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“IDENTIDADE PÓS-MODERNA”: O ROCK E A MÚSICA BRASILEIRA

NOS ANOS 1980 E 1990


“POST-MODERN IDENTITY”: ROCK AND BRAZILIAN MUSIC IN THE 1980s AND 1990s

Francieli Gonzalez Santos1


Fausto Alencar Irschlinger2

SANTOS, F. G.; IRSCHLINGER, F. A. "Identiade pós-moderna":


O Rock e a música Brasileira nos anos 1980 e 1990. Akrópolis
Umuarama, v. 24, n. 2, p. 143-152, jul./dez. 2016.

Resumo: O texto trabalha com a identidade pós-moderna brasileira


retratada na música, nas décadas 1980 e 1990. O objetivo é compre-
ender como a música, enquanto instrumento de expressão, retrata a
pós-modernidade no período de 1980 e 1990 no Brasil, bem como
identificar a influência da música na formação da identidade nacional.
Observamos que através da música é possível compreender caracte-
rísticas sociais, políticas e econômicas do recorte estudado. A compre-
ensão da função social da música na pós-modernidade traz consigo
formas de identificar os desdobramentos da ressignificação de precei-
tos do período anterior, desse modo contribui na constituição de no-
vas análises e para o entendimento da nacionalidade. Entre as fontes
analisadas estão letras de músicas produzidas na época, tais como:
“Anos 80” de Raul Seixas; “Geração Coca-Cola”; “O mundo anda tão
complicado” da banda Legião Urbana e “Burguesia” de Cazuza. Con-
sideramos que o rock brasileiro apresenta ideias de contestação, bas-
1
Acadêmica do 2º ano do Curso de Histó-
ria da Universidade Paranaense – UNIPAR,
tante presentes na ideologia da juventude do período, assim serviu
bolsista PEBIC/CNPQ. E-mail: francieli.gon- de instrumento de identificação para muitos jovens brasileiros, no mo-
zalez@hotmail.com. mento em que o país passava por uma transição política e social com
o término da ditadura militar. Vale destacar que o estudo do rock é uma
Professor, pesquisador e coordenador do
2

Curso de História na UNIPAR, Unidade de


das perspectivas possíveis sobre o tema, visto que outros gêneros mu-
Cascavel. E-mail: fausto@unipar.br. sicais, como o rap, também se desenvolveram no período e tiveram
grande representatividade.
Palavras-chave: Identidade; Indústria cultural; Pós-modernidade; Rock
brasileiro.

Abstract: This paper addresses the post-modern Brazilian identity por-


trayed in music in the 1980s and 1990s. Its purpose is to understand
how music, as a form of expression, portrays post-modernity in the
1980s and 1990s in Brazil. It also aims to identify the influence of music
in the formation of a national identity. It can be observed that music allo-
ws one to understand the social, political and economic characteristics
of the timeframe studied. The understanding of the social role of music
in post-modernity also presents ways of identifying the unfolding effects
of the re-signification of precepts from the previous period. In this way,
it contributes with new analyses and the understanding of nationality.
The sources analyzed involve songs produced at the time, such as:
“Anos 80” by Raul Seixas; “Geração Coca-Cola” and “O mundo anda
tão complicado” from the band Legião Urbana and “Burguesia” by Ca-
zuza. It considers that the Brazilian rock presents ideas of contestation,
very present in the youth ideology of that period, and thus, it was used
as an identification tool for many Brazilians at a time the country was
undergoing a political and social transition, with the end of the military
Recebido em julho de 2016 dictatorship. It is important to state that the study of rock is one of the
Aceito em outubro de 2016 many possible perspectives on the subject, since other musical genres,
such as rap, were also developed during that period, and were also

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highly representative. como Zygmunt Bauman6, para a compreensão


Keywords: Brazilian rock; Cultural industry; Identity; da ideia de Pós-modernidade, que, de acordo
Post-modernity. com ele apresenta como características a fluidez
e a efemeridade das relações humanas. O autor
INTRODUÇÃO relaciona a Pós-modernidade aos líquidos, pois
estes não tomam forma, se moldam e se adap-
É notável a influência que a música tam facilmente de acordo com a necessidade.
exerce na sociedade, tanto como forma de ex- Já Stuart Hall, nos ajuda a explicar o conceito de
pressão e protesto, quanto como elemento de identidade, que, segundo ele, não é determina-
identificação. Esta pesquisa tem como objetivo da ou consumada, mas um processo contínuo
compreender a música como instrumento de e amplo desenvolvido ao longo do tempo. Esse
expressão na Pós-modernidade e perceber sua conceito, quando inserido no recorte temporal
influência na formação da identidade nacional 1980 e 1990 no Brasil, nos faz refletir sobre al-
em um período conturbado que passava o Bra- gumas questões, visto que, no âmbito político e
sil, com o fim da ditadura militar (1964-1985)3, a social o país passava por notórias mudanças,
volta da democracia e tensões externas como a tanto com o processo de redemocratização e a
“Guerra Fria”4. Além disso, há o desenvolvimen- realização do primeiro Rock in Rio, quanto com
to da Pós-modernidade, a “ruptura” com os va- a liberdade de expressão, que clamava por es-
lores modernos e seus desdobramentos. Busca- paço, após anos de censura.
mos entender as tentativas de formação “novas Acrescenta-se ainda que no panorama
identidades”, as contestações e movimentos de mundial existia um campo de forças7 que se
expressão populares do período. desenvolveu durante o período da Guerra Fria
As fontes analisadas são letras de mú- (1945-1991), opondo Socialismo e Capitalis-
sicas compostas nas décadas de 1980 e 1990, mo, o que gerou uma intensa luta “ideológica”.
período em que o rock brasileiro teve grande Nessas relações e disputas de poder o Brasil foi
representatividade. Percebemos que a partir do muito influenciado pelo bloco Capitalista (lide-
século XX as fontes históricas ganharam grande rado pelos Estados Unidos da América). Diante
abrangência, não se atendo somente a docu- disso, os produtos norte-americanos estavam
mentos oficias, assim: “o documento artístico- presentes no cotidiano brasileiro substancial-
-cultural é um documento histórico como outro mente, tanto nas músicas, quanto no cinema, na
qualquer, na medida em que é produto de uma alimentação e outras categorias.
mediação da experiência histórica subjetiva com É imprescindível destacar a alteração em
as estruturas objetivas da esfera socioeconômi- alguns valores a partir do século XX8, como por
ca. (NAPOLITANO, 2002, p. 32). Desse modo, exemplo, a maneira de entender o amor, a se-
a partir das letras musicais, surge uma série de xualidade, o espaço conquistado pelas mulhe-
questionamentos que serão discutidos e aborda- res, com o direito ao voto. Além disso, emerge a
dos com base na Análise do Discurso5. voz de setores jovens, que até pouco tempo não
Entre as possibilidades, utilizaremos al- faziam parte de discussões e praticamente não
guns autores para a discussão dos conceitos, tinham representatividade em questões políticas
e sociais. A ascensão do movimento hippie e a
3
Um dos períodos marcantes da história do Brasil foi constituído descoberta da pílula anticoncepcional também
pelos governos militares, que exerceram o poder de forma ditato- se enquadram nesse panorama do século XX.
rial entre os anos de 1964 - 1985. Ver: FAUSTO, Boris. História do
Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. Entre outros aspectos, vemos que nas
4
Intensa guerra ideológica pela conquista de zonas de influência, décadas de 1980 e 1990 há um paradoxo, pois
que estabeleceu a divisão do mundo em dois blocos, com siste- os artistas que compunham a cena musical9 bra-
mas econômicos, políticos e ideológicos divergentes: o chamado
bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socia-
lista, liderado pela União Soviética. Ver, entre outros: MAGNOLI, 6
Zygmunt Bauman é um renomado pensador da modernidade,
Demétrio. O mundo contemporâneo: os grandes acontecimentos a qual qualificou com o célebre conceito de “liquidez”. Perspicaz
mundiais da Guerra Fria aos nossos dias. Atual, 2013; HOBSBA- analista dos fatos cotidianos, o sociólogo tem vasta obra sobre te-
WM, Eric. Era dos Extremos: o Breve Século XX: 1914 - 1991. mas contemporâneos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 7
Ver: SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da Crítica da
5
Análise do discurso consiste basicamente em “analisar a estrutura Geografia a uma Geografia Crítica. São Paulo: Edusp, 2002.
de um texto e, a partir disto, compreender as construções ideo- 8
Porém, sempre dando ênfase que as mudanças devem ser en-
lógicas presentes no mesmo.” Editora Contexto, O que é análise tendidas enquanto processos e não fatos descolados do contexto
do discurso. Disponível em: <http://www.editoracontexto.com.br/ histórico.
blog/o-que-e-analise-do-discurso/>. Acesso em: 25, junho, 2016. 9
O conceito da “cena musical” tem sido muito utilizado para dar

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"Identidade pós moderna"...

sileira, particularmente do rock, de forma signifi- sociais em tomo de um ideal de nação, defendi-
cativa, eram de classes sociais elevadas, porém da primordialmente por setores nacionalistas da
o vemos expondo a tais classes e aos valores esquerda.” (NAPOLITANO, 2002, p. 22). O mo-
pregados por elas. Desse modo, abordamos vimento Tropicalista demonstra esse ímpeto de
o conceito de Indústria Cultural, desenvolvido valorização do Brasil, com influências modernis-
pelos teóricos da escola de Frankfurt, Theodor tas. Na música “Tropicália”, Caetano Veloso rea-
Adorno e Max Horkheimer. Tema importante, ao liza críticas a supervalorização da cultura norte-
passo que o rock era uma produção de baixo -americana, em detrimento da brasileira, que
custo para indústria fonográfica. Assim, a Indús- tinha como pano de fundo a influência ideológi-
tria Cultural simpatizou com esse estilo musical, ca do bloco Capitalista (EUA), pois esse período
que além de demandar menos investimento fi- era marcado pela Guerra Fria. Ele apresenta o
nanceiro, mobilizava grandes massas da popu- Brasil como país da “Bossa” (movimento elitista)
lação no período 1980 e 1990, principalmente e da “Palhoça” (casas simples, geralmente em
com a ascensão de bandas como Legião Urba- regiões periféricas), o que remete a desigualda-
na10 e Barão Vermelho11. de social existente no país.
Entre outros estilos, com o surgimento do
DESENVOLVIMENTO rock, as letras ganharam um teor mais humorís-
tico e tratavam de temas como amor e relaciona-
É inegável que a música desde o início mentos. Porém, é a partir dos anos 1960 com os
do século XX passou por mudanças em sua es- movimentos contraculturais, que a música ga-
trutura e principalmente no que remete a sua nhou uma face de protesto, portanto surge uma
função social. Em meados dos anos 1920 com nova função social para ela, além de entreter,
a ascensão do jazz e do blues a música deixava consegue produzir uma crítica social. De acordo
de ser contemplativa, como era no século XIX, com Marcos Napolitano a música “é espaço de
passa, então, para ritmos mais dançantes e mui- um exercício de “liberdade” criativa e de compor-
to criticados pelos teóricos da escola de Frank- tamento, ao mesmo tempo em que se busca a
furt, Adorno e Horkheimer, que questionavam “autenticidade” das formas culturais e musicais,
essa nova produção musical, propondo que ela categorias importantes para entender a rebelião
era aparato de alienação da sociedade e servia de setores jovens.” (NAPOLITANO, 2002, p. 13).
a uma Indústria Cultural, visando ao lucro e um Um exemplo da música de protesto foi o
público passivo. Conforme Napolitano: “Adorno rock brasileiro dos anos 1980 e 1990, que além
vislumbrava a música popular como a realização de abordar temas transversais como amor, rela-
mais perfeita da ideologia do capitalismo mono- cionamento e angústias, tratava constantemente
polista: indústria travestida em arte.” (NAPOLI- de política, sociedade e cultura. Bandas como
TANO, 2002, p. 21). Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros
O século XX representou uma eferves- do Hawaii13 ascenderam no cenário musical da
cência na música brasileira. Segundo Napo- época. Conseguimos perceber que a produção
litano, o desenvolvimento da Música Popular musical, especificamente o Rock and Roll brasi-
Brasileira (MPB)12 “expressou um momento de leiro apresenta um ímpeto de muitos jovens por
aliança social e política entre diversas classes mudanças. No Brasil, ficou visível a gradativa
mudança no que se refere ao período da Ditadu-
conta da multiplicidade de comportamentos e estilos musicais, ra Militar (1964 – 1985) e o retorno à democra-
sobretudo a partir dos anos 1980. (NAPOLITANO, 2002, p. 31).
Ver: NAPOLITANO, Marcos. História & Música. Belo Horizonte: cia, mas não apenas na cena política, os jovens
Autêntica, 2002. clamavam por mudanças sociais, alteração de
10
Legião Urbana é uma banda brasileira de rock que surgiu em valores, o fim de preconceitos e desigualdades.
Brasília. Ativa entre 1982 e 1996, a banda foi desfeita após a morte
do seu vocalista e líder, Renato Russo, em 11 de outubro de 1996. Porém, no discurso desses jovens an-
11
Barão Vermelho é uma banda de rock brasileiro fundada em siosos por liberdade e direitos, percebemos
1981, na cidade do Rio de Janeiro. Álbuns mais repercutidos:
“Maior Abandonado” e “Puro Êxtase”.
um questionamento sobre e pelo poder14, pois
12
Segundo Marcos Napolitano: “Aquilo que chamamos hoje de mú-
sica popular, em seu sentido amplo, [...], é um produto do século 13
Engenheiros do Hawaii é uma banda brasileira de rock, formada
XX. Ao menos sua forma “fonográfica”, com padrão de 32 compas- em 1984 na cidade de Porto Alegre.
sos, adaptada a um mercado urbano e intimamente ligada à busca 14
Para Michel Foucault, o Poder é uma prática social construída
de excitação corporal (música para dançar) e emocional (música historicamente. São formas díspares, heterogêneas, em constante
para chorar, de dor ou alegria)”. Ver: NAPOLITANO, Marcos. His- transformação. Constata Foucault que o poder está por toda parte
tória & Música. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. e provoca ações e uma relação flutuante, não está em uma institui-

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como propõe Michel Foucault: “o discurso não é tanto, ressignifica valores, postos anteriormente.
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os Para demonstrar sua teoria o autor afirma que:
sistemas de dominação, mas aquilo por que, ou
pelo que se luta, o poder do qual nos queremos A corrente invisível que prendia os trabalha-
apoderar.” (FOUCAULT, 1996, p. 10). Além des- dores em seus lugares e impedia sua mobili-
se ímpeto de lutar por mudanças, o contexto em dade era, nas palavras de Cohen, “o coração
que eles estavam inseridos se caracteriza pela do fordismo”. O rompimento dessa corrente
foi também o divisor de águas decisivo na
“Pós-Modernidade” (ou “modernidade líquida”) e
experiência de vida, e se associa à decadên-
a “mudança” nas relações entre indivíduos, uma cia e extinção aceleradas do modelo fordista.
característica pós-moderna, que também é ex- “Quem começa uma carreira na Microsoft”,
pressa pela música. Dentro dessa perspectiva, observa Cohen, “não sabe onde ela vai ter-
“líquida”, há relativização de imperativos categó- minar. Começar na Ford ou na Renault impli-
ricos e a dissolução de cânones que outrora nor- cava, ao contrário, a quase certeza de que a
tearam a humanidade. Zygmunt Bauman explica carreira seguiria seu curso no mesmo lugar.”
esse conceito e ressalta: (BAUMAN, 2001, p. 76).

No atual estágio “líquido” da modernidade, Diante das considerações do sociólogo, é


os líquidos são deliberadamente impedidos possível compreender que esse estágio “líquido”
de se solidificarem. A temperatura elevada — se refere à efemeridade das relações humanas
ou seja, o impulso de transgredir, de substi- e a dificuldade que há, em um mundo fluido re-
tuir, de acelerar a circulação de mercadorias pleto de eventos passageiros, em ultrapassar a
rentáveis — não dá ao fluxo uma oportuni-
superfície delas. Ele define essa liquidez quando
dade de abrandar, nem o tempo necessário
para condensar e solidificar-se em formas cita: “O mundo que chamo de “líquido” porque,
estáveis, com uma maior expectativa de vida como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza
(REVISTA ISTOÉ, 24 set, 2010). nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo
ou quase tudo em nosso mundo está sempre em
Bauman afirma que, a “Modernidade Lí- mudança.” (BAUMAN, 2011, p. 7). Há mobilida-
quida” ou “Pós-modernidade”, descende de uma de e a fluidez presentes na Pós-modernidade,
“Modernidade Sólida”, e que um dos componen- pois os líquidos não mantêm forma fixa, assim
tes principais dela era a “fábrica fordista, que re- conseguem se adaptar a diversas situações, en-
duzia as atividades humanas a movimentos sim- tretanto existe uma dificuldade de se fixar, como
ples, [...] destinados a serem obedientes, sem tudo passa a fluir rapidamente, tende a se tornar
envolver as faculdades mentais e excluindo toda arcaico e obsoleto na mesma intensidade.
espontaneidade e iniciativa individual. (BAU- Nesses tempos líquidos os referenciais
MAN, 2001, p. 37). A referência ao Fordismo15 tão rígidos construídos na “Modernidade Sólida”
remete à sociedade industrializada do início do se tornam frágeis. Bauman afirma que: “os pa-
século XX. Ele reitera, propondo que não só os drões e configurações não são mais “dados” e
valores eram fixos, como o capital também era, menos ainda “autoevidentes”; eles são muitos,
pois “em seu estágio pesado, o capital estava chocando-se entre si e contradizendo-se em
tão fixado ao solo quanto aos trabalhadores que seus comandos conflitantes.” (BAUMAN, 2002,
empregava. Hoje o capital viaja leve - apenas p. 15).
com bagagem de mão [...]” (BAUMAN, 2001, p. Para exemplificar essa complexidade,
76). vemos que na música “O mundo anda tão com-
Sob esse prisma, a partir das constata- plicado” da banda Legião Urbana (contida no ál-
ções de Bauman, a “Modernidade Líquida” se bum V, lançado em 1991) é cantada a mudança
forma a partir da sociedade “pós-fordista”, que na vida material das pessoas, que agora gozam
passa a ser uma sociedade de consumo. Por- de mais “conforto” com presença de eletrodo-
mésticos e móveis. A letra demonstra uma an-
ção ou em uma, mas nas relações existentes, sendo ações sobre gústia, também característica da Pós-moderni-
ações. Ver: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola., et al. Dicio- dade. Portanto, o que era novo ou “moderno” era
nário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.
Ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª Ed. Rio de
bem visto. Já de acordo com o historiador Lean-
Janeiro: Graal, 1997. dro Karnal “comete-se um erro brutal na nossa
15
“o Fordismo foi, em seu apogeu um modelo de industrialização, era líquida, considerar que tudo o que é novo é
de acumulação e de regulação[...]” (BAUMAN, 2001, p. 76).

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"Identidade pós moderna"...

bom e tudo que é velho é ruim”16. No trecho é Pobre país carregador


perceptível o fascínio pela tecnologia que passa Dessa miséria dividida
a compor o cotidiano das pessoas: Entre Ipanema
E a empregada do patrão
Que a mudança grande chegou Varrendo lixo
Com o fogão e a geladeira e a televisão Prá debaixo do tapete
Não precisamos dormir no chão Que é supostamente persa
Até que é bom, mas a cama chegou na terça
E na quinta chegou o som Durante o período da ditadura militar bra-
sileira (1964-85) existia ilusão de prosperidade
Mudanças proporcionadas pelo avanço econômica, entretanto essa “prosperidade” es-
do capitalismo na pós-modernidade, em que tava concentrada em pequenos grupos, como
poucas coisas são pré-determinadas, mas se declara Madeiro: “a distribuição de renda entre
transformam constantemente: os estratos sociais ficou mais polarizada durante
o regime: 10% dos mais ricos que tinham 38%
Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo da renda em 1960 e chegaram a 51% da ren-
E até que é fácil acostumar-se com meu jeito da em 1980.” (MADEIRO, 2014). Sendo assim,
Agora que temos nossa casa a miséria cresceu, porém era velada devido à
censura das mídias, pois qualquer nota ou pro-
Seria como uma espécie de jogo de nunciamento contra o regime sofria represálias.
compensação, onde as pessoas se sujeitam a Uma das regiões assoladas pelas maze-
“fazer mil coisas ao mesmo tempo” ao passo las da miséria e da desigualdade social certa-
que são “beneficiadas” o esse pragmatismo da mente foi o Nordeste, e como, Raul Seixas era
vida pós-moderna (eletrodomésticos, móveis, baiano pode compreender o que estava acon-
imediatismo nas relações, tanto afetivas quanto tecendo. De acordo com o professor Péricles
profissionais). Nesse sentido, declara Foucault Carvalho, da Universidade Federal de Alagoas,
que: “os discursos que, indefinidamente, para “entre 1970 e 1990, o número de pobres no Nor-
além de sua formulação, são ditos, permane- deste aumentou de 19,4 milhões para 23,7 mi-
cem ditos e estão ainda por dizer.” (FOUCAULT, lhões, e sua participação no total de pobres do
1996, p. 22). Como ele propõe o que ainda está país subiu de 43% para 53%”.17
por dizer nesse trecho está implícito, é o senti- Diante disso, quando Seixas afirma “Var-
mento de vazio e banalização das relações, pois rendo lixo/ Prá debaixo do tapete/ que é suposta-
nesse momento a sociedade evidenciava mais mente persa”, traz a ideia de que toda a miséria
o consumismo do que as próprias relações inter- desse período era encoberta em prol do grupo
pessoais. Sob o mesmo prisma, o consumismo de beneficiados pela “prosperidade econômica”
e a satisfação que ele traz acabam se fundindo do período ditatorial. Este grupo na posição em
com o ideal de felicidade e com isso existe um que estava se apoiava no discurso demagógi-
ciclo vicioso se formando, pois quanto mais as co e doutrinador que velava as reais condições
pessoas consomem, mais desejam consumir, sócio-econômicas em que o país se encontrava.
a satisfação é momentânea e a há um desejo A música enquanto instrumento de ex-
constante de renová-la. pressão carrega consigo estigmas sociais e cul-
Outra música passível de inserção na turais muito fortes. No caso do rock brasileiro
problemática do texto é “Anos 80”, lançada dos anos 1980 é possível compreender o mo-
por Raul Seixas em 1980, integrante do álbum mento em que a sociedade estava enfrentando,
“Abra-te Sésamo”. O álbum conta também com em geral, os artistas declaravam seu desconten-
canções como “Aluga-se” e “Conversa pra boi tamento com a política e com a sociedade. Eles
dormir” que apresentam críticas consistentes cantavam a liberdade, a revolta com tantos anos
sobre o sistema vigente. Nesse trecho o com- de ditadura e a angústia com uma política con-
positor apresenta críticas à desigualdade social servadora e repressiva. Emergem bandas como
da época: “Legião Urbana” e “Barão Vermelho” que dedi-
cam muitas de suas canções a temas como “im-
https://www.youtube.com/watch?v=6-JQL_x7yMk acesso em: 06
16

de novembro de 2015. Palestra realizada pelo historiador e profes- Entrevista para o portal: <http://noticias.uol.com.br/politica/
17

sor da UNICAMP, Leandro Karnal ao CRA-RJ, em 12 de setembro ultimas-noticias/2014/03/22/10-motivos-para-nao-ter-sauda-


de 2015. des-da-ditadura.htm>.

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perialismo americano” e “consumismo”. Como p. 29). E era assim que muitos jovens se iden-
demonstra a letra de “Geração Coca-Cola, que tificavam, pois ansiavam pelos mesmos ideais,
constitui o álbum “Mais do Mesmo”: isso de certa forma os unia e fortalecia.
Diante dessa influência norte-americana
Quando nascemos fomos programados a indústria cultural se faz presente em produções
A receber o que vocês artísticas em geral, principalmente ao longo do
Nos empurraram com os enlatados século XX. Conforme Silva (2009), em “Dicioná-
Dos U.S.A., de 9 às 6 rio de conceitos históricos”, a indústria cultural é
a produção e disseminação de produtos culturais
No trecho citado há uma evidente críti- para o consumo em massas, se distanciando da
ca ao imperialismo americano, uma ideia de que crítica individual em optar por determinadas mú-
nós não podemos escolher mais o que quere- sicas ou gêneros. Nesse sentido, o filósofo da
mos consumir, pois “quando nascemos fomos escola de Frankfurt, Adorno “começa a rejeitar o
programados”. Como se a vida não fosse mais conceito de “gosto” na era das massas. [...] não
composta por nossas escolhas, mas sim por haveria subjetividade e escolha na experiência
estruturas pré-estabelecidas e impostas a nós social da arte”. (NAPOLITANO, 2002, p. 25).
como “enlatados”. Nesse trecho cabe a menção Theodor Adorno e Max Horkheimer, em
ao desenvolvimento de uma Industria cultural, “Dialética do esclarecimento: fragmentos filo-
que deturpa a ideia de “gosto musical” quando sóficos”, afirmam que a cultura contemporânea
utiliza sua influência para padronizar a arte e as- confere a tudo um ar de semelhança. Assim, rá-
sim vendê-la as grandes massas. O sociólogo dio, cinema e as revistas constituem um siste-
Renato Ortiz comenta sobre essa visão norte- ma. Destacam ainda que o cinema e o rádio, não
-americana: precisam mais se apresentar como arte, pois
não passam de um negócio e seu objetivo é legi-
Os Estados Unidos seriam o espelho do
timar o que produzem através de uma ideologia.
mundo. Caberia aos publicitários um papel
importante na divulgação de sua imagem. Desse modo a indústria cultural padroni-
Sua missão, promover a transição dos povos za as vontades por meio das propagandas; “a
“atrasados” para a modernidade norte-ame- cultura se funde com a publicidade [...]”. (ADOR-
ricana. De alguma maneira, ao ensinar aos NO; HORKHEIMER, 1985, p. 119). A publicida-
outros como consumir suas mercadorias, de é a representação do poderio social, há na
eles estariam realizando uma tarefa pedagó- repetição mecânica do mesmo produto cultural
gica, educando os homens para uma socie- uma intenção de subjugar o cliente, os autores
dade “melhor. (ORTIZ, 1994, p. 88). declaram que, “os produtos da indústria cultural
podem ter a certeza de que até mesmo os distra-
Essa concepção colonialista que os EUA ídos vão consumi-los alertamente” (ADORNO;
possuíam de “ensinar” as outras nações como HORKHEIMER, 1985, p. 119). O que remete a
deveriam viver, ou seja, impor sua cultura é o letra de “Geração Coca-cola” quando cita a im-
ponto fulcral da crítica realizada pela música posição dos produtos dos “U.S.A” que lhes vem
“Geração Coca-cola”. Seguem as críticas se- enlatados e prontos, sem a possibilidade de con-
guem: testação, como é a intenção da indústria cultural.
Essa intenção é discutida por Teixeira Coelho:
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis A indústria cultural fabrica produtos cuja fina-
Fazer comédia no cinema com as suas leis lidade é de serem trocados por moeda; pro-
move a deturpação e a degradação do gosto
A partir desse trecho é perceptível o de- popular; simplifica ao máximo seus produtos,
sejo de “retaliação” desses jovens que ansiavam de modo a obter um atitude sempre passiva
pela liberdade. Os teóricos “Stuart Hall e Paddy do consumidor; assume uma atitude paterna-
Whannel, em 1964, desenvolveram o conceito, lista, dirigida ao consumidor ao invés de co-
enfatizando os grupos minoritários que se au- locar-se à sua disposição (COELHO, 1980,
todenominavam “geração jovem”, identificados p. 23-24).
como uma “minoria criativa”, questionadores
das convenções sociais.” (NAPOLITANO, 2002, Comentando sobre a influência norte-
-americana, Renato Ortiz em seu livro “Mundiali-

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"Identidade pós moderna"...

zação e Cultura” propõe que: foi usado pela indústria cultural, pois a indústria
fonográfica via nele um produto atraente a uma
Ao percorrer os escritos sobre a cultura con- massa juvenil, visto que, sua produção requeria
temporânea, dificilmente o leitor escapará menos investimento financeiro do que outros es-
de uma tese insistente: a americanização do tilos musicais. Temos então uma via de mão de
mundo. Seja na sua vertente ideologizada dupla, enquanto uns cantavam contra a indústria
norte-americana, ou como crítica ao impe-
cultural, outros cantavam para ela.
rialismo, ela permeia o senso comum e boa
parte dos textos sobre o “contato cultural” A produção musical dos anos 1980, mais
nas sociedades atuais. A concepção genui- especificamente na cena do rock, apresentava
namente americana não passa de uma afir- muitas críticas aos anos de ditadura, a políti-
mação rústica do pensamento, e tem origem ca, aos valores da sociedade e ao consumismo
na idealização de seu povo e de sua história. exacerbado. Nesse momento muitos dos jovens
“América”, terra prometida, seria a síntese cantores eram céticos e entenderam a sua im-
das esperanças humanas (ORTIZ, 1994, p. portância dentro da sociedade, por isso passam
87). a ter voz. A partir de então, os jovens puderam
abrir espaço e debater esses temas, o rock criou
Na sequência destacamos que os versos um vínculo de união perante eles, funcionando
de “Geração Coca-Cola” revelam também a von- como um mecanismo de expressão de todos
tade de mudança dos jovens cantores e musi- aqueles ideais em comum e do sentimento de
cos, sua posição ativa diante de tais imposições. mudança que eles compartilhavam. “Para os jo-
Notamos que eles mesmos se “definem” como vens o rock surge como “meio de autodefinição,
“Geração Coca-cola”, fazendo alusão crítica aos um emblema para marcar a identidade do grupo”
produtos norte-americanos. Depois das críticas (ROCHEDO, 2011, p. 15).
aos produtos “enlatados” vindos dos Estados De acordo com Stuart Hall, a identidade
Unidos, a música propõe que essa “geração co- não é fixa, ela está em constante formação. No
ca-cola” é quem fará a mudança: livro “The question of cultural identidy” (“A ques-
tão da identidade cultural”), Hall desenvolve essa
Vamos fazer nosso dever de casa ideia, afirmando que: “formada ao longo do tem-
E aí então vocês vão ver
po, através de processos inconscientes, e não
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis algo inato, existente na consciência no momen-
Somos os filhos da revolução to do nascimento [...] Ela permanece sempre in-
Somos o futuro da nação completa, está sempre ‘em processo’, ‘sempre
sendo formada’”. (HALL, 2002, p. 38). Diante da
Tem-se aí a identificação de uma gera- fala desse teórico pode-se ressaltar que na pós-
ção que quer fazer mudanças, que é “o futuro da -modernidade, não cabem mais identidades e
nação”, de acordo com essa afirmação, é possí- conceitos engessados, até mesmo as relações
vel perceber um olhar pretensioso nesse discur- não se estabelecem como outrora, portanto bus-
so, pois quando afirmam ser o “futuro da nação” camos na pesquisa entender essas mudanças,
presume-se que essa nação está em declínio e para compreender quais foram suas motivações
que necessita que essa juventude “revolucio- e seus desdobramentos, para isso relacionamos
nária” tome alguma atitude para que a salve. com outros períodos, mas não com ímpeto de
Eni Orlandi em seu livro “Análise de Discurso” simples valoração.
propõe que existem aspectos no discurso que Hall também contrapõe a identidade
não estão explícitos e que mesmo que os au- presente na Modernidade – que ele nomeia
tores não queiram passar essa mensagem, é o de sujeito do Iluminismo – e a identidade pós-
que transparece, ela afirma que: “sem que isto -moderna: “O ‘sujeito’ do Iluminismo visto como
estivesse em suas intenções, mas determina- tendo uma identidade fixa e estável, foi descen-
dos pelo modo como eram afetados pela língua trado, resultando nas identidades abertas, con-
e pela história, seu gesto de interpretação pro- traditórias, inacabadas do sujeito pós-moderno.”
duzia todos esses efeitos.” (ORLANDI, 2001, p. (HALL, 2002, p. 46).
30). Como citado anteriormente, um parado-
Já Araújo (2011) ressalta que, esse rock xo se engendra em meio à cena do rock brasilei-
“contestatório”, por vezes pessimista, também ro do período, a “burguesia” tão criticada por es-

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ses jovens roqueiros, era a classe a qual muitos Vermelho, em meados da década de 1980, ve-
deles pertenciam. Notamos a crítica ferrenha a mos que há sim uma crítica do compositor aos
essa classe social quando analisamos os versos valores burgueses e a própria camada burgue-
da letra da música a “A burguesia”18, de Cazuza, sa, porém há sua ascendência, suas origens
no trecho abaixo é perceptível a crítica a “mais- presentes nela. Ele não se identifica com essa
-valia” praticada pelos burgueses, que obtinham burguesia “fria e calculista” que goza do lucro
lucros exorbitantes em detrimento dos trabalha- gerado pelo trabalho de outrem. Porém, admite
dores que sequer podiam comprar os produtos e se orgulha daqueles que conquistam seu patri-
que produziam. O trecho também faz alusão mônio honestamente, à custa de seu próprio es-
ao consumismo exacerbado e ao imperialismo forço. E assim, o discurso de Cazuza segue, se
americano, quando declara que “A burguesia declarando como um burguês que está ao lado
quer ir a New York fazer compras”, concepção do povo, que ama seu país e se revolta com a
presente no imaginário da época, pois produtos exploração e a desigualdade.
norte-americanos eram supervalorizados. Se-
gue a primeira estrofe de “A Burguesia”: Mas também existe o bom burguês Que vive
do seu trabalho honestamente Mas este quer
Enquanto houver burguesia construir um país E não abandoná-lo com
Não vai haver poesia uma pasta de dólares
A burguesia não tem charme nem é discreta
Com suas perucas de cabelo de boneca Nesse trecho ele mostra que existe um
A burguesia quer ser sócia do Country “estrato” na camada burguesa que está ao lado
povo, que não explora e “vive do seu trabalho
Na análise do discurso o que interessa honestamente”. Esse burguês que não renega
“não é a organização linguística do texto, mas seu país, e sim, quer vê-lo crescer. Acrescenta-
como o texto organiza a relação da língua com -se ainda certa identificação que o compositor
a história no trabalho significante do sujeito em apresenta para com esse burguês “humaniza-
sua relação com o mundo.” (ORLANDI, 2001, do”, “honesto”.
p. 69). Sendo assim, o compositor (Cazuza), se Indubitavelmente o rock brasileiro dos
identifica como burguês, se vê como componen- anos 1980 foi porta-voz de parte da população,
te dessa classe social que tanto critica. Porém, com suas letras rebeldes e que buscavam a li-
tenta se justificar, se eximindo dos aspectos ne- berdade de expressão. Influenciados pela con-
gativos de ser, quando afirma: tracultura também buscavam a liberdade sexual,
cultural e a queda de preconceitos. Todavia, faz-
Pobre de mim que vim do seio da burguesia -se necessária uma análise mais crítica perante
Sou rico mas não sou mesquinho essas letras, ao passo que elas eram compos-
tas em sua maioria por “burgueses”, revoltados
Em outra estrofe percebemos que ele com a classe com certeza, mas não deixavam
chama o povo “pra rua”, para lutar contra a bur- de pertencê-la. Outro ponto relevante é que os
guesia, pois haverá um momento no qual a po- jovens do rock dos anos 80 tinham ideiais em
pulação vai perceber que é vítima dos burgue- comum, portanto esse estilo musical por mais
ses, que só se aproveitam de seu trabalho e irá que buscasse a liberdade de expressão, carre-
se revoltar. A letra faz menção ao golpe militar gava consigo uma carga ideológica intensa além
nos trechos: de suas especificidades.
As pessoas vão ver que estão sendo rouba- CONSIDERAÇÕES FINAIS
das
Vai haver uma revolução
Ao contrário da de 64 Na análise das letras “O mundo anda tão
complicado”, “Geração Coca-cola”, “A burgue-
Ao analisar a letra dessa música com- sia” e “Anos 80”, é visível como elas retratam o
posta por Cazuza, membro da banda Barão momento pelo qual passavam seus composito-
res e que devemos sempre levar em considera-
Para gravar o LP “Burguesia” (1989), Cazuza chegava ao estúdio
18 ção o contexto histórico para a compreensão do
da gravadora Polygram na cadeira de rodas, deitava-se num sofá que foi cantado. A década de 1980 representou
e mesmo com a voz nitidamente enfraquecida gravava seu disco.

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o início do processo de redemocratização, visto se define como burguês e denuncia os valores


que a ditadura militar termina em 1985, com a que a integram. Ele chama o Brasil para se re-
retomada da democracia, após duas décadas vi- belar contra a burguesia que, segundo ele, só
vendo sobre o crivo da ditadura militar, os artistas pretende lucrar e busca incessantemente êxito
brasileiros tinham mais “segurança” de não so- em seus objetivos. O artista trabalha a burguesia
frerem torturas e represálias. Essa pode ser uma a partir de um viés egocêntrico. Porém, como ele
das causas das músicas desenvolvidas nessa está inserido nessa classe, não deixa de defen-
época trazerem tantas críticas à sociedade, aos dê-la em sua parte “honesta” e “trabalhadora”,
valores burgueses, a desigualdade social. Outra afirmando que os burgueses que conquistam
crítica intensa nas letras analisadas se refere ao seu patrimônio com trabalho e dedicação devem
“imperialismo americano”19, a supervalorização ser valorizados, sob o mesmo prisma há uma
dos produtos vindos dos Estados Unidos e ao identificação do artista, quando afirma que é bur-
prestígio dado a cultura norte-americana. Sendo guês, porém não é mesquinho.
que os EUA apoiaram a ascendência dos milita- Consideramos, portanto, que a identida-
res ao poder20. de está em constante construção e de acordo
A letra da música “O mundo anda tão com o contexto histórico e social, há uma influ-
complicado” demonstra como o cotidiano das ência grande da música (pois qualquer estilo
pessoas foi modificado na pós-modernidade, musical ao se constituir traz uma bagagem de
momento histórico em que segundo tudo flui, ideais, comportamentos e ações característi-
segundo Bauman: “no mundo pós-moderno to- cos). É o que percebemos ao analisar as letras
das as distinções se tornam fluidas, os limites de músicas compostas num período em que o
se dissolvem, e tudo pode muito bem parecer Brasil passava por mudanças com o fim da Di-
seu contrário [...]” (BAUMAN, 2001, p. 102). Ao tadura Militar e início do processo de redemo-
passo que é intrínseca a melancolia desse mo- cratização em que a indústria cultural exercia (e
mento em que as pessoas têm mais conforto e ainda exerce) forte influência sobre a música,
mais tempo livre, porém, também são dotadas principalmente entre os jovens. Como faziam
de “angústias”, pois as relações se tornam gra- parte e “consumiam” o rock nacional, eram eles
dativamente fluidas e muitas vezes superficiais. quem legitimavam essa nova identidade, mais
Já na música “Anos 80” de Raul Seixas, o autor contestadores do que antes, mostrando a todos
evoca questionamentos referentes à desigual- sua insatisfação e desejo de mudança. Muitos
dade social e a indiferença da “elite” para com jovens dos anos 1980, no Brasil, viam na música
eles. Na letra, Raul Seixas destaca que insistem em especial no gênero Rock and Roll, um instru-
em “varrer a sujeira para de baixo do tapete que mento para expressar e propagar seus ideais,
é supostamente persa”, ou seja, se houver a ma- suas angústias e anseios.
nutenção do status da “elite”, não importa que Como a música é um instrumento de ex-
a maioria da população viva em uma situação pressão e que une a sociedade, uma proposta
paupérrima. para aprofundar a pesquisa seria a análise de
Já na música “Geração Coca-cola” há outros gêneros musicais como rap nacional, que
uma crítica severa ao imperialismo imposto pe- se desenvolve e ganha destaque nos anos 1990,
los Estados Unidos, a massificação de padrões com Racionais MC’s, Sabotage, entre outros ar-
e vontades, críticas ferrenhas ao consumismo e tistas. Dentro da perspectiva do rap também é
a cultura vinda “de cima para baixo”. Acrescen- notório esse o de contestação da sociedade, da
ta-se ainda a busca dos jovens por mudanças, política e das injustiças sociais. Entram também
pois se encontravam insatisfeitos com toda essa temas como o racismo, a prostituição e as dro-
conjuntura. gas. Entretanto, esse viés é diferente do rock,
Em “A burguesia”, vemos a contradição pois os compositores da época eram em grande
pela qual passa um burguês ao ser contra o es- parte membros das comunidades periféricas do
tilo de vida da burguesia, pois Cazuza mesmo Rio de Janeiro e de São Paulo, enquanto mui-
tos artistas do rock eram burgueses, trazendo à
19
É o conceito que se refere ao histórico de ações e doutrinas da tona a outra facetas.
política externa dos Estados Unidos que demonstram o ímpeto de
controlar eventos em todo o mundo, de maneira que favoreça seus
próprios interesses econômicos, políticos e estratégicos.
20
Ver a obra: FICO, Carlos. Grande irmão: da Operação Brother
Sam aos anos de chumbo. Civilização Brasileira. 2008.

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Observamos que por medio de la música es posible
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comprender características sociales, políticas y eco-
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Consideramos que el rock brasileño presenta ideas
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das Letras, 1994. to de identificación para muchos jóvenes brasileños,
en el momento que el país atravesaba una transición
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