am os l uz, m as com o l uz não
f al a... E ent ão t odo o ci cl o da i m possi bi l i dade de checar o que el es
f al ar am se r epet e ao i nf i ni t o.
A chav e do pi car eta do espír i t o é di zer o que t odo m undo
sabe que pode acontecer e capi tal i zar par a si o que de fat o acont ece ou
t er cei r i zar t udo aqui l o que el e er r ou ao di zer que i a acont ecer . O
cr ent e par ece esquecer essas coi sas óbv i as quando cai sob a
“ pr oteção” do pi car eta do espír i t o.
E no m ei o da t al ev ol ução espi r i t ual cabe t udo. É ev i dente
que t em os coi sas a apr ender na v i da, m as i sso nada tem a v er com
pi car et as espi r i t uai s que cobr am gr ana de v ocê e em t r oca v êm com
hi st or i nhas que ser v em só p ar a v ocê cont i nuar dando gr ana a el es.
Al gum as pessoas sust ent am esses pi car et as dur ant e anos, com pr am
casas par a el es, car r os, r oupas, dão v i agens. El es t estam v ocê e,
quando per cebem que v ocê t em gr ana e f é nel es, o céu é o l i m i te do
abuso que sof r er á. Par a ser um pi car eta do espí r i t o v ocê pr eci sa t er
al gum t al ent o especi al . No m íni m o ser obser v ador , m ani pul ar bem
as tr ês ár eas de choque às quai s m e r efer i e ent ender um pouco de
psi col ogi a hum ana par a saber que som os uns desgr açados
am edr ontados, car entes, abandonados, e que i sso se v i v e no di a a di a,
com os pai s, os fi l hos, os cônj uges, os col egas de t r abal ho. Um
pi car et a do espí r i t o, em ger al , é um a pessoa m i ni m am ente
encant ador a e que dom i na al gum a l i nguagem t r adi ci onal , que pode
v i r da Áf r i ca (esses são bons por que tam bém m et em m edo nos
desgr açados por causa de coi sas conheci das com o v odu – o que
necessar i am ente não t em a v er com o nosso aqui no Br asi l ), da
Austr ál i a (bem na m oda) ou m esm o da Am azôni a (par a os m ai s
nat ur ebas e que não fal am i ngl ês).
Quando v ocê v i r um a v ít i m a de um pi car eta do espí r i to,
l em br e que i sso é pr é- hi st ór i co. E dei x e- m e per gunt ar um a coi sa:
v ocê j á m or r eu num a gr ana com um desses pi car et as? Que pena,
quem m andou ser bobo.
Ser um pouco cét i co aj uda nessas coi sas. M as, ant es de
t udo, se per gunt e: por que esses pi car etas não conseguem r esol v er a
pr ópr i a v i da e sem pr e pr eci sam da sua aj uda par a m ant er a
pi car et agem f unci onando?
CAPÍTULO 8

Metafísica

A pal av r a m etaf í si ca t em pedi gree na f i l osofi a, sej a par a defendê- l a,


sej a par a at acá- l a. Por ex em pl o, Pl at ão, pai f undador da f i l osofi a, er a
um m etaf í si co, Ni etzsche detest av a a m etaf í si ca, entr e out r os nom es
gr andi osos. Às v ezes si gni fi ca um ensi no hi stor i cam ent e dat ado,
com o no caso de Pl at ão ou Ar i stótel es, às v ezes si gni f i ca um t i po de
t em per am ent o dado a cr enças ou em oções l i gadas a um m undo al ém
da m at ér i a, por ex em pl o, com o no caso de m ui t os r el i gi osos,
m í sti cos ou r om ânti cos.
A i dei a de m et af í si ca nasce com Pl at ão com seu “ m undo
das i dei as per f ei t as e i m at er i ai s” a par t i r das quai s nosso m undo da
m at ér i a t er i a si do f ei to com o um a cópi a i m per fei t a e cor r upt í v el .
Par a Pl at ão, as i m per f ei ções do m undo e da v i da ser i am f r uto de
i ncom pet ênci a do dem i ur go (um deusi nho v agabundo) que i nv ent ou
est e m undo copi ando as i dei as eter nas e pl enas do m undo das i dei as.
A consequênci a, ai nda que el e nunca t enha usado a pal av r a m etaf í si ca
em sua obr a (quem usou f oi Ar i st ótel es, par a dar o tí t ul o de sua obr a
sobr e o “ Ser ” ), f oi f undar t odo um cam po de r ef l ex ão acer ca do
i m ater i al , i nv i sív el e et er no, coi sa que j udeus, cr i st ãos e
m uçul m anos ador ar am quan do l er am , por que v i r am nesse m undo a
“ cabeça de Deus” , ou, no m í ni m o, sua casa. Quando Ar i st óte l es
af i r m a que ex i st e um “ pr i m ei r o m otor i m óv el que t udo m ov e sem
ser m ov i do, que t udo cond i ci ona sem ser condi ci onado, que t udo
causa sem ser causado” , e ch am a i sso de theos, e i nv ent a um a par te de
seu l i v r o Met af í si ca (ao pé da l et r a “ o que v em depoi s da f í si ca” ,
l ogo, do m at er i al ) à qual dá o nom e de t eol ogi a, os r el i gi osos não
r esi stem e di zem : ol ha aí, Ar i st ótel es conheci a Deus, por que
r econhecer Deus é f r ut o do p ensam ento!
A m et afí si ca se t or nou um a espéci e de pr i m ei r a ci ênci a
(no sent i do de pr i m ei r o saber ), que ex pl or ar i a o m undo das v er dades
et er nas e não m at er i ai s, a par te “ f i l osóf i ca” da cr ença no i nv i sív el e
i m ater i al por que Deus, deuses e espí r i t os ser i am i m at er i ai s e
i nv i sí v ei s (a m enos que qui sessem se f azer m at er i ai s e v i sí v ei s par a
nós). A m et afí si ca v i r ou um nom e usado par a se r ef er i r a esse m undo
das “ subst ânci as i m ater i ai s” .
Out r a coi sa que ator m ent ou e at or m ent a m ui ta gent e é se
ex i st e m esm o (com o ex i st i a par a Pl at ão) um bem i m at er i al e et er no;
por tant o, se o bem ser i a al go não cr i ado pel o hom em e sua hi st ór i a.
Pessoal m ent e, acho que si m , é cr i ado pel o hom em e sua hi st ór i a,
m as não acho que sai bam o s com o fazem os i sso. Então, apesar de
ser m os nós que fazem os, par ece al go de out r o m undo, por que não
t em os o cont r ol e desse pr ocesso, ao cont r ár i o do que pensam os
bobos m ar x i stas e f oucaul t i anos. A i dei a de que ex i sta um bem
i m ater i al e et er no al i m ent a a al m a r el i gi osa e m et afí si ca por que el a
associ a esse bem a Deus. A pr ópr i a i dei a de al m a é com f r equênci a
v i st a com o m et af ísi ca, por i sso i m ater i al e et er na. M as quando
pensam os em al m a assi m , est am os chegando per t o do que podem os
cham ar de “ sobr enatur al ” , al go que v er em os no pr óx i m o capí tul o.
A fi l osof i a m oder na e cont em por ânea cr i t i cou m ui to a
m et afí si ca, chegando m esm o a dest r uí - l a, de cer t a for m a, di zendo
que é um a espéci e de v i agem de pl at ôni cos de t odos os t i pos. Com o
nasci m ent o da ci ênci a, a i dei a de um m undo i m ater i al se tor nou m ei o
f or a de m oda, por que o pensam ent o m oder no é m ui to pr eocupado
com a efi cáci a e os r esul t ados, e a m et afí si ca não ser v e par a nada, a
não ser par a nos aj udar a cr er em al gum a f or m a de um m undo
m el hor do que est a em que v i v em os, o que pode si gni f i car que a
m et afí si ca não passa de pâni co di ant e do nada – com o pensav a um
dos m ai or es ant i pl at ôni cos da hi st ór i a da f i l osof i a, Ni et zsche.
CAPÍTULO 9

O sobrenat ural

Ai nda est am os no ter r eno da r el i gi ão e da m etaf í si ca quando f al am os


de sobr enatur al . A pal av r a não t em o m esm o pedi gree com o tem
m et afí si ca, por que quando pensam os em sobr enat ur al , pensam os em
f i l m e de t er r or ou al m as penadas à noi t e na casa da f azenda. M as el a
t am bém t em um a or i gem di g na na f i l osof i a, e essa or i gem t em a v er
com a i dei a do que ser i a al ém ou aci m a da nat ur eza ou do natur al no
hom em e no m undo, o que se conf unde com a i dei a de ação de Deus
no m undo. Podem os di zer que a pal av r a t em um si gni fi cado na
f i l osofi a e out r o nas r el i gi ões, sendo o pr i m ei r o m ai s l i gado à ação
de Deus no com por tam ent o h um ano por m ei o da gr aça di v i na (com o
di zi a Sant o Agosti nho no i ní ci o do sécul o V) e o segundo m ai s l i gado
a cr enças espír i t as que asso ci am o sobr enat ur al a m ani f estações de
espí r i tos desencar nados no m undo dos hom ens. Acho este m ai s
i m por t ant e par a pessoas com uns e o ant er i or m ai s l i gado ao
uni v er so f i l osóf i co e teol óg i co pr of i ssi onal , por i sso v ou dar m ai s
at enção ao senti do r el i gi oso da ex pr essão: sobr enat ur al com o
m ani f estação do m undo dos m or t os. Você j á v i u al m a penada? Ou
acr edi t a nel as? Eu não, m as gost ar i a de conhecer um a.
Na peça Hamlet , de Shak espear e (sécul o XVI I ), v em os na
pr i m ei r a cena um ex em pl o q ue pode nos aj udar a entender o que se
quer di zer com m ani fest ação do sobr enat ur al no sent i do do senso
com um . O pai do H am l et assassi nado pel o i r m ão e pel a esposa pede
v i ngança ao f i l ho. Não pr eci sam os i r adi ant e no enr edo. A i dei a m ai s
com um de sobr enat ur al é q ue el e sej a o m undo dos m or tos que se
r el aci onam com os v i v os. H á sem pr e um v í ncul o m or al entr e esses
doi s m undos em que um i nf l uenci a o out r o. Gr ande par t e das cr enças
em espí r i t os se al i m ent a dessa for m a de v í ncul o. Esse ti po de cr ença
i m pl i ca um a econom i a m or al ent r e os doi s m undos e t am bém o
dest i no daquel es que m or r er ão um di a e dos que j á m or r er am . A
quest ão essenci al aqui é: por que esses m or t os “ pr eci sam de nós,
m er os v i v os?” . Por que não ex i st em e são cr i ações hum anas. Esses
espí r i tos nunca sabem al ém do que sabem os: pr eci sam os am ar uns
aos outr os, f azer m enos guer r a, t er m enos pol ui ção e com bat er o
apego m at er i al . Quem pr eci sa de espír i t os do al ém par a saber que
est am os num at ol ei r o m or al nest e m undo dos v i v os?
Em outr a chav e, esses m or t os nos at or m ent am por que
el es m esm os são uns desgr açados, e a si tuação del es, t al v ez, não
t enha a v er di r et am ente conosco, m as com a v i da del es enquant o
est av am v i v os. E el es se env ol v em conosco por que podem os
l em br ar , por ex em pl o, al guém com quem t i v er am v í ncul os
enquant o v i v os, com o no caso de Dr ácul a e sua esposa r eencar nada na
per sonagem do r om ance Drácula, de Br am Stok er (sécul o XIX),
cham ada M i na. De qual quer f or m a, a tem át i ca m or al se i m põe, assi m
com o a da f el i ci dade versus i nf el i ci dade. É i nter essant e per ceber com o
os afet os são a m ar ca no m undo do sobr enat ur al . A cr ença nessa
di m ensão pode ocupar a v i da de m ui t as pessoas, m esm o que sej a
pel o m edo que as faz sent i r . Resta nos per gunt ar m os a r azão de,
depoi s de t ant o conheci m ent o ci ent íf i co acum ul ado, tanta gent e ai nda
se sent i r at or m ent ada e at r aída por esse t i po de coi sa. A pr i m ei r a
concl usão é que per m anecem os, em al gum a m edi da, na pr é- hi st ór i a,
am edr ontados pel a escur i dão do m undo e de nós m esm os. Sem
dúv i da, o m ater i al i sm o e sua af i r m ação de que a v i da depoi s da
m or t e é um a i l usão m e par ecem um a opção m ai s tr anqui l a do que a
i dei a de per m anecer ex i st i ndo i nfi ni t am ente e sob ação de af etos t ão
f or t es, apesar de que acho m ai s dr am át i ca e bel a a i dei a de um a
ex i st ênci a ator m entada par a sem pr e do que o r epouso na pedr a,
com o af i r m a o m at er i al i sm o.
Ni nguém em sã consci ênci a pode di zer a úl t i m a pal av r a
nesse ter r eno do sobr enat ur al . A cr ença, sendo pr é- hi st ór i ca, está
f i ncada em sol o hum ano, e não ser á um pouco de ci ênci a que a far á
desapar ecer , m esm o por que, yo no creo en bruj as, pero que las hay, las
hay.
CAPÍTULO 10

Deus existe?

Um a das per gunt as que j ul go m ai s i nút ei s em f i l osof i a é se Deus


ex i st e. Vou contar um a coi sa par a v ocê. O f i l ósof o Bl ai se Pascal
(sécul o XVII ) i nv ent ou um a coi sa que f i cou conheci da com o “ apost a
pascal i ana” , que gent e chi que com o o psi canal i sta Jacques Lacan
(sécul o XX) gostav a de ci t ar com o m etáf or a par a o f i nal de anál i se
(coi sa t ão di f íci l de v er quant o am or v er dadei r o...). O psi canal i sta
f r ancês quer i a di zer com i sso que um paci ent e que fez bem sua
anál i se estar i a na condi ção do cr ent e de Pascal : a v i da é um a quest ão
de apost a e não segur ança absol ut a, coi sa que neur óti co sem pr e busca
e nunca encontr a (de nov o, com o o am or v er dadei r o...). M as
v ol t em os à aposta de Pascal . A i dei a, no pr i m ei r o e m ai s ci t ado
m om ent o de sua “ apost a” , er a m ost r ar par a o descr ent e (o l i ber ti no,
na l i nguagem de sua época) q ue el e er a um suj ei t o sem i nf or m ação e
pouco r aci onal , por que se o f osse, saber i a que o m ai s r aci onal e út i l
er a apost ar na ex i stênci a de Deus. E por quê? Por que caso v ocê
apost asse em sua não ex i stên ci a, v ocê v i v er i a os poucos anos de sua
v i da t er r ena sem l ev ar em co nta a v ont ade de Deus, e depoi s topar i a
com o Et er no do out r o l ado cobr ando t udo de er r ado que v ocê f ez
aqui . Assi m , v ocê t er i a negado i nv est i r (apostar ) na ex i stênci a de
Deus nos poucos anos que tev e na T er r a e ser i a obr i gado a am ar gar
um a et er ni dade de sof r i m ent o do out r o l ado. Qual quer quant i dade
que v ocê apost e cont r a o i nf i ni to é um nada, por i sso o t ex t o em que
el e descr ev e sua apost a se ch am a “ I nf i ni t o, nada” . O i nf i ni t o é Deus e
nós som os o nada.
M as v ol t em os aos ter m os da apost a. Se v ocê apost asse que
Deus ex i st e, e v i v esse seus poucos anos aqui l ev ando em conta a
v ontade de Deus, e t i v esse um a v i da “ sem gr aça por que santi nha” , e
Deus não ex i st i sse, v ocê não r eal i zar i a a per da, por que m or r er i a e
sua al m a dei x ar i a de ex i st i r ; l ogo, v ocê não tom ar i a consci ênci a de
que f ez um a apost a er r ada. Se v ocê apostasse na ex i st ênci a de Deus e
El e ex i st i sse, aí v ocê ser i a r ecom pensado com um a et er ni dade de
l ei te e m el , bem ao cont r ár i o daquel e descr ent e que não qui s se
l i m i t ar nest a v i da, m as acabou por am ar gar um a et er ni dade de
sof r i m ento.
Por tanto, nesse pr i m ei r o e m ai s ci t ado m om ento de sua
apost a, Pascal est ar i a nos di zendo que o m ai s r aci onal é apostar na
ex i st ênci a de Deus por que o r i sco cont r ár i o ser i a m ui t o pi or (Pascal
er a um ex ím i o j ogador de dado, um v er dadei r o v i ci ado). O er r o na
apost a da Sua ex i stênci a ser i a m ui to m ai s t er r í v el do que o er r o na
apost a da Sua i nex i st ênci a. A per da, aqui , ser i a m ui t o m ai or que um a
v i da sem gr aça e sant i nha em nom e de um Deus i nex i stente, um a v ez
que sua al m a acabar i a com o cor po e não tom ar i a consci ênci a de sua
apost a er r ada.
Ex i st e um segundo m om ento da apost a m enos ci t ado e
f undam ent al par a o ar gum ent o de Pascal . Um a v ez t endo ouv i do o
di scur so do cr ent e, que quer pr ov ar que a cr ença em Deus é m ai s
r aci onal em t er m os de pr obabi l i dade (Pascal é um dos fundador es do
cál cul o de pr obabi l i dades em m at em át i ca), o descr ent e di z que,
m esm o r econhecendo a for ça l ógi ca da apost a, não consegue cr er em
Deus. Ao que Pascal r esponde l ogo: a fé é f r ut o da gr aça di v i na, é
sobr enatur al , e não f r ut o de cál cul o r aci onal . Com i sso, Pascal quer
di zer que não adi ant a tentar pr ov ar a ex i st ênci a de Deus, por que não
chegam os à f é pel o uso da r azão e seus ar gum ent os, m as si m pel o
f at o de Deus nos dar ou não a gr aça de t er f é Nel e.
Concl uí m os, assi m , que de nada adi anta o uso da r azão em
assunt os da f é. Você pode v er pessoas br i l hantes que t êm fé e
est úpi dos que se acham o m áx i m o por que não cr eem em Deus.
Cl ar o que fal ar que cr er em Deus é fr uto da gr aça de Deus,
é j á cr er Nel e de al gum a f or m a. M as posso sai r desse ci cl o teol ógi co e
pensar que cr er em Deus é m ai s f r ut o de causas ex t r ar r aci onai s com o
educação, tr aum as i nfanti s, am bi ent e cul t ur al f am i l i ar , t er um
“ cér ebr o de cr ent e” do que pensar que cr er em Deus é fr uto de um a
cadei a l ógi ca de pr ov as a seu fav or . A m esm a coi sa v al e par a a
descr ença. Di t o de out r a f or m a, não acr edi t o que cr er em Deus sej a
um a coi sa que v ocê escol he, assi m com o v ocê escol he um a m ar ca de
sabonete ou um a m ar ca de car r o com base na l ógi ca cust o- benef í ci o.
Acho que ar gum entos que t ent am pr ov ar a ex i stênci a de Deus são
i nút ei s. M ui t a gent e t ent a pr ov ar a ex i st ênci a de Deus di zendo que o
uni v er so “ necessi t a” de um pr i ncí pi o or denador de tudo, o que eu
j ul go i nf ant i l com o ar gum ent o. T udo i st o aqui pode ser fr ut o de um
gr ande acaso num espaço de t em po i ni m agi náv el no qual os
el em ent os se ar r um am e desar r um am , e no m ei o del es nós sur gi m os
e desapar ecem os.
Deus ex i ste? Eu nunca f ui cr ente. M as i sso não m e i m pede
de j ul gar Deus um a hi pótese el egante par a a ex i st ênci a das coi sas,
um a v ez que um ser com o El e m e par ece m i st er i oso e i nter essant e de
conhecer m os, ai nda m ai s se f or um a “ pessoa” . Qual quer um de nós
no l ugar Del e j á ter i a se m at ado. Ni nguém supor t ar i a a et er ni dade e
t ant o conheci m ent o acum ul ado (o conheci m ent o de t udo que ex i st e),
apesar de f i car m os atr ás d el a (a eter ni dade) nessas cr enças no
sobr enatur al , na m et af ísi ca e no pr ópr i o Deus. O que m e l ev a a
per gunt ar : o hom em é um ser r aci onal ? Com o el e pode buscar t ant o
um a coi sa (com o a et er ni dade) de m odo t ão obsessi v o e enl ouquecer
se a consegui sse? Ent ão, r epi to: ser i a o hom em um ser r aci onal ?
CAPÍTULO 11

Ohomem é um ser racional?

Não cr ei o, si nto l he di zer . Você acha que com o sou um fi l ósof o


dev er i a cr er que o hom em sej a um ser r aci onal , m as l am ent o di zer
que j ul go al go i r r aci onal pensar que o hom em , di ant e de tantas
pr ov as, sej a um ser r aci onal . Ou, t al v ez, eu dev er i a ser m ai s
com edi do e di zer que o hom em é apenas em par te r aci onal , e assi m
não dest r ui r sua fé no conheci m ento. Com o j á di sse ant es, quando
di scut í am os m eu pequeno cor o de dem ôni os, est ou l onge de achar
que o conheci m ent o t or ne um hom em m el hor . M ai s sof i st i cado com
cer t eza, m el hor em t er m os de car át er ? O cont r ár i o é m ai s pr ov áv el .
A f é em que o hom em sej a um ser r aci onal é um a bobagem
r ecent e. Qual quer hegel i ano ou m ar x i sta de pl ant ão di r i a que só com
a em er gênci a do m undo m oder no bur guês, que pr eci sa de um a
soci edade r aci onal i zada em seus pr ocessos par a que o di nhei r o
ci r cul e com segur ança de r et or no ai nda m ai or , é que o hom em
com eçou a quer er se v er com o um ser pl enam ent e r aci onal . Por i sso,
o Il um i ni sm o e sua babosei r a r aci onal i sta. M esm o par a um Pl at ão
que buscav a se l i v r ar do pessi m i sm o t r ági co da r el i gi ão gr ega er a
cl ar o que no hom em nem t udo é r aci onal . A i dei a de que o hom em é
um ser r aci onal v ai bem com a i dei a, necessár i a no m undo bur guês,
de que el e é autônom o. M as t ant o a r aci onal i dade quant o a aut onom i a
são um a pequena par t e da v i da hum ana, ai nda que não dev am os
buscar m ai s r aci onal i dade e m ai s aut onom i a da v i da. Kant est av a
cer t o em def ender a noção de “ m ai or i dade” com o sendo a capaci dade
hum ana de assum i r suas deci sões a par t i r de um esf or ço de
aut onom i a e r aci onal i dade. Nem sem pr e i sso é possív el .
O que faz o hom em não ser r aci onal pl enam ent e? M ui tas
coi sas. Insti nt os, t ar as, o cor po e sua f i si ol ogi a e pat ol ogi a, o
contex t o psi col ógi co em que nasceu, a f al t a de gr ana, o
r essent i m ento que o afoga em i nv ej a do cunhado m ai s r i co ou da
cunhada m ai s gost osa, enf i m , m oti v os é que não f al tam par a não
ser m os pl enam ente r aci onai s.
Ex i st e, ent r et anto , um m ot i v o m ai s pr ofundo par a i sso.
Os gr egos usav am a pal av r a pathos par a descr ev er for ças, i nt er nas ou
ex t er nas, capazes de nos subm et er . T r aduzi m os essa pal av r a por
pai x ão ou em oção, m as tam bém por doença (patol ogi a). Nossa
capaci dade de agi r r aci onal e aut onom am ent e depende do quant o de
pathos age sobr e nós. Por t ant o, desde a f i l osof i a anti ga, suspei t a- se
dos l i m i t es da aut onom i a r aci onal hum ana. Na f i l osofi a m edi ev al , o
cr i sti ani sm o acaba t r azendo par a dent r o desse debat e a i dei a de
pecado. O pecado destr ói nossa capaci dade de j ul gam ent o e
ent endi m ent o da r eal i dade, f azendo- nos de escr av os da
concupi scênci a (a atr ação i r r esi stí v el pel o pecado): bast a l em br ar de
v ocê dom i nado pel as per nas de um a gost osa, ou v ocê, car a l ei tor a,
desej ando m ui to f azer coi sa er r ada por aí ...
Já na m oder ni dad e, autor es com o os r om ânt i cos (de que j á
f al am os ant es) duv i dav am dessa r aci onal i dade t oda e achav am que el a
poder i a nos enl ouquecer por que ser i a cont r a nossa natur eza m ei o
m i ster i osa e i r r aci onal . For am esses r om ânt i cos que pel a pr i m ei r a
v ez f al ar am em i nconsci ent e. Fr eud e seus segui dor es cr i ar am um a
di sci pl i na, a psi canál i se, que negav a a pl ena aut onom i a do Eu
(“ f er i da nar císi ca” na l i nguagem de Fr eud er a saber que não som os
senhor es em nos sa pr ópr i a casa, o i nconsci ent e é esse senhor ).
I m er sos em t r aum as i nconsci ent es e em pul sões i nf i ni t as, par a a
psi canál i se, consegui m os só com m ui t o esfor ço um pouco de r azão e
um pouco de autonom i a.
M esm o o m ar x i sm o e com panhi a e seu concei t o de
i deol ogi a det er m i nar am que nossa cl asse econôm i ca defi ni r i a em
par t e nosso pensam ento e nossas em oções.
Então, o que sobr a di sso t udo? Val e a pena buscar ser
r aci onal e r esponsáv el ? Cl ar o que v al e, m as não quei r a r ecom pensas.
Nada gar ante que v ai dar cer to, m as, cr ei o, a ex per i ênci a do
am adur eci m ent o m ostr a que, ai nda que sej a pr ecár i a, a t ent ati v a de
ol har par a o m undo pel os ol hos da r azão sem pr e nos aj uda a
ent endê- l o m el hor . E i sso nos l ev a a al gum a ex per i ênci a de
aut onom i a. O hom em não é um ser r aci onal pl enam ente, nem pode
sê- l o, a m enos que sej a doent e. Nem por i sso dev em os desi st i r de ser
r aci onai s em al gum a m edi da. Com o di zi a o gr ande Nel son Rodr i gues
(sécul o XX), a r azão é al go que se busca com o m esm o sof r i m ent o
que a sant i dade. M ui t as v ezes cont r a sua pr ópr i a nat ur eza de bi cho.
Nesse sent i do, ser r aci onal é um esf or ço que m er ece nosso cui dado.
CAPÍTULO 12

Mat erialismo

Essa pal av r a si gni f i ca duas coi sas em f i l osofi a. A pr i m ei r a, e m ai s


ant i ga, e m ai s i m por t ant e, dat a da Gr éci a e quer di zer o segui nt e:
t udo o que ex i st e é fei t o de át om o, e quando m or r em os tudo acabar á.
A segunda, m ai s r ecent e, f i l ha da t r adi ção soci ol ógi ca (M ar x , no
sécul o XI X, nav ega nesse sent i do), quer di zer que o m undo do
pensam ent o, dos af et os e das i nst i tui ções pode ser ex pl i cado pel as
r el ações m at er i ai s que se t em em soci edade, t ai s com o m odos de
pr odução, com ér ci o, guer r as, i nst i t ui ções, e por aí v ai . Um ex em pl o
si m pl es di sso ser i a: se v ocê anda de ôni bus, v ocê am a de um j ei t o; se
v ocê anda de hel i cópt er o, v ocê am a de out r o j ei to. Entendeu? Am or ,
aqui , ser i a f unção do m odo com o v ocê se desl oca no m undo, que por
sua v ez ser i a f unção de quant a gr ana v ocê t em , que por sua v ez ser i a
f unção do seu l ugar na cadei a pr odut i v a de bens, ou sej a, v ocê é
agent e ati v o ou v í ti m a passi v a?
A i m por t ânci a desse v i és est á em nos aj udar
(i ndependentem ent e da v i agem l ouca de M ar x e seu com uni sm o) a
pensar a soci edade sem n enhum r ecur so da m et afí si ca com o
f undam ent ação da hi st ór i a. I sto é, não pensar que a hi st ór i a possa ser
conheci da sem l ev ar em cont a as r el ações concr etas que os hom ens
est abel ecem ent r e si par a cr i ar o m undo em que v i v em . E tam bém
sem i m agi nar que ex i st a um sent i do m etaf í si co par a a hi st ór i a, ou
que el a est ej a i ndo par a al gum l ugar . A pr opósi t o, per cebem os o
car át er m et af í si co de M ar x na m edi da em que el e achav a que a
hi st ór i a est av a i ndo par a al gum l ugar , a saber , o com uni sm o.
Vou v ol t ar par a a for m a m ai s ant i ga de ent ender o
m at er i al i sm o, por que el a é que at or m ent a os ser es hum anos com uns,
com o eu e v ocê. O m at er i al i sm o hi st ór i co, com o os m ar x i stas
cham am sua t eor i a, apesar de ser bastant e sof i st i cado (e, m ui tas
v ezes, del i r ant e quando quer pr ev er o f ut ur o e o com por tam ent o
hum ano em sua tot al i dade), per m anece m ui to di st ant e da per cepção
da r eal i dade m ai s i m edi at a que os m er os m or t ai s t êm . Apesar de que,
de cer ta f or m a, o m ater i al i sm o hi st ór i co é const r uí do pel o com bate
const ant e que os hum anos t êm com sua r eal i dade pr ecár i a e f i ni t a,
por i sso m esm o econôm i ca.
M as, af i nal , tudo é f ei t o só de át om os?
Si m , segundo os gr egos anti gos, gent e com o Dem ócr i t o
(460- 370 a.C.), Leuci po (fi l ósof o pr é- socr át i co), Epi cur o e o r om ano
Lucr éci o (99- 55 a.C.). Não só a af i r m ação m at er i al i sta (ou atom i st a) é
i m por t ant e em si , m as as consequênci as del a, ou sej a, não ex i st i r i a
v i da após a m or te, nem a m or al ser i a f undam ent ada num bem m ai or
m et afí si co. E i sso é um pr obl em a par a a m ai or i a de nós, com o j á
f al am os ant es (eu, com o di sse, nunca m e i nter essei pel a v i da após a
m or t e). E m ai s: se tudo é apenas m at ér i a, e nada ex i st e de m etaf í si co,
com o f i cam os v al or es com o o bem ou a j usti ça? (Esse pr obl em a
t am bém j á v i m os.) O m ater i al i sm o não é um pr obl em a em si , m as o é
pel as consequênci as que decor r em del e. A m ai or i a das pessoas j ul ga
que o m at er i al i sm o nos l ev ar i a à depr essão e à fal t a de sent i do na
v i da. Ao caos tam bém . Ser á?
M ui t os f i l ósof os m at er i al i stas t ent am r esponder a essas
per gunt as, e v er em os al gum as del as aqui . A questão quase sem pr e é
r esponder ao nosso t em or de que o m at er i al i sm o nos t r ansf or m e em
m er os bi chos, am ont oados d e átom os, sem v al or es, sem al m a, sem
f ut ur o. Ser á?
Não par a Epi cur o e Lucr éci o. M as, par a m ui t os, suas
sol uções são ou i ngênuas ou desesper adas. Vej am os.
Não sabem os m ui ta coi sa sobr e Dem ócr i t o e Leuci po,
al ém de que el es t er i am si do os pr i m ei r os a f al ar de átom os com o
par t í cul as i ndi v i sí v ei s de que t udo ser i a fei t o. At é onde se sabe, par a
el es, o uni v er so, e nós dent r o del e, ser i a com post o dessas par t ícul as
que se m ov i m entam eter nam ent e e sem dest i no, f or m ando e
desf or m ando cor pos m ai or es e m enor es, m ai s densos e m enos
densos, ent r e el es nossa al m a, um a espéci e de ar que se esv ai com o
úl t i m o suspi r o. Por t ant o, nada de v i da após a m or t e.
Epi cur o e Lucr éci o av ançar am nessa i dei a di zendo que os
át om os, por al gum a r azão, desv i av am de sua r ot a sem dest i no e
bat i am uns nos out r os, f or m ando e desf or m ando os t ai s cor pos que
com põem a m atér i a total do uni v er so. Par a essa v i r ada, el es der am o
nom e de cl i nâm en.
Par a todos os at om i st as ant i gos, por t ant o, o f undo da
r eal i dade é caót i co e sem sent i do nenhum . Não se pode deduzi r de
par t í cul as doi das m or al al gu m a, bem al gum , j usti ça al gum a, a não
ser a negação de qual quer or dem f undam ent ada nesse f undo da
r eal i dade. É i sso que af et a m ui t a gent e. Por quê?
Si m pl es. Aquel es que acr edi tam em Deus ou si m i l ar es
pr esum em que esse f undo da r eal i dade é El e ou sua v ontade supr em a
(por t ant o, um f undo da r eal i dade m etaf í si co e não f í si co, com o os
át om os, e que se pr eocupa conosco aci m a de t udo). Deus sabe o que
f az, por que os cr entes pensam que El e é l egal , m esm o que, às v ezes,
sej a um pouco di f íci l de ent ender .
Já par a car as com o Epi cur o e Lucr éci o, est am os sós nessa.
O uni v er so é v azi o em ter m os de pl anos, suas par t í cul as v agam por
espaços i nfi ni t os, sem que ni nguém sai ba nada del as. É essa sol i dão
dos espaços i nf i ni t os que at er r or i zav a gêni os com o Bl ai se Pascal no
sécul o XVII , após a f ísi ca at om i st a new toni ana. Essa sol i dão gr i ta em
nossos ouv i dos pal av r as de espant o. Com o enf r ent á- l a? Est am os aqui
num dos cor ações do dr am a hum ano.
Esse cor ação do dr am a hum ano apar ece cada v ez que o
sof r i m ento bate em nossa por t a. Com o sobr ev i v er ao m edo de que o
f undo da r eal i dade sej a a cont i ngênci a (sor t e- azar , acaso) dos
át om os? Não há ni nguém al i par a nos consol ar ? Os m edi ev ai s
f al av am m ui to de consol ação da al m a por que pr eci sam os de
consol ação. Os m at er i al i stas (que, al ém dos gr egos f undador es,
som am gente com o Ni et zsche, Sar t r e, Cam us, Ci or an, entr e out r os),
ao l ongo da hi stór i a da fi l osof i a, tent ar am al gum as f or m as de
acal m ar nosso cor ação am ed r ont ado. Vej am os al gum as del as.
Entr e os ant i gos, t entav a- se super ar esse m edo di zendo
que na hor a da m or t e não estar í am os pr esent es, por que, um a v ez a
m or t e i nstal ada, não hav er i a consci ênci a al gum a del a, j á que é a
negação da consci ênci a. Sem pr e achei essa i dei a epi cur i st a i ngênua,
na m edi da em que nosso m edo não é o nada m as o sofr i m ent o até a
m or t e, al ém da per da do que si gni f i ca a v i da em si . M as Epi cur o
est av a em busca de um ar gum ento que acal m asse os cr ent es di ant e do
m edo de que os deu ses nos ator m ent ar i am em nossa et er ni dade. Ao
di zer que com a m or te não estar í am os m ai s pr esentes em l ugar
al gum , Epi cur o nos gar ant i a que os deuses nada poder i am fazer
contr a nós, na m edi da em que não ex i st i r í am os par a ser
at or m ent ados por el es. Esse aspecto do ar gum ent o m e par ece m el hor
do que a t ent at i v a de acal m ar nosso m edo da m or te enquanto t al . O
r epouso na pedr a pode ser um fi m r azoáv el par a um a consci ênci a que
não r el ax a nunca com o a nossa.
Af or a Sar tr e (sécul o XX), que se equi v ocou f ei o quando
achou que M ar x f i car i a no l ugar de Deus (r i sadas?), gent e com o
Ni et zsche e Cam us, fi l ósof os at eus (e, por t ant o, m ui t o pr óx i m os do
m at er i al i sm o enquant o tal ), apost ou na busca da cor agem com o
v i r t ude m áx i m a, t ent ando v i r ar o j ogo e di zer que a cor agem de
enf r ent ar a apar ent e f al t a de senti do da v i da (i ntr í nseca à i dei a de
m at er i al i sm o, f i ni tude e i nex i st ênci a da f undam ent ação do bem
m or al ), e não o m edo dessa f al t a de sent i do, é que nos dar i a gost o
pel a v i da. Ser á?
Ser á que som os t ão cor aj osos assi m ? Esper o que si m ,
senão est e m anual de f i l osofi a par a cor aj osos não ter á públ i co. Até
por que a cor agem não é al go que se com pr a em f ree shop. Com o t oda
v i r t ude, com o di zi a Ar i stótel es, é um saber pr át i co. Só se sabe o que
é cor agem quando se é cor aj oso.
Concor do com Ar i stótel es, Ni et zsche e Cam us, m as acho
que v i sões com o a m at er i al i st a l ev am m ai s pessoas a r em édi os
ansi ol í ti cos do que à cor agem . Som os ser es m edr osos por que
sabem os m ai s do que dev em os e m enos do que pr eci sam os. Essa
consequênci a “ m édi ca” do m at er i al i sm o em nada depõe contr a el e,
um a v ez que descr ev e nosso desesper o e não nega a af i r m ação
m at er i al i sta acer ca da f i ni t ude hum ana e da i nex i st ênci a de um a
f undam ent ação absol ut a par a o bem – j á que o f undo da r eal i dade
ser i a o caos at ôm i co e sua i ndi f er ença par a com nossa necessi dade de
sent i do.
Enfi m , os m at er i al i stas t er ão r azão? Acho que si m , m as
não há pr ov as nem que si m nem que não. As nar r ati v as espí r i tas m e
par ecem i nf anti s, m esm o por que os espír i t os nunca sabem m ai s do
que nós. Ent r et anto, nosso d esesper o é t al que ai nda assi m a m ai or i a
de nós cr ê nel es. A cor agem da qual fal a Ni et zsche e Cam us m e par ece
um a i dei a m ui t o el egant e e m ui t o pr óx i m a da v i r tude her oi ca:
adm i r am os quem dem onstr a não ter m edo di ante do chef e ou de
qual quer si t uação m ai s dr am át i ca na v i da, m as, assi m com o a
m ai or i a dos eur opeus col abo r ou com os nazi stas dur ant e a Segunda
Guer r a M undi al , cr ei o que cont i nuam os opt ando pel o m edo e pel a
m ent i r a que ser v em à nossa sobr ev i v ênci a. Apesar de a m or al sofr er
com a t eor i a m ater i al i st a, m ui tos f i l ósof os sustentar am e sustentam
que não pr eci sam os de deuses par a agi r segundo o que é cer t o (sej a l á
o que i sso f or ). I sso v am os v er no pr óx i m o capí t ul o, quando
enf r ent ar em os o que cham am os de m or al ou éti ca.
CAPÍTULO 13

Moral ou ét ica

Ant es de t udo, um escl ar eci m ento: do pont o de v i sta da hi st ór i a da


f i l osofi a, a di f er ença entr e m or al e ét i ca é a m esm a que ex i st e entr e
m esa e t able. M or al é a t r adução l ati na par a a pal av r a gr ega or i gi nal
ét i ca. Vou usar as duas com o si nôni m os. Apesar di sso, v al e a pena
escl ar ecer o que as pessoas t êm em m ent e quando assum em que
ex i st e um a di fer ença entr e el as.
Par a a m ai or i a, ét i ca é o cam po das nor m as de condut a,
enquant o m or al é a par te d a fi l osof i a que r ef l et e sobr e hábi t os e
cost um es. Am bas são as duas coi sas ao m esm o t em po, por que faz
par t e da r ef l e x ão sobr e hábi t os e costum es pensar sobr e as nor m as
que dev em r egr ar esses hábi tos e costum es. E m ai s: não ex i stem
hábi t os e cost um es que não sej am per m eados de nor m as, m ui tas
v ezes quase aut om át i cas ou espont âneas.
O que são hábi t os e cost um es? Gener osi dade, cor agem ,
j ust i ça, di sci pl i na, entr e out r os. Par a Ar i st ót el es, os bons hábi tos e
cost um es (as t ai s v i r t udes) dev er i am ser pr at i cados a pont o de se
t or nar em um a segunda nat ur eza, por t ant o aut om át i cos ou
espontâneos, com o eu di zi a aci m a. A escol a m or al m ai s ant i ga é a de
Ar i st ót el es, conheci da com o m or al das v i r tudes ou do car át er . Par a
el e, ao l ongo da v i da i ndi v i dual e da v i da col eti v a dos pov os,
desenv ol v em os hábi tos e cost um es que nos def i nem com o ser es
m or ai s. A questão é que esses hábi tos e cost um es não são t ão
v ar i ados assi m com o se pensa quando se t r at a do v al or del es par a a
v i da m or al de um a pessoa ou gr upo. Por ex em pl o, cor agem é
cor agem e cov ar di a é cov ar di a em qual quer que sej a o l ugar . Sej a no
cam po de bat al ha, sej a di ant e do chef e da f i r m a. Gener osi dade é a
m esm a coi sa, estej a em j ogo um pr at o de com i da, est ej a em j ogo
aj udar um col ega na f acul dade, est ej am em j ogo al guns m i l har es de
dól ar es. Par a o f i l ósof o gr ego, desenv ol v er boas v i r tudes er a com o
apr ender a t ocar bem um i nst r um ent o. A ét i ca é um a ci ênci a pr át i ca,
j am ai s t eór i ca. Não se ensi na cor agem a não ser se v i v endo a
cor agem . Nesse sent i do, a m or al não é dependent e de nenhum v al or
do out r o m undo ou de Deus; é um esf or ço das pessoas par a v encer v í
ci os e dar condi ções aos m ai s j ov ens de desenv ol v er m el hor es
hábi t os e costum es. Essa é a escol a m or al que m ai s apr eci o e j ul go
cor r et a, apesar de que, com a m oder ni dade e as soci edades
gi gant escas que sur gi r am , e o anoni m at o consequente, às v ezes fi ca
di f í ci l pensar m os no r econh eci m ent o das v i r t udes. Vi r t ude é sem pr e
públ i ca, i st o é, o outr o r econhece em m i m a v i r tude. Nada de
m ar k et i ng do bem nem autopr ocl am ação das pr ópr i as v i r tudes.
Quem cant a as pr ópr i as v i r t udes é um m enti r oso ou or gul hoso.
Ai nda no m undo do anoni m at o e das di st ânci as nos
v í ncul os, a escol a das v i r tudes m e par ece m ui t o consi st ent e,
sobr et udo na er a do m ar k et i ng em que v i v em os.
Vol t ar em os adi ant e à quest ão da associ ação ent r e
m ar k et i ng e m or al , m as, ant es, gost ar i a de di zer que não há consenso
sobr e o que é ét i ca ou ser ét i co. Só gent e m al i nf or m ada pensa que
ex i st e. Al ém da escol a das v i r tudes, há duas out r as escol as ét i cas
m ui t o i m por t antes. Depoi s de f al ar del as, tr at ar em os de al guns
aspect os decor r ent es desse debat e par a o m undo cont em por âneo nos
capí t ul os a segui r .
A segunda gr ande escol a ét i ca é a de Im m anuel Kant,
conheci do por ser um r aci onal i sta e cr er num a possí v el m or al
f undam ent ada em i m per ati v os cat egór i cos (!). Em fi l osof i a,
cat egór i co é si nôni m o de uni v er sal , o que si gni f i ca que um
i m per at i v o dev e v al er par a t odo m undo, do cont r ár i o não v al e par a
ni nguém . Se não v al er par a todos, não é ét i co. Kant per cebeu que,
com a di ssol ução do m undo m edi ev al r ur al , no qual as pessoas se
conheci am , e a v er gonha di ant e do gr upo ou da com uni dade ex er ci a
um fat or de const r angi m ent o no com por t am ent o del as, sur gi r i a a
necessi dade de outr os f und am entos par a as nor m as de condut a.
M esm o o cr i sti ani sm o (cl ar o que est am os f al ando da Eur opa)
decl i nar i a com o fundam ent o suf i ci ent e do com por t am ent o m or al .
Ser i a necessár i o encont r ar um a f undam ent ação par a a m or al
(ent enda: par a bons hábi t os, cost um es e nor m as) em al gum t er r eno
que esti v esse ao al cance de t odo hom em e m ul her que pensasse. Esse
t er r eno ser i a a r azão pr át i ca, ou sej a, um com por t am ent o r aci onal . A
ev ol ução nat ur al desse pr ocesso ser i a a t r ansf or m ação da ét i ca num a
“ pr ov í nci a” da l ei posi ti v a. Num m undo com pl ex o e gi gant esco
com o o nosso, ét i ca e l ei se conf undem a fi m de t or nar a nor m a
sust ent áv el .
Daí Kant supor que se encont r ássem os r egr as
(i m per ati v os) uni v er sai s, poder í am os f undam ent ar a ét i ca par a al ém
dos pequenos pov oados t r adi ci onai s, em v i a de desapar eci m ent o por
causa do av anço bur guês. O bur guês, com sua técni ca, sua v el oci dade
e seu despr ezo pel o passado e pel as cr enças r el i gi osas l ocai s e
ancest r ai s, j ul gav a que esses m ar cador es m or ai s t r adi ci onai s
at r apal hav am os negóci os. A cr ít i ca ao pr econcei to é f r ut o deste
pr i ncí pi o: por que não fazer negóci o com negr os, j udeus ou gay s, se
t odos podem ganhar com i sso? Esses i m per at i v os ser i am v ál i dos
por que t er i am de ser bons par a t odos. Ex em pl o: ni nguém dev e
m ent i r . Par a Kant, se ni nguém m ent i r , o m undo ser á m el hor por que
t odos poder ão conf i ar em to dos e a v i da ser á t r anspar ent e. Cl ar o que
na pr áti ca a i dei a não f unci ona 100% por que só pessoas i nsensív ei s
ou m al - educadas di zem a v er dade o t em po t odo. Faz par te da
ur bani dade e da el egânci a soci al saber que dev em os ev i t ar di zer
coi sas que causem m al - est ar desnecessár i o. Por ém , per m anece sendo
i m por t ant e que m ent i r o tem po t odo dest r ói o teci do soci al e as
r el ações ent r e os ser es hum anos. Por t ant o, di zer a v er dade, ai nda que
não sej a possí v el sem pr e, dev e ser v i sto com o um m ecani sm o
r egul at ór i o do com por t am en to par a que possam os ter al gum gr au de
confi ança no am or , na fam í l i a, nas am i zades e nos negóci os. Al guns
acham que tam bém na pol í t i ca, m as eu duv i do um t ant o di sso. De
pol í t i ca, fal ar em os um pouco m ai s adi ant e.
Out r o ex em pl o: nunca use um ser hum ano com o m ei o
par a al go, apenas com o f i m . Est e nos l ev a ao concei t o de di r ei t os
hum anos, t ão i m por tant e na her ança da Rev ol ução Fr ancesa, apesar
de el a t er si do um t er r or absol ut o... A i dei a de Kant não é r ui m ,
apesar de par ecer i ngênua, e de f at o o é. Di zer que não dev em os usar
um ser hum ano com o m ei o, m as si m com o f i m , si gni f i ca que não
podem os f azer del e “ um a coi sa” , m as si m que a soci edade dev e t ê- l o
com o f i m em tudo o que el a f i zer : em out r as pal av r as, o hom em é o
obj et i v o supr em o da soci edade, e fazer a v i da del e m enos sofr i da
dev e ser a m et a de qual quer soci eda de decent e. Essa i dei a t am bém é
um pouco i r r eal na m edi da em que as r el ações de sobr ev i v ênci a
m at er i al (e seus escassos r ecur sos) i m pl i ca que m ui tos de nós som os
m ei os par a que out r os, com o nossos f i l hos por ex em pl o, possam
sobr ev i v er . Ou sej a, a necessi dade econôm i ca (ci ênci a da escassez)
i m pl i ca ser m os, m ui tas v ezes, m ei os par a a sobr ev i v ênci a da
soci edade ao l ongo dos m i l êni os.
Se v ocê qui ser entender a v al i dade da i dei a de Kant de um
m odo m ai s si m pl es, i m agi ne a segui nte si t uação: pense que v ocê
di v i de a casa com am i gos. A gor a i m agi ne que um del es se r ecusa a
l av ar a l ouça. El e não estar á sendo ét i co no sent i do k ant i ano, por que
se todos pr eci sam l av ar l ouça, não há por que um dev a escapar desse
encar go. A m el hor f or m a l ógi ca de col ocar o i m per ati v o cat egór i co
k anti ano é: só é ét i co o que v al e par a t odos, se não v al e par a um não é
ét i co. Kant cham a at enção par a o fat o de que se v ocê for cham ado a
j ul gar al go em que t em i nt er esse di r et o em um dos possív ei s
r esul t ados, abr a m ão da função de j ul gar essa si tuação, um a v ez que
sua av al i ação poder á ser pr ej udi cada por el em ent os em oci onai s no
pr ocesso. Kant v i a a éti ca co m o um cam po de pr át i ca r aci onal aci m a
de t udo. Ai nda que m ui to l onge da r eal i dade com ezi nha e concr et a em
que v i v em os na r eal i dade, a éti ca k anti ana se sustenta com o t ent ati v a
m oder na essenci al de som ar esf or ços par a agi r m os de m odo
m i ni m am ente r aci onal e l ev ar m os em cont a o m ai or núm er o de
pessoas env ol v i das no pr ocesso, ai nda que nem sem pr e todas de
m odo i deal . A per da dos v ín cul os pr óx i m os das com uni dades pr é-
m oder nas, base dos hábi t os e cost um es que sust ent av am a v i da
dentr o de cer t os tr i l hos, en cont r ou na éti ca k ant i ana um a t ent ati v a
si ncer a de sust ent ar a v i da a par t i r daqui l o que Kant e outr os j ul gam
ser cent r al em nossa v i da: a r azão. Se el es, os r aci onal i st as, est ão
cer t os, é out r a coi sa. Com o eu di sse ant es, não cr ei o que sej am os
ser es r aci onai s em sua pl eni t ude. Ao cont r ár i o, penso que m ui tas são
as pr essões i nt er nas e ex ter nas sobr e nós par a que a r azão sej a a
senhor a absol ut a em nossa v i da. E m esm o aquel es que t ent am v i v er
pur am ente pel a r azão r ev el am um a t ar a especí fi ca: a t ar a de el i m i nar
da v i da t udo o que não sej a l i m pi nho e or denado. M esm o a pai x ão
pel a r azão é, el a m esm a, i r r aci onal . M as i sso não si gni f i ca que não
haj a um v al or pr of undo em tent ar t or nar a v i da m enos i r r aci onal . É
com pl i cado m esm o, si nto m ui t o por aquel es que sonhav am com um
m undo m el hor à custa da ét i ca. Ri sadas? Pensar que a ét i ca f az o
m undo m el hor é par a os f r acos.
A t er cei r a gr ande escol a é conheci da com o ut i l i t ar i sm o,
f undada por autor es com o Jer em y Bentham e John Stuar t M i l l (este
conheci do com o o pr i m ei r o f em i ni st a da f i l osof i a) na v i r ada do
sécul o XVI I I par a o XIX . Essa é a pr i nci pal escol a ét i ca
contem por ânea, apesar de m ui t os posar em de k ant i anos. O pr i ncí pi o
ut i l i t ar i sta é o segui nt e: o hom em f oge da dor e busca o pr azer ou
bem - est ar . Não se dev e ent ender aqui pr azer com o al gum a f or m a de
hedoni sm o m oder no do t i po r eal i zar o m eu desej o é m i nha ét i ca
(t er em os opor t uni dade de tr at ar di sso).
O bem - estar ut i l i t ar i st a é ant es de tudo um bem - estar
col et i v o, e não i ndi v i dual . I dei as com o i ncl usão e ex cl usão v ão bem
no car dápi o uti l i t ar i sta, na m edi da em que quanto m ai s pessoas
i ncl uí das no bem - est ar , m ai s bem - est ar o gr upo e seus i ntegr ant es
ex per i m ent ar ão. A i dei a de um bem - est ar ut i l i t ár i o i ndi v i dual i sta é
est r anho a essa escol a éti ca.
H á um a questão pr év i a à pr ópr i a i dei a de bem - estar que
dev e ser di ta. Os uti l i t ar i st as v i am a si m esm os com o f i l ósof os
r adi cai s, no sent i do de l ev ar em em conta o que el es cham av am de
r ecur sos da nat ur eza hum ana – hoj e em di a di r í am os r ecur sos do
com por tam ent o hum ano. Com i sso, el es f undar am um a for m a de
r ef l ex ão éti ca que podem os cham ar de em pí r i ca ou com por t am ent al :
ol hem os os hom ens antes d e cr i ar i dei as abst r at as sobr e o bem e o
m al . Segundo esse pr i ncí pi o, de nada adi ant a defi ni r m os o bem e o
m al se não l ev ar m os em cont a que o gr osso dos ser es hum anos
j am ai s consegui r á escapar da m áx i m a ut i l i tár i a: f ugi m os da dor ,
buscam os o bem - estar .
No sécul o XX, um ut i l i t ar i st a m ui t o fam oso cham ado
Pet er Si nger di r á que a m áx i m a or i gi nal pecav a por pensar apenas
nos ser es que t êm consci ênci a da dor , l ogo, os hum anos. Si nger
def ende que os ani m ai s, com senci ênci a (espéci e de consci ênci a
sensor i al ) da dor , dev em ser i ncl uí dos na ét i ca uti l i t ár i a. Esse
pr essuposto al ar gado cr i ou a t ese do hum ani sm o ani m al , que
di scut i r em os na sequênci a.
Os ut i l i t ar i st as co nsi der am qual quer t ent ati v a de def i ni r o
bem em si ou o m al em si com o f or m as de m et afí si ca m or al , e por
i sso i nút ei s. A obser v ação do com por t am ent o hum ano e ani m al
r ev el a que nós f ugi m os sem pr e da dor quando podem os, e essa f uga
f oi cham ada de escol ha r aci o nal , no sent i do de que é r aci onal (e os
ani m ai s são r aci onai s, por que senci ent es o suf i ci ente par a i sso)
escapar do sofr i m ent o.
As soci edades cont em por âneas são bastante ut i l i t ár i as,
ai nda que não t enham consci ênci a ex pl í ci t a desse f at o. M ar x t i nha
r azão quando di zi a que o ut i l i tar i sm o er a um a ét i ca par a m er ceei r o
i ngl ês, por que o t r aço bur guês é ev i dente: ser com pet ent e em r eduzi r
o sof r i m ento é par t e da pr opost a de cont r ol e da v i da que as
r ev ol uções bur guesas car r egam em si .
O ut i l i t ar i sm o i m pl i ca “ cál cul os” de com por t am ento,
com o di zi a Bent ham . Par a el e, um at o que v i sa ao bem - est ar dev e
l ev ar em conta coi sas com o a i ntensi dade, a dur ação, a f ecundi dade
(um at o que se m ul t i pl i ca em out r os causando m ai s bem - est ar do
que o pr i m ei r o da sér i e), a r api dez do efei t o um a v ez r eal i zado o ato,
a cer t eza de at i ngi r o al v o em quest ão e não outr o, e, por úl ti m o, a
segur ança de que o at o causar á bem - est ar e não m al - est ar . Já par a
M i l l , o at o uti l i tár i o dev e l ev ar em cont a di m ensões do hum ano, tai s
com o r aci onal i dade, i m agi nação, sent i m ent os m or ai s e l i ber dade. A
base do ut i l i t ar i sm o é um a sof i sti cada com bi nação de obser v ação do
com por tam ent o hum ano em busca de bem - estar e cr ença na
r aci onal i dade de nossas deci sões par a chegar a esse bem - estar .
Já no i ní ci o do sécul o XX, Al dous H ux l ey escr ev eu o
m ai or panf l et o ant i uti l i tár i o conheci do, Admi rável mundo novo. Sua
di st opi a de um m undo per f ei to é, at é hoj e, m e par ece, o que há de
m el hor em cal cul ar os r esul t ados de um a soci edade que f ar i a a opção
pel o r aci onal i sm o uti l i tár i o de f or m a def i ni ti v a. Vej am os.
Nesse adm i r áv el m undo nov o, a per f ei ção de um a
soci edade que el i m i nou o contr adi t ór i o m ost r a, ai nda que de m odo
car i catur al , seus ef ei tos col at er ai s danosos. Ser es hum anos que
optam por um a v i da per f ei t a acabam escr av os dessa per f ei ção. Se o
“ er r o” de Kant é apost ar num a r azão pur a pr át i ca (nom e técni co da
m or al em seu l i v r o sobr e o tem a) que não est á ao al cance de um ser
hum ano r eal conf uso e f r aco, o “ er r o” dos ut i l i t ár i os é fr ut o do que
“ sobr a de acer to” em sua éti ca: estão cer t os em di zer que f ugi m os da
dor e buscam os o bem - est ar , m as est ão er r ados em achar que
podem os const r ui r um a soci edade em ci m a da busca ci ent íf i ca de
f el i ci dade. O uti l i tar i sm o é um r aci onal i sm o bur guês. Pr ot ocol os
necessár i os na gestão de um a em pr esa podem causar danos na gest ão
da v i da. As pessoas no l i v r o de H ux l ey er am um as i di ot as fabr i cadas
genet i cam ent e. As pessoas do m undo r eal são um as i di ot as obcecadas
pel a saúde e pel a fel i ci dade. A v i da pr eci sa ser um pouco
desper di çada e suj a, senão se t or na um a natur eza- m or ta per f ei ta. É
i sso que H ux l ey apr eendeu ai nda nos anos 1930: segundo el e, no
f ut ur o pedi r íam os par a ser escr av os de pr ocedi m ent os de saúde e
f el i ci dade. E acer tou em chei o, não?
O f r uto do ut i l i t ar i sm o é o hi gi eni sm o da l i ber dade.
H ux l ey t r aduz o m undo per f ei to por um a t r agédi a da l i ber dade que
se v ê l i m i t ada a um chi quei r i nho de gent e gr ande sem pr e l i m pi nha.
I m agi ne se um di a di sser em que sex o or al causa doenças. Com o ser i a
a v i da possí v el sem sex o or al ? O r i sco t ot al i t ár i o do uti l i tar i sm o é
enor m e, com o na ét i ca k ant i ana cat egór i ca. Se l á t odo m undo dev e
ser sant i nho, aqui todo m undo dev e ser l i m pi nho. Acho a ét i ca das
v i r t udes de Ar i st ót el es a m el hor , por que v ê a v i da m or al com o um
com bat e em busca de bons hábi t os, sem pr escr i ção de
com por tam ent os que t endem a nor m as categór i cas. Nesse sent i do, é a
m ai s hum ana das tr ês esco l as. Nesse sent i do, m e consi der o um
ar i stotél i co em éti ca.
E onde f i cam os ani m ai s nesse negóci o? Quai s as
consequênci as da apl i cação do ut i l i tar i sm o de Pet er Si nger aos
ani m ai s, um a v ez que os com em os? Som os uns m onst r os? Aqui , de
nov o, o uti l i tar i sm o r ev el a sua v ocação par a um a sant i dade da
hi gi ene per v er sa da v i da.
Sem dúv i da, há que def ender os ani m ai s dos abusos. Sou
um apai x onado por cachor r os. Sem pr e l ev ei a sér i o a m áx i m a de que
quem m al t r ata ani m ai s não m er ece conf i ança. M as a v i da tem em si
um gr au de v i ol ênci a que só os m aní acos segui dor es de Si nger
par ecem não enx er gar . Suspei t o que sua sant i dade a f av or dos
ani m ai s é m ai s f r ut o de um a per sonal i da de aut or i t ár i a do que de
qual quer bondade. E m ai s: é m ai s f áci l am ar os ani m ai s do que os
ser es hum anos, esses t r ai çoei r os.
O uti l i t ar i sm o an i m al (a def esa de que os ani m ai s têm
senci ênci a da dor e, por i sso, dev em ser t r atados com o “ gente” )
sust ent a o concei t o de “ especi sm o” com o anal ogi a ao r aci sm o (o
hum ani sm o ani m al ser i a seu contr ár i o): achar que ani m ai s não
m er ecem as m esm as l ei s que os hum anos é f azer del es escr av os,
por que ser i am consi der ados um a espéci e i nf er i or . Concor do em
par t e com essa i dei a. Ver ani m ai s sof r er f er e nosso afet o m or al . M as
daí a di zer que dev em os l i m par a v i da do sangue que el a m esm a
despej a no m undo par a se m ant er (pr oi bi r a i nser ção hum ana na
cadei a al i m ent ar , nos condenando a um a v i da de al f ace e t om at es) m e
par ece um a i dei a i di ot a e t í pi ca de t i r anos di sf ar çados de gent e que
am a os ani m ai s. A v i da é bel a, v i ol ent a e i m unda, não há com o f ugi r
di sso sem el i m i nar a pr ópr i a v i da. A nor m at i v i dade m or al sem pr e
f oi um dos ter r enos em que al m as v i ol entas e aut or i tár i as se sentem
em casa. Os pur i tanos cr i stão s dos sécul os XVI e XVII e os pur i t anos
pol í t i cos dos sécul os XX e XXI (os pol i ti cam ent e cor r et os) são esse
t i po de gent e v i ol ent a e aut or i tár i a.
O tem a é i nt er m i náv el . Dedi car em os m ai s al guns
capí t ul os a al guns desdobr am entos del e, com um a car a m ai s
contem por ânea.
CAPÍTULO 14

Aét ica dos valores

O que são v al or es m or ai s? T odo m undo f al a, m as ni nguém sabe ao


cer t o. Um a di ca: quando v ocê ouv i r al guém f al ando m ui t o de v al or es
i sso, v al or es aqui l o, cui dado! El e v ai bat er sua car t ei r a (ex cl uí o
“ el a” aqui por que não acho que as m ul her es cost um am ser t ão
cr i m i nosas com o os hom ens, e, quando o são, o dano m or al é
sem pr e m ai or par a el as). Out r o papo com um hoj e sobr e o tem a
v al or es é: “ Ni nguém hoj e t em m ai s v al or es” . O i nter essant e dessa
l adai nha é que, ao m esm o tem po, quem l am enta a m or t e dos v al or es
é o m esm o que acha que t udo dev e ser nov o e di ssoci ado do passado.
Val or es só ex i st em quando ex i stem condutas bem m ar cadas por
ex pect at i v as soci ai s que her d am os par a al ém de nossa v ontade. Essa
m oçada pensa que v al or es são coi sas que v ocê escol he com o um
desodor ant e ou um a banda d e m úsi ca.
Quando se f al a em v al or es m or ai s se quer di zer coi sas
com o honesti dade, f i del i dade, si ncer i dade, t r abal ho, l i ber dade,
coi sas assi m . A f i l osof i a m or al com eça a f al ar em v al or es a par t i r do
sécul o XIX, no sent i do de m ar cas posi t i v as de com por t am ent o que se
som ar i am ao conv ív i o hum ano ou tor nar i am a v i da m enos sof r i da.
Val or es m or ai s são cul ti v ados por um a soci edade ou um a tr adi ção ao
l ongo do tem po. Pode- se di zer , por ex em pl o, que a car i dade é um
v al or cr i stão, por que os cr i st ãos e seus t ex t os sagr ados a v al or i zam
com o com por t am ent o posi t i v o. Ao cont r ár i o, a usur a não ser i a um
v al or cr i st ão, por que ser i a desv al or i zada ou v al or i zada de m odo
negat i v o pel os cr i stãos e seu s t ex tos sagr ados.
O fi l ósof o que m ai s fal ou desses v al or es f oi o pr ópr i o
Ni et zsche, par a di zer que er am um a cr i ação dos f r acos par a contr ol ar
os for tes, por que est es er am f ont e de v al or par a si m esm os. I sso
si gni f i ca que esse hom em ni et zschi ano, o super - hom em , não pr eci sa
de m ar cas de com por tam ent o ex t er i or es a el e, e que essas m ar cas
sej am cr i adas pel a soci edade par a contr ol á- l o. Par a o r om ânti co
al em ão, a f or ça, a cor agem , a espont anei dade são v al or es que br otam
da for ça i nt er na do hom em ou da m ul her , que são super i or es. Essa
f or ça i nt er na é a v ont ade de pot ênci a de que t ant o fal a Ni etzsche.
No m undo cont em por âneo, a her ança ni et zschi ana,
pr i nci pal m ente de cor t e f r ancês, em fi l ósof os com o Gi l l es Del euze e
M i chel Foucaul t , e o car áter r el at i v o dos v al or es f i car am ex post os, e,
por tant o, sua v al i dade é r el at i v a a tem po e espaço especí f i cos. Se
f or m os par a tr ás um pouco no t em po, e chegar m os ao sécul o XVI I,
em f i l ósofos com o Bl ai se Pascal , ou no XVI , em M i chel de
M ont ai gne, am bos car r egado s de t eor cét i co em seus ar gum ent os, ou
m ai s at r ás ai nda, e f or m os aos úl ti m os sécul os da er a pr é- cr i st ã na
Gr éci a, e ouv i r m os as v ozes dos sof i st as e cét i cos, v er em os que
t odos el es, apesar de não usar em a ex pr essão v al or es, sem pr e f or am
r el ati v i st as. Pascal chega a af i r m ar que, se o nar i z de Cl eópat r a f osse
outr o, a hi st ór i a do m undo ser i a out r a. Logo, os v al or es ser i am
outr os.
O pr obl em a da ét i ca dos v al or es é que el a é, no fundo, um a
ét i ca que pr essupõe tr adi ções hi stór i cas que se i m põem às pessoas
que nel as v i v em . A m oder ni dade, e seu ódi o à i dei a de t r adi ção e
per m anênci a no t em po, ansei a por v al or es, m as é ar r edi a à pr ópr i a
i dei a de v al or es m or ai s, po r que os consi der a opr essor es. A pai x ão
pel o nov o, t r aço br ega da m oder ni dade, a i m pede que v al or i ze
qual quer noção de passado, e os v al or es, par a f unci onar , pr eci sam
est ar ancor ados num a ex per i ênci a de per eni dade.
Entr et ant o, não duv i de que ex i stam v al or es no m undo
contem por âneo, e posso dar al guns ex em pl os del es: ef i cáci a,
obj et i v i dade, pr odut i v i dade. Você j á i m agi nou r ecusá- l os? Com o é a
v i da de al guém que não acei t a esses v al or es? Boa sor t e se v ocê qui ser
f azer a ex per i ênci a. É assi m , senti ndo o peso dos v al or es, que v ocê
per cebe o que são os v al or es de um a cul t ur a. Os boni t i nhos de nosso
m undo gost am de posar de v al or es ét i cos, m as a ét i ca del es é m esm o
a do sucesso, da v ai dade e da efi cáci a. Suspei t o que nunca ex i st i u um a
época t ão r i dí cul a com o a no ssa em sua far sa éti ca.
CAPÍTULO 15

Hedonismo

A pal av r a hedoni sm o é sua conheci da. Você dev e ent endê- l a m ai s ou


m enos assi m : v i v er segundo o pr azer . Ou v i v er r eal i zando m eus
desej os. Ou t er api a de shoppi ng. Ou com er todas as gostosas do
m undo. Ou ser a m ai s gostosa do m undo. Se v ocê entender essa
pal av r a dessa f or m a, o f az p el a tr ansf or m ação r adi cal de si gni f i cado
pel a qual el a passou desde q ue f oi usada pel a pr i m ei r a v ez na Gr éci a
ant i ga. Hedone em gr ego ant i go si gni fi ca pr azer . A quest ão é: o que
quer i a di zer pr azer par a um f i l ósof o com o Epi cur o na Ant i gui dade
gr ega?
Par a os gr egos, as pai x ões e os desej os er am t or m entos. A
ét i ca buscav a o r epouso, a tr anqui l i dade da al m a, a ausênci a de
pai x ões e desej os. Isso el es cham av am de hedone. O pat hos (pai x ão,
doença, sof r i m ent o) er a aqui l o a ser ev i t ado. Di to de for m a di r et a:
pr azer er a não t er desej os nem pai x ões. Er a v i v er com o m í ni m o.
Al go m ei o par eci do com o que hoj e se cham ar i a ser zen no sent i do
com um da pal av r a, um a pessoa que dom ou os desej os e super ou os
apegos sensor i ai s do gozo da v i da. A i dei a é que desej ar i m pl i ca
escr av i dão. A i dei a não é absur da e tam pouco di stante do nosso
m undo contem por âneo, em que som os m esm o escr av os do desej o,
m as não cham am os esse est ado de desapego de pr azer . Pr azer , par a
nós, é r eal i zar nossos desej os, é ser apegado ao desej o e às pai x ões, o
que par a um gr ego er a quer er v i v er no i nf er no.
A di st ânci a ent r e nosso pr azer e o del es é enor m e, e aponta
par a t oda um a concepção di sti nt a de v i da e de v al or es. El es quer i am
paz num m undo que não er a paut ado pel a pr odução cr escent e e
al uci nada com o o nosso. É aí que r esi de t oda a di f er ença. A r i queza
m at er i al de nosso m undo nos condena ao cr esci m ento al uci nado de
nossas necessi dades e nossos desej os. Então, quando se fal a em
hedoni sm o hoj e estam os m u i t o l onge da or i gem do t er m o. O ex cesso
de dem andas ao nosso desej o nos tor na capazes de ent ender o que er a
pr azer par a um gr ego, m esm o que cham em os i sso de ser desapegado
ou m ei o espi r i t ual i zado. A v er dade é que o i nf er no do desej o
conti nua sendo al go que consegui m os entender at é hoj e. A soci edade
de m er cado em que v i v em os é sustent ada num contí nuo desej o
i nsat i sf ei to, do cont r ár i o a econom i a par a.
Quant o ao hedon i sm o par a nós, el e acabou por assum i r
um a i dei a de t er um a v i da est éti ca, no senti do de aut or es com o
Ni et zsche, Ki er k egaar d ou Cam us – ou sej a, o sent i do da v i da é gozar
del a, j á que não há gar ant i a de nada al ém da v i da no m undo em que
v i v em os. A pal av r a est ét i ca, aqui , nada t em a v er com ar t e, m as si m
com sensação (seu senti do or i gi nár i o em gr ego ant i go). T er um a v i da
est éti ca é buscar v i v er sent i ndo as coi sas gostosas da v i da: sex o,
com i da, bebi da, v i agens, consum o, e coi sas assi m . M ui t os cr i ti car ão
a v i da est éti ca, i ncl usi v e o pr ópr i o Ki er k egaar d (el e a cham av a de
dom - j uani sm o, em r ef er ênci a ao per sonagem que seduzi a m i l har es
de m ul her es sem consegui r t er pr azer defi ni t i v o com nenhum a
del as), na m edi da em que a v i da est ét i ca f r acassar i a por que nos
l ev ar i a ao t édi o. Você não acha, em al gum a m edi da, apl i cáv el a quem
acr edi t a que v i v er dependendo do consum o pode l ev ar ao tédi o?
O pr obl em a do hedoni sm o cont em por âneo é em que
m edi da el e não nos l ev a de v ol t a à escr av i dão do desej o, com o
t em i am os gr egos; a um pr azer ef êm er o e dependente do m undo a sua
v ol t a... enf i m , quant as v ezes v ocê j á tent ou esquecer os sof r i m ent os
da v i da t r ansando, ou com pr ando, ou bebendo? Funci onou? Par a
apr eci ador es do sex o f r ági l e dos pr azer es que el e car r ega entr e suas
per nas, pode v al er a pena…
CAPÍTULO 16

Market ing de comport ament o ou market ing moral

H á um a nov i dade no m undo cont em por âneo em r el ação ao t em a da


m or al . Pr i m ei r o, é usar a ex pr essão com por t am ento em v ez de
cost um es ou hábi t os (obj et os cl ássi cos da ét i ca). É m ai s chi que f al ar
em com por t am ent o do que em ét i ca. Em cer t o sent i do até f az sent i do
(r epet i ção pr oposi t al ), por qu e a pal av r a ét i ca, hoj e em di a, é, com o a
pal av r a ener gi a, m el hor que sej a ev i t ada por que t odo m undo f al a,
m as ni nguém sabe o que é.
H á al go m ai s nessa i dei a de m ar k et i ng de com por t am ent o.
A subst ânci a da m or al públ i ca sem pr e f oi a hi pocr i si a, por t anto não
há nada de nov o em se t ent ar f i ngi r v i r t udes que não se t em . M as,
hoj e, per deu- se essa consci ênci a de que t oda m or al públ i ca é
hi pócr i t a na sua essênci a, e, por i sso, as pessoas que f i ngem ser do
bem não são per cebi das com o hi pócr i tas. Nunca na hi st ór i a da
hum ani dade f om os t ão m ent i r osos com o hoj e. A i dei a de que fazer
pr opaganda da pr ópr i a v i r t ude (os cor r eti nhos do m undo) possa ser
l ev ada a sér i o é r i dícul a.
Por ex em pl o, f al a- se de um a nov a consci ênci a dos j ov ens
com r el ação ao t r abal ho (a ger ação Y e a Z só acei t am t r abal har em
al go que f aça sent i do par a el as) quando na r eal i dade a busca de um
t r abal ho si gni f i cati v o sem pr e f oi par a poucos r i cos, ou cor aj osos, ou
l oucos. Nada m udou em r el ação ao t r abal ho; t r abal ha- se par a ganhar
a v i da. M as os boni ti nhos fi cam i nv ent ando que ex i st e um a nov a
consci ênci a em r el ação ao t r abal ho e ganham gr ana com essa
bobagem , di scur sando em uni v er si dades, em pr esas e na m í di a.
Out r o ex em pl o é essa gente que fal a do capi t al i sm o consci ente e que o
l ucr o não ser á o pr i nci pal v al or de um a em pr esa no sécul o XXI .
I m agi ne se o seu pat r ão par ar de t er l ucr o. El e par a de pagar o seu
sal ár i o.
Com o o m undo contem por âneo é a ci v i l i zação m ai s
escr av a da apar ênci a que j á ex i st i u no m undo (o m ar k et i ng com o
par adi gm a de m undo é i sso), per dem os a capaci dade de l em br ar que
t oda m or al públ i ca é hi pócr i t a. O dano que os i ntel ect uai s causar am ,
gr osso m odo a par t i r do f i nal do sécul o XVII , se t r ansf or m ando no
cl er o sal v aci oni st a do m und o, se f azendo de “ pr egador es da boa-
nov a” no l ugar dos padr es e pastor es, f oi enor m e. Os i ntel ect uai s (e
acadêm i cos e pr of essor es em ger al ) são um a das cl asses m ai s
cor r uptas m or al m ente de nossa época, quer endo f azer par te dos
gov er nos par a ganhar os r est os da sua m esa de j ant ar . Os m ai s
apl i cados v i r am i nt el ect uai s or gâni cos de par ti dos e ganham car gos
na adm i ni st r ação. Quando u m i ntel ect ual abr aça um a causa, passa a
ser um pi car eta. Bast a v er no t om i ndi gnado com o qual f al a ou
escr ev e sobr e com o o m undo dev er i a ouv i - l o, e v ocê saber á que est á
di ant e de um pi car et a do pen sam ent o.
A i ncapaci dade de l em br ar que t oda m or al públ i ca é um a
f ar sa t em a v er t am bém com a dem ocr aci a e sua i deal i zação de
t r anspar ênci a (bast a f al ar a pal av r a dem ocr aci a e v ocê est ar á a sal v o,
a fav or do pov o), m as i sso v am os v er quando fal ar m os de pol í ti ca.
CAPÍTULO 17

Democracia, a palavra mágica da polít ica contemporânea

Não tenho m ui t a paci ênci a p ar a pol í t i ca. Com o sem pr e di go, tr at o


del a assi m com o quem cui da de um a f er i da par a que não i nf ecci one. A
necessi dade da pol í t i ca é a pr ov a de que a hum ani dade tem
di f i cul dade em sobr ev i v er : não pode v i v er sem bando; par a v i v er em
bando al guém t em de m andar e al guém t em de obedecer . Ai nda que
m ent i r osos de t odos os t i pos di gam o cont r ár i o.
A f or m a por essênci a da pol í t i ca contem por ânea é a
dem ocr aci a. Por t er sua sober ani a na cham ada v ont ade popul ar ou no
pov o, a dem ocr aci a deságua na cr ença de que a soci edade car r ega em
si al gum a for m a de v er dade m or al , j á que el a é sober ana. Esquece- se,
com o eu di zi a antes, que t oda m or al públ i ca é hi pócr i t a. Di to de
outr o m odo, o públ i co é hi pócr i t a e nada t em a v er com i dei a al gum a
de v er dade. Na dem ocr aci a, o que i m por t a é a m ai or i a e não a v er dade
sobr e coi sa al gum a. M as i sso Pl at ão j á sabi a: o m oti v o de a
dem ocr aci a esconder a hi pocr i si a da m or al públ i ca é por que a
dem ocr aci a é sof i st a.
Em seu em bate com os sofi st as (aquel es car as que di zi am
que a v er dade não ex i ste por que el a é apenas a v i t ór i a de um
ar gum ento sobr e o outr o, por t anto, r etór i ca), Pl at ão j á apont av a a
t endênci a de a dem ocr aci a ser dem agógi ca.
Ant es que al gum i nt el i gent i nho per di do na l ei t ur a deste
l i v r o m e acuse de ant i dem ocr áti co, dev o di zer que a dem ocr aci a é, de
t odos os r egi m es r ui ns em pol ít i ca, o m enos pi or , com cer t eza. E
par a m anter essa “ v antagem ” da dem ocr aci a sobr e seus si stem as
com pet i dor es, dev em os l em br ar suas f r aquezas, coi sa que o pov o na
dem ocr aci a, com o j á di zi a A l ex i s de T ocquev i l l e no sécul o XI X em
sua v i si t a aos Estados Uni dos, não gost a de ouv i r por que a
dem ocr aci a na dem ocr aci a é um dogm a a ser am ado.
Vol t ando a Pl at ão: o pr obl em a, aqui , é que num r egi m e
pautado por opi ni ões v ar i adas, e pel a cont agem del as, o essenci al é o
núm er o. A dem ocr aci a é um r egi m e de quanti dades, e os i di otas
(com o di zi a nosso br i l hant e Nel son Rodr i gues) são sem pr e m ai or i a.
Um a das faces dessa i di ot i ce é supor que a tr anspar ênci a na gestão da
coi sa públ i ca, al go desej áv el num gov er no, i m pl i que a tr anspar ênci a
da v er dade m or al . Sem pr e que se afi r m a um v al or em públ i co, essa
af i r m ação é, em gr ande m edi da, um a f ar sa a ser v i ço do r esul t ado
esper ado em t er m os de cont agem de v ot os a f av or ou contr a o que
v ocê quer .
Out r o m ot i v o par a a dem ocr aci a ser par cei r a da hi pocr i si a
públ i ca é sua dependênci a da adul ação da opi ni ão públ i ca. I sso afet a
desde os candi datos num a el ei ção (pol ít i ca agor a é m ar k et i ng) at é
ar t i st as que v endem m úsi ca: t odos dev em adul ar a opi ni ão públ i ca se
qui ser em consegui r o que al m ej am – a saber , o sucesso. Essa opi ni ão
públ i ca nem sem pr e é só um a questão de núm er os gr andes; m ui tas
v ezes é um a quest ão de quem consegue i nf l uenci ar m ai s pessoas. Os
t ai s f azedor es de opi ni ão, com o eu. Quando v ocê l ê est e l i v r o, eu
est ou, em al gum a m edi da, i nf l uenci ando sua opi ni ão. A di fer ença
ent r e m i m e outr o qual quer é que eu não t enho nenhum a causa, e i sso
m e tor na, de cer t a f or m a, um pouco m enos r etór i co no que escr ev o e
f al o. Num m undo em que todos concor dam em ser bons, há sem pr e
al go er r ado. Por i sso, não f aço f i l osofi a par a r eal i zar bem al gum ;
f aço por que gost o.
Essa dependênci a da opi ni ão públ i ca, que l ev a todos a
adul ar os i di ot as, f az da dem ocr aci a um si m pl es r egi m e de m er cado.
El a é, na v er dade, um m er cado de opi ni ões a ser em def endi das
(com pr adas) ou r ecusadas (n ão com pr adas). A t endênci a da m ent i r a
na dem ocr aci a é, no l i m i te, um a t endênci a ao m ar k eti ng. O que cont a
na dem ocr aci a é a apar ênci a. Não por acaso os defensor es del a na
Gr éci a er am os sof i st as, os m esm os car as que, com o eu di sse ant es,
negav am a ex i st ênci a de qual quer v er dade e r eduzi am o
conheci m ent o à r et ór i ca. Ent ão, quando ouço al guém gr i t ar cont r a a
m ent i r a na dem ocr aci a, sem pr e si nto um chei r o de Papai Noel no ar .
CAPÍTULO 18

Apolítica como salvação

No sécul o XVI II , o f i l ósof o Jean- Jacques Rousseau cr i ou a pol í t i ca


m oder na e cont em por ânea em gr ande par t e. Não est ou di zendo que
el e t enha si do o m ai or fi l ósof o da pol í t i ca – ao cont r ár i o, j ul go- o
um dos pr i m ei r os i nt el ectu ai s pi car etas da hi st ór i a. Est ou di zendo
que el e f oi i m por tant e no m odo com o a pol ít i ca m oder na e
contem por ânea se consti t ui u. O m undo at ual v ê a pol ít i ca com o um a
t eor i a da sal v ação do m undo. Al guns descr ev em esse f at o di zendo
que a pol ít i ca se f ez teol ogi a. Não é por out r a r azão que i di ot as de
t odos os m at i zes i nt el ect uai s gostam e usam a pal av r a ut opi a com o se
el a descr ev esse al go di st i nt o de um resort num a pr ai a i m agi nár i a.
Lev ar a sér i o um a utopi a pol í ti ca é um atest ado de r et ar do m ent al ou
m au- car at i sm o. M as v ol tem os às i m pl i cações de um a pol ít i ca com o
i nst r um ent o de sal v ação.
Ant es de t udo, o que é pol í ti ca? Assum o, aqui , um a v i são
m ai s m aqui av el i ana (M aqui av el , f i l ósofo i t al i ano da v i r ada do sécul o
XV par a o XVI ). Pol ít i ca é a ar t e de conqui st ar , m anter , am pl i ar ou
dest r ui r o poder . E, assi m f azendo, t or nar a v i da dos seus súdi t os
m ai s ou m enos i nst áv el . Pont o f i nal . Um a engenhar i a de al gum ti po,
descol ada de qual quer i deal i zação. O bem pol í t i co é um a soci edade
em que o poder est á or gani za do de f or m a t al que as pessoas andam
r azoav el m ent e bem nas r uas. Não há um bem m or al de qual quer t i po
na pol ít i ca. A pol í ti ca não dev e di scut i r m odel os de soci edade, a
pol í t i ca dev e or gani zar essa coi sa v i ol ent a cham ada poder . Na
dem ocr aci a, a pol í ti ca dev e l ev ar em cont a a opi ni ão popul ar (j á
f al am os di sso antes). Par ece- m e i m por t ant e que as pessoas possam
ser pr otegi das do poder do Poder , e i sso só se al cança di v i di ndo
i nst i t uci onal m ent e o Poder , com o di zi a o f r ancês M ontesqui eu no
sécul o XVI II . E quando o Poder se i dent i f i ca com o bem m or al ,
nor m al m ent e el e entende que qual quer di v i são nel e é um a r edução de
sua capaci dade de r eal i zar o bem que car r ega em si . E aí chegam os à
pol í t i ca de Rousseau e seu car át er sal v aci oni st a.
Não se dev e esper ar da pol í t i ca um m undo m el hor . Dev e-
se esper ar um m undo em que o Poder f i que t ão cont r ol ado que el e
nos dei x e em paz e nem l em br em os del e ao acor dar . El e dev e cui dar
de coi sas t écni cas e dei x ar que a soci edade cui de do r est ant e. M as,
com o v em os em m ui tos casos desde o fi nal do sécul o XVI I I, a pol í t i ca
se t r ansf or m ou no “ l ugar ” de onde v i r á a sal v ação. T oda v ez que a
pol í t i ca dev e cur ar o m undo (com o a gr aça de Deus na t eol ogi a, por
i sso di zem os que a pol í t i ca t om ou o l ugar da gr aça), el a é t em er ár i a,
por que seu i nstr um ento e ob j et o por ex cel ênci a, o poder , é sagr ado
em sua f unção r edent or a. Assi m com o um Deus t odo- poder oso pode
ser um poder per i goso, a pol ít i ca endeusada com o di v i na se t or na
m al éfi ca.
Não v ej o m ui t a saída par a i sso. O m undo cont em por âneo
da dem ocr aci a t em um a v o cação par a ser dev or ado pel a pol í t i ca
com o l i nguagem das coi sas. T udo é pol í t i ca por que em t udo há poder
– com o di r i a M i chel Foucau l t . Na m i nha opi ni ão, Foucaul t er a um
aut or i t ár i o, com o todo f i l ó sofo que t r az a v er dade l i ber tador a do
m undo em sua cabeça, m as que el e t i nha r azão ao apont ar a
capi l ar i dade do poder nas r el ações, el e t i nha. E sendo a pol í ti ca na
dem ocr aci a, em par te, constr uída na conv er sa entr e as pessoas
(T ocquev i l l e di zi a que a dem ocr aci a é t agar el a), não há com o escapar
da pol í t i ca no m undo cont em por âneo e sua v i da passar por el a.
Aut or es com o o pr ópr i o T ocquev i l l e, M ont esqui eu e M aqui av el
(am bos ci t ados t am bém há pouco), Lock e (sécul o XVI I ), Oak eshott
(sécul o XX) di scut em a i m por tânci a da pol í t i ca sem f azer del a um
cr edo, com o Rousseau, M ar x , Foucaul t , Bour di eu, Badi ou e out r os
m em br os do cl er o. O r i sco da pol í t i ca com o sal v ação tot al é que el a
v ai degener ar em v i ol ênci a sagr ada. M el hor l i dar com a f r agi l i dade
de um si st em a que depende da opi ni ão de i di ot as do que l i dar com
um r egi m e em que i di ot as n ão acei t am a opi ni ão dos outr os por que
supõem que car r egam um m undo m el hor na bar r i ga.
Obser v e um a coi sa: t odo f i l ósof o ou si m i l ar que j ul ga ser
o sacer dot e da pol í t i ca r eden tor a é ar r ogante. Não é à t oa que Edm und
Bur k e, no f i nal do sécul o XVI I I, cham av a Rousseau (o pai da pol í t i ca
com o teol ogi a) de o “ f i l ósof o da v ai dade” . Assi m com o o cl er o
cr i stão er a v ai doso em se achar m ai s per t o de Deus, o cl er o
i nt el ect ual f azendo pol í ti ca sal v aci oni sta é v ai doso. Não confi e em
ni nguém que quei r a sal v ar o m undo. M el hor conf i ar em gr andes
pecador es.
Por i sso t udo, com o di z M i chael Oak eshot t, f i l ósof o
i ngl ês do sécul o XX, pr efi r o pol ít i cos sem concepção de com o dev e
ser o m undo. A pi or coi sa é um l í der pol í t i co que quei r a m e sal v ar .
CAPÍTULO 19

Não há nada mais sem rumo do que a educação cont emporânea

Cer t a f ei ta, dur ant e um a f est a de f i m de ano num a das i nsti t ui ções em
que sou pr of essor , um a col ega, um tant o chocada com o que eu di zi a
sobr e a educação, m e per guntou: “ Com o assi m , v ocê não acr edi t a na
educação? Ent ão por que dá aul a?” .
Respondi à m i nh a assust ada col ega que dav a aul as por
v í ci o: m e di v i r t o dando aul a (o que em f i l osof i a si gni f i ca que dou
aul as por r azões est éti cas, ou sej a, por que m e si nt o bem f azendo
i sso, l ogo, por que gost o). O choque na m esa foi ger al . Vou ex pl i car
m el hor essa passagem par a v ocê ent ender , por que acho que v ocê
dev i a t om ar m ui to cui dado com os pr of essor es e coor denador es das
escol as de seus f i l hos.
O pr oj eto de ed ucação m ai s ant i go conheci do é o de
Pl at ão, aut or de A repúbli ca (em gr ego Poli t ei a). Nessa ci dade i deal ,
nessa m ãe de todas as ut opi as, j ov ens nobr es er am educados em
m úsi ca, gi násti ca e f i l osofi a. Os m el hor es m eni nos er am escol hi dos
par a cr uzar com as m el hor es m eni nas, a fi m de ger ar um a bel a
ger ação, bi ol ogi cam ente f al ando. Em gr ego anti go se di zi a “ eu (bel o)
geni a (ger ação)” . O nom e que Pl at ão dá ao pr ocesso educaci onal é
pai dei a, que par a os gr egos quer i a di zer f or m ação.
Essa i dei a de f or m ação gr ega v i ngou ao l ongo dos sécul os.
Sem ent r ar em por m enor es hi st ór i cos obsessi v os, por que m eu nom e
não é Googl e, chegam os, v i a uni v er sal i zação da educação, a par ti r do
f i m do sécul o XVI II i l um i ni sta, ao nosso t em po e às escol as por aí .
Um a f unção que as escol as têm , m as de que ni nguém
pr eci sa f al ar m ui t o, é ocupar as cr i anças. Com o m undo
contem por âneo e a at om i zação das f am í l i as (ni nguém est á nem aí
par a pai s, i r m ãos, pr i m os, t i os, av ós, e v i ce- v er sa) – em al guns
casos chegando à fam í l i a m ononucl ear , um geni t or r esponsáv el e
um a cr i ança ou duas – , ocup ar o fi l ho se t or nou essenci al , j á que nem
a m ul her quer f i car t om ando conta do r ebent o (cl ar o que ex i stem
ex ceções, que ser v em só par a r efor çar a r egr a). O r esul t ado é que, por
ex em pl o, gr ev es de pr ofesso r es de escol as públ i cas só são senti das
depoi s de m ui t o tem po e qu ando as al t er nat i v as par a as m ães i r em
t r abal har j á se esgotar am . L ogo, escol as são, t am bém , depósi t os de
cr i anças par a que os pai s v i v am . Fei o? É, si m , f ei o, m as não escr ev i
est e l i v r o par a f azer m ar k et i ng de com por t am ento par a v ocê.
Ex i st e um a ex ceção i m por t ante à atom i zação das f am í l i as:
al ém dos pobr es, por f al t a de opção (m el hor a de v i da i m pl i ca
i ndi v i dual i sm o e atom i zação), as m ul her es r el i gi osas de adesão
est r i t a f ogem bast ant e do per f i l da m ul her cont em por ânea, cuj a t ax a
de f er ti l i dade em paí ses r i cos chega a 1, 2 f i l ho por m ul her contr a
cer ca de 8, 1f i l hos por m ul her m uçul m ana na Eur opa.
M as v ol t ando ao nosso f oco: por que a educação, e sua
“ ci ênci a” , a pedagogi a, est á sem r um o? Quando eu r el at av a m i nha
conv er sa com m i nha col ega, o que eu quer i a di zer er a que um cer t o
cet i ci sm o com pr of essor es que j ur am am or à f é na educação dev e ser
cul t i v ado. Você poder á ouv i - l o j ur ar am or à educação e f al ar m al de
seus al unos. Com o di zi a Edm und Bur k e acer ca de gent e com o
Rousseau (v am os t er de f al ar del e aqui de nov o) e os j acobi nos:
“ Gent e que am a a hum ani dade m as detest a seu sem el hant e” .
Pr ofessor que di z cr er na educação cr ê na hum ani dade, m as não nos
al unos.
Não é f áci l cr er nos al unos; é m ai s fáci l cr er na
hum ani dade por que essa é um a abstr ação que cabe em qual quer
t eor i a f ei t a pel os ungi dos, cl asse de i nt el ect uai s e acadêm i cos
def i ni da pel o econom i st a am er i cano T hom as Sow el l com o “ aquel es
que acham que sabem m ai s do que t odo m undo em t odos os tem pos” .
Por i sso, o m ar k et i ng de com por t am ent o é hum ani sta: t udo é
apar ênci a e oco. A r eal i dade é que al unos enchem o saco m ui t as v ezes,
ai nda m ai s hoj e que a escol a de ní v el m édi o é um a por car i a chei a de
aut oaj uda (o al uno dev e apr ender a se am ar , aci m a de tudo) e bl á-
bl á- bl á de ci dadani a. Nada sabem sobr e geogr af i a, m as cul t uam
m andi oca i ndígena e t r ansex uai s. Os al unos chegam à uni v er si dade
sabendo nada, l endo nada, t endo um a opi ni ão sobr e t udo. T odos v ão
m udar o m undo par a m el hor , e os outr os não quer em saber de m ui ta
coi sa. Cl ar o, ex i stem as ex ceções. E aí está o gosto de quem se di v er t e
v endo nos ol hos de um al uno a descober t a de que Shak espear e sabe
m ai s acer ca do hom em do q ue el e ou seu pr of essor de hi st ór i a que
ensi nou que o Br asi l f oi “ r oubado” dos sant os Nat i ve Ameri cans.
A cada hor a se descobr e um a t eor i a nov a sobr e f aci l i tação,
negação da hi er ar qui a ou sal v ação da l av our a gr aças a essa “ i nv enção
nov a” , o com put ador . O que m ov e a educação, hoj e, al ém do f at o de
ser um busi ness, é r eduzi r a at i v i dade quase a zer o e f azer com que o
pr ofessor dei x e de ex i st i r (em al guns casos nem acho que ser i a t ão
m au assi m !). Di zer par a um pr of essor que el e dev e “ constr ui r ” a aul a
j unt o com o al uno é dar a el e aut or i zação par a não t er de pr epar ar
aul a nenhum a.
Al ém de t udo, pr o fessor , em gr ande m ai or i a, é gent e que
ganha m al e per de o tesão, com o tem po, pel o que faz, m as a pose é
essenci al nesse r am o. E cr er na educação é ex cel ent e par a m anter a
i m agem . Fal ar m al dos al unos, ao m esm o t em po que pr egar par a el es
bobagens, aj uda a passar o t em po. No f i nal , a v i da é, em m ui t o, com o
passar o t em po sem se desesper ar .
M ui t a gent e f al a q ue educação é um a questão de v al or es.
Eu acho que educação é aj udar os m ai s j ov ens a enf r ent ar essa
hum ani dade desor i ent ada que habi t a em cada um de nós.
I nf el i zm ent e, o que ocor r e é que pi car et as escr ev em l i v r os
de com o o m undo é l i ndo e de com o os hom ens são l i ndos, t odo
m undo fi ca f el i z, o pr of essor esquece a chati ce da sal a de aul a, e m ai s
um ano se passa.
E o que Rousseau t em a v er com i sso? Assi m com o el e
cr i ou a pol ít i ca com o r eden ção, el e cr i ou a i dei a de que o hom em é
bom em si e a educação é o l ugar em que essa bondade pode af l or ar se
não at r apal har m os m ui t o (l ei a o l i v r o Emí li o, ou da educação escr i t o
por el e). I ncr ív el com o gen te que l i da com gent e t odo di a pode
r epet i r um a bobagem dessa. Cr i anças são com o todo m undo:
gener osas às v ezes, i nv ej osas m ui t as v ezes, v i ol ent as se t i v er em
r azão par a i sso, am or osas sel et i v am ente. Se v ocê dei x ar , o caos t om a
conta. Esse caos que car r egam os dent r o de nós e que com bat em os di a
a di a.
A úni ca sal v ação da educação é que as bobagens que seus
t eór i cos e coor denador es i nv ent am t êm pouco efei t o sobr e os al unos
– al i ás, com o t udo o m ai s na educação. As coi sas acont ecem sem que
sai bam os m ui to bem com o acont ecem , nem conhecem os suas causas
ef i ci ent es (com o se di z em f i l osof i a par a se r efer i r ao que f az al go
acont ecer de fat o). M as cont i nuo achando que el a é i m por tante, no
m í ni m o com o espaço i nst i t uci onal , em que os j ov ens se batem com
el es m esm os e com seus sem el hant es. Aquel es m esm os que são
di f í cei s de am ar , com o di zi a Bur k e.
CAPÍTULO 20

Aciência trist e da economia

A econom i a é um a ci ênci a t r i ste. Ex per i m ente f al ar de di nhei r o com


sua m ul her par a v er com o el a v ai fi car t r i st e. Si m , se um a m ul her f or
a r esponsáv el pel a gr ana, o m ar i do t am bém f i car á t r i ste se el a
t r oux er o tem po todo a r ef er ênci a do quanto as coi sas cust am . Não é
um a quest ão de gêner o, com o f al am os chat i nhos e as chat i nhas de
hoj e em di a.
A econom i a é um a ci ênci a t r i st e por que é a ci ênci a da
escassez. Os r ecur sos a nossa m ão são sem pr e m enor es do que aqui l o
que quer em os. T oda dona d e casa sabe di sso: o super m er cado é a
pr ov a de que os r ecur sos são car os e r ar os. As donas de casa
dev er i am deci di r nossa econom i a. Ex ager o o ar gum ent o par a
l em br ar aos i nt el i genti nhos que a econom i a nada t em a v er com
del í r i os soci al i st as de j ust i ça soci al , m as com a l i st a de
super m er cado que não cabe no seu bol so.
Cl ar o, ex i st e gente boba por aí que acha que os í ndi os
poder i am nos ensi nar a v i v er da t er r a. I ncr í v el com o antr opól ogos
cul t os e capazes podem acr edi tar que um m odo de v i da neol í ti co
poder i a acol her 7 bi l hões de pessoas. O que esses car as não podem
confessar é que, al ém de pegar bem na fi t a di zer coi sas assi m (“ o
m undo é chei o de coi sa i nút i l ” , o que é bem v er dade), por que
al i m enta o t al m ar k et i ng de com por t am ent o de que fal ei ant es, par a
v i v er com o os í ndi os t er í am os que m at ar , no m í ni m o, nov e déci m os
da hum ani dade i nt ei r a. M as, com o sem pr e, esses ungi dos podem
f al ar o que qui ser em , por que fal am par a seus segui dor es e cr ent es. A
úni ca for m a de f azer um m undo i ndígena é destr ui r a l i ber dade de
t odos que não acei t ar em f al ar tupi nam bá.
Não, não dá par a t odo m undo ser f el i z e t er t udo. As
pessoas quer em o que el as q uer em o tem po todo. A v i da enr i queceu
m at er i al m ent e desde o sécul o XVI II de m odo assust ador . Par a m anter
essa fel i ci dade no ar e nas pr at el ei r as se f az necessár i o cada v ez
pr oduzi r m ai s. Por i sso que bobos de t odos os t i pos af i r m am que a
saí da ser i a di m i nui r o cr esci m ento econôm i co. O pr obl em a é que
esse bobo não conf essa que o que el e quer é que t odo m undo l he
obedeça.
Concor do que nosso m undo é um m undo besta em m ui tas
coi sas (t er em os t em po de f al ar di sso), m as ni nguém acei t ar i a, por
ex em pl o, que par ássem os os av anços da m edi ci na ou da pr odução de
al i m entos (or gâni cos ou não). Quase t udo é um a far sa naquel es que
negam a t r i steza da escassez que nos assol a.
E essa escassez é tam bém f i si ol ógi ca: som os f r ágei s,
m or t ai s. Escassez psi col ógi ca: dependem os de r ecur sos af eti v os a
nossa v ol t a.
A af i r m ação m ai s pr of unda acer ca da escassez que nos
assol a e nos det er m i na foi f ei t a por Nel son Rodr i gues: “ Di nhei r o
com pr a at é am or v er dadei r o” . O af eto v er dadei r o r esponde à
m el hor i a das condi ções m at er i ai s. Cl ar o, não é 100% que dê cer t o,
m as nada é 100% . Não dar á, se v ocê di sser i sso a quem v ocê quer que
o am e. Lem br e- se do que eu di sse no i níci o dest e capí t ul o: v ocê
ent r i stecer á sua m ul her se f al ar de gr ana o t em po t odo com el a,
por que l em br ar o cust o das coi sas t or na a v i da t r i ste. Se ti v éssem os
t odos os r ecur sos que quer em os par a f azer o que qui séssem os, então,
si m , o m undo ser i a um par aí so.
Quando v ocê t i v er al gum a dúv i da sobr e i sso, pr ocur e se
i nf or m ar sobr e com o i nv ent ár i os f am i l i ar es, não i m por ta o t am anho
do pat r i m ôni o, r ev el am a t r i steza que assol a nossa hum ani dade.
CAPÍTULO 21

Aeconomia alegre, a economia solidária

Fal ei no capí t ul o ant er i or sobr e os i nt el i gent i nhos e sua negação de


que a v i da econôm i ca est ej a m ai s par a l i sta de super m er cado que não
cabe no bol so do que par a di scussões sobr e j ust i ça soci al . Fal ei
t am bém sobr e ant r opól ogo s e af i ns que af i r m am que dev er í am os
v i v er com o í ndi os: 7 bi l hões de índi os v i v endo da ter r a, m as
quer endo i Phone...
Ex i st e um pr odut o na pr aça que afi r m a que há um m odo
de a econom i a ser “ al egr e” : tr at a- se da cham ada econom i a sol i dár i a.
O que v em a ser i sso? Si m pl es: é um papo de gent e que não é
r esponsáv el por nada na v i da al ém de suas pr ópr i as f ér i as e sua bi k e.
Ex i st e “ sol i dar i edade” em tr oca de apar t am entos v i a si tes
especi al i zados, por ex em pl o. O per f i l é de gent e com bai x o
i nv est i m ento em dependentes. Di f í ci l é t er econom i a sol i dár i a com
segur o- saúde do f i l ho ou co m pr a de casa par a m or ar . Par a fér i as v ai
bem , ou par ti l har um a pi zza. Por que a t al da econom i a sol i dár i a faz
t ant o bar ul ho? Por que el a al i m ent a, de nov o, o m ar k et i ng de
com por tam ent o, essa necessi dade m onst r uosa que nós,
contem por âneos, t em os de achar que som os l egai s e m el hor es que as
ger ações passadas, e que, po r nós, nunca hav er i a guer r a no m undo e
t odos di v i di r i am suas posses. Nem m esm o di nhei r o ser i a necessár i o,
bast ar i a boa v ont ade.
Um ex em pl o de econom i a sol i dár i a são espaços ar t í sti cos
em r ede ou col eti v os. Est ão t odos quebr ando por que na hor a de pagar
o al uguel o que cont a é quem paga ou não paga.
A econom i a é t r i st e por que a v i da é tr i st e na sua
sust ent ação econôm i ca, m as com o nossa cul tur a é m ei o r etar dada,
dev i do a essa dependênci a de aut oest i m a que tem os, tentam os negar
i sso, af i r m ando que se ar t i stas desconheci dos di v i di ssem l at as de
t i nt a num espaço m al cui d ado, é por que o outr o m undo ser i a
possí v el . H aj a saco.
Esse conj unt o de com por t am entos que nega a t r i steza
com o um tr aço i ndel év el da ex i stênci a, que t ent a af i r m ar que t udo
f i car á bem se for m os t odos índi os ou ar t i st as col et i v os, ser á obj et o
de nossa at enção nos capí tu l os segui nt es, sob a r ubr i ca “ o que é o
contem por âneo” ? E, ao l ongo da t er cei r a par t e dest e l i v r o, t ent ar ei
dei x ar cl ar o par a v ocê, m eu car o l ei t or , o por quê de eu achar nossa
época a m ai s r i dí cul a que j á ex i st i u.
PARTEIII

Por que acho o mundo cont emporâneo ridículo?


CAPÍTULO 22

Ocont emporâneo, o que é isso?

O t er m o cont em por âneo se r ef er e, a pr i ncí pi o, a um per í odo


hi st ór i co (er a contem por ân ea) pós- Rev ol ução Fr ancesa (1789). Os
am er i canos consi der am a er a cont em por ânea o per íodo pós-
r ev ol ução am er i cana (1776). De i ní ci o, t r atav a- se de um a di v i são
di dát i ca do t em po hi st ór i co, com o Idade Anti ga, I dade M édi a. Al guns
hi st or i ador es, hoj e, quest i onam essa di v i são di zendo, com r azão,
que el a é bast ant e esquem áti ca, e não se pode di v i di r a hi st ór i a em
per í odos assi m , o que é bem óbv i o.
Quando se usa a ex pr essão contem por âneo não se quer
f al ar de um per í odo hi stór i co (cl ar o que o t er m o conti nua a se apl i car
à nossa época atual ), m as de um m odo de ser , um m odo de v i v er , ou
sej a, apl i ca- se a um conj unt o de car act er íst i cas que m ar car i a a nossa
época, e t em m ai s a v er com um t i po de com por t am ent o do que com
um per í odo de t em po especí f i co. Por i sso, pode- se di zer que um país
com o o Br asi l t em l ugar es que são m ai s cont em por âneos que out r os.
Um a for m a fáci l de ent ender o uso dessa ex pr essão é v er
com o a ut i l i zam os com o adj et i v o em al guns casos. O adj et i v o
contem por âneo é usado m ui t as v ezes par a um est i l o de r est aur ant e.
Um r est aur ant e cont em por âneo é um l ugar descol ado, chi que sem
ser pr esunçoso. Não só pel a com i da, m as pel a decor ação ou cenár i o,
e, aci m a de t udo, pel o t i po de pessoa que o fr equent a e t r abal ha nel e.
A anal ogi a com um r est aur ant e é di dát i ca tanto par a o bem
quanto par a o m al . T oda for m a di dát i ca de ex pl i car um a coi sa
i m pl i ca a per da de nuances (l ado negati v o) e, ao m esm o t em po, o
m odo ur gent e de escl ar ecer um a coi sa (l ado posi t i v o) par a gente
contem por ânea que est á sem pr e com pr essa, não por que el a sej a um a
desgr açada, m as por que t em um m undo que esper a por el a par a
acont ecer . Logo, se ni nguém esper a por v ocê par a que aconteça
al gum a coi sa é por que v ocê est á m ei o m al ...
Vol t ando ao r est aur ant e. M enu v ar i ado, de v ár i os paí ses,
m i stur a de sabor es. Se ti v er caça no m ei o, m el hor ai nda. Não pode
f al tar com i da par a gente chat i nha que tem m edo de com er qual quer
coi sa que não sej a v er de e que t enha sangue nas v ei as. O am bi ente
dev e ser m ei o aper t adi nho par a que as pessoas r ocem um as nas
outr as e fi quem , de r epent e, com um pouco de tesão. M úsi ca, j am ai s
naci onal . M úsi ca naci onal dei x a t udo com ar de escol a de sam ba.
Br ega, m esm o que m ui to eur opeu ador e quando est á bêbado. A
m úsi ca pode ser um a m i st ur a de j azz, bl ues e um a pi t ada de cl ássi co.
O pessoal que ser v e dev e est ar de pr et o e br anco, dev e ser j ov em , e
t am bém gent e que v ocê com er i a se pudesse. Aci m a de t udo, dev e ser
si m pát i co, m as j am ai s dando a i dei a de que v ocê é de cl asse soci al
aci m a da del e. T odos t r abal ham al i par a pagar o cur so de teat r o ou a
f acul dade, por que não quer em pedi r gr ana par a os pai s – m esm o que
sej am dur os, dev em par ecer que tr abal ham l á por opção, j á que o
m undo contem por âneo é obcecado por esse m i to cham ado escol ha. E
esses j ov ens j am ai s dev em dar tr el a par a o cl i ent e. Um ar blasé é
essenci al par a qual quer pessoal que sej a (ou quei r a par ecer ) chi que.
T anto o m enu quanto a car ta de v i nhos dev em ser cur t os. M ui ta
opção num r est aur ant e é br ega. Jam ai s f ot os dos pr at os – i sso é par a
r est aur ant e que ser v e anal fabet os. O chef dev e ser f am oso e t er um
nom e pouco com um . At é pode ser Rai m undo, m as só se f or
Rai m undo Dupr é, ou al go assi m . Out r a coi sa essenci al : esses
r est aur ant es nunca dev em usar i Pads ou cel ul ar es par a anot ar os
pedi dos. Fi m da pi cada de t er cei r o- m undi sm o.
Ex i st e um a v er são f ei a do contem por âneo em t er m os de
r est aur ant e: a fam osa pr aça de al i m ent ação, um l ugar que v ocê
j am ai s dev e f r equent ar por opção. Se f r equent ar é por que j á não tem
m ui t a opção na v i da. Nada m ai s depr i m ent e do que m esas gr andes
com gent e da fi r m a na hor a do al m oço. Car as com car a de der r ot ados,
m i nas com car a de quem j am ai s per der á peso. Car as que nem se
av ent ur ar i am a com er um a das col egas de tr abal ho. M i nas que
sonhar i am que al guém qui sesse com ê- l as no tr abal ho, m as que
nunca v ai r ol ar . Pr aça de al i m ent ação onde v ocê v ê com i da j aponesa,
m ex i cana, chi nesa, da f azenda, e t am bém ham búr guer es (dei x ando
aquel e chei r o de cozi nha suj a no ar ). M esm o que na pr aça t enha um
bal cãozi nho de com i da bai ana, ai nda é tr i st e.
A anal ogi a com r est aur ant es nos aj uda por que m ost r a
m ui t o o que si gni fi ca ser cont em por âneo: m ui t a coi sa di f er ent e j unt o
um a da out r a, com os i ncôm odos e as sol uções descol adas par a i sso.
A pr essa é a m ar ca essenci al do contem por âneo. A f or m a i deal de
v i v ê- l a é com l ev eza. Com o se a pr essa f osse um el em ent o da
nat ur eza. Com o v ocê a enf r ent a di z m ui to de onde v ocê está na cadei a
al i m entar desse m undo.
Os capí tul os segui nt es ser ão dedi cados a al gum as das
car act er íst i cas desse m undo contem por âneo e de com o podem os
pensá- l as a par t i r de um a f i l osofi a do m ar t el o.
CAPÍTULO 23

Acadeia aliment ar como modelo profundo da vida social

O m undo cont em por âneo é v i ol ent o, apesar de m ui t a gente posar de


blasé nel e. A v i ol ênci a adv ém da f l ui dez (ou do l í qui do que m ar ca o
m undo at ual , nos ter m os do soci ól ogo Zy gm unt Baum an) que
per m ei a todas as r el ações. T udo é commodi t y e pode ser v endi do,
i ncl usi v e v ocê. Não se engane: se ni nguém qui ser consum i - l o não é
por que v ocê v enceu a “ m er cador i a” que per m ei a o m undo do
capi t al i sm o tar di o, com o di z o fi l ósof o T heodor Ador no no sécul o
XX, m as por que v ocê não v al e nada. A di fer ença é o v al or de uso que
v ocê t em em cada um dos m er cados em que at ua (não há r el at i v i sm o
de v al or es de fat o; o di nhei r o é o úni co v al or que não é r el at i v o ent r e
nós). O v al or pr ofi ssi onal é o m ai s ev i dent e. Por ex em pl o, se v ocê
t r abal ha no que gost a, seu l ugar na cadei a al i m ent ar é sem pr e
especi al por que o f ato de opt ar pel o t r abal ho que t em j á di z que v ocê
t em poder de bar ganha nas r el ações pr of i ssi onai s, por i sso a m oçada
pi car et a do capi tal i sm o consci ente – da qual f al ei ant es – gost a de
di zer que buscar si gni fi cado no tr abal ho é um a m ar ca r ev ol uci onár i a
dos j ov ens. Coi sa nenhum a: v i v er ex per i m ent ando si gni fi cado na
v i da (coi sa que os r om ânt i cos j á ti nham f al ado no f i nal do sécul o
XVI II , com o eu di sse ant er i o r m ente) é um l ux o na cadei a al i m entar
contem por ânea. E por um a r azão si m pl es: com o v i m os ant es, a busca
de si gni f i cado na v i da é o “ x ” da questão hum ana. Num m undo
m ar cado pel a pr odut i v i dade com o o nosso, quem pr oduz
ex per i m ent ando si gni f i cado na at i v i dade que ex er ce j á está bem na
cadei a al i m entar . Est á m ai s par a l eão que par a coel hi nho.
Per ceber o m undo com o cadei a al i m entar é per cebê- l o
num a chav e dar w i ni st a. Apr eci o m ui t o o dar w i ni sm o, ent r e outr as
r azões, por que consi der o o Al to Pal eol í t i co (cer ca de 30 m i l anos
at r ás) o per íodo áur eo da hum ani dade. Ér am os poucos, com um a
l ogí st i ca l ev e, sem l ux os e or gani zações pol í t i cas com pl ex as,
conhecíam os m ui t o m ai s nossas necessi dades, e ér am os m ui t o m ai s
ágei s do que esses m acacos que babam em ci m a das tecnol ogi as da
i nf or m ação. E nossas cr i anças er am m ui t o m ai s i nt el i gent es. E nossas
m ul her es m enos hi st ér i cas. E os hom ens m enos m esqui nhos.
Ant es de tudo, acho a i m agem da cadei a al i m ent ar út i l
par a ent ender a v i da por que el a t r ai a v er dadei r a estr utur a pol í t i ca
por det r ás de t oda or dem pol ít i ca. E tam bém por que o m undo
contem por âneo é um m undo sem m et af í si ca. M esm o quando se faz
m et afí si ca nel e, t r ata- se de m et afí si ca centr ada no ego, l ogo, um a
m et afí si ca nar ci si st a. E t udo o que é nar ci si st a não t em f ôl ego: o
nar ci si sta é al guém sem ar . Com o eu di zi a ant es, a v i ol ênci a da or dem
pr odut i v a – da qual não p odem os escapar por que quer em os ser
f el i zes m at er i al e espi r i t ual m ent e, e o espír i t o cust a m ai s car o do que
a m at ér i a – está em t oda par t e. Na at om i zação das fam í l i as, na
ef em er i dade dos v íncul os, na i nfer t i l i dade das m ul her es, na cov ar di a
i nt er essei r a dos hom ens. Pel o f at o de ser m os condenados a pr oduzi r
um a v i da descol ada da r eal i dade m at er i al obj et i v a, por que nosso
desej o é i nfi ni t o, v i v em os num m undo em que a v i da com o cadei a
al i m entar toca as estr el as. O m er cado da espi r i tual i dade
contem por ânea, sem pr e a ser v i ço dos pr oj et os do self , t r ai a
escr av i dão, a v i da sel v agem que nos ator m ent a em nossos pesadel os
e que f az nos sent i r m os i nsegur os em qual quer l ugar , por que
sabem os que, no fundo, não v al em os nada. Al guém sem pr e pode
v al er m ai s. Const r uím os um m undo m ui to com pl ex o em sua
or gani zação, m as cont i nuam os a ser o ani m al acuado da pr é- hi st ór i a.
CAPÍTULO 24

O narcisismo

O concei t o psi canal ít i co de nar ci si sm o é l ar gam ente conheci do.


Usando o m i to gr ego de Nar ci so (o car a que se encanta com a pr ópr i a
i m agem e pul a na água em busca del a, se afogando), Fr eud descr ev e o
que poder í am os cham ar num a l íngua de m or t ai s “ o am or - pr ópr i o
const i t ut i v o no Eu” . Fr eud di z que ex i st em doi s ti pos de nar ci si sm o.
Um pr i m ár i o, nor m al , pel o qual todo m undo passa (a t al da cél ul a
nar cí si ca), é aquel e em que o bebê se encont r a em est ado
i ndi f er enci ado – el e, a m ãe e o m undo são a m esm a coi sa, chei a de
pr azer es e despr azer es. Em segui da, ex i st e o secundár i o ou
pat ol ógi co. Esse é que tem i nter essado àquel es que est udam o
com por tam ent o cont em por âneo.
O nar ci si sm o pat ol ógi co é aquel e que car acter i za as
pessoas que t i v er am m á ex per i ênci a de nar ci si sm o pr i m ár i o (a m ãe e
o m undo a sua v ol ta não er am l egai s) e, por t ant o, quando se r om pe
essa cél ul a nar císi ca, el e sai com bai x a r eser v a de l i bi do nar cí si ca,
que é aquel a l i bi do (ener gi a psí qui ca posi ti v a) que se const i tui
quando o bebê achav a que tu do er a el e e el e er a t udo, num a espéci e de
êx t ase m í st i co sel v agem . Fr eud chega m esm o a usar a ex pr essão (que
não er a del e) “ sent i m ento oceâni co” , par a descr ev er o sent i m ent o
dos m í st i cos, di zendo que esse sent i m ent o não passav a de br ev e
r et or no ao sent i m ent o gosto so da cél ul a nar císi ca bem - sucedi da.
Um a pessoa nar cí si ca é um a pessoa com bai x í ssi m a
aut oest i m a. Si m , v ou usar nar ci si sm o com o si nôni m o de aut oest i m a
par a faci l i t ar um a pr i m ei r a e essenci al com pr eensão do t em a.
Ni nguém tem um a aut oest i m a pl ena (as tai s f er i das nar cí si cas). O
nar cí si co tem m enos ai nda e é um m i ser áv el af et i v o. O nar císi co é
aquel e que, quando l ev a um f or a, desm onta m ai s que o nor m al . É o
chat o de quem ni nguém go sta por que r ecl am a que ni nguém gosta
del e o t em po todo.
M as tem um a coi sa m ai s i m por t ant e na per sonal i dade
nar cí si ca. El e é i ncapaz de am ar ou i nv esti r af eti v am ent e no m undo;
el e pr eci sa que os outr os i nv i stam nel e o t em po t odo e é um a pessoa
cansat i v a. A gener osi dade e a gr at i dão i nex i st em num a per sonal i dade
nar cí si ca. I ncapaci dade par a o v íncul o af et i v o abundant e é a m ar ca de
um a cul tur a nar cí si ca, t ípi ca do m undo contem por âneo. E ser á aí que
sur gi r á o nar ci si sm o com o categor i a de anál i se do com por tam ent o
contem por âneo. A cultura do narci si smo, tí t ul o da obr a do hi st or i ador
nor te- am er i cano Chr i st opher Lasch, de 1979, i naugur ou essa anál i se.
M ai s r ecent em ente, as obr as de psi cól ogos com o Jean M . T w enge e
W. Kei t h Cam pbel l (al ém de o utr as r ef er ênci as) r et om am a categor i a,
apr of undando a t r agédi a de um a cul t ur a i ngr at a e ar r ogant e com o a
nar cí si ca.
Um a cul t ur a do nar ci si sm o é m ar cada pel a atom i zação
af et i v a e pel a negação cont ínua del a – com o t odo si nt om a
psi canal í ti co, a cul t ur a do nar ci si sm o i nv este em af et os soci ai s sem
ônus cot i di ano, com o nada de f i l hos, m as ador o guar ani s k ai ow ás!
I ncapaci dade de ex er cer funções de r esponsabi l i dade
di r et a por outr os é t ípi co do nar cí si co. Ao l ado di sso (m ai s um
ex em pl o do m ar k eti ng de com por t am ent o do qual f al am os ant es),
essa cul tur a pr eci sa negar essa m i sér i a afet i v a, e nada m el hor do que
def ender causas com o econom i a sol i dár i a, col et i v os ar tí st i cos,
capi t al i sm o soci al , al faces e abor í genes. A cul t ur a do nar ci si sm o
acaba por se const i t ui r num a f or m a de cont r at o soci al com base na
negação da sol i dão e i nsegur ança af eti v a que m ar ca todo m i ser áv el
em autoest i m a.
Lasch j á “ pr ev ê” , em 1979, a dependênci a par a com o
i m agi nár i o publ i ci tár i o, o cul t o à cel ebr i dade (e el e nem conheceu as
que est ão no Facebook ! ), a i nfer t i l i dade f em i ni na gal opant e, a
i ncapaci dade de hom ens e m ul her es se am ar em e se ent ender em sem
guer r a (t er m o que el e m esm o ut i l i za), ai nda que os especi al i stas na
m i sér i a do am or heter ossex u al cham em i sso de quest ão de gêner o, a
bai x a r eal i zação pr of i ssi onal por causa de um ex cessi v o ar r i v i sm o
f i nancei r o, a i nstabi l i dade nos v í ncul os, ai nda que os pi car etas
cham em i sso de fl ex i bi l i dade e espont anei dade. Enf i m , Lasch per cebe
que o capi t al i sm o tar di o e sua tendênci a a esf ar el ar t udo o que não
sej a pr odut i v i dade e sucesso nos l ev ar i am à di sf unção nar cí si ca
av assal ador a.
T w enge e Cam pbel l v eem um a cul tur a do nar ci si sm o j á no
sécul o XXI i ni ci ado. Ex pr essões com o generati on me ou li vi ng i n t he
age of ent i t lement (ger ação eu, ou v i v endo num a er a dos di r ei t os),
que t am bém são t ít ul os do s l i v r os da pesqui sador a Jean T w enge,
descr ev em esse nasci si sm o. Nesse cenár i o, os nar ci si stas, de al gum a
f or m a, j á “ tom ar am o poder ” . As escol as no fi nal do sécul o XX
i ni ci ar am sua educação par a o nar ci si sm o (l em br e- se do que f al ei
ant es sobr e a educação saber par a onde i r ), “ ensi nando” as cr i anças
que el as er am l i ndas em si m esm as e que ser i a necessár i o par a o
sucesso que f ossem el as m esm as. Gr ande bobagem , não? Qual quer
pessoa m enos i di ot a que o nor m al sabe que ser eu m esm a não é um a
coi sa óbv i a no di a a di a e que se desfaz no pr i m ei r o m om ent o em que
nossas teor i as sobr e nós m esm os e os out r os se chocam com a
r eal i dade dos f atos. Par a um nar ci si sta, é essenci al m ant er o ônus dos
v í ncul os em bai x a; do cont r ár i o el e sofr er á m ai s que o nor m al . Os
pai s, por sua v ez, ader i r am ao pr oj et o de br aços aber t os, t endo
poucos fi l hos, ou nenhum , e am ando gol den r et r i ev er s no l ugar de
f i l hos, di zendo par a el es (f i l hos hum anos ou cani nos) que el es são
m ai s i nt el i gent es que os out r os, e que, no caso dos f i l hos hum anos,
j á são consci entes do pr obl em a da sust ent abi l i dade desde o ber ço. O
gov er no, que não podi a fal t ar , t or nar á l ei o am or aos f i l hos, puni ndo
pai s que di gam “ não” com o pr odut or es de bai x a autoest i m a.
O cer co se fecha, e nossos aut or es di r ão que um a cur a
possí v el ser i a a ex per i ênci a da gr at i dão. M as gr at i dão é i nv i áv el num
contr at o soci al em que o di r ei t o a t udo (o t al do enti t lement ) é a base
do cot i di ano, por que se eu t enho di r ei t o a t udo, tudo que r ecebo é
obr i gação daquel e que m e dá; l ogo, nunca ex per i m ent o a i dei a de que
r ecebo al go de al guém que sej a f r ut o da gr aça do m undo.
CAPÍTULO 25

Exist e um eu verdadeiro?

O eu se t or nou um a das úl t i m as ut opi as no m undo contem por âneo.


Fr acassadas as utopi as i nst i t uci onai s hi stór i cas, o m odel o hi ppi e se
f ez t endênci a de m ar k et i ng d e com por t am ent o. M odel o hi ppi e: m ui t o
papo fur ado, est i l o pecul i ar de se v est i r , r ecusar a v i da dur a e ter
pouco ônus nos v í ncul os.
Um a das chav es dessa t endênci a é o apar el ham ento do eu
com o saí da par a a v i da. Se t udo é i ncer t o (am or , t r abal ho, f am í l i a,
saúde), que m eu eu e m eu cor po se tor nem m eu t em pl o. Daí a
per gunt a: ex i st e um eu v er dadei r o, que dev em os buscar com o
r ef úgi o par a um a v i da t om ada pel a cont i ngênci a de tudo (hoj e t enho
t r abal ho, am anhã tal v ez não; hoj e tenho am or , am anhã t al v ez não;
hoj e tenho conv i t e par a a bal ada, am anhã t al v ez não)? Ou sej a, ex i ste
um eu v er dadei r o a sal v o de um a v i da onde nada sej a gar ant i do?
A i dei a v em do Rom anti sm o. Wer t her , per sonagem do
l i v r o de Goethe que l ev a seu nom e, j á di zi a que em m ei o ao seu
sof r i m ento pel o m enos ti nha um eu par a se r efugi ar . Ao f i nal , esse
pr odut o r om ânt i co se t r ansfo r m ou num gr ande agent e de consum o e
de al i enação, não por qu e não ex i st am os com o i ndi v í duos
psi col ógi cos, m as por que esse eu, f r ut o de pr ocessos bi oquí m i cos e
el ét r i cos, de l aços soci ai s, hi stór i cos e pol í t i cos, de um a gam a de
ex per i ênci as ex i st enci ai s, não é um l ugar a sal v o de nada. A fi l osof i a,
desde o estoi ci sm o ant i go e do hedoni sm o gr ego, com o v i m os ant es,
busca t or nar a v i da m enos dependente do m ei o a sua v ol t a, r eduzi ndo
o desej o pel o m undo, o que pode soar , com r azão, um t ant o
depr i m ent e e r epr essi v o do desej o pel a v i da. Com o tam bém j á v i m os
ant es, nossa concepção con tem por ânea de pr azer , ent endi da com o
r eal i zação de um desej o et er nam ent e i nsati sf ei t o, é um em peci l ho
enor m e à i dei a de nos t or nar m os i ndependent es das dem andas do
m undo. Ao cont r ár i o, nosso eu v er dadei r o se t or na cada v ez m ai s
dependent e do que ex i ste a sua v ol ta.
Por m ai s que a publ i ci dade m ostr e hom ens e m ul her es em
cenár i os di st ant es e i sol ados em m ei o a um a nat ur eza bel í ssi m a,
essas cenas sem pr e são acom panhadas de pr odut os que são de al gum a
f or m a necessár i os par a v i v er m os esses cenár i os, sej am car r os,
espor t es r adi cai s e suas fer r am ent as i ndi spensáv ei s, sej am hot éi s ou
pousadas char m osas, sej am com panhi as aér eas, agênci as de t ur i sm o,
ou bancos e suas l i nhas de cr édi to par a qual i dade de v i da ou casa
pr ópr i a. Só um i di ot a f or a do nor m al acr edi t a que esse eu
v er dadei r o, pr odut o de um a sopa quí m i ca e de v íncul os soci ai s
m at er i ai s, pode se esconder do m undo, quando par a est ar escondi do
é pr eci so t ant os obj et os car os. No m í ni m o, o que é ai nda m ai s
r i dí cul o, esse eu v er dadei r o necessi tar á de ter api as (que são bem
car as) ou de um a l oj a com r oupa de um est i l o descol ado especí fi co
que o tor ne “ di f er ent e” do r est ante dos m or tai s. Per m anecendo o fat o
de que, se el e com pr a r oupas num a l oj a de pessoas di f er entes, um
m ont e de out r os consum i dor es “ di f er entes” com o el e com pr ar á
r oupas no m esm o l ugar .
Enfi m , não ex i st e esse eu v er dadei r o a não ser com o m ai s
um pr oduto nas pr atel ei r as do m undo contem por âneo, que há m ui t o
desi st i u de qual quer i dei a de per sonal i dade em f av or de um a i dei a
com m enos ônus, que é a de est i l o e de f el i ci dade a t odo custo.
CAPÍTULO 26

Uma cultura de direit os e não de deveres

O escr i tor tcheco M i l an Kun der a, ex i l ado da anti ga T checosl ov áqui a


com uni st a na Fr ança, com en ta em um de seus l i v r os (A i mort ali dade)
que i m pr essi onav a a el e a capaci dade de os oci dentai s acr edi tar em
que a v i da é paut ada por di r ei t os. O que el e quer i a di zer com i sso?
Par a Kunder a, o eur opeu oci dent al supunha que, se quer i a com i da,
el e ti nha di r ei t o a com i da. Se el e quer i a am or , el e t i nha di r ei t o a
am or . Se el e quer i a o sol , el e t i nha di r ei t o a sol . Enf i m , par a esse
oci dent al , a soci edade er a def i ni da com o um si st em a que dev er i a
pr oduzi r par a el e. Ledo engano. O que Kunder a per cebeu é que o
eur opeu oci dent al se t or nar a um m i m ado, que acha que os di r ei t os
são al go gar ant i do. Na v i da, com o j á di scuti m os antes, nada é
gar ant i do.
O f i l ósofo hol andês Andr eas Ki nnegi ng per cebeu a m esm a
coi sa que Kunder a. Em sua obr a Geografi a do bem e do mal, el e
i dent i fi ca m ui t o bem a psi col ogi a pr esent e na m ent e cont em por ânea
que pr essupõe ser a v i da um a questão de di r ei t os hum anos ou ci v i s
adqui r i dos. Ant es, um r epar o: nem Kunder a nem Ki nnegi ng nem eu
som os cont r a di r ei tos. Ao cont r ár i o, pensam os que, quando acham os
que os di r ei tos são nat ur ai s e gr at ui t os, col ocam os em r i sco a
del i cada econom i a (e l em br e o que eu di sse ant er i or m ente sobr e a
econom i a ser a ci ênci a da escassez) que sustent a a soci edade r i ca
oci dent al , capaz de bancar esses di r ei t os. Kunder a, que v i v er a no
r egi m e com uni st a (al i ás, a m ai or pi car etagem da hi stór i a, coi sa que
no Br asi l ai nda se acr edi t a, sobr et udo a com uni dade acadêm i ca),
sabi a m ui t o bem que a v i da é pr ecár i a e que os eur opeus hav i am se
esqueci do di sso, gr aças à gr ana am er i cana j ogada na Eur opa par a
i m pedi r que a t r agédi a com uni sta engol i sse a Eur opa i nt ei r a.
Ki nnegi ng per ceb e que há um a di f er ença psi col ógi ca entr e
quem pensa em t er m os de di r ei tos e quem pensa em ter m os de dev er .
O m undo contem por âneo pensa em t er m os de di r ei t os. Esse m undo
r i co, capi t al i st a bem - sucedi do, de gent e j ov em , saudáv el , nar ci si st a,
que t em poucos f i l hos e anda de bi k e. A psi col ogi a dessa gent e é: o
m undo m e dev e. El es oper am a par ti r do que o out r o dev e pr ov er e
não do que el es dev em pr ov er . O nar ci si sm o di scuti do aci m a é cl ar o
na m ente de quem pensa em t er m os de di r ei t os. Ao passo que quem
pensa em t er m os de dev er es, pensa em com o f azer par a que as coi sas
acont eçam . É ev i dent e que um m undo não pode se sust entar em ci m a
de um a psi col ogi a i nundada pel a l ógi ca dos di r ei t os, por que, com o
se sabe há m ui t o tem po, essa l ógi ca é a l ógi ca dos que não têm
car át er .
Se pensar m os no que nos di z T w enge sobr e a generati on
me, m ui t os j ov ens têm si do educados sob o m ant o de que a v i da dá
cer t o e a f el i ci dade é um di r ei t o. O f r acasso e o r essenti m ent o seguem
seu cur so quando a i dade chega e a r eal i dade m ostr a seu enor m e gr au
de i ndi fer ença par a com todos nós.
CAPÍTULO 27

Épossível um mundo em que t odos são iguais?O blá-blá-blá da desigualdade


social

Out r a m ani a do m undo cont em por âneo é a hi st ór i a da j ust i ça soci al ,


o que hoj e é cham ado de o pr obl em a da desi gual dade. Espant a- m e
com o pessoas que sabem as quat r o oper ações da ar i t m éti ca podem
f al ar que ex i ste desi gual dade soci al com o se i sso f osse um pr obl em a
da r eal i dade. Ex pl i co.
Só hav er á i gual dade soci al quando todos v ol t ar em a ser
pobr es, com o sem pr e f om os. Paí ses com o Suéci a e af i ns só t êm um a
gr ande cl asse m édi a r i ca por que o Estado di st r i bui u dur ant e m ui t o
t em po a gr ana que ganhou f or a da Suéci a e, em l ugar es onde a
desi gual dade poder i a ex i st i r .
M esm o quando se fal a que ex i st e 1% cada v ez m ai s r i co
(t hom aspi k k et y sm o), esquece- se que pouco i m por ta se al guém tem
100 BM Ws; o i m por tante é que m ai s gente consi ga com pr ar um Gol
ou car r o sem el hant e. O pr obl em a não é a desi gual dade m as a pobr eza,
e est a só é r esol v i da com a soci edade de m er cado, com o dei x a cl ar o
H ar r y G. Fr ank f ur t em seu On i nequali ty, de 2015. O m undo nunca foi
t ão r i co. A causa dessa l enga- l enga de desi gual dade soci al é por que
nunca f oi t ão r i co e agor a, com a m ental i dade dos di r ei tos, as pessoas
passar am a achar que r i queza é um di r ei t o.
Vej a bem : o m undo é um a m er da e sem pr e f oi . M as o
capi t al i sm o o dei x ou um pouco m enos pi or em t er m os m at er i ai s (e
com i sso m e r efi r o, i ncl usi v e, a m edi ci na, cel ul ar es e dem ocr aci as),
apesar de que conti nua em gr ande par te um a m er da. Os boni t i nhos
que gost am de br i ncar de r i qui nhos do bem gost am de di zer que o
pr obl em a é da desi gual dade soci al .
Com o di z Fr ank f ur t , pr eci sa- se de m ai s capi t al i sm o
por que é a úni ca f or m a de pr oduzi r r i queza. Acont ece que esse
m undo da pr oduti v i dade (j á ti v em os chance, ant es, de apont ar al guns
de seus si ntom as i ndesej áv ei s) r ev el a o M r . H y de (o m onst r o da
nov el a O médi co e o monstro, d e St ev enson) que ex i st e na hum ani dade.
Ri queza é pr oduzi da, m ui tas v ezes, de f or m a não m ui to bel a. E t enha
cer t eza de que quem br i nca de boi cot ar pr odut os chi neses não pr eci sa
pagar bar at o pel o que com pr a. A úni ca f or m a de v er a v er dade é
quando al guém dev e gast ar o di nhei r o que não t em . Enquanto ex i ste
di nhei r o, ex i st e esper ança de f el i ci dade e m ar k et i ng m or al .
Apesar dessa di m ensão H y de do capi t al i sm o, que é
v er dadei r a, e t al v ez sej a i sso m ai s um a t r agédi a, a sol i dar i edade
nunca pagou as contas nem fez a m edi ci na av ançar , m esm o que
al guns i di otas for a do nor m al di gam que si m .
E ex i ste m ai s um pr obl em a aqui : as pessoas não são
i guai s. A i gual dade dev e ex i sti r di ant e da l ei , m as acaba aí . Al gum as
pessoas são m ai s i nt el i gen tes, m ai s di sci pl i nadas, acor dam m ai s
cedo, t êm m ai s saúde, nascer am em fam í l i as m el hor es, e i sso nada
t em a v er com j usti ça soci al . Essa m oçada da i gual dade soci al é
m ov i da pel o v el ho r essent i m ento. Não há com o zer ar a cont i ngênci a.
Às v ezes, a di fer ença é apenas a saúde par a t r abal har m ai s e m el hor .
Ou um car át er obsessi v o que t or na v ocê m ai s f ocado. Às v ezes,
sof r e- se m ai s sendo com pet ent e do que um i ncom pet ent e si m páti co
que ani m a fest as e posa de sensív el . Já que não f az nada, est á sem pr e
de bom hum or . E o pi or é q ue, ao t ent ar negar esse fat o (que al guns
poucos são m el hor es do que m ui t os), o r esul tado ser á a i gual dade
soci al na m edi ocr i dade. A m ai or par t e da hum ani dade sem pr e f oi
m enos capaz. I sso nada tem a v er com v i ol ênci a ou r aci sm o.
Ar i st ót el es j á f al av a da gr ande al m a, aquel a com m ai s v i r t udes e com
quem m ui t as pessoas v i v i am . H oj e, est á na m oda negar i sso; a
educação at é m esm o agoni za sob essa i dei a de i gual dade. O f at o de
que t odos dev em t er di r ei t o à educação bási ca e saúde bási ca (se a
soci edade f or r i ca o bastant e par a ger ar i sso) não si gni f i ca que os
al unos sej am t odos i guai s em pot enci al e v i r t udes. M ui tas v ezes, a
i nt el i gênci a f az de v ocê um a pessoa m ai s cr uel , m enos f el i z, m enos
si m pát i ca. A gener osi dade de al m a não necessar i am ent e v em
acom panhada de sof i st i cação do pensam ent o.
Enfi m , a negação de que a desi gual dade sej a par te da
soci edade de m er cado, aquel a m esm a que pr oduzi u o m enor ní v el de
pobr eza conheci do na hi st ór i a da hum ani dade (e l em br e que agor a
som os 7 bi l hões quer endo ser f el i zes e t er di r ei tos), é t í pi ca do
m undo cont em por âneo r i qui nho. Ei s um a das m ai or es contr adi ções
do capi t al i sm o: el e m el hor ou a v i da de m i l hões de pessoas que
agor a, m i m adas, di zem que t odos dev er i am t er di r ei to a BM Ws.
Não acr edi t o que o capi t al i sm o dur e par a sem pr e. Nada
dur a par a sem pr e. Daqui a m i l anos, tal v ez num m undo m ai s pobr e,
se f al e de um a época de l ei t e e m el no passado em que as pessoas
t i nham tudo o que quer i am , m as a ganânci a dest r ui u esse m undo. Eu
suspei t o que quem t er á destr uído esse m undo (v i st o com o um
par aí so por um f ut ur o m ai s pobr e) ser á a cul t ur a dos di r ei t os, que
nos t or na i ncapazes de acor d ar cedo e enf r ent ar o f at o de que a v i da
não tem gar anti as. Quem sabe v ol tem os aos pecados capi t ai s (e
per cebam os que um dos pr obl em as soci ai s de hoj e sej a a pr egui ça
t r av est i da de cr ít i ca soci al ) por que el es per m anecem m ai s
contem por âneos do que fet i ches com o l ut a de cl asses.
CAPÍTULO 28

O mundo est á ficando mais desumanizado?Culpa da mania de perfeição

Na segunda m etade do sécul o XI II , na Fr ança, um gr upo de f i l ósof os


conheci dos com o av er r oí stas l at i nos (por que sendo cr i st ãos l ati nos,
l ei tor es de Ar i st ót el es e seu com ent ador espanhol m our o Av er r óes
r eceber am o nom e de av er r oí stas l at i nos). Esses aut or es t i v er am
m ui t a dor de cabeça com a Inqui si ção por que afi r m av am que a
f el i ci dade (ent endi da com o v i da equi l i br ada e l onge de v íci os) podi a
ser at i ngi da v i a uso do i nt el ecto (al go pr óx i m o ao que hoj e
cham ar í am os de r azão). Nesse senti do, segui am a f i l osofi a t ant o de
Ar i st ót el es quant o de seu com entador m uçul m ano Av er r óes. O
confl i to v ei o por que, par a a t eol ogi a da Sor bonne (l ei a- se, da I gr ej a),
a fel i ci dade er a m ui t o m ai s dependent e do conheci m ent o r ev el ado
(t eol ogi a, Bí bl i a, m agi st ér i o da Igr ej a) do que da fi l osof i a,
com pr eendi da com o um a ati v i dade um t ant o l i v r e de dogm as. Esses
f i l ósofos (o m ai s fam oso del es, o m édi co Si ger de Br abant , m em br o
de um a i m por t ant e f am íl i a de um a r egi ão que hoj e é par te da Bél gi ca
e l ev a o m esm o nom e, Br abant) ti v er am de sai r da Sor bonne e m ui t os
(Si ger , entr e el es) f ugi r de Par i s. Essa é a pr i m ei r a v ez na hi st ór i a que
se conhece um a per segui ção a i nt el ect uai s pel a I gr ej a.
Al guns m ont ar am gr upos de est udo de Ar i st ót el es e
Av er r óes nas pequenas r uas ao r edor da Sor bonne, e, ent ão, aquel a
r egi ão fi cou conheci da com o quarti er lat i n, por causa desses
av er r oí st as l ati nos e não por causa do ex i l ados l ati no- am er i canos
dos anos 1960 – qui ser am el es t er essa i m por tânci a t oda na v i da de
Par i s.
O foco f i l osófi co do pr obl em a, por ém , er a: o hom em ,
pel o uso l i v r e da r azão, pode const r ui r sua f el i ci dade e at i ngi r um
gr au m ai or de per f ecti bi l i dade (t or nar - se cada v ez m el hor )? Os
av er r oí st as l at i nos achav am que si m , os cat ól i cos (que l i am
Ar i st ót el es t am bém , m as dav am um a al i v i ada na aut onom i a da r azão
hum ana sem a gr aça de Deus) achav am que não. No sécul o XI I I, os
cat ól i cos l ev ar am a m el hor de cer t a for m a, pel o m enos no que se
r ef er e ao em pr ego da uni v er si dade – at é hoj e, a uni v er si dade é m ui t o
m ai s um a questão de quem consegue bot ar par a for a seu i ni m i go do
que quem pesqui sa m ai s. M as i sso é out r a hi st ór i a.
Já nos sécul os X VI e XVI I na Fr ança, a coi sa v i r ou. A
t endênci a, i ncl usi v e por causa do esfacel am ent o f eudal e da ent r ada
da bur guesi a e sua busca de sucesso e aper fei çoam ent o nos negóci os,
f oi a v i r ada do j ogo. Já no sécul o XVI I I, a i dei a de per f ect i bi l i dade do
hom em a par t i r do uso de sua r azão, t écni ca e ci ênci a est av a
i nst al ada, com o t odo m undo sabe quando est uda o I l um i ni sm o e o
sur gi m ent o da ci ênci a.
A v er dade é que um a das r azões da desum ani zação, de que
pouca gent e se dá conta, é essa busca de per f ect i bi l i dade cont ínua da
v i da em todas as f r en t es. I nt el i genti nhos de t odos os t i pos ber r am
contr a a m er canti l i zação das r el ações, que é v er dade e faz m al
m esm o, cont r a as m áqui nas, cont r a o capi t al , cont r a a I gr ej a, m as
não quer em per ceber que a pr i nci pal causa da desum ani zação
m oder na é a busca de per f ei ção, aper fei çoam ent o, per f ecti bi l i dade ou
pr ogr esso (t udo m ai s ou m enos a m esm a coi sa).
Os m edi ev ai s ent endi am que o hom em t em um dano em
sua est r ut ur a, que é o pecado. Com a super ação dessa t eor i a (o l i v r o
de Pi co del l a M i r andol a Di scurso sobre a di gni dade do homem, de
1498, é um m ar co na v i r ada desse debat e) pel os defensor es da
per f ect i bi l i dade m or al e t écni ca do hom em , ent r ar em os na er a em
que m ui t os supõem que é o pr ópr i o hom em quem at r apal ha seu
aper f ei çoam ento, na m edi da em que é de car ne e osso e que tem
pai x ões desor gani zador as. Vi v em os num a er a eugêni ca: t odos
quer em ser bel os, saudáv ei s, eter nos, bem r esol v i dos e chei os de
t écni ca. O pós- hum ani sm o (não v ou di scuti r essa t eor i a l ouca aqui )
cr ê que num a m escl a com a r obóti ca v am os super ar esse cor po
m i ser áv el . A m oçada do m ar k et i ng m or al acha que com a educação e
a pr opaganda podem os cr i ar um m undo em que todos sej am
hom ens, m ul her es e l abr ad or es ao m esm o t em po, e que ni nguém
t enha ci úm e ou v ont ade de com er pi canha. Com o não v er que a fúr i a
pel o pr ogr esso cont í nuo chegar á à concl usão de que é o hum ano no
hom em que nos at r apal ha?
I sso j am ai s ser á di t o de f or m a cl ar a por que som os a
ci v i l i zação m ai s hi pócr i t a que j á ex i st i u, m as a pr i nci pal causa da
desum ani zação que enf r ent ar em os no futur o ser á aquel a em nom e do
bem e da qual i dade de v i da. M as, enquant o i sso est i v er acont ecendo,
os bancos far ão com er ci ai s de com o l agos e m ont anhas são l i ndos e
bons par a a saúde e o equi l íbr i o dos casai s, sej am el es hét er os ou
hom os.
CAPÍTULO 29

Ébom viver t ant o t empo assim?Os t raumas da longevidade

Fal áv am os de pr ogr esso e per f ect i bi l i dade há pouco. Um caso


par t i cul ar desse pr ogr esso é a l ongev i dade. O hom em nunca v i v eu
t ant o t em po. Um a das coi sas m ai s cer tas que podem os t er em m ente é
que, sal v o sui ci das ou m el ancól i cos pr of undos, t odo m undo faz
qual quer negóci o par a v i v er m ai s. M esm o os que se di zem
espi r i tual i zados. Al i ás, essa é um a das r azões pel as quai s quase 101%
das pessoas col abor am com r egi m es assassi nos: gar ant i r a v i da e
gar ant i r o j ant ar , apesar de posar em de r esi stent es, com o m ui t os
desses f r anceses que f ugi r am da Fr ança após a queda dos nazi st as em
Par i s e agor a posam de her ói s da r esi stênci a em t er r as t upi ni qui ns
par a i ntel i gent i nhos m al i nf or m ados.
Então, a hi st ór i a pr ov ou que a ci ênci a est av a cer ta, que
Fr anci s Bacon (sécul os XVI e XVI I ) ti nha r azão, e que, se par ássem os
de per guntar coi sas escol ást i cas (t i po de f i l osofi a do fi nal da I dade
M édi a que t er m i nou seus di as se per gunt ando coi sas com o: “ Deus
pode cr i ar um a pedr a que El e m esm o não pode car r egar ?” , ou sej a,
em bom por tuguês, bullshi t), i nút ei s, e at ássem os a natur eza em
l abor at ór i os, consegui r í am os i nv ent ar av i ões, anti bi ót i cos e
nanotecnol ogi a. Deu cer t o. Com o na v i da r eal i nv entam - se sol uções
par a pr obl em as que cr i am nov os pr obl em as, com a m edi ci na
m oder na descobr i m os que os i dosos não ser v em par a m ui t a coi sa,
ai nda m ai s quando são m ui t os e pobr es (j á fal am os di sso ant es).
No m undo cont em por âneo, as coi sas só f unci onam
quando v i r am ni cho de m er cado – v ej a a r ev ol ução gay , f r ut o da
publ i ci dade nor t e- am er i cana que descobr i u que el es er am um ni cho
de gent e com gr ana, bem pr epar ada e sem fi l hos (hét er os são pobr es
por que t êm fi l hos...), e que, por t anto, dev er i am ser r espei t ados
por que com pr am . Quando i dosos conseguem se i m por com o
consum i dor es, aí fi cam boni t i nhos; af or a i sso, só quando al guém
pr eci sar dar um t oque de tr adi ção par a um a m ar ca de caf é...
Ei s que a l ongev i dade está aí . Vi v e- se m ui t o, e um a das
pr i m ei r as coi sas que os gov er nos t êm de fazer é adi ar a
aposentador i a, por que ao l ado da l ongev i dade est á a i nf er t i l i dade das
m ul her es secul ar es, o que ger a o f am oso pr obl em a da pr ev i dênci a:
não t em j ov em bast ant e par a bancar tanto i doso quer endo ser fel i z.
Afor a essa quest ão de gest ão, a l ongev i dade cr i a out r os t r aum as.
Com o os v í ncul os são cada v ez m ai s ef êm er os ent r e as pessoas, e a
at om i zação é cr escent e (j á v i m os i sso), a t endênci a é a sol i dão ser a
outr a face da l ongev i dade. Pessoas v eget am em suas casas, quando
t êm casas, ou abr em - se nov as casas de r epouso. Cl ar o, ex i ste at é um a
nov a ci ênci a: ger ont ol ogi a.
Nunca esti v em os t ão l onge do v al or dos i dosos (geront es
em gr ego); ao cont r ár i o, os j ov ens, com sua i nex per i ênci a,
ar r ogânci a (coi t ados, cul pa dos pai s, pr ofessor es e j or nal i stas que
f i cam babando em ci m a del es) e seu conheci m ent o de i Phone, são a
r ef er ênci a dos m ai s v el hos. O m ai s r i dícul o é que, ao l ado da
l ongev i dade técni ca al cançada, foi o apodr eci m ent o, e não o
am adur eci m ent o, que se i nst al ou com o m ar ca do env el heci m ent o no
m undo cont em por âneo (cl ar o, m ent e- se sobr e i sso com o papi nho
de m el hor i dade). Não se am adur ece, per de- se o pr azo de v al i dade,
m esm o com (al gum a) saúd e. Longev os cor r em o r i sco de um di a
par ecer em um bando de zum bi s, sem l ugar num m undo em que, ao
m esm o t em po que v ocê pode v i v er nov ent a anos com (al gum a)
saúde, v ocê j á com eça a env el hecer aos 25, desesper ado por causa do
col est er ol , da est r i a e das r ugas.
CAPÍTULO 30

O silêncio do mundo

O pi or dos pr obl em as: o que f azer com t ant a gent e f el i z j unta? No


f i l m e I nt erest elar, num dado m om ento, o per sonagem pr i nci pal
(i nt er pr etado por M att hew M cConaughey ) per gunt a a seu sogr o o
por quê de o m undo t er se t r ansf or m ado naqui l o (ar i dez, pobr eza,
pol ui ção, r et r ação econôm i ca, r ur al i zação). O sogr o r esponde que 6
bi l hões de pessoas quer endo ser f el i zes não podi a dar em out r a coi sa.
Não quer o f al ar só do tem a j á desgast ado da
sust ent abi l i dade. É o desej o h um ano que é i nsust entáv el . A f el i ci dade
v ai destr ui r o m undo. Um a hum ani dade de 6 ou 7 bi l hões de pessoas
f el i zes ser á a m ai or pr aga que j á cam i nhou sobr e o m undo. Nenhum a
das set e pr agas sobr e o Egi to t ev e esse poder di ssol uti v o. Com o
num a espéci e de al uci nação, m ar cham os sem pr e em f r ent e, supondo
que a fel i ci dade, ent endi da com o r eal i zação de nossos desej os
i ndi v i duai s (com o di ssem os no m om ent o em que di scutí am os o
hedoni sm o cont em por âneo), sej a sustent áv el .
Um a das pr i nci pai s i ndagações acer ca do f ut ur o da
f el i ci dade hum ana v em do ev ol uci oni sm o (ent r e outr as fr entes
possí v ei s): ser á que um a espéci e que não ev ol ui u num am bi ent e de
f el i ci dade com o r eal i zação do desej o i ndi v i dual supor t a essa gui nada
em di r eção ao át om o m or al que é o suj ei t o?
Nossa ev ol ução se deu num am bi ente de dev er es e não de
di r ei tos. O pr ópr i o sucesso do capi tal i sm o acont eceu gr aças à m or al
dos dev er es e não dos di r ei t os. A f el i ci dade do i ndi v í duo nunca foi
cr i t ér i o par a a sobr ev i v ênci a da espéci e. O bando or i gi nal , cuj a
úl t i m a r epr esent ação é a f am íl i a, tam bém em pr ocesso de di ssol ução,
dei x ou de ser a r ef er ênci a. A nov a r ef er ênci a é o suj ei t o e seus gostos.
Nada gar ant e que nossa espéci e est ej a adaptada à obsessão pel a
f el i ci dade i ndi v i dual .
Quando m e per guntam por que eu par eço despr ezar a
m i nha época, l em br o a conv er sa do per sonagem r om ânti co
i nt er pr et ado por T om Cr ui se no f i l m e O últi mo samurai . O cor onel ,
det est ado pel o capi t ão Nathan Al gr en (T om Cr ui se), per gunt a a r azão
de el e despr ezar tant o seu pr ópr i o pov o (no caso, a ci v i l i zação
v i ol ent am ent e m oder na e m er cant i l i st a dos EUA). Eu não t enho
nenhum a dúv i da sobr e a pot ênci a do capi tal i sm o em pr oduzi r
f el i ci dade e qual i dade de v i da m at er i al na gr andeza que pr oduz.
Nenhum out r o si st em a consegui u fazer i sso. M i nha dúv i da é se nossa
espéci e supor t a t ant a f el i ci dade sem se t or nar um a espéci e
i r r el ev ante. Espéci e r ecém - chegada ao m undo, i m agi no, segui ndo os
passos do f i l ósof o i ngl ês John Gr ay em seu The si lence of ani mals, de
2013, que os outr os ani m ai s nos cont em pl am do al t o de seus
m i l har es e m i l har es de anos de adaptação a est e m undo. Com o di z
Gr ay , ant es de nós, a i nqui etação const ant e dos neander t ai s dev e ter
si do obj eto de ceti ci sm o por par t e do si l ênci o desse m esm o m undo.

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