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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E O RITMO NO “DE MUSICA” DE


SANTO AGOSTINHO

Sérgio Ricardo Strefling


srstrefling@gmail.com
Doutor em Filosofia
Professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas

Palavras-chave: Santo Agostinho, experiência estética, ritmo, música.

Aurelius Agostinho, mais conhecido como Santo Agostinho, nasceu em


Tagaste no norte da África (354) e faleceu em Hipona (430). Antes de tornar-se
filósofo e teólogo foi um bem sucedido mestre de retórica em Tagaste, Cartago,
Roma e Milão. Sua volumosa bibliografia, que trata dos mais diversos temas, foi
conservada e chegou até nós quase que integralmente. Dos escritores antigos é
aquele que mais documentários se tem sobre sua vida e obra. Este autor africano
vivenciou um momento de profunda mudança na história, a saber, a queda do
Império Romano no Ocidente, finalizando o final da antiguidade e o início de um
novo período que mais tarde será denominado de medievo. Santo Agostinho
assumiu os princípios estéticos dos antigos, os transformou e os transmitiu para a
posteridade. Sua obra constitui um ponto crucial na história da estética, no que
convergem as correntes antigas e donde derivam as medievais.
A experiência estética, compreendida como vivência integral do homem,
radicada na consciência do belo, foi na perspectiva dos filósofos antigos,
principalmente por Platão e Plotino, considerada como condição indispensável no
processo da educação do ser humano, pensado na sua integralidade e máximas
possibilidades. Agostinho, seguindo esses pensadores, valorizará as artes nas
etapas de realização da pessoa1. Atualmente vivemos numa época de
fragmentação da vida humana, desconsiderando a unidade de suas múltiplas
dimensões e, sobretudo, diante da fragmentação nos processos do conhecimento.
A reflexão sobre o papel das artes na formação do humano, considerando a
cultura clássica, do qual Agostinho é herdeiro, pode propiciar um movimento do
pensamento na direção da superação dessa fragmentação2.
O ritmo foi um dos conceitos fundamentais da estética antiga, que o
interpretava matematicamente, os romanos o denominavam justamente com o
nome de números. Mas ao mesmo tempo foi um conceito aplicado quase que
exclusivamente com relação a música. Porém Agostinho fez do ritmo o conceito
fundamental de toda estética e via nele a fonte de toda a beleza. Isto significou
1 Cf. HINRICHSEN, Luís Evandro. A estética de Santo Agostinho – o belo e a formação do
humano. Porto Alegre: ESTEF, 2009, p.17.
2 Cf. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, p.5-7.


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ampliar o conceito, de modo que abarcasse não só o ritmo perceptível pelos


ouvidos, mas também pelos olhos, não só o ritmo do corpo, mas também da alma,
não só o ritmo do homem, mas também da natureza; e teve que incluir, no
entanto, o ritmo das experiências como das atividades, o ritmo das perfeições e o
da memória, o ritmo passageiro dos fenômenos e o ritmo eterno do mundo. Ao
converter o ritmo no conceito básico de sua estética, o filósofo africano o ampliou
de tal maneira que os fatores quantitativos e matemáticos deixaram de ser
elementos indispensáveis do ritmo3.
Em nosso breve estudo, consideraremos o pensamento estético do filósofo e
teólogo africano expresso em sua diversas obras, porém nos concentraremos em
alguns capítulos da obra De Musica4. Neste tratado o autor define a música
como “ciência da boa modulação”5. Modulação é sinônimo de medida (modus),
presente nas artes, na natureza, orientando os movimentos, assegurando
proporção entre tempos e intervalos. A medida pode ser caracterizada como boa,
quando orienta os movimentos, tornando-os rítmicos. A música também é ciência,
porque segue regras propostas pela razão. Existe uma modulação, por exemplo,
no canto de um rouxinol6 ou na execução de peça musical por um flautista, mas
não ocorre ciência7. O pássaro canta maviosamente dirigido pelas leis dos
números inerentes à natureza. Um flautista, pelo hábito, pode executar bela
música. Entretanto, a música, enquanto ciência do ritmo, supõe o conhecimento
racional. A música é a ciência da boa modulação, e esta causa deleite, agrada,
eleva, tem harmonia e seu efeito sonoro gera prazer ao ouvinte. Segundo o Bispo
de Hipona, “a música é a arte do movimento ordenado. E se pode dizer que tem
movimento ordenado todo aquele que se move harmoniosamente, guardadas as
proporções de tempo e intervalos”8.
Agostinho distinguiu dois elementos da experiência estética, um que é
direto procede dos sentidos, das impressões e percepções, das cores e sons. Mas os
sons e as cores expressam e representam algo e é este o segundo elemento da
experiência, um elemento indireto e intelectual. Esta dualidade da experiência
estética é vista tanto na poesia e na música, como na dança, distinguindo assim
fatores sensíveis e intelectuais em qualquer experiência do belo. Nosso filósofo

3 TATARKIEWICS, Wladislaw. Historia de la estética II. La estética medieval. Madrid: Akal,


2002, p. 54.
4 O De Musica é um diálogo que consta de seis livros. O primeiro é uma introdução às questões

de métrica e rítmica. Os quatro livros seguintes versam, tecnicamente, sobre a métrica latina. O
sexto livro inaugura novos horizontes, trabalhando conceitos relativos à rítmica. Agostinho supera
o caráter matematizante da rítmica clássica, analisando os ritmos segundo bases psicológicas.
Ainda no sexto livro, encontramos a proposição da unidade como critério fundador da vivência
estética, critério não predicável, pois se refere à inefabilidade de Deus, Uno e Trino.
5 “Musica est sciencia bene modulandi” De Musica I, II, 2.
6 De Musica I, IV, 5.
7 De Musica I, IV, 7.
8 “Musica est scientia bene movendi. Sed quia bene moveri iam dici potest, quidquid numerose

servatis temporum atque intervallorum dimensionibus movetur” De Musica I, II,4.


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sustentava que aquilo que os espetáculos representam não é menos importante


para a experiência estética que as percepções mesmas. A igualdade que decide
sobre a beleza é percebida pelo intelecto: “Eu me deleito na igualdade absoluta
percebida pelos olhos – não os de meu corpo – mas os de meu espírito. Tenho
estima pelos objetos que contemplo com meus olhos. Tanto mais os estimo,
quanto mais por sua natureza eles se aproximam do ideal percebido pelo meu
espírito. Como é esse ideal, ninguém sabe explicar bem”9. O juiz supremo não
parece ser os olhos e os sentidos, mas a razão da alma: “Logo a razão busca
também o deleite carnal da alma, que eram atribuídos aos sentidos, portanto, se
pergunta: quando a igualdade numérica em uma sequência temporal agrada, será
que duas sílabas breves que se ouviu são realmente iguais” 10.
A distinção de dois elementos da experiência estética, o direto e o indireto,
o sensível e o intelectual, constitui a primeira tese de Santo Agostinho no campo
da psicologia do belo. O nosso autor assegura que a experiência do belo possui a
mesma qualidade fundamental que a beleza, isto é, o ritmo. Da mesma forma que
existe ritmo em uma coisa bonita, também deve haver em experimentá-la, por
que sem ele a experiência é impossível. Para o filósofo africano havia cinco tipos
de ritmo: o ritmo existente nos sons, o ritmo existente nas percepções, o ritmo na
memória, o ritmo existente nas atividades do homem, e, finalmente, o ritmo
existente no intelecto, que é inato ao homem. Diz Agostinho: “Existem cinco tipos
de ritmos[...] os primeiros se chamam judicativos, os segundos progressores ou
ativos, os terceiros os que saem dos ouvidos, os quartos os da memória ou
recordáveis e os quintos são os sonoros”11.
Enquanto os antigos analisavam e classificavam os ritmos a partir do
ponto de vista matemático, como fizeram os pitagóricos, ou a partir de posições
pedagógicas e éticas, como fizeram Platão e Aristóteles, Santo Agostinho, ao
distinguir o ritmo da percepção, da memória, da atuação e do juízo, introduz o
ponto de vista psicológico. O mais interessante na sua teoria psicológica do ritmo
foi a afirmação de que o homem dispõe de um ritmo inato que lhe foi dado pela
natureza e que é um ritmo inalterável do intelecto. Este é o mais importante dos
cinco ritmos, já que sem ele, o homem não seria capaz de perceber os outros
ritmos nem tampouco produzi-los.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, Aurélio. De Vera Religione. Madrid: Editorial Catolica-BAC, 1956.

9 De vera religione, XXXI, 57.


10 De Musica VI, 10,28.
11 “Quinque genera numerorum [...] vocentur ergo primi iudiciales, secundi progressores, tertii

occursores, quarti recordabiles, quinti sonantes”. De Musica VI, 6, 16.


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____________. A Verdadeira Religião. Tradução de Nair Assis Oliveira. São Paulo:


Paulus, 2002.
____________. De Musica. Madrid: Editorial Católica-BAC, 1988.
____________. La Musica. Tradução de Maria Bettetini. Milano: Rusconi, 1992.
ALTUNA, Luís Rey. San Agustín y la Musica. In: Augustinus. v.5, 1960, p.191-
206.
FITZGERALD, Allan. Augustine through the ages. An Encyclopedia. Cambridge:
Publishing Company, 1999.
GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de
Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Paulus, 2010.
HINRICHSEN, Luís Evandro. A Estética de Santo Agostinho – o Belo e a
Formação do Humano. Porto Alegre: ESTEF, 2009.
SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Tradução de Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la Estética II. La estética medieval.
Madrid: Akal, 2002.

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