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TEORIA ARQUEOLÓGICA:

ENTRE A PRÁTICA,
A REPRESENTAÇÃO
E A POLÍTICA*

APRESENTAÇÃ DO
DOSSIÊ
LUÍS CLÁUDIO PEREIRA SYMANSKI**

Goiânia, v. 15, n.2, p. 187-191, jul./dez. 2017.


O presente dossiê da Habitus consiste em artigos preparados por estudantes do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG com base, sobretudo, nas discussões
e nos temas abordados na disciplina Teoria Arqueológica. Eu tenho ministrado essa
disciplina desde o ano de 2010, inicialmente no Programa de Pós-Graduação em Antro-

DOI 10.18224/hab.v15i2.6091
pologia Social da UFPR e, a partir de 2013, na UFMG. O desenho da disciplina, antes
do que seguir os programas convencionais deste tipo de curso, que focam na emergência,
caracterização, críticas e sucessões entre as correntes teóricas da arqueologia – usualmen-
te iniciando com o histórico-culturalismo e finalizando com o pós-processualismo ou,
mais recentemente, com a arqueologia simétrica –, aborda temas e conceitos centrais
à disciplina e, portanto, transversais às múltiplas abordagens teóricas. O foco volta-se,
assim, para os fundamentos epistemológicos da arqueologia, para aquelas feições que
caracterizam a identidade da disciplina e que exercem um papel fundamental no pro-
cesso de produção do conhecimento arqueológico.
Deste modo, o programa é estruturado em quatro eixos temáticos: 1- o lugar
da arqueologia nas ciências sociais e suas relações com a antropologia, a história e outras
ciências sociais e naturais, bem como o próprio rompimento com a noção de disciplina
defendido pelo pós-modernismo e pelo pós-colonialismo; 2- os conceitos de cultura,
cultura material e cultura arqueológica e as formas como têm sido pensados por dife-
rentes abordagens teóricas, que se estendem do particularismo histórico ao pós-colo-

* Recebido em: 01.10.2017. Aprovado em: 00.00.2017.


** Doutor em antropologia/arqueologia pela University of Florida, mestre em história com concentração
em arqueologia pela PUC/RS e bacharel em arqueologia pela Universidade Estácio de Sá. É professor
adjunto do programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Curso de Graduação em Antropologia
187 e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: luis.symanski@pq.cnpq.br
nialismo, passando pelo funcionalismo, materialismo cultural, materialismo históri-
co, hermenêutica e pós-modernismo; 3- as diferentes perspectivas sobre as noções de
tempo e temporalidade, as formas como são mobilizadas para explicar mudanças e,
assim, as suas implicações no processo interpretativo, considerando tanto as questões
centrais ao entendimento do palimpsesto de temporalidades e vestígios materiais que
caracterizam a estrutura do registro arqueológico – nas quais as relações entre estática
e dinâmica são centrais –, quanto o tempo intersubjetivo das relações sociais, do pro-
cesso de interpretação arqueológica e das relaçoes colonialistas que negam coevalidade
ao outro não-ocidental; e 4- os conceitos de teoria e paradigma e as formas como fun-
damentaram as diferentes abordagens teóricas na arqueologia ao privilegiarem seja o
sistema, seja o indivíduo como determinantes da dinâmica sócio-cultural, assim como
as perpectivas recursivas, que buscam romper com essa dicotomização ao enfatizar o
domínio das relações entre estrutura e agente e todos os seus desdobramentos.
Pretende-se, assim, que o estudante chegue ao final do curso não somente com
uma visão geral das diferentes perspectivas arqueológicas e modos de pensar a cultura
material, mas também com uma noção bem fundamentada sobre as formas como mesmo
os conceitos mais básicos estão articulados ao domínio teórico e, por conseguinte, aos
diferentes pressupostos sobre o que consiste a realidade, sobre como ela opera, e sobre
como pode ser acessada a partir das materialidades do passado.
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Há uma já velha dicotomização do pensamento social que tem sido difícil


de superar na prática arqueológica, à medida que vincula-se a experiênciais pessoais, a
juizos de valores e, assim, às sensibilidades de seus aderentes, que tendem a seguir ru-
mos críticos ou rumos materialistas (KNAUFT, 1996). Essa divisão é indissociável da
noção de temporalidade adotada, como bem notou Bailey (1983, p. 166), já no início
da década de 1980, quando as perspectivas críticas e simbólicas começavam a desafiar
a hegemonia da arqueologia processual no mundo anglo-fônico: as noções de tempo
como processo e de tempo como representação. Na primeira, a estrutura do registro
arqueológico é analisada visando sua decodificação e parte da premissa de que o pre-
sente é produto do passado e deve ser explicado com base naquele. Na segunda, por
outro lado, o passado deve ser explicado com base no presente, de modo que somente
adquire relevância em termos das preocupações sociais atuais. O próprio Bailey (1983,
p. 168) já então chamava a atenção para a arbitrariedade dessa dicotomia, dado que a
experiência temporal somente existe para nós na qualidade de memória (passado) ou de
antecipação (futuro), ou seja, como representação.
As abordagens modernistas tardias têm buscado superar essa dicotomia, ao
enfatizarem que o domínio do social se situa na relação entre a prática e a representação,
e que as as práticas se desdobram em um mundo material que simultaneamente condi-
ciona e é condicionado pela experiência social. Seria possível, assim, uma compreensão
da realidade com base no entendimento dessa relação entre a prática e a representação,
entre o material e o ideal, entre o evento e a estrutura (KNAUFT, 1996; ORTNER,
2006). As sensibilidades pós-modernas, por outro lado, rejeitam esta assunção, ao par-
tirem da premissa de que não existe uma realidade objetiva passível de ser apreendida,
mas somente discursos vinculados a regimes de poder. Mais recentemente os defensores
da arqueologia simétrica têm também buscado superar essa dicotomização, chamando
a atenção para a arbitrariedade da divisão passado/presente como mais uma das estra-
tégias modernistas de segmentar entidades que estão distribuídas e emaranhadas no
mundo, antes do que separadas por essências (SHANKS, 2007; WITMORE, 2007). 188
Nesta perspectiva o passado não é exclusivamente passado, dado que existem passados
múltiplos que continuam a mediar a vida das pessoas no presente em uma diversidade
de formas, algo bem expresso na noção de paisagem, à medida que esta agrega múlti-
plas temporalidades nos sítios, feições e coisas que a compõe (WITMORE, 2007, p.
556). A forma, contudo, como essa abordagem tem sido operacionalizada acaba por
enfatizar bem mais o presente, dado que a ênfase tem recaído muito mais no entendi-
mento e descrição do processo de produção do conhecimento arqueológico – visto como
uma intricada rede de relacionamentos entre agentes humanos e não-humanos – do que na
interpretação do dado arqueológico de modo a buscar alguma forma de compreensão
daqueles povos e pessoas que, no passado, produziram esses resíduos.
Neste embate entre visões sobre o que é certo e o que é errado, entre ontolo-
gias, epistemologias e teorias, chama a atenção como determinadas abordagens teóri-
cas têm sido adotadas por alguns como “verdades absolutas”, sendo automaticamente
descartadas reflexões e contribuições de abordagens divergentes, com seus pratican-
tes maniqueisticamente rotulados em extremos como “cientificistas reacionários” ou
“fantasistas”. Esta prática excludente, que impede qualquer possibilidade de diálogo
entre aderentes de abordagens teóricas distintas, foi bem categorizada por Schiffer
(2000) como redlining e tem sido criticada por autores como Hodder (2001), Kris-

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tiansen (2004) e Johnson (2006). Trata-se de um cenário de belicosidade sobre quem
detém a autoridade do conhecimento, sobre quais as formas de conhecimento podem
ser consideradas legítimas, e sobre as implicações políticas que envolvem a sua produ-
ção. Embora não pareça haver atualmente alternativas que superem essa belicosidade,
dado que novas abordagens emergem da crítica a abordagens anteriores, sendo também
fundadas, como afirmado acima, em experiências, valores e ideais de seus praticantes, o
conhecimento das trajetórias teóricas da arqueologia ainda consiste na forma mais con-
sistente de apaziguamento, por meio do reconhecimento das diferenças e dos objetivos
de cada abordagem. Deve-se reconhecer, assim, que cada abordagem teórica tem uma
lógica interna que lhe é própria e formas específicas de ser operacionalizada na prática,
a partir de conceitos e premissas sobre o mundo material e sobre suas imbricações com
o mundo humano.
Uma arqueologia objetivista tem sido corretamente acusada de restrita, auto-cen-
trada, e colonialista (GOSDEN, 2001); porém, da mesma forma, uma arqueologia sem um
engajamento com as coisas que restaram do passado, sem um comprometimento em buscar
algum grau de entendimento sobre as milhares de formas de existência humana que nos
antecederam que não seja exclusivamente baseado em preocupações políticas contem-
porâneas torna-se somente retórica. No caminho, estruturas conceituais diversificadas
e as lógicas como operam, pautadas em diferentes pressupostos sobre o que consiste a
realidade, são fuziladas. Chega-se, assim, a um ponto em que o discurso político torna-se
o único elemento relevante.
Em uma análise anterior, focada no desenvolvimento da arqueologia histórica
no Brasil (SYMANSKI, 2009), eu chamei a atenção para uma lacuna até então obser-
vada entre o discurso teórico e a prática, que se tornou recorrente nos anos de 1990 à
medida que os ecos da arqueologia pós-processual começaram a ser ouvidos por nossos
acadêmicos. Destaquei que isto gerou uma situação de esquizofrenia em que se adotava
um discurso que, com as devidas exceções, não era replicado na prática ou, quando o
era, muitas vezes se dava somente de forma trivial, como a replicação da máxima de
189 que a cultura material é permeada de significados. Eu chamei a atenção, na época, para
o fato de que tal problema dizia respeito às dificuldades de operacionalização de novos
conceitos e abordagens por parte de uma prática arqueológica ainda fortemente atrela-
da ao histórico-culturalismo. É fato que houveram, nesse sentido, notáveis avanços nos
últimos 15 anos, decorrentes de uma série de fatores, sendo provavelmente o principal o
movimento de expansão dos programas de graduação e pós-graduação em arqueologia.
Porém estamos, nos últimos anos, começando a nos deparar novamente com este pro-
blema, mas agora sob a máxima de que os objetos têm agência independentemente de
suas relações com humanos. Nesse sentido, tornou-se fácil aos críticos reduzir pesqui-
sas intensas, em que os dados são abordados a partir de estruturas conceituais coeren-
tes, a rótulos teóricos, de um modo tal que atribui-se mais significância a tais rótulos do
que aos dados e interpretações apresentados. Assim, nos encontramos em uma situação
na qual os trabalhos têm sido mais valorizados em termos do discurso teórico em que
se assentam do que dos resultados que apresentam. Em outros termos, não há neces-
sidade de interpretações de dados que sejam consistentes, e muitas vezes nem sequer
de análises consistentes, contanto que o discurso teórico seja aquele que está na moda.
O ponto-chave é que devemos aceitar que temos uma fonte: a cultura material
inserida em um contexto temporal e espacial; e que é com base nesta fonte que deve-
mos construir nossas narrativas sobre o passado. Esta fonte tem as suas limitações pois,
diferentemente dos antropólogos, não temos como entrevistar os nossos fragmentos do
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passado. Por outro lado, a própria noção de contexto implica que a cultura material
está imbricada nas práticas cotidianas, nas representações, e nas negociações sociais
que envolvem aspirações, afirmações, contestações, submissões, idealizações e poder.
Dissociá-la desse contexto implica em um retorno ao antiquarismo, como bem notou
recentemente Barret (2016). Os arqueólogos têm desenvolvido, ao longo das últimas
décadas, formas criativas de abordar essas questões, que têm levado a um passado bem
mais humanizado do que aquele presente nas noções ortodoxas de tradição, sistema e
comportamento. Essas narrativas podem também atuar como poderosas críticas aos
mecanismos de opressão, de alienação e de violência que têm marcado o mundo con-
temporâneo, ao demonstrar que a existência de múltiplos passados pode abrir o cami-
nho para a possibilidade de múltiplos futuros, antes do que para a inevitabilidade da
permanência da violenta sociedade desigual que temos vivido.
Os artigos presentes neste dossiê, apesar de primarem pelo foco teórico, enfa-
tizam, em todos os casos, a importância dessa materialidade do passado. Este passado
pode ser aquele da emergência e da dispersão de uma tecnologia milenar relacionada ao
‘saber fazer’ cerâmico, como aborda Hepp para o caso da longa continuidade do anti-
plástico cariapé, que pode ser considerado como um agente não-humano totalmente
imbricado nos emaranhados de coletivos que se sucederam e se interpenetraram no
tempo e no espaço ao longo de milênios; como também aquele, quase contemporâneo,
de uma arqueologia de instituições repressivas do século XX, como é o caso das insti-
tuições psiquiátricas de Barbacena discutidas no artigo de Brandão. É também o passa-
do daquelas pequenas coisas que acabam por aparecer mais nas peneiras dos sedimentos
que escavamos do que no contato da colher de pedreiro com o solo arqueológico, como
é o caso das contas de vidro dos espaços de uma senzala oitocentista abordadas por Su-
guimatsu e de seu importante papel, ao lado de outros ornamentos, na construção da
corporalidade e, assim, da identidade dos grupos escravizados; bem como daquele bem
mais evidente nas estruturas funerárias de contextos cemiteriais dos séculos XVIII e
XIX, discutidos no artigo de Roedel. Esta temporalidade, por fim, também diz respeito 190
àquele passado que se embrenha no presente e que faz com que as pessoas e os seus luga-
res de existência se tornem fundamentais na prática arqueológica contemporânea – nas
etnoarqueologias e nas arqueologias públicas, participativas e colaborativas –, conforme
bem problematiza Myashita em seu artigo “De volta para o presente”.
Por fim, os trabalhos aqui apresentados, por se tratarem, em sua maioria, de
pesquisas em andamento, são mais propositivos e reflexivos do que conclusivos. Visam,
antes, apontar para múltiplas direções e, do mesmo modo, demonstrar o potencial que
uma arqueologia teoricamente orientada, focada em contextos e situações específicas,
apresenta para uma compreensão mais crítica dessa modernidade auto-destrutiva que
estamos vivendo.

Referências
BARRET, John. The new antiquarianism? Antiquity, Cambridge, v.90, n. 354, p.1681-
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