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TECNOSUBJETIVIDADE

Cadernos de SubjetividadeÍndice
Apresentação
E NTREVISTA
O comunismo da imanência
Félix Guattari e Toni Negri
Plissê Fractal
Pierre Lévy
A Paixão das Máquinas
Félix Guattari
O Som de uma Linha de Varredura
Bill Viola
O Reencantamento do Concreto
Francisco J. Varela
Antes do Indivíduo
Luis Orlandi
Gênese do Indivíduo
Gilbert Simondon
A propósito de Simondon
Gilles Deleuze
Da Linguagem Zaum à Rede Tecnomaya
Franco Berardi
A Máquina-Cinema
Raymond BellourTrabalho Afetivo
Michael Hardt
Uma Política do Futuro-presente
Mauro Sá Rego Costa
A Ciência como Rede de Atores
Márcia Oliveira de MoraesApresentação
Cadernos de Subjetividade, na sua versão atual, é uma revista-livro
anual que acolherá a inventividade teórica, estética e política nascente no
Brasil e no exterior. Como projetar o pensamento à altura do nosso tempo
e de suas vertigens? O desencanto pós-moderno não soube apreender o
sentido das mutações em curso. A subjetividade esgarçada por todos os
lados pede novas ferramentas teóricas, outras antenas, direções inéditas.
As formas inerciais de pensar, de existir, de subjetivar-se, de
relacionar-se caducaram, porém persistem. Continuamos impregnados por
dicotomias tais como consciente/inconsciente, acaso/necessidade,
natureza/cultura, infra-estrutura/superestrutura etc. No entanto, o tecido
fibroso de nossa realidade transbordou em muito esses pares, introduziu no
meio deles dobras insuspeitadas, revelando uma tessitura em tal medida
complexa que apenas um pensamento já instalado nessa multiplicidade
pode aí se orientar.
Como expor-se então às novas forças em jogo neste universo
polimorfo, numa época em que a megamáquina capitalista não cessa de
produzir novas formas de controle social e subjetivo? Como abrir-se para a
vitalidade das subjetividades emergentes? Como cuidar delas? Eis o
propósito desta publicação: não se ater ao fascínio complacente do novo,
mas dar-se meios para lidar com ele, operá-lo, corporificá-lo, reconhecer-
se nele e através dele resistir ao mortífero.
Estamos inseridos numa rede planetária cada vez mais acentrada.
Para uma nova geografia, novas estratégias. Nesse sentido, resistir hoje
significa mais do que crispar-se na marginalidade ou nas bordas. Não se
trata tão somente de opor-se, mas de habitar diferentemente, infletindo as
redes que nos constituem, renovando problemáticas, atualizando esta nossa
Cosmópolis.
Tecnosubjetividades é um mapeamento de algumas dessas
estratégias. Eis o caleidoscópio que oferecemos ao leitor: experimentações
teóricas, flashes poéticos, textos inéditos ou inacessíveis em nossa língua,
cuja atualidade independe de quando foram escritos. Dos muitos mundos
possíveis que eles encerram, quais hão de vingar, quais hão de soçobrar,
quantos hão de se mutiplicar? Em todo caso, é preciso reinventar o sopro
das coisas.
* * *Em meio a um tecnocosmos a cada dia mais complexo e sofisticado,
o homem contemporâneo se vê às voltas com um novo para o qual ainda
não tem palavras. A estranheza de habitar um ciberespaço, de ver crianças
tomadas numa relação apaixonada com a multimídia, de assistir à
informatização galopante da vida doméstica, de enfrentar questões inéditas
no campo da bioética e da biodiversidade - eis alguns poucos indícios, e
apenas anedóticos, das mutações cuja dimensão e amplitude mal chegamos
a avaliar.
O que resta de "subjetivo" neste perturbador mundo novo? Afinal,
quem somos nós sem os nossos instrumentos, as nossas máquinas, os
nossos remédios e as nossas bactérias? Essas misturas em que vivemos e
que nos constituem solicitam uma retomada em profundidade da questão
da subjetividade. São tantas as passagens que nos lançam do "subjetivo"
ao "tecnológico", que mal sabemos hoje onde começa um e termina o
outro, o quanto de maquínico encontramos no humano e vice-versa. É
preciso percorrê-los como o avesso um do outro, como numa fita de
Moebius.
Assim, não se trata de lamentar ou glorificar a morte do sujeito.
Nem o triunfo ou os desastres resultantes dos progressos técnicos. Pois soa
cada dia mais artificial pensar técnica e sujeito sem considerar a
continuação que os reinventa a cada momento.
Seria preciso partir da idéia mais provocativa e radical que atravessa
os textos do presente volume: a subjetividade ela mesma situa-se na
adjacência de focos de produção múltiplos, heterogêneos, não-humanos. É
apenas a partir dessa heterogeneidade constitutiva, micro e macrocósmica,
povoada de elementos técnicos, semióticos, energéticos, que a produção de
si é pensável. Há portanto uma nova circularidade a ser inventada.
O humanismo clássico concedeu um privilégio excessivo ao
indivíduo já constituído, em detrimento do processo de individuação. A
formulação desse problema pelo filósofo francês Gilbert Simondon, num
texto de 1964, publicado aqui pela primeira vez em português, está
presente, de maneira direta ou indireta, em grande parte dos trabalhos
reunidos neste volume. Quando se pensa a fundo esses processos, como
o faz a maioria dos ensaios aqui publicados, percebe-se em que medida o
indivíduo emerge de um mundo complexo (biológico, técnico, semiótico,
político...) e o corporifica, encarna-o.Se podemos nomear nossa Atualidade uma
mega-rede heterogênea
onde não há estratos determinantes, nela não caberia procurar o fio de
Ariadne em busca de uma visão totalizante. A infinitude de variáveis em
jogo nos convida a exercer aqui uma certa miopia: ao deter-se neste ou
naquele ponto singular, deixar ressoar a mega-rede em toda a sua
diversidade. Afinal, o que somos hoje senão fragmentos espalhados por
esta miríade de linhas, aninhados em seus entroncamentos, seduzidos por
suas bifurcações e ramificações? Por que então essa insistência em buscar
no espelho do mundo apenas o reflexo opaco de nosso rosto
demasiadamente humano? Talvez já pudéssemos abrir mão dessa
miragem. Mais do que nunca, vemo-nos enlaçados pela heterogeneidade a
mais estrangeira, a mais avessa, simplesmente inumana. Ao ver roubado
nosso reflexo, estaríamos mesmo perdidos?
Peter Pál Pelbart & Rogério da Costa
* * *
Cadernos de Subjetividade é uma publicação do Núcleo de Estudos
e Pesquisas da Subjetividade, vinculado ao Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia Clínica, da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Fundada em 1993, tem publicado textos de pesquisadores de
áreas diversas, pertencentes ou não ao Núcleo, e que abordam, numa
perspectiva transdisciplinar, as reconfigurações subjetivas no mundo
contemporâneo. Depois de uma interrupção de dois anos, devida a
circunstâncias financeiras ligadas à mudança na política de apoio aos
projetos editoriais na Universidade por parte das agências financiadoras,
Cadernos de Subjetividade ressurge num novo formato gráfico, ligado
agora à Editora Hucitec e à coleção SaúdeLoucura, dirigida por Antônio
Lancetti.
A revista continua, não obstante, a linha editorial que marcou sua
história desde o início, com absoluta autonomia editorial, e animada pelo
corpo docente e discente do Núcleo de Estudos da Subjetividade. A
mudança que o leitor pode constatar é, sobretudo, formal. Cada número
passa a ser um livro, com uma unidade temática mais marcada e uma capa
diferenciada, de modo a facilitar sua distribuição e circulação. Foi a saída
que encontramos para furar o bloqueio que paira sobre as revistas em
nosso País, sejam elas de cunho acadêmico ou não.
Nossa publicação está aberta a colaborações de pesquisadores de
domínios diversos, não necessariamente universitários, interessados em
participar do debate em torno da subjetividade contemporânea.O comunismo da
imanência
Félix GUATTARI
entrevistado por Toni NEGRI
Toni Negri:
Gostaria de começar por uma questão que também fiz, recentemente, a Gilles
Deleuze, a propósito de Mil Platôs. Nesse livro, que considero um dos grandes
ensaios filosóficos do século, acreditei perceber uma nota trágica. Os pares
conflitantes que nele se desenham (processo/projeto, singularidade/sujeito,
composição/organização, linhas de fuga/dispositivo e estratégia, micro/macro
etc.), tudo o que, em suma, constitui um sistema aberto encontra-se, por outro
lado, não re-enclausurado, mas contido como numa tensão insolúvel e num
esforço sem fim. É nisso que me parece consistir o elemento trágico desse livro.
Félix Guattari:
Alegria, tragédia, comédia... os processos que gosto de qualificar como
maquínicos trançam um futuro sem garantia — é o mínimo que podemos dizer!
Estamos ao mesmo tempo “presos numa ratoeira” e destinados às mais insólitas
e exaltantes aventuras. É impossível levar-se a sério, mas também impossível
não “se enganchar”. Essa lógica da ambiguidade, eu não a vejo tanto como uma
“tensão insolúvel”, mas como o jogo multívoco, polifônico, de escolhas
paralelas, por vezes antagônicas, que não lhe deixa outro recurso senão aquele da
má fé, a bifurcação interrompendo todo o resto. Como “lidar” com essas
constelações insustentáveis de universos de referência? O esquecimento pode ser
de grande ajuda, mas ele não está ao alcance de todos!
Negri:
Nas Cartographies schizoanalytiques, porém a partir daí em todos os seus
textos, para caracterizar o período histórico atual você utiliza a expressão “era
informática planetária”. Esta categoria ecoa com os discursos foucaultiano e
deleuziano sobre a era da comunicação, especificando-os. A aceitação dessa
categoria em filosofia tem efeitos metodológicos fundamentais: ela lhe
permiteresolver a genealogia na epistemologia e vice-versa, e construir os
agenciamentos de enunciação de um ponto de vista histórico. No entanto, esta
redução não pode ter também efeitos perversos no caso de uma epistemologia de
referência informática? Não há risco de achatamento da determinação ou do
agenciamento genealógico no universo das relações transversais, lineares e
indiferentes características desta epistemologia? Como romper a indiferença do
horizonte informático?
Guattari:
A subjetividade capitalística implica numa binarização e numa desqualificação
sistêmica de todas as « mensagens ». Ela coroa o reino de um equivaler
generalizado que tem, além disso, estendido suas coordenadas nos domínios do
Espaço, do Tempo, da Energia, do Capital, do Significante, do Ser... Trata-se ao
mesmo tempo de um horizonte histórico, cujo surgimento é datado, e de uma
vertigem axiológica que remonta a tempos imemoriais. Por toda parte sempre
houve ameaça de abolição da complexidade qualificada, desde o interior. O caos
habita o complexo; o complexo habita o caos. O que implica que este último seja
composto de entidades animadas a uma velocidade absoluta – deixando que a
ciência « reduza » essas velocidades com constantes tais como c, h (constante de
Planck), o instante zero do bigbang, o zero absoluto etc... O que legitima uma
perspectiva de « revolução molecular » é que esta entropia capitalística da
subjetividade se instaura em todos as escalas e renasce constantemente de suas
cinzas. Uma periodização como aquela que encadeia a passagem das sociedades
de soberania para as sociedades disciplinares, para resultar nas sociedades de
controle, é ao mesmo tempo genealógica e ontogenética. Todos esses regimes de
territorialização do poder, do saber e da subjetividade se decompõem e se
recompõem na subjetividade contemporânea. O que faz com que, por exemplo,
não se possa falar hoje, com a escalada dos integrismos e dos racismos, de «
regressão arcaica », mas antes de progressismo fascista ou, a rigor, de neo-
arcaísmo, sendo entendido que eles reinventam com todas as peças formas de
inteligência e de sensibilidade do mundo contemporâneo. Recomeçar a história
desde o começo ou dobrá-la em direção a finalidades progressistas: este não é
mais, verdadeiramente, o problema! Trata-se antes de recompor, sobre outras
bases, os agenciamentos de subjetivação e, neste momento, recriar de um modo
pático as diversas figuras da subjetivação histórica, das quais a
subjetividadecapitalística é a mais vertiginosa por seu vazio, sua banalidade, sua
vulgaridade...
Negri:
Nós vivemos num mundo em que a pluralidade dos processos de subjetivação se
constitui através de uma pluralidade de equipamentos coletivos, bem como de
mercados e de instituições. Esse processo é muito rico e impossível de ser
encaixado nas velhas categorias da democracia ou do socialismo. Para não falar
nas velhas categorias do capitalismo liberal. Mas esse processo é também
atravessado por dinâmicas de globalização e de subordinação que relativizam e
sobrecodificam a intensidade dos processos de subjetivação. Por vezes, tenho a
impressão que o processo molecular, uma vez tornado hegemônico, foi
consumido e digerido por uma potência molar que não reconhece mais seu
oposto como existente. Nesse contexto as saídas metafísicas e políticas não são
interessantes. Como na multidão molecular pode se reconstruir uma oposição
molar?
Guattari:
Substituída pela mídia de massa, pelas sondagens, pela publicidade, pelas
consultorias em comunicação, a democracia política torna-se não só cada vez
mais formal, cada vez mais cortada da realidade, mas também cada vez mais
delirante. O que não significa que ela perca toda relação com a subjetividade
capitalística. Os líderes políticos rivalizam com os apresentadores de televisão
para penetrar sempre mais na pseudo-intimidade dos lares. É o reino do show de
variedades substituído pelo psico-show. O vertiginoso, em tudo isso, é a
capacidade que tem esse tipo de produção de subjetividade de capturar toda
imanência processual, toda mutação molecular. Existiria, contudo, uma prova de
verdade capaz de discriminar-se do engodo, do fingimento, do simulacro, já que
estes podem também tornar-se o lugar de uma autêntica territorialização
existencial? Veja, por exemplo, o gestual estereotipado de uma estrela da cultura
rock, cujos traços são contudo objetos de reapropriação por crianças e
adolescentes em momentos cruciais de sua existência. Mas a prova da verdade
não engana, ela é de ordem pática: é ela que encadeia uma espécie de adesão
existencial que cria o acontecimento.É bem verdade que todos esses focos de
resistência molecular contra a
serialidade da subjetividade capitalística se encarnam, frequentemente, como
retornos à transcendência, ao misticismo, ao culto do “natural”. Isso me
incomoda menos que a você. Eu me digo que Deus encontrará aí os seus! Há
algo de tão artificial nesses neo-arcaísmos... Eles nunca implicam mais que um
estrato dentre outros das formações de subjetividade. Sabemos muito bem que os
integristas tomam um trago e assistem filmes pornô às escondidas. O que não
desculpa nada! Resumindo, o microfascismo está sempre renascendo, mas não
forçosamente o macrofascismo.
A oposição molar passa ainda e sempre pela constituição de máquinas de
guerra social. Chegou a hora, porém, de pensar em outra coisa que não nas
máquinas leninistas. Acabamos de ver nascer máquinas molares conhecidas no
terceiro mundo, com o integrismo iraniano e depois o nacionalismo iraquiano.
Houve durante oito anos guerra de modelos, seleção artificial e depois colocação
à prova! Na medida em que a sobrecodificação das relações internacionais pelo
antagonismo Leste-Oeste se enfraqueceu, podemos esperar ver nascer e
proliferar toda uma série de máquinas molares. Não há apenas exemplos
catastróficos: o PT no Brasil autoriza esperanças reservadas... mas veja bem que
eu não tenho programa, modelo de referência! Tudo o que posso dizer é que me
parece legítimo, inevitável, que as revoluções moleculares sejam “duplicadas”
por máquinas de grande escala trabalhando no seio das relações de força sociais
que, longe de se apagar, irão se endurecer, mesmo que se diferenciando.
Negri:
Você sustenta o direito fundamental à singularidade. Você o ilustra como um
recentramento das finalidades da divisão do trabalho e das práticas sociais
emancipadoras, como exercício de uma ética da finitude. Como a partir daí um
processo de singularização pode se tornar antagonista? Ou ainda, como a
resistência das singularidades oprimidas pode se tornar eficaz? Há ainda um
intolerável? Ou ele próprio foi reabsorvido no mecanismo da pluralidade
crescente dos mercados? Existe a possibilidade de construir uma idéia filosófica
do comunismo e de ligá-la ao processo de subjetivação? Ainda é possível fazer
tudo isso sem cair nas armadilhas do positivismo, do dogmatismo e da utopia?
Guattari:Tenho a impressão que você se esforça em me fazer falar. Você sabe tanto
quanto eu que um processo de singularização é uma pura afirmação que ignora o
antagonismo, a opressão ou mesmo simplesmente a interação. Trata-se
justamente aí de sair mais uma vez das metáforas dinâmicas e energéticas. Um
comunismo da imanência conduziria constantemente o cursor sobre praxis ético-
políticas dando suporte a seus próprios universos de referência. Fora com os
paradigmas científicos que assediaram o marxismo, o freudismo, o
estruturalismo etc... Todo um pensamento da transcendência, toda uma
sentimentalidade da eternidade transformaram o progressivismo em uma imensa
fobia, um evitamento sistemático da finitude, da inutilidade última da existência
magnificamente ilustrada por Samuel Beckett. No lugar de fazer disso uma
doença, constituir uma razão pragmática. Há aí um salto estético que
expropriaria o salto religioso de Kierkegaard. Por que mudar? Por que a
revolução e não o nada? Porque isso tem uma cara melhor! Mas, no fundo, por
nada, por um prazer imaterial, uma palpitação imperceptível na superfície das
coisas.
Negri:
Eu conheço sua paixão pelo acontecimento e seu prazer pela vida. Mas quando
filosofa, você parece querer se distanciar disso. Como você consegue gerir a
esquizofrenia estrutura-acontecimento? Você não tem sempre tendência em
antecipar a estrutura subjacente ao acontencimento, correndo o risco de não o
deixar falar? Esta questão pode ser encontrada em seu trabalho com Deleuze?
Qual é sua teoria do acontecimento? Como imaginar hoje não o processo, mas o
acontecimento revolucionário, não as condições da revolução, mas o poder
constituinte?
Guattari:
O acontecimento é um dom de Deus. Temos sempre a impressão de que nada
acontece, de que nada mais acontecerá. E então, surgem os "acontecimentos do
Golfo". Mesmo neste caso eu pensei que, no fundo, nada aconteceria. A máquina
mass-midiática planetária lamina todas as asperidades, todas as singularidades.
Não encontramos mais as zonas de mistério. A questão agora é fazer um
acontecimento com o que se apresenta. Não como os jornalistas que são
obrigados, o que quer que se passe, a fazer seu "serviço". Mas de modo maispoético.
Trata-se aqui, portanto, de um poder constituinte, de uma produção
ontológica sui generis. Lidar com a serialidade. Nem que seja sonhando com os
militares americanos cozinhando nos seus tanques, com a confusão dos reféns,
com o júbilo dos jovens árabes, com o delírio sistemático de Sadam... Essas
cenas, sem limites precisos, para que enfim aconteça alguma coisa!
Quanto à questão que você coloca, relativa à estrutura, eu gostaria de
descentrá-la. Eu nunca pretendo descrever um estado de fato, um estado da
história ou da subjetividade. Eu procuro apenas demarcar as condições de
possibilidade dos diversos modos de descrição possíveis. Para apreender ou para
contornar as problemáticas da enunciação coletiva, todo sistema de modelização
- quer seja ele teórico, teológico, estético, delirante... - é levado a posicionar
o
que chamo de fatores ontológicos (os Fluxos, os Phylums maquínicos, os
Territórios existenciais, os Universos incorporais). Assim, encontra-se conjurada
ou assumida parcialmente a questão, para mim essencial, do pluralismo
ontológico. Há escolha de constelações singulares de Universos de referências,
encarnados em Territórios existenciais, eles próprios marcados por uma
precariedade, uma finitude que faz oscilar o Ser numa irreversibilidade
criacionista. Nessas condições, uma ontologia só pode ser cartográfica,
metamodelização de figuras transitórias de conjunções intensitárias. O
acontecimento reside nessa conjunção: de uma cartografia enunciadora e essa
tomada de ser precária, qualitativa, intensiva. Essa relação de fundação recíproca
entre o que exprime e o expresso, o que dá e o dado, encontra sua expressão
exacerbada na criação estética precisamente considerada como poder
constituinte ontológico.
Digamos que existam três tempos: o do estado inicial, o do retorno a zero
e o da retomada de processualidade. O segundo tempo não é dialético. Nele,
nunca se termina com a finitude, com o não-senso. E no entanto, trata-se de um
tempo rico, de uma recarga de complexidade através de um banho caótico. O
tempo zero sempre reserva surpresas; a partir de pontos de singularidade podem
dar partida novas linhas de possível. O terceiro tempo seria aquele dos
imaginários, ou seja, da retomada das ambiguidades. Como definir um
comunismo, ou simplesmente um amor bem sucedido, escapando de fato às
ilusões de um desejo de eternidade. A potência de viver, a alegria espinozista só
escapa à transcendência, à lei mortífera por seu carater de modalidade
fragmentar, polifônica, multireferencial. A partir do momento em que uma
norma pretende unificar a pluralidade dos componentes éticos, a processualidade
criativa se oculta. A única verdade última é aquela do caos como reservaabsoluta de
complexidade. O que constituiu a força e a pureza das primeiras
"reprises" de socialismo e de anarquismo foi justamente ter mantido reunidos, ao
menos parcialmente, um imaginário comunista ou libertário e um sentido agudo
da precariedade dos projetos individuais e coletivos que os suportavam. Desde
então, a finitude tornou-se insípida, a subjetividade mass mediatizada e
coletivizada se infantilizou. A finitude do segundo tempo de "fio terra" não está
dada de uma vez por todas. Sem cessar, ela deve ser reconquistada, recriada nos
seus ritornelos e na sua textura ontológica. A reconstrução do comunismo passa
hoje por uma ampliação considerável dos modos de produção de subjetividade.
Donde a temática de uma junção entre a ecologia do meio-ambiente, a ecologia
social e a ecologia mental por uma ecosofia.
Tradução de Rogério da CostaNós, mudos. Nós sem limites nem pele nem carne nem
fronteira nem borda nem
definição. Nós misturados. Esta mistura não tem nome em nenhuma língua. Nós,
multidão, pedras misturadas. Nós sujeitos, cada um sobre e sob todos. Nós pedras,
objetos, coisas. Nova mistura do sujeito, no plural, com o objeto. Nós sujeito-
objeto.
Categoria trismegista da metafísica.
Michel SerresPLISSÊ FRACTAL
Pierre LEVY
O pensamento deve lançar-se acima dos "fatos" para interrogar-se,
não apenas sobre suas causas mecânicas, mas também sobre o que os faz
serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciação dos quais eles
são os enunciados, sobre os mundos de vida e de significação do magma
dos quais eles surgem. Remontar até às fontes, tal é o sentido
do
problema do transcendental.
Através de quê há um mundo? A história da filosofia e,
parcialmente, a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de
proposições que foram articuladas para responder a esta questão.
Evidentemente não é possível retomar aqui toda a história da filosofia e
nem mesmo resumí-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens
inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as
máquinas de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam
hoje a recolocar este problema.
No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger,
depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então,
como os cognitivistas
contemporâneos, uma arquitetura do sistema
cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância,
pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, como
pensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora,
mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico, não
seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas e
sua autopoiese, como o sujeito cognitivo último, aquele que calcula seu
mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda cibernética,
especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teríamos
então atingido o termo? Não, pois o organismo, tal como ele é, remete duas
vezes às contingências da História: o "fora" intervém uma primeira vez
através da construção ontogenética e da experiência de vida; ele se aloja
uma segunda vez no coração do organismo específico ao acaso da
filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não pode se separar dahistória
infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo
além, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas redobras e
seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades da
physis e de seu devir.
Ao invés de conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biológico e
do biológico ao físico, a meditação do sujeito transcendental do
conhecimento pode remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das
pulsões e dos fantasmas. Mas ainda aqui é impossível deter-se no
inconsciente freudiano como num termo último. Guattari e Deleuze
mostraram que o dito inconsciente não se limita a um reservatório de
desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a
História, a sociedade e o cosmos. O inconsciente total, que não é mais
concebido como uma entidade intrapsíquica, são os agenciamentos
coletivos de enunciação, os rizomas heterogêneos ao longo dos quais
circulam nossos desejos e pelos quais se lançam e se relançam nossas
existências. Ora, não se pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que
entra na composição dos agenciamentos de enunciação e das máquinas
desejantes: lugares, momentos, imagens, linguagens, instituições, técnicas,
fluxos diversos etc. E, finalmente, descobrimos mais uma vez que o termo
último, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomeado
"inconsciente", bem poderia ser o próprio mundo.
Voltemos à encruzilhada de onde partimos, o sujeito do
conhecimento, para seguir uma terceira via, aquela da empiria. A
experiência não é originária? E antes mesmo da experiência, os sentidos
que a tornam possível? Em Os cinco sentidos, Michel Serres conseguiu a
proeza de construir, a partir de cada uma das modalidades sensoriais, uma
metafísica, uma física, uma gnosiologia, uma estética, uma política e uma
ética. A sensação seria, por conseguinte, fundadora. Mas o próprio do tato,
da audição, do olfato, do paladar e da vista não seria o de se remeter ao
mundo? Se a percepção faz existir para nós o fora, por outro lado, é
também sobre o devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida
dos sentidos. Ser é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção e o mundo
sensível são as duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por uma
reversão talvez previsível, o livro seguinte de Michel Serres, Statues,
punha a coisa, a massa, a exterioridade a mais densa no fundamento dos
coletivos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O empirismo
situa o mundo no coração do conhecimento. É o que Kant, que haviapretendido colocar
o sujeito no centro, demonstrou muito bem em sua
metáfora da "revolucão copernicana" em filosofia. Mas por mais que se
queira expulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele volta
pelas janelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpáveis que
frequentam e fazem viver o sujeito, e pela força do tempo, que tudo
transforma.
Explorando outras vias, podemos remontar do sujeito individual às
significações sociais que o habitam, ao imaginário instituinte que o
atravessa (Castoriadis), à remissão historial que o destina (Heidegger), aos
epistemai que estruturam seu discurso (Foucault) etc. Recordemos que a
principal aporia, quando se considera um transcendental histórico, vem de
seu caráter por definição evolutivo e variado. Um transcendental histórico
existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominados ele se
metamorfoseia permanentemente? Se concebêssemos causas e efeitos na
região transcendental, o que então a diferenciaria do campo empírico?
Todo o fatual e o contingente da História (geografia, queda de impérios,
propagação de religiões, invenções técnicas, epidemias etc) não retroage
sobre a região historial? Não resultam as idas e vindas do transcendental
histórico, de efeitos ecológicos, de processos cosmopolitas? Mais uma vez,
para compreender aquilo através de quê há um mundo, somos conduzidos
à complexidade e aos redemoinhos do próprio mundo.
Primeira abordagem da dobra
Com efeito, é sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, sua
realidade, sua materialidade, sua topologia singular, as contingências de
seu devir, Cosmópolis povoada de coletivos heterogêneos ao infinito e em
todas as escalas de descrição, é finalmente o próprio mundo que se
descobre, a cada vez, acima do complexo vital de significações que o faz
ser tal mundo para nós.
Pelas metáforas e imagens recebidas, pelas significações culturais a
nós transmitidas (implicando em suas dobras fragmentos holográficos de
natureza), pelo inconsciente maquínico conectado ao fora, pelas técnicas
materiais, as escrituras e as línguas sob cuja dependência pensamos e
produzimos nossas mensagens, tudo aquilo através de quêexperimentamos e vivemos o
mundo é precisamente o próprio mundo, a
começar por nosso corpo de sapiência.
Mais do que grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o
organismo vivo é com certeza seu produtor; nisso é preciso seguir Varela.
Mas devemos reconhecer igualmente que o mundo exterior, ou se
quisermos, "o meio", já está também sempre incluído no organismo
cognoscente que o produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente em
máquina autopoiética e exopoiética, produtora de si e de seu fora. Acima
do mundo empírico experimentado por nós, o mundo transcendental que
evocamos aqui não é certamente redutível a algum estrato físico, ou
biológico, ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é a soma
ordenada ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo como reserva
infinita, trans-mundo, sem hierarquia de complexidade, sempre e por toda
parte diferente e complicado: Cosmópolis.
Corpos, culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações... o
empírico torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mundo
empírico. "Isso" se dobra e se redobra em transcendental e empírico. A
dobra é o acontecimento, a bifurcação que faz ser. Cada dobra, ação-dobra
ou paixão-dobra, é o surgimento de uma singularidade, o começo de um
mundo. A proliferação ontológica é irredutível a uma ou outra camada
particular dos estratos; igualmente irredutível a qualquer dobra-mestra
como aquela do ser e dos entes, da infraestrutura e da superestrutura, do
determinante x e do determinado y. 0 mundo total e intotalizável, o trans-
mundo cosmopolita, diferenciado, diferenciante e múltiplo é, ao contrário,
infinitamente redobrado, ele fervilha de singularidades nas singularidades,
de dobras nas dobras. As oposições binárias maciças ou molares como a
alma e o corpo, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a sociedade, a natureza e
a cultura, o homem e a técnica, o inerte e o vivo, o sagrado e o profano, e
até a oposição de que partimos entre transcendental e empírico, todas essas
partições são maneiras de dobrar, resultam de dobras-acontecimentos
singulares do mesmo "plano de consistência" (Deleuze e Guattari). "Isso"
poderia ter se dobrado de outra maneira. E como a dobra emerge num
mundo infinitamente diversificado mas único, sempre se pode voltar ao
acontecimento da dobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar
seu drapê, passar continuamente de um lado para o outro.
A alma e o corpo para Gilbert SimondonDe sorte que, como o demonstrou Gilbert
Simondon, não há
substâncias, mas processos de individuação, não há sujeitos, mas processos
de subjetivação. A subjetivação como ação ou processo continuado
constitui um "dentro", que não é outro senão "a dobra do fora" (Deleuze).
Os dualismos achatam e unificam violentamente aquilo que eles
distinguem, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas pelas
quais passam as regiões do ser, uma na outra. "Descartes não apenas
separou a alma do corpo; ele criou também, no próprio interior da alma,
uma homogeneidade e uma unidade que proíbe a concepção de um
gradiente contínuo (o grifo é meu, P.L.) de distanciamento em relação ao
eu atual, reunindo as zonas as mais excentradas, no limite da memória e da
imaginação, a realidade somática." (Gilbert Simondon, L'individuation
psychique et collective, p. 167)
A alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas,
comunicam-se por suas zonas de sombra. A consciência livre, racional e
voluntária, de um lado, o mecanismo físico-químico dos órgãos, de outro,
se juntam pela sensação, pelo afeto, toda a obscuridade psicossomática do
desejo, da sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o herdado do
psiquismo, toda a divisão e a exterioridade do espírito a si mesmo o
redobram para o somático, fazem-no tornar-se corpo.
A união psicossomática só se torna um problema se tentarmos
conectar as extremidades da dobra, que são apenas dois casos limites: de
um lado, a consciência clara e racional; do outro, o corpo-matéria ou o
cadáver auto-móvel. Mas a alma e o corpo já se comunicam sempre pela
dobra que os relaciona um ao outro, pelas multiplicidades negras da
curvatura, que formam a maior parte do sujeito.
0 esforço em se seguir a dobra, esboçado aqui sobre o caso da alma e
do corpo, deveria ser levado a todas as oposições molares. A cada vez, no
lugar de entidades homogêneas e bem recortadas, descobriríamos um
plissê fractal (Mandelbrot), uma infinita diferenciação do ser segundo
dobras, passando continuamente umas nas outras.
A ciência e a sociedade em Bruno Latour
O que Gilbert Simondon assinalou sobre as relações da alma e do
corpo, Bruno Latour mostrou no caso da ciência e da sociedade. O autor de
La science en action mergulhou a ciência e a técnica no grande coletivoheterogêneo
dos homens e das coisas. Mas seria um erro acreditar que ele
negou toda especificidade à tecnociência, uma vez que ele mostra as forças
díspares que a compõem.
A ciência e a técnica emergem de uma mega-rede heterogênea; em
contrapartida, elas contribuem para atá-la, curvá-la de outra maneira.
Ciências e técnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita, que se
redobra em ciência das coisas, de um lado, e em sociedade dos homens, de
outro.
Há certamente uma identidade (múltipla e variável) da ciência, um
estilo de dobra, um regime de enunciação que a singulariza. Mas um
pensador rigoroso não pode se atribuir a particularidade produzida por um
acontecimento (por mais contínuo que seja) sem ter percorrido
previamente a dobra que o efetua. Ele não pode dar-se a essência antes do
processo. Antes de qualquer especificidade do conhecimento científíco e
da eficácia técnica, há primeiro uma maneira de dobrar entre a verdade das
coisas em si e o conflito hermenêutico das subjetividades. Esse tipo de
partição se redobra sempre novamente, no próprio seio da atividade
científica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outro lugar.
Uma tal proposta científica teria se situado na face social ou demasiado
humana da partição se a dobra tivesse passado mais longe. Como para a
alma e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar e desenhar a dobra
não pode se realizar sem dissolver a unidade e a homogeneidade das
regiões que ele distingue. Apesar de todas as analogias possíveis, a dobra
que singulariza a ciência não é idêntica, por exemplo, àquelas que fazem
advir a justiça, a beleza ou a santidade
As leis do inerte e o milagre do vivo em Prigogine e Stengers
De todos os contemporâneos exploradores de dobras, Ilya Prigogine
e Isabelle Stengers estão indubitavelmente entre os mais notáveis. Em suas
duas obras, Entre o tempo e a eternidade e A nova aliança, eles tentaram
pôr abaixo a cortina de ferro ontológica que uma certa tradição filosófica
havia construído entre os seres (o em si) e as coisas (o para si). Apoiando-
se sobre os últimos desenvolvimentos da ciência contemporânea, a filósofa
e o prêmio Nobel renovaram profundamente a filosofia da natureza.
Lendo-os, redescobrimos na physis a irreversibilidade do devir e o carácter
instituinte do acontecimento que acreditávamos reservados aos universos
do homem (desde que se pensa a História) e da vida (desde a descoberta daevolução
biológica). Os processos distantes do equilíbrio e os sistemas
dinâmicos caóticos conectam, por uma dobra que permaneceu invisível por
muito tempo, a necessidade estática do mecanismo e o acaso miraculoso da
auto-organização viva. Desde o momento em que o determinismo da
"matéria" e a inventividade finalizada do vivo não são mais do que casos
limites de um continuum infinitamente complexo, redobrado e semeado de
singularidades, a vida e o universo físico, o sinal e a significação deixam
de se opor. Não somente eles se relacionam um com o outro em sua
diferença, mas passam também um no outro.
O conceito de sistema dinâmico caótico é um dos que permitem
pensar a voluta gigante unindo a vida organizada às necessidades da
physis. Para ilustrar e modelizar este conceito, Prigogine e Stengers
escolheram especialmente a "transformação do padeiro", isto é, o
estiramento e a redobra indefinidamente reiterada de uma superfície
representando "o espaço das fases de um sistema". A operação matemática
da transformação do padeiro é uma espécie de análogo formal do trabalho
que um verdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão ( ver La nouvelle
alliance, p. 329-43 e 401-407, assim como Entre le temps et /'éternité,
p.96-107). E talvez seja a própria imagem do tempo antes que ele escoe,
antes que ele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse
movimento sem fim de estiramento, de dobra e de redobra de uma
superfície abstrata.
A mecanosfera
Dobras não cessam de involuir e de se recurvar umas nas outras, ao
passo que outras se desdobram. Acolhido na dobra individuante, o sinal, ou
a ondulação das coisas, torna-se significação. Os seres se individuam em
torno das dobras das coisas, da ondulação das paisagens, das curvas dos
corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha melódica, da curvatura
dos acontecimentos... Entidades se individuam ou se desindividuam para
que "isso" se preste a outras dobras, para que "isso" se reindividue de outra
maneira. Quer se trate de um objeto cósmico, de uma espécie, de um
biotopos1, de uma cultura, de um regime político, de um momento, de uma
1
- "biotope", em francês: meio biológico determinado que oferece a uma população
animal e
vegetal bem determinada condições de habitat relativamente estáveis.
(Ecol.)atmosfera ou de um sujeito, sob qualquer processo de individuação, uma
máquina trabalha. (ver "L'hétérogénése machinique", Félix Guattari,
Chimères n° 11,1991, retomado em Caosmose, Galilée, 1992).
A análise redutora acredita ter encontrado um fundamento da
explicação, um último solo causal, que se confunde frequentemente com
este ou aquele estrato (o "biológico", o "psíquico", o "social", o "técnico"
etc.) Ora, a análise preocupada com a singularidade dos seres, em vez de
perder tudo (exceto a certeza), numa regressão a um fundamento, qualquer
que seja ele (ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vattimo), deve
ao contrário tentar fazer aparecer a consistência própria, a dimensão de
autopoiése (Varela), a qualidade ontológica particular da entidade, do
fenômeno ou do acontecimento considerado. É para escapar à redução que
precisamos do conceito de máquina.
Uma máquina organiza a topologia de fluxos diversos, desenha os
meandros de circuitos rizomáticos. Ela é uma espécie de atrator que
recurva o mundo em volta dela. Enquanto dobra dobrando ativamente
outras dobras, a máquina está no cerne do retorno do empírico sobre o
transcendental. Uma máquina pode ser considerada numa primeira
aproximação como pertencendo a tal estrato físico, biológico, social,
técnico, semiótico, psíquico etc., mas ela é mais geralmente trans-estrática,
heterogênea e cosmopolita. As máquinas são "aquilo através de quê" há
estratos.
Não somente uma máquina produz algo num mundo, mas ela
contribui para produzir, para reproduzir e para transformar o mundo no
qual ela funciona. Uma máquina é um agenciamento agenciante, ela tende
a se voltar, a retornar sobre suas próprias condições de existência para
reproduzi-las. A composição das máquinas não é nem conjuntista, nem
mecânica, nem sistêmica. Isso é impossível, pois na perspectiva neo-
vitalista que é a nossa aqui, cada máquina é animada por uma
subjetividade ou por uma proto-subjetividade elementar. Não nos
representaremos, portanto, máquinas (biológicas, sociais, técnicas etc.)
"objetivas" ou "reais", e vários "pontos de vista subjetivos" sobre esta
realidade. Na verdade, uma máquina puramente "objetiva" que não fosse
movida por nenhum desejo, nenhum projeto, que não fosse infiltrada,
animada, alimentada de subjetividade, não se sustentaria nem um segundo,
essa carcaça vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade
não pode, portanto, ser restringida ao "ponto de vista" ou à"representação", ela é
instituinte e realizante. Por outro lado, a
subjetividade não toma forma e só se sustenta com agenciamentos
maquínicos diversos, entre os quais, na escala humana, os agenciamentos
biológicos, simbólicos, midiáticos, sócio-técnicos ocupam um lugar
capital.
As concepções habituais da composicão só respondem na verdade
aos problemas da objetividade pura, dos quais os modelos sistêmicos,
informáticos e cibernéticos são apenas uma variante elaborada. Mas as
máquinas não são nem puramente objetivas nem puramente subjetivas. A
noção de elemento ou de indivíduo também não lhes convém mais, nem a
de coletivo, uma vez que a coleção supõe a elementaridade e faz sistema
com ela. Como pensar então a composição das máquinas?
Cada máquina possui uma qualidade de afecto diferente, uma
consistência e um horizonte fabulatório particular, projeta um universo
singular. E no entanto ela entra em composição, ela se associa com outras
máquinas. Mas de que modo? Querer integrar, unificar violentamente as
máquinas plurais sob um só projeto, um só princípio de consistência,
resultaria talvez em matá-las e certamente diminuir sua riqueza ontológica.
Uma unificação "real" seria destruidora, uma unificação conceitual
empobreceria a compreensão e a inteligência do fenômeno considerado.
Portanto, é necessário respeitar a pluralidade maquínica, uma pluralidade
sem elementos (por baixo) nem síntese ou totalização (por cima). Mas a
pluralidade, justamente porque ela não é composição de elementos, não
pode ser sinônimo de separação. Há certamente uma composição ou uma
correspondência das máquinas. Esta articulação paradoxal deverá ser
analisada com infinita delicadeza e precaução em cada caso particular.
Levantamos a hipótese de que não existe nenhum princípio geral de
composição, mas que, pelo contrário, cada agenciamento maquínico
inventa localmente seu próprio modo de comunicação, de correspondência,
de compossibilidade ou de entrelaçamento da autopoiése (polo identitário)
e da heteropoiése mútua (polo associativo).
Distingamos cinco dimensões da máquina:
1) Uma máquina é diretamente (como no caso do organismo) ou
indiretamente (na maior parte dos casos) autopoiética (Varela), ou auto-
realizadora, (como se diz de uma profecia auto-realizadora), isto é, ela
contribui para fazer durar o acontecimento da dobra que a faz ser.
2)Uma máquina é exopoiética, ela contribui para produzir um mundo,
universos de significações.
3) Uma máquina é heteropoiética, ou fabricada e mantida por forças do
fora, pois ela se constitui de uma dobra. O exterior já está aí presente
sempre, ao mesmo tempo geneticamente e atualmente.
4) Uma máquina é não somente constituída pelo exterior (é a redobra da
dobra), mas igualmente aberta para o fora (são as bordas ou a abertura da
dobra). A máquina se alimenta, recebe mensagens, está atravessada por
fluxos diversos. Em suma, a máquina é desejante. A este respeito todos os
agenciamentos, todas as conexões são possíveis de uma máquina a outra.
5) Uma máquina é interfaciante e interfaciada.. Ela traduz, trai, desdobra e
redobra para uma máquina jusante os fluxos produzidos por uma máquina
montante. Ela é ao mesmo tempo composta por máquinas tradutoras que a
dividem, multiplicam e heterogenizam. A interface é a dimensão de
"política estrangeira" da máquina, o que pode fazê-la entrar em novas
redes, fazê-la traduzir novos fluxos.
Toda máquina possui as cinco dimensões, mas em graus e
proporções variáveis. Repitâmo-lo, as máquinas nunca são puramente
físicas, biológicas, sociais, técnicas, psíquicas, semióticas etc. Cosmópolis
atravessa sempre as dobras transitórias que escavam estas distinções.
Certas máquinas estratificantes ou territorializantes – elas mesmas
perfeitamente heterogêneas – trabalham precisamente para endurecer as
dobras estráticas. São redes de máquinas cosmopolitas que produzem os
seres, os modos de ser, o próprio Ser de acordo com uma modulação
infinita de graus e qualidades.
A produtividade ontológica se auto-entretém, pois máquinas
interfaces, parasitas, vêm gerar os hiatos, os abismos ou as dobras muito
profundas que separam as subjetividades-mundos, suas temporalidades,
seus espaços e seus signos. Uma máquina mantém presente (traindo-o ao
mesmo tempo) o acontecimento da dobra do qual ela resulta. Ela inscreve
o clinâmen inicial na mecanosfera, faz com que ele dure, retorne e, ao
fazê-lo, ela se instaura na origem de outras dobras.
Pensado como mecanosfera, todo o mundo empírico retorna ao
transcendental, torna-se fonte multiforme e plurívoca de universo de
existência e de significação.Os três andares do transcendental
Partimos de uma concepção clássica do transcendental: a
interioridade do sujeito, ou o objeto, ou a experiência etc. Pouco a pouco, é
a dobra do ser e do ente (ver Heidegger, Essais et conférences, Gallimard,
p. 279-310) ou do transcendental e do empírico que se impôs à nossa
meditação. Devemos agora voltar à própria possibilidade das dobras (e não
somente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para este fim três
níveis de transcendental.
O transcendental de nível zero: Há inicialmente o "isso", o
inconsciente total intotalizável, o plano de consistência. As entidades que
povoam esse arqui-lugar ou esse proto-tempo estão em composição e
decomposição perpétuas e simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade
absoluta e estão ao mesmo tempo infinitamente próximas e infinitamente
distanciadas umas das outras. Evidentemente será preciso ter cuidado para
distinguir o caos transcendental da desordem no sentido habitual ou
termodinâmico do termo... antes de meditar a dobra que relaciona uns com
outros estes sentidos. (Ver, para uma exposição mais detalhada sobre o
caos, as Cartographies schizoanalytiques de Félix Guattari). O caos
transcendental é a condição de possibilidade da dobra como
acontecimento.
0 transcendental de nível um: O acontecimento da dobra é aquilo pelo qual
algo se diferencia. A dobra é trabalho antes de qualquer objeto ou qualquer
fluxo trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativo absoluto. A
dobra é uma espécie de inflexão do plano de consistência, um clinâmen.
0 transcendental de nível dois: São os complexos maquínicos
dobrados/dobrantes que produzem os mundos empíricos. Sob o ser e o
nada, o ser e os entes, os universos biológicos, sociais; seus modos de
enunciação e suas significações trabalham agenciamentos trans-estráticos,
máquinas cosmopolitas heterogêneas que se entre-traduzem, se entre-
produzem e se entre-destróem perpetuamente. O transcendental de nível
dois é o coletivo em metamorfose permanente de todos os "aquilo através
de quê". A organizacão "hipertextual" (ver P. Lévy, As tecnologias da
inteligência, 1993) da rede maquínica proíbe qualquer redução a uma
infraestrutura, qualquer rebatimento do trans-mundo sobre uma ordem
particular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a mega-máquina mundo-
mundo, o anel de Moebius cósmico onde empírico e transcendental trocamperpetuamente
seus lugares ao longo de uma dobra única e infinitamente
complicada.
Direções de pesquisa: ética e semiótica
A ontologia do plissê fractal poderia prolongar-se em duas direções.
Primeiramente para uma filosofia da significação. Pois todo signo é dobra,
a forma mais simples da dobra significante sendo o desdobramento
significado/signifícante, que se pode complicar, segundo Hjelmslev, em
expressão e conteúdo, cada um destes dois termos se subdividindo ainda
em forma e matéria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos (apenas
Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). É o mesmo que dizer,
com Félix Guattari, que existem tantas semióticas (de estilos de dobras
significantes) quantos agenciamentos de enunciação. Músicas, cidades,
rituais, tatuagens, signos plásticos ou cinematográfícos, imagens
infinitamente difratadas da rede midiática, máquinas de escrita em abismo
dos softwares, imaginários pluri-semióticos em ato, universos
existenciais... a dobra simples do significante e do significado só aparece,
então, como um caso-limite bastante pobre.
Só evocamos aqui, por enquanto, a estática do signo, sua estrutura.
Qual é o trabalho da significação como ato? Como pensar o
redobramento/desdobramento de afectos, de imagens e de representações
produzido pelo acontecimento do signo no grande drapê fractal da
memória e, mais além, ao longo das alternâncias de dentro e de fora
interfaciadas da mecanosfera? Quais são as máquinas heterogêneas que
trabalham para manter o estrato semiótico como tal e pelas quais o signo se
relaciona sempre já com o a-significante, se confunde com os processos
cosmopolitas?
Enfîm, a ontologia da dobra desemboca numa ética, ou numa
política. Se o empírico volta ao transcendental, os cabalistas tinham razão:
é no mundo de baixo que se decide em último instância a sorte do mundo
de cima. Não somos somente destinados pelo desvelamento historial, como
o pretendia Heidegger, somos também responsáveis (no sentido mais forte
do termo) por ele. Agindo efetiva ou empiricamente, fazemos emergir um
horizonte de sentido historial, um imaginário instituinte, um universo
existencial ou incorporal. Temos certamente que responder pelas
consequências materiais de nossos atos, mas também pelas matrizes de
significação que ajudamos a transmitir, consolidar, edificar e destruir.
Nãoentendamos esta relação essencial da ética com a significação num sentido
estreito. Não se trata unicamente de lembrar o papel primordial dos
escritores, dos artistas, dos homens de "comunicação" e, em geral, de todos
os que trabalham explicitamente no campo semiótico. Os atos "puramente
práticos", técnicos, administrativos, econômicos e outros contribuem tanto
quanto os atos de discurso para a construção dos agenciamentos coletivos
de enunciação, para a produção das qualidades de ser. A ética e a política
não concernem apenas às relações dos humanos entre eles, à relação com o
"próximo", mas igualmente à relação com o mundo. Que mundo ajudamos
a inventar e a fazer existir?
Esta interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questões
ético-políticas particulares.
Em primeiro lugar, enquanto cidadãos do mundo total, o que é feito
de nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas florestas,
suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremos viver?
Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de que
modo devemos agir para com os outros mundos, produtos de formas de
vida, de cultura, de significação e de subjetividade diferentes? Que tipos de
relação estabelecemos com modos de ser que não são os nossos (mas com
os quais estamos, no entanto, sempre em relação pelas redobras de nossa
participação com a mecanosfera)?
Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com o
trans-mundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência de novos
agenciamentos de enunciação ? Favorecemos ou, ao contrário,
restringimos a produtividade ontológica? Mantemos as dobras em sua
essência de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em
oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as individuacões sempre
capazes de receber novas dobras ou as individualizações rígidas e
fechadas?
A ética se relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, os
outros mundos (o próximo é apenas um caso particular de outro mundo), e
o trans-mundo das dobras, dos agenciamentos de enunciação e dos
processos cosmopolitas. Três fíguras do anel imanência-transcendência
que não cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o ser em sua
infínita diversidade.
Tradução de Soraya Oliveira0 homem nunca conheceu algo que se assemelha à livre
existência vertical. Preso à
superfície do solo, ele não faz muitos movimentos "para baixo", a não ser quando
ele
retorna, após uma breve escapada "para o alto", à superfície do solo; nossos
espíritos
não deixam jamais a superficie plana mesmo quando nossos corpos se elevam; isto é
tão verdadeiro que o aeronauta subindo num balão esférico não tem nenhuma sensação
de movimento mas experimenta a impresssão de que a terra desce sob ele.
Em relação às combinações de movimentos verticais e horizontais, o homem é, de
uma maneira absoluta, sem experiência. Portanto, como todas as nossas sensações de
movimento se exercem praticamente em duas dimensões, a extraordinária novidade da
navegação aérea reside no fato de que ela nos traz a experiência, não da quarta
dimensão, mas disto que é praticamente uma dimensão suplementar, a terceira: e o
milagre é parecido.
Santos-DumontA paixão das máquinas *
Félix Guattari
O tema da máquina ocupa-me há muito tempo, talvez menos como objeto
conceitual que como objeto afetivo. Sempre fui, como muitos dentre vocês,
atraído, fascinado pela máquina. Quando estudante da Sorbonne, lembro-me de
ter apresentado uma análise sobre Le travail en miettes de Friedmann, e do olhar
espantado do professor enquanto eu lançava meus ataques contra Friedmann;
nessa época, eu era muito virulento contras as visões mecanicistas da máquina.
Achava, no que talvez seja uma queda pelo cientificismo, que podíamos esperar
uma espécie de salvação pela máquina. Na sequência, tentei alimentar este
objeto maquínico. Devo avisá-los que não se trata de algo que domino mas de
uma espécie de núcleo ao qual fui conduzido por ciclos. O último foi
desencadeado pelo livro de Pierre Lévy, As tecnologias da inteligência. Fiquei
surpreso por encontrar ali uma reativação dessa temática, transposta para o
campo das tecnologias informáticas. Em outras palavras, reivindico o direito a
essa forma de pensamento que procede por eixos afetivos, por afetos, ao invés de
um pensamento que pretende fornecer uma descrição científica, axiomática.
Repito que se trata de uma temática totalmente aberta e gostaria que ela assim
fosse tratada na discussão, para perceber os ecos que esse tipo de reflexão pode
despertar.
Encontramo-nos atualmente numa inevitável encruzilhada, a do anátema
lançado contra a máquina, a idéia de que as tecnologias nos colocam numa
situação de inumanidade, de ruptura face a qualquer projeto ético. De fato, a
história contemporânea reforça esta perspectiva maquínica catastrófica, com as
degradações ecológicas e outras mais. Poderíamos assim ficar tentados a dar
meia volta e recuar em relação à era maquínica, para compartilhar de não sei
qual territorialidade primitiva.
Pierre Lévy usa a seguinte fórmula, na minha opinião muito feliz: “tentar
derrubar a cortina de ferro ontológica entre o ser e as coisas”. Parece-me que um
dos meios de derrubar esta cortina de ferro, presente em toda a história da
filosofia até Heidegger, talvez seja esta interface maquínica, ou esta máquina
concebida como interface, que Pierre Lévy denomina « hipertexto ». De fato,
*
Transcrição de uma conferência proferida em Valência, em novembro de 1990, num
encontro intitulado
« Cinema e Literatura », organizado pelo Centro de pesquisas e de ação cultural de
Valência.para sair desta fascinação pela técnica, e da dimensão mortífera que às
vezes
assume, é preciso reapreender, reconceitualizar a máquina de outro modo, para
partir do ser da máquina como aquilo que se encontra na encruzilhada, tanto do
ser em sua inércia, sua dimensão de nada, como do sujeito, a individuação
subjetiva ou a subjetividade coletiva. Este tema está presente na história da
literatura e do cinema, nos mitos, como o da máquina que possui uma alma e um
poder diabólico. Não proponho exatamente um retorno a uma concepção
animista mas sim uma tentativa de considerar que, na máquina, na interface
maquínica, existe alguma coisa que seria, não da ordem da alma, humana ou
animal, anima, mas da ordem de uma proto-subjetividade. Isto quer dizer que há
na máquina uma função de consistência, de relação a si e de relação a uma
alteridade. É seguindo estes dois eixos que tentarei avançar.
Comecemos do mais simples, do que é já mais ou menos adquirido, a
idéia de que o objeto técnico não pode ser limitado à sua materialidade. Há na
technè elementos ontogenéticos, elementos de um plano, de construção, relações
sociais que sustentam as tecnologias, um capital de conhecimento, relações
econômicas e, pouco a pouco, toda uma série de interfaces no seio das quais
insere-se o objeto técnico. A partir desta concepção, pode-se estabelecer uma
ponte entre uma máquina tecnológica de tipo moderno e as ferramentas ou
mesmo as peças da máquina, e considerá-los igualmente como elementos que se
conectam uns aos outros. Desde Leibniz, dispomos do conceito de máquina
articulada (de maneira fractal, diríamos hoje) com outras máquinas, elas mesmas
compostas de elementos maquínicos até o infinito. Assim, aquém e além da
máquina, o ambiente da máquina faz parte de agenciamentos maquínicos. O
elemento liminar da entrada na área maquínica passa por um certo aplainamento,
a uniformização de um material, como o aço que é processado,
desterritorializado e uniformizado para se moldar às formas maquínicas. A
essência da máquina está ligada aos procedimentos que desterritorializam seus
elementos, seu funcionamento, suas relações de alteridade. Falaremos de uma
relação de ontogenia da máquina técnica que a faz abrir-se para o exterior.
Ao lado deste elemento ontogenético, há uma dimensão filogenética. As
máquinas tecnológicas são consideradas dentro de um phylum, onde há
máquinas que as precedem e outras que as sucedem. Elas seguem por gerações,
— como as gerações de automóveis — cada uma abrindo a virtualidade de
outras máquinas que virão. Elas incitam, por este ou aquele elemento, uma
junção com todas as filiações maquínicas do futuro.As duas categorias de ontogênese
e de filogênese aplicadas ao objeto
tecnológico nos permitem traçar uma ponte com outros sistemas maquínicos que
sequer são tecnológicos. Na história da filosofia geralmente toma-se o problema
da máquina como um elemento secundário de uma questão mais geral, a da
technè, das técnicas. É aqui que eu proporia uma inversão de ponto de vista, no
sentido de que o problema da técnica não passaria de um subconjunto de uma
problemática maquínica muito mais ampla. Esta « máquina » é aberta para o
exterior, para o seu ambiente maquínico e entretém todo tipo de relações com os
componentes sociais e as subjetividades individuais. Trata-se então de expandir
o conceito de máquina tecnológica ao de agenciamentos maquínicos, categoria
que engloba tudo o que se desenvolve como máquinas nos diferentes registros e
suportes ontológicos. Ao invés de haver oposição entre o ser e a máquina, o ser
e o sujeito, esta nova concepção da máquina implica em que o ser diferencia-se
qualitativamente e desemboca numa pluralidade ontológica, que é o próprio
prolongamento da criatividade dos vetores maquínicos. Ao invés de haver um
ser, como traço comum presente no conjunto dos entes maquínicos, sociais,
humanos, cósmicos, teremos, ao contrário, uma máquina que desenvolve
universos de referência, universos ontológicos heterogêneos, marcados por
reviravoltas históricas, um fator de irreversibilidade e de singularidade. Não
darei aqui uma descrição exaustiva, seria demasiado longa.
Além da ferramenta proto-máquina e das máquinas tecnológicas, há os
conceitos de máquinas sociais. Por exemplo, a cidade é uma mega-máquina. Ela
funciona como uma máquina. Teóricos da lingüística como Chomski
introduziram o conceito de « máquina abstrata », presente nas máquinas
lingüísticas ou sintagmáticas. Atualmente, muitos biólogos falam de máquina a
respeito da célula viva, do órgão, da individuação e mesmo do corpo social. Aí
também o conceito de máquina tende a impor-se. Máquinas matemáticas de
Turing... Também no domínio das idealidades — outro universo de referência —
assiste-se à ampliação do conceito de máquina. Máquina musical. Muitos
músicos contemporâneos desenvolvem esta noção. Máquina lógica, máquina
cósmica, uma vez que certos teóricos afirmam que o ecosistema da Terra é
equivalente a um ser vivo, ou a uma máquina, no sentido amplo que estou
usando. Para remeter a um passado de já vinte anos, podemos evocar as
máquinas desejantes, que retomam a teoria dos objetos parciais da psicanálise
— o objeto « a » como máquina desejante —, mas sob a forma de elementos não
redutíveis a objetos adjacentes ao corpo humano. Ao contrário, o que está em
questão são objetos de desejo, máquinas de desejo, objetos-sujeitos de desejo
evetores de subjetivação parcial, que se abrem bem além do corpo ou das relações
familiares, para os conjuntos sociais, cósmicos, e os universos de referência de
todo tipo.
No campo da biologia, este conceito de máquina foi recentemente
desenvolvido por teóricos como Umberto Maturana e Francisco Varela. Eles
definem a máquina como o conjunto de interrelações dos seus componentes,
independentemente dos próprios componentes. Eles oferecem assim uma
definição que é próxima de uma máquina abstrata e que descreve a máquina
como autopoética, autoprodutora dela mesma e reproduzindo permanentemente
os seus componentes qual um sistema sem input nem output. Varela desenvolve
bastante esta teoria. Na sua concepção, opõe a autopoiese, relacionada
essencialmente aos seres vivos biológicos, a uma alopoiese, em que a máquina
busca os seus componentes no exterior dela mesma. No seu conceito de
alopoiese ele arrola os sistemas sociais, as máquinas técnicas e, para terminar,
todos os sistemas maquínicos que não os viventes. Este conceito de autopoiese
parece-me muito interessante e proveitoso. No entanto, acho que seria preciso ir
além da perspectiva de Varela e estabelecer uma ligação entre as máquinas alo e
autopoéticas. As máquinas alopoéticas encontram-se sempre na adjacência das
máquinas autopoéticas e é preciso assim levar em consideração os
agenciamentos que as fazem viver juntas.
Uma outra idéia, tomada de empréstimo a P. Lévy, é que os sistemas
maquínicos são interfaces que se articulam umas às outras — no que ele chama
de hipertextos — e que aos poucos recobrem o conjunto da « mecanosfera ».
Finalmente, gostaria de reunir as perspectivas de Varela e de P. Lévy, a fim de
considerar a máquina ao mesmo tempo no seu caráter autopoiético e em todos os
seus desenvolvimentos alopoéticos, de interfaceamento, que lhe conferem uma
espécie de política exterior, de relações de alteridade. No seu primeiro livro, La
machine univers, Pierre Lévy fazia referência a Varela; no segundo,
paradoxalmente, não o menciona. Creio que isto ficará para uma terceira obra.
A máquina tem qualquer coisa a mais que a estrutura. Ela é « mais » que a
estrutura porque não se limita a um jogo de interações, que se desenvolve no
espaço e no tempo, entre os seus componentes, mas possui um núcleo de
consistência, de insistência, de afirmação ontológica, que é prévio ao
desenvolvimento nas coordenadas energético-espaço-temporais. Este núcleo
maquínico que se pode qualificar, sob certos aspectos, de proto-subjetivo, proto-
biológico, possui caraterísticas que Varela não levou em consideração. São
elementos de onto ou filogênese, mas também de finitude. A máquina éportadora de
uma finitude, de qualquer coisa da ordem do nascimento e da
morte, donde a fascinação que ela pode exercer enquanto máquina explodida,
destruída, em implosão, portadora da morte no exterior mas também por si
mesma.
Este foco de insistência autopoética e de desenvolvimento de uma
lateridade heterogenética — que desenvolve registros de alteridade — é difícil
de descrever ou definir. Não é um existente que se afirma no desdobramento das
coordenadas energético-espaço-temporais. Como abordar um tal objeto, senão
por intermédio do mito, da narração, isto é, de meios não científicos. Acho que
este núcleo maquínico está sempre, de uma certa maneira, ligado a sistemas de
meta-modelações que exigem um desenvolvimento da teoria. Dou apenas uma
indicação que não desenvolverei, pois será retomada ulteriormente numa obra
com Gilles Deleuze. Este núcleo de afirmação autopoética e interestrático, de
abertura para o exterior, implica numa concepção da complexidade considerada
a partir de coordenadas decididamente « extra-ordinárias ». A complexidade do
objeto maquínico se realiza e se encarna nos diferentes sistemas maquínicos que
evoquei acima. Ao mesmo tempo, ela é permanentemente perseguida pelo caos
que a dissocia, repartindo os seus elementos numa decomposição de natureza
diferente. Como se este ser autopoiético, esta proto-subjetividade maquínica
estivesse ao mesmo tempo no registro da complexidade e do caos. Creio que é
preciso considerar o caos não como puramente caótico, mas que pode, nas suas
composições de elementos e de entidades, desenvolver fórmulas de uma
complexidade extrema. Tomemos um sistema aleatório como o jogo de roleta.
Se você aposta no preto e no vermelho, a cada jogada você tem a impressão de
um sistema caótico que forma composições aleatórias, sem nenhuma apreensão
cognitiva. Mas se você joga por longos períodos, aparecem séries das quais
certos cálculos estatísticos permitem detectar composições complexas. Este
sistema aleatório depende portanto de uma certa descrição matemática. Dá-se o
mesmo com o caos. O caos é portador de dimensões da maior
hipercomplexidade. Existe um mito muito conhecido segundo o qual, sorteando
letras ao acaso, pode-se obter a fórmula da obra poética de Mallarmé. Será
preciso esperar muito tempo. Não obstante, a obra de Mallarmé habita
potencialmente este universo caótico de combinações múltiplas entre as letras.
Como fazer coexistirem essas duas dimensões: a complexidade e o caos?
Simplesmente considerando que as entidades presentes no caos são animadas por
uma velocidade infinita. Elas podem compor as compleições mais diferenciadas,
mas se decomplexificar com a mesma velocidade. A idéia de uma velocidadeinfinita
desemboca numa concepção do caos capaz de ser portadora da
complexidade. É nesses focos caóticos que virá inserir-se essa
protosubjetividade que pode, por sua vez, ser adjacente à dissociação caótica, à
sua própria morte e às composições infinitamente complexas. É o que chamo de
« grasping caótico »: apreensão instantânea da complexidade, constituida por
todo tipo de potencialidade. Chamarei de « hiper-complexidade » essa
complexidade que é mais assumida do que realmente dominada e que se
encontra numa relação de insistência, de repetição.
Na teoria estruturalista do significante, os diferentes componentes de um
sistema podem ser tratados em termos de economia do significante. Há sempre
um sistema de quantidade de informação ou um sistema binário presente nos
diferentes sistemas heterogêneos. No modelo que proponho, não existe tradução
entre os diferentes níveis de complexidade. Eles são portadores do seu substrato
ontológico.
Tomemos como exemplo a definição do fantasma na teoria da pulsão
freudiana. Ela comporta um elemento discursivo que é o elemento
representativo, fastasmático, narrativo, e um elemento não discursivo, o afeto. É
difícil entender como Freud se arranjou com essa contradição no seio da sua
definição de pulsão. Os estruturalistas praticamente esvaziaram a dimensão do
afeto para ater-se exclusivamente aos elementos discursivos. A pulsão é por eles
tratada em termos de economia do significante.
Na concepção de máquina que aqui evoco, a discursividade não se
dissocia deste foco não discursivo, que é justamente o da sua afirmação
autopoética. Esta explosão da categoria do significante é perfeitamente
perceptível na economia da imagem, do imaginário ou das cadeias biológicas,
domínios nos quais o significante permanece estranho. É assim que a economia
do significante, em Lacan, desenvolve-se sempre numa dimensão de linearidade,
em uma dimensão do espaço. Vocês conhecem esta fórmula: « um significante
representa o sujeito para um outro significante ». O sujeito é portanto apreendido
« numa relação ». Um dado locus significante, S1, existe numa certa relação com
um outro dado locus significante, S2, e o sujeito flutua numa espécie de fenda
entre esses dois significantes S1-S2. Esta linearidade estará presente no conjunto
das concepções de subjetividade. Esse caráter espacial se reencontra em toda a
obra de Lacan, no estádio do espelho mas também em todas as concepções do eu
que ele desenvolverá mais tarde. Considero que, ao limitar-se a esta coordenada,
perde-se precisamente o elemento de núcleo maquínico, de autopoiese e de auto-
afirmação subjetiva. Quer se situe ao nível do indivíduo completo ou
dasubjetividade parcial, ou ainda da subjetividade social, este elemento passa
precisamente pelo viés do afeto, do patos, de uma relação pática. O que nos
leva a dizer, de um ponto de vista fenomenológico, que existe algo de vivo? É
uma relação de afeto. Não é uma descrição, nem uma análise proposicional
resultante de uma série de hipóteses e deduções, que chegaria a um veridicto do
tipo:logo, trata-se de um ser vivo, logo, trata-se de uma máquina. Há uma
apreensão pática imediata, não discursiva, da relação de autocomposição
ontológica da máquina.
As codificações naturais se desdobram em categorias espaciais diferentes
das do registro significante. Elas conhecem n dimensões espaciais, como, por
exemplo, na cristalografia. Não há autonomização de um operador de
codificação. As codificações biológicas desdobram-se em sistemas complexos
de espaço. O sistema em dupla hélice do ADN o faz a partir de quatro radicais
químicos de base, e em três dimensões. Nas semiologias pré-significantes ou
simbólicas, as linhas de expressão são paralelas. Por exemplo no cinema há
linhas de expressão: a linha sonora, a linha visual, das cores... Não tem
cabimento falar de sintaxe ou de chave que tornaria homogênea a relação entre
essas diferentes linhas. Há somente um certo paralelismo. O mesmo ocorre em
todas as semiologias pré-significantes ou simbólicas. Por exemplo, nos rituais
das sociedades arcaicas encontram-se formas de expressão fornecidas seja pela
linguagem, ou por uma forma de mito ou ritual, seja por disposições no espaço
como a geomancia ou a dança, seja por inscrições sobre o corpo... Estas linhas
semiológicas estão mutuamente relacionadas já que possuem uma unidade
maquínica que é a da máquina social do ritual; mas, por outro lado, não são
completamente articuladas umas às outras; elas são como que colocadas em
paralelo.
Por outro lado, nas semiologias significantes prevalece uma linearidade
que controla o conjunto das linhas de expressão. Esta relação de linearidade
encontra a sua realização plena na informática. Uma mesma linha significante
poderá com a mesma eficácia dar conta tanto de um texto verbal quanto de uma
imagem ou de relações espaciais... Há « binarização », conversão sob forma
binária do conjunto dos sistemas de discursividade. Por outro lado, nessa
semiologia significante, os diferentes universos de referência ontológicos,
autopoiéticos, maquínicos, são totalmente negligenciados.
Sem dúvida existe também uma sobre-linearidade das cadeias semióticas
por elementos a-significantes, os quais não mais articulam cadeias produtivas de
significação com cadeias de signos a-significantes. Por exemplo, nos
domínioscientífico ou musical há uma pura composição de máquinas a-significantes.
Um
outro tipo de economia surge nas relações que regem os componentes de
expressão que poderíamos charmar de « sobre-linearidade ».
Através dos exemplos evocados, nota-se que os sistemas de codificação
ou de registros semiológicos possuem uma relação com o espaço que não é de
modo algum homogênea. Hoje em dia, poderíamos ter a ilusão de que a
informática saberia dar conta dos diferentes componentes de codificação e de
expressão e dar-lhes uma traduzibilidade generalizada. De modo algum. Esses
diferentes sistemas de codificação estão o tempo todo impregnados de focos de
afirmação e posicionalidades autopoiéticas do sistema de expressão. Este último
é portanto sempre segundo em relação a um foco não discursivo do núcleo
ontológico.
Seria preciso falar agora dessa heterogeneidade ontológica que
representam os universos de referência encarnados em diferentes sistemas de
discursividade e de certa forma tributários deles. Como se tem acesso a eles?
Estamos diante de um paradoxo. Somos lançados em sistemas discursivos,
relações de tempo, de espaço e de trocas energéticas, e, ao mesmo tempo, temos
que lidar com focos de afirmação existenciais por sua vez não discursivos. O
paradoxo é que é justamente através de um material discursivo que devemos
conseguir fornecer, não uma representação, mas uma presentificação existencial
desses focos.
No domínio da poesia, é o ritmo, os elementos de regularidade, tanto ao
nível da expressão quanto do conteúdo, que desenvolvem um certo universo
poético. É a chave da existência de uma encruzilhada ontológica entre a poesia e
a música. No domínio psicanalítico, são objetos, sistemas repetitivos, portanto
discursivos, que constituem os suportes existenciais de focos de afirmação
subjetiva. Por exemplo, na neurose obsessiva encontra-se uma repetição infinita
da lavagem de mãos que não remete em absoluto a uma significação do tipo « o
que significa lavar-se as mãos? E os micróbios? » Tudo é co-presente. O
indivíduo se recompõe ao efetuar esse ritual. Ele se reafirma num componente
de subjetividade parcial: sentir-se-estar-nessa-lavagem-de-mãos. A neurose
obsessiva talvez não seja o exemplo mais simples. Certos comportamentos têm a
mesma função. O fato de roer as unhas, de cantarolar mentalmente quando se
sente medo ou de repetir uma frase (como se houvesse uma testemunha), tudo
isto representa um meio de « apreensão » dessas relações não discursivas. É uma
função que eu chamo existencial.Ela aparece nos sistemas semióticos. Os lingüistas
já a descreveram
parcialmente. Penso nos teóricos como Austin, Ducrot, Benveniste, que
enfatizaram a questão dos « shifters », os elementos da linguagem que existem
não para portar uma significação, mas para gravar no enunciado a marca do
sujeito da enunciação. Lacan também fez uso dessa função performativa. De
certo modo, é através desse tipo de operador que ele construiu a sua teoria da
fala plena e da relação simbólica. Para uma boa abordagem desse assunto,
recomendo o livro de R. Jakobson (Essais de linguistique générale, Minuit,
1963), mestre absoluto de Lacan.
Estamos diante de um paradoxo insustentável que somos obrigados a
sustentar. De qualquer forma, todos nós estamos nesta situação. Todas as
sociedades têm que aceitar essa aposta, particularmente as sociedades animistas
ou científicas. Devemos propor universos de referência, estruturas qualitativas,
texturas ontológicas a partir de elementos de discursividade. Temos que
produzir, desenvolver universos incorporais que são universais, ainda que
datados ou marcados pelo nome próprio dos seus inventores. Eles poderiam
evocar as idéias platônicas, e, no entanto, estão inscritos na história. Trata-se
de
rupturas, mutações, marcadas de um fator de irreversibilidade, de singularidade.
P. Lévy opera grandes distinções entre as máquinas que derivam do oral
ou da escrita, e as máquinas informáticas. Dentro do universo da máquina de
processamento de texto — que muda completamente a relação à expressão —,
Lévy nota as interfaces que compõem, que singularizam esse novo universo de
referência: a escritura, o alfabeto, a imprensa, a informática, a tela catódica, a
impressora laser, o linotipo, os bancos de dados, o banco de imagens digitais, as
telecomunicações... Pronto, uma nova máquina. Hoje em dia, as crianças que
aprendem línguas através do processador de texto não se encontram mais no
mesmo tipo de universo de referência, nem de um ponto de vista cognitivo
(como se dá uma outra organização da memória, ou melhor, das memórias...),
nem na ordem das dimensões afetivas, das relações sociais ou éticas.
O que essa espécie de delírio maquínico suscita? Tomemos um objeto
institucional, por exemplo um estabelecimento que acolha doentes psicóticos.
Pode-se reificar completamente as relações intersubjetivas dizendo: o doente
psicótico vem buscar ajuda de indivíduos que possuem um saber, que
administrarão medicamentos, interpretações, indicações comportamentais para
curar a psicose. É toda uma concepção da subjetividade onde cada um está
fechado na sua mônada, o que, num segundo momento, obriga a construir meios
de « comunicação ». É o universo da « referência comunicacional ». É
precisoinverter essa perspectiva e nunca partir de entidades fechadas umas em
relação
às outras, pois isto implica na intervenção de modos de « comunicação », de
« transferência ». Pelo contrário, a transferência deve ser primeira, deve já estar
lá. Haverá máquina de subjetivação (ou não), segundo haja ultrapassamento (ou
não) dos diferentes limiares de insistência ontológica, subjetiva. Nesse
momento, nessa relação autopoiética, há um conhecimento imediato e pático da
situação, « alguma coisa se passa ». Quando uma máquina amorosa ou uma
máquina de medo se desencadeia, não é devido ao efeito de frases discursivas,
cognitivas ou dedutivas. Ocorre de repente. Tal máquina desenvolverá
progressivamente diferentes meios de expressão.
A clínica de La Borde é um estabelecimento concebido (em princípio)
como uma máquina de subjetivação que, por sua vez, é composta de n
subconjuntos de subjetivação. Desde a internação, essas relações de subjetivação
devem funcionar entre o doente e aquele que o acolhe. Outros tipos de relações
serão construídas a seguir entre os pacientes, os monitores, mas também com os
animais ou as máquinas. Cada um desses conjuntos deve ser suscetível de
produzir ou de ser vetor de tratamento, vetor de tomada de consistência
existencial para os psicóticos, os quais, precisamente, estão em fase de
descompensação ontológica. Será que nos contentaremos em fazer a constatação
passiva: « Tudo vai bem, não nos restringimos ao mero face a face com o
doente, há várias outras inter-relações »? Ou, ao contrário, trabalharemos as
linhas de virtualidade maquínica, as linhas de alteridade maquínica trazidas
pelos diferentes subconjuntos? Se a cozinha for considerada um foco
autopoiético de subjetivação, será importante preocupar-se com o seu espaço,
com suas dimensões arquiteturais, para favorecer as trocas e para que ela não se
torne uma pequena cidadela fechada em si mesma. Hoje em dia, nos hospitais,
caminhões trazem, do exterior, os pratos de comida já prontos. Não há máquina
de subjetivação. Uma máquina-cozinha implica num certo tipo de espaço, mas
também num certo tipo de formação e de troca entre as pessoas que nela
trabalham. Os cozinheiros devem poder circular pelos outros serviços para
conhecer as posições de alteridade dos diferentes postos de trabalho. É uma
máquina complexa, um sistema de interfaces. Diria o mesmo para todos os
outros serviços. A condução de um automóvel, por exemplo, é um momento
muito importante para os psicóticos. Um psicótico pode ser incapaz de manter
uma conversa, mas perfeitamente capaz de dirigir. Haverá assim uma
composição subjetiva em função da tomada de consistência desses diferentes
conjuntos. Enquanto alguns dentre eles perdem a sua consistência, outrospoderão
aparecer. Pode-se também colocar o problema de uma perda de
consistência geral, na medida em que se entra em relações de serialidade de
natureza etológica, provocando estados de selvageria inter-humana tal como
ocorrem nos hospitais tradicionais.
A posição autopoiética e « hipertextual » da máquina possui uma
potencialidade pragmática, permite assumir uma atitude criacionista, de
composição maquínica, face a essa cortina de ferro ontológica que separa o
sujeito de um lado e as coisas de outro.
Tradução de Jayme Aranha FilhoPois o mundo dos objetos, que é imenso, é finalmente
mais revelador do espírito que o
espírito ele mesmo. Para saber o que somos não é necessariamente para nós que é
preciso olhar. Os filósofos, no curso da história, permaneceram voltados muito
exclusivamente para a subjetividade, sem compreender que é, ao contrário, nas
coisas
que o espírito melhor se apresenta. É preciso então operar uma verdadeira revolução
percebendo que é do lado dos objetos que o espírito se encontra, bem mais do que do
lado do sujeito.
François DagognetSobre Bill Viola
D ANIELLE S IVADON
Bill Viola nos fala de harmonia, de sons e de música. O que pode parecer
estranho, vindo de quem há tantos anos encarna, nos Estados Unidos, o mais
singular movimento em matéria de pesquisa em vídeo, a mais vigorosa exigência
de imagens.
No entanto, sons e imagens aparecem muito ligados ao longo de sua
existência; já estão juntos nos anos 70, quando Viola estuda belas-artes na
Universidade de Siracusa. O primeiro atelier de vídeo é ali criado, quando ele se
cansa de um ensino muito tradicional e se dedica à música, tocando bateria em
bandas de rock. Ao mesmo tempo, ele aprende a usar os primeiros modelos de
câmeras de vídeo e o primeiro sintetizador: «Trabalhar com este instrumento é
como fazer uma escultura... Agora, eu sempre aconselho meus estudantes a
fazerem um curso de música eletrônica, porque a tecnologia de vídeo pegou
muita coisa emprestada da música eletrônica... O sinal eletrônico era um material
que dava para trabalhar... Foi só quando as energias eletrônicas se tornaram, para
mim, tão concretas quanto os sons para um compositor, que eu realmente
comecei a aprender, e o processo me pareceu tão essencial quanto a escultura. E
foi muito fácil passar para o vídeo logo depois. Eu nunca pensei em termos de
imagens, mas em termos de processo eletrônico, de sinal.» 2
Do sinal eletrônico à escultura. Bill Viola delimita um campo que sempre
lhe será peculiar: este espaço de criatividade fica na encruzilhada de sua história
pessoal, da história destas tecnologias gêmeas – som e imagem – e dos anos 70.
Ele permanecerá marcado pelo selo desta tripla mutação: subjetiva, técnica e
política. Como se explorar com maior força e alcance o seu próprio domínio de
expressão estivesse ligado a esta época que reinventou questões, máquinas e
utopias: speach-movement, feminismo, contracultura, anti-colonialismo.
A obra de Bill Viola opera por deslocamentos ínfimos, como se estivesse
auto-centrada nos ideais de suas origens: a gênese perpétua de uma língua
menor, onde o gênio da máquina e a intimidade do pensamento se construiriam
juntos.
«Desde o início, eu me procupei com a mesma coisa: manter contato com
aquela parte de mim mesmo que denomino a parte anterior à fala, aquilo que
2 «La
sculpture du temps», entrevista de R. Bellour com Bill Viola, Cahiers du Cinéma,
janeiro de 1986.precede o discurso. Porque a fala é um processo tardio no
aparecimento do
pensamento, e eu me interesso, na medida do possível, pelo aparecimento do
pensamento». 3
Para Viola, a audição é constitutiva deste espaço primeiro, assim como a
visão. Ele trata a imagem como o som: em termos de intensidade, textura e
ritmos.
Sem dúvida, é devido a estes traços de um universo anterior-à-
significação que as instalações de Bill Viola possuem aquele poder perturbador
de incluir o espectador no campo sensorial exibido, criando nele a ilusão de
sonhar o que vê, de produzir o que sente.
Por vários meses, no último outono, tivemos à nossa disposição 4 um
destes micro-lugares de autismo: Passagens.
Um corredor conduz a um espaço estreito diante de uma parede-imagem,
onde rostos de crianças, cores, balões e velas aparecem deformados, em close,
como em perpétua criação.
Só nos resta sentar num canto, cativos desta tela imensa (5 m X 3,5 m) e
desta longuíssima projeção (seis horas e trinta de uma fita de vinte e seis
minutos, rodada dezesseis vezes mais lenta). O excesso nas dimensões realça
uma insubmissão, um desafio que obriga a fugir ou aprisiona. Permanecer
quinze minutos ou duas horas, voltar ou não, pouco importa: sabemos que um
espaço mental foi aberto em nós mesmos, o qual funciona de modo autônomo,
semelhante aos estranhos encontros que às vezes um quadro nos impõe. Efeito-
pintura. Há um efeito-Passagem. A infância e os doces de aniversário nunca
mais serão vistos da mesma forma. Colocaremos uma boa dose de velhice na
inocência, mais violência nas convenções, e ficaremos surdos com um estrondo
insólito que ameaça as alegrias mais corriqueiras.
Em Passagens, talvez bem mais do que no resto de sua obra, Bill Viola
apresenta o universo como fluxo de intensidades descontínuas, e a desordem
como operador privilegiado de uma imagem, na qual ele quer que surja tanto
uma substância como uma forma mental.
Para cada uma de suas fitas, Viola aciona um dispositivo técnico
freqüentemente muito complexo e, às vezes, rudimentar: este dispositivo emana
diretamente do tema tratado, da experiência que ele busca provocar e comunicar.
3 B.
Viola, «Le vidéo et l'image temps», entrevista com E. de Moffard, Arte factum,
1985-1986.
exposição Passages de l'image, nas salas contemporâneas do Centro Geoges-Pompidou,
em setembro
de 1990-janeiro de 1991, exibiu 130 filmes e cem vídeos, assim como um conjunto de
fotos e de
instalações multimídias.
4 AAssim, ele sempre diz respeito às propriedades do humano, de que a tecnologia
permite formar uma imagem, pois ela própria é a sua imagem e emanação. É por
isso que suas fitas abordam temas ao mesmo tempo simples e universais: um
grito (The Space Between the Teeth), o nascimento (Silent Life), o calor e a luz
(Chott el-Djerid), o estado de vigília e o sono, a reversibilidade do tempo.
Estas fitas não relatam nem história, nem intriga. «Situação puramente
ótica e sonora que desperta uma função de vidência». 5
A escolha do lugar é determinante e, segundo Viola, só existe um único
lugar adequado para uma idéia nascer. Ele compõe suas imagens como um
pintor, repartindo as cores, explorando a qualidade vibratória da trama, os
contrastes e as variações da luz.
«Para transgredir os limites da percepção humana, ele elabora os mais
diversos dispositivos: adjunção ao sistema ótico de algumas próteses
normalmente reservadas à apreensão de imagens pela ciência, como uma
teleobjetiva de 800 mm para penetrar no deserto de Chott el-Djerid, ou uma
macro-objetiva para enquadrar a gota d'água de He Weeps for you; exploração de
dados naturais, tais como as propriedades óticas da água: reflexos, refrações,
transparências perturbadoras..., a água tornando-se pura extensão da câmera.» 6
Depois de haver criado mais de cinqüenta instalações e fitas de vídeo, Bill
Viola aguarda os avanços tecnológicos como parceiros potenciais: videolaser,
novas performances dos computadores, desaparecimento das câmeras... Sua
atitude política rompe com todos os fantasmas da sujeição do homem às
máquinas. Ele considera a televisão como uma arte do condicionamento, mas se
diverte em utilizá-la, transgredindo os seus códigos: Reverse Television.
Sua técnica provém do audiovisual: ele a explora, refina e complexifica
segundo sua própria ética da imagem, que é também a ética de um pensamento
pouco preocupado com o espetáculo, que escolhe a reformulação incessante das
aventuras da percepção.
5 G.
Deleuze, L'image-temps. Minuit, 1985.
Duguet, «Les vidéos de Bill Viola: une poétique de l'espace-temps», Parachute,
outono-inverno
de 1986-1987.
6 A.-M.O SOM DE UMA LINHA DE VARREDURA
B ILL V IOLA
«Nossas maiores alegrias
muitas vezes tomam a forma da
loucura»
Sócrates
Os Gregos antigos ouviam vozes. Nas epopéias de Homero, muitas vezes
as personagens deixam-se guiar em seus pensamentos e ações por uma voz
interna, à qual obedecem automaticamente. Como observou Julian Jaynes 7 , esse
tipo de narrativa nos apresenta a imagem de um povo que não exerce por
completo o que chamaríamos de livre arbítrio ou julgamento racional. Para a
maioria de nós, uma conversa parece desenrolar-se em nossa cabeça, mas com
um interlocutor externo. Jaynes denomina esta paisagem mental de «mente
bicameral», sustentando que muito antes da civilização grega, os povos antigos
não concebiam plenamente uma idéia de consciência. Noutras palavras, eles
tinham vários deuses. Hoje em dia, desconfiamos de quem exibe
comportamentos semelhantes, mas esquecemos que o verbo «ouvir» refere-se à
uma espécie de obediência (as raízes latinas dessa palavra são ob e audire, ou
seja, «ouvir diante de, na frente de»). A necessidade de conceber a mente como
uma entidade independente está tão profundamente ancorada em nós, que só
podemos admitir a existência de pessoas que «ouvem» vozes sob as três
categorias seguintes: os farsantes, os poetas, e os que sofrem de distúrbios
mentais. Os «telespectadores» poderiam constituir uma quarta categoria. Os
profetas e os deuses desertaram do nosso mundo, e a confusa conversa que se
seguiu à sua partida deve agora ser exorcisada pelos que chamamos de
«terapeutas».
«Um dia, na Namíbia, uma mulher chamada Be estava sozinha no mato,
quando percebeu um bando de girafas fugindo diante da ameaça de uma
tempestade. O barulho dos cascos tornou-se cada vez mais forte e se
misturou, na sua cabeça, com o barulho da chuva que começava a cair. De
repente, ela se pôs a cantar uma canção que nunca havia ouvido. Gauwa
7 Julian
Jaynes, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, Boston:
Houghton
Mifflin Co., 1976.(o grande deus) disse-lhe que era uma canção terapêutica. Be
voltou para
casa e ensinou a canção para Tike, seu marido. Eles cantaram e dançaram
juntos ao ritmo daquela canção, que produzia um transe: uma canção
terapêutica. Tike ensinou-a para outras pessoas, que também a
transmitiram para outros.»
(História tradicional dos Kung Bushman, de Botswana, registrada
por Marguerite Anne Biesele) 8
Ao falar do funcionamento mental, a maioria das pessoas, de um modo
mais ou menos consciente, pressupõe a existência de uma espécie de espaço.
Com freqüência, para descrever pensamentos, utilizamos termos e conceitos
próprios à manipulação de objetos sólidos, tais como «atrás da cabeça»,
«apreender uma idéia», «agarrar-se a uma crença», «bloqueio mental», etc. Este
espaço mental é análogo ao que o «espaço de dados» é para o computador, este
primeiro e efetivo duplo do nosso cérebro. É ali que se produzem os cálculos e
são criadas, manipuladas e destruídas as representações virtuais, em forma
digital, das imagens. À maneira de uma ontologia fundamental, este espaço
particular impõe sua presença antes ou depois de cada ação, como alguma coisa
que existiria a priori e de uma só vez, desde o nascimento até o apagar final das
luzes. Se existe um espaço do pensamento, seja real ou virtual, o som também
deve ter o seu lugar, na medida em que todos os sons procuram expressar-se
como vibração do espaço. Suas propriedades acústicas tornam-se, assim, o tema
deste artigo.
Para os europeus, os efeitos de reverberação próprios às catedrais góticas
estão ligados de modo indissolúvel a um profundo sentimento do sagrado e
tendem a evocar, ao mesmo tempo, o espaço interno privado – espaço da
contemplação – e o reino ainda mais vasto do inefável. No cinema, efeitos de
ressonância foram muitas vezes utilizados nas cenas de sonho ou nos flash-
backs, para sublinhar o caráter subjetivo e o desinteresse. As catedrais, como a
catedral de Chartres, na França, foram construídas a partir de conceitos
derivados da filosofia grega – em particular de Platão e Pitágoras –, a partir de
suas teorias sobre a correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo. Elas
se expressam na linguagem do número de ouro, na proporção e na harmonia;
manifestam-se na ciência dos sons e da música. Estes conceitos não eram
8 História
contada por Joseph Campbell, em The Way of the Animal Powers, Alfred Van der Marck
ed.,
San Francisco: Harper and Row, 1983, p. 163.considerados nem como fruto do
pensamento humano, nem como puras funções
do pensamento arquitetural; representam, ao contrário, os princípios divinos que
sustentam a estrutura do universo. Incorporá-los na estrutura de uma igreja era
uma maneira de refletir sua forma na Terra, de um modo harmonioso.
Chartres e as outras catedrais foram freqüentemente descritas como
«música petrificada». Neste contexto, a referência ao som e à acústica 9 é dupla.
Trata-se não somente das características sonoras do espaço interno, que lembram
as de uma caverna, mas também da própria forma e estrutura do prédio, que
refletem os princípios das proporções sagradas e da harmonia universal, espécie
de acústico dentro do acústico. Assim que se entra numa igreja gótica, percebe-
se imediatamente que é o som que domina o espaço. Não se trata simplesmente
de um efeito de eco, mas todos os sons – estejam eles próximos, afastados,
fortes ou fracos – parecem ter como fonte o mesmo ponto afastado, como se eles
se desprendessem da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o ponto de vista
se torna o espaço inteiro.
A arquitetura antiga está repleta de exemplos notáveis de espaços
acústicos – galerias com eco, onde um simples sussurrar se materializa algumas
centenas de metros mais adiante; perfeita nitidez dos anfiteatros gregos, onde a
voz de um ator, proveniente de um ponto focal determinado pelas paredes do
recinto, pode ser claramente entendida por todos os ouvintes. As técnicas
modernas da arquitetura acústica – Wallace Sabine foi pioneiro nessa área, no
início do século – foram desenvolvidas para responder aos problemas de falta de
nitidez devidos à reverberação do som dentro de um espaço. É duplamente
divertido se pensarmos que, por um lado, os anfiteatros gregos foram
construídos há dois mil anos, e, por outro, que o efeito de reverberação acústica
das catedrais góticas – resultante de sua estrutura arquitetônica, e não de uma
intenção precisa – era considerado um elemento essencial de sua forma e de sua
função global.
A ciência acústica estuda o som no espaço. Ainda que possa ser descrita
simplesmente como o estudo do comportamento das ondas sonoras, não pode ser
dissociada da arquitetura, pois os sons se manifestam, justamente, em sua forma
mais interessante e complexa, quando se chocam com corpos sólidos, sobretudo
aqueles que enchem os espaços internos contruídos pelo homem. Na sociedade
rural da Idade Média, os membros do clero ouviram, provavelmente pela
primeira vez, as terríveis reverberações sonoras que invadem o espaço das
9 Ver
as notas complementares, no final do artigo.catedrais. Uma lista, mesmo parcial,
dos fenômenos acústicos mais comuns,
pode parecer uma enumeração das visões místicas da natureza.
Refração: quando ocorre uma mudança de meio (duas camadas de ar em
diferentes temperaturas, por exemplo), a velocidade de propagação da
onda sonora varia, provocando uma curva na trajetória do som. Por
ocasião dos funerais da rainha Vitória em Londres, em 1901, a artilharia
deu salvas de tiros, os quais, ainda que inaudíveis em toda a região,
materializaram-se subitamente, num estrondo poderoso, a cerca de 145
Km do local.
Difração: quando atingimos a extremidade de um obstáculo, ele produz
novas séries de ondas; mesmo sem enxergar, podemos ouvir pessoas
falarem do outro lado de um muro alto. O som parece contorná-lo.
Reflexão: ondas sonoras ecoam numa superfície, formando um ângulo
igual àquele em que chegaram. Se as superfícies são múltiplas, elas se
transformam em eco e podemos ouvir nossa própria voz, às vezes repetida
várias vezes, como se já existisse no tempo. Então, é possível cantar
consigo mesmo. Múltiplas reflexões regulares produzem as condições
necessárias à reverberação, onde um mesmo som pode se repetir sem
cessar num efeito de superposição, de modo que não se pode distinguir o
som precedente do som presente.
Interferência: dois sons entram em colisão. O que provoca,
alternadamente, o reforço ou o enfraquecimento da força ondulatória de
cada um. Por exemplo, num salão, o som de um instrumento grave torna-
se gradativamente quase inaudível quando nos aproximamos de um
determinado lugar.
Ressonância: 10 as ondas sonoras se reforçam ao juntar-se a um som
idêntico, ou quando sua forma física se harmoniza com as propriedades
da matéria ou as dimensões do espaço. A voz de um cantor torna-se mais
poderosa quando difundida num pequeno espaço; um objeto produz um
10 Ver
as notas complementares, no final do artigo.som específico quando batemos nele. O
material e a forma de um objeto
representam o seu potencial sonoro imobilizado.
Vibração simpática: 11 ligada à ressonância; é provavelmente o fenômeno
mais evocador: quando se toca uma campainha, uma outra campainha
idêntica começa a vibrar através da casa, produzindo o mesmo som.
Cada um destes fenômenos continua nos maravillhando mesmo depois de
apreendermos o seu funcionamento científico de um modo racional. Há algo de
imortal num eco. Poderíamos, por exemplo, aventar um último estágio de
reverberação, um espaço no interior do qual tudo o que já existiu um dia
continuaria existindo – o final dos tempos, onde tudo está vivo, eternamente
presente. Não é mera coincidência quando se tem a impressão de que a descrição
de uma vibração simpática lembra uma emissão de rádio: é o mesmo princípio
atuando. Os procedimentos que caracterizam os sistemas midiáticos
contemporâneos estão presentes em estado latente nas leis naturais; existiram
desde sempre, sob diversas formas.
No fenômeno da ressonância, podemos constatar que todos os objetos
possuem um componente sonoro, uma espécie de segunda existência oculta, que
se traduz num certo conjunto de freqüências. Em 1896, Nikola Tesla, um dos
grandes gênios da era da eletricidade, suspendeu por uma corrente um pequeno
motor oscilante na pilastra central de seu laboratório em Manhatan. Produziu,
assim, uma poderosa ressonância física que se propagou através do prédio até as
suas fundações e provocou um tremor de terra: prédios inteiros sacudiram,
vidros quebraram e os condutos de vapor explodiram em vários pátios de
edifícios. Ele teve que detê-lo a golpes de martelo. Tesla concluiu que poderia
calcular a freqüência da ressonância da terra e transformá-la numa forte
vibração, utilizando um condutor corretamente ajustado, calibrado e colocado no
lugar certo. 12
«Percorrendo a terra, Palongawhoga experimentou o seu chamado,
conforme lhe havia sido pedido. Todos os pontos de vibração ao longo do
eixo terrestre, de um pólo a outro, começaram a ressonar: a terra inteira
tremeu, o universo estremeceu em uníssono. Ele fez do mundo um
11 Ver
as notas complementares, no final do artigo.
por John O'Neill em Prodigal genius: the life of Nikola Tesla, New York: Ives
Washburn Inc.,
1944, pp. 159-162.
12 Descritoinstrumento de som, e do som, um meio para transmitir mensagens e para
celebrar o criador do universo.» 13
(Mito dos índios Hopi sobre a criação do primeiro Universo).
«No começo era o Verbo»... E nos perguntamos, agora: «onde estava a
imagem?» Assim como o mito bíblico da Criação, a religião hindu (o ioga e o
tântra, por exemplo), e as religiões asiáticas mais recentes (como o budismo)
decrevem a origem do mundo no som. A força criadora original permanece
acessível ao homem sob a forma do discurso sagrado e do canto religioso. A
invenção e o desenvolvimento das tecnologias de comunicação suscitam a
seguinte idéia: o som estaria na origem das imagens. Na era da imagem
eletrônica, tendemos a esquecer que os sistemas mais antigos de comunicação
tinham por objetivo transmitir a fala. Edison, por exemplo, tentou, inicialmente,
promover o fonógrafo no mundo dos negócios, para substituir os estenógrafos
dos escritórios por um meio mecânico. Se o discurso está na base da criação de
um corpus midiático (telégrafo, telefone, rádio, televisão, etc.), a acústica (ou,
em geral, a teoria das ondas) constitui o princípio estrutural fundamental de suas
numerosas manifestações.
A imagem de vídeo 14 é um motivo de ondas estacionárias de energia
elétrica, um sistema vibratório composto de freqüências específicas, como as que
esperamos encontrar em qualquer objeto sonoro. Como se observou com
freqüência, a imagem que aparece na superfície do tubo catódico é o traço de um
único ponto de luz em movimento, produzido por um jato de elétrons que vêm
bater na tela por trás, fazendo irradiar sua superfície recoberta de fósforo. Em
vídeo, não existe imagem fixa. A fonte de toda imagem de vídeo, seja ela fixa ou
móvel, é um feixe eletrônico ativo, varrendo permanentemente a tela – é a
chegada regular de impulsos elétricos provenientes da câmera ou do videotape.
As divisões em linhas e frames são unicamente divisões no tempo: abrir e fechar
de janelas temporais que delimitam períodos de atividade no interior do fluxo de
elétrons. A imagem de vídeo é um campo energético vivo e dinâmico, uma
vibração que adquire uma aparência sólida somente porque ultrapassa nossa
capacidade de discernir intervalos de tempo tão finos.
Todo vídeo tem suas raízes no que é ao vivo, direto (live). E a essência
desta vitalidade reside no caráter acústico vibratório do vídeo, enquanto imagem
13 Frank
14 Ver
Waters, Book of the Hopi. New York: Ballantine Books, 1963, p.5.
as notas complementares, no final do artigo.virtual. De um ponto de vista
tecnológico, o vídeo desenvolveu-se a partir do
som (o eletromagnetismo); por outro lado, a referência ao cinema parece
enganadora, pois o filme e seu antepassado, a fotografia, fazem parte de um
outro ramo da árvore genealógica (a mecânica e a química). A câmera de vídeo,
enquanto transdutor eletrônico de energia física em impulsos elétricos, está mais
diretamente ligada ao microfone do que à câmera de cinema.
Em sua origem, o estúdio de televisão era uma mistura de rádio, teatro e
cinema. As imagens só existiam no presente. Sua estrutura estava calcada na
estrutura dos estúdios de rádio, com cabine de controle isolada por vidros e, no
palco, câmeras colocadas para captar a ação. A estrutura dos diferentes
elementos no interior do estúdio pode ser considerada como a representação
concreta da estética cinematográfica, uma espécie de remédio engenhoso à
obrigação de «só poder existir diretamente». Várias câmeras, geralmente três
(que correspondem aos três planos clássicos do cinema: longo, médio, e
rapproché), retomam a ação, cada uma de um ponto de vista diferente. No
cinema, a atividade numa determinada cena deve criar uma ilusão de
simultaneidade e de fluxo temporal sequencial; o vídeo representa, ao contrário,
um ponto de vista que, literalmente, desloca-se no espaço em tempo presente, de
um modo paralelo à ação. O vídeo se esforçou em criar a ilusão de um tempo
gravado – o que foi feito só quando necessário –, utilizando as diferentes partes
do estúdio com efeitos de luz. As primeiras novelas de televisão e uma grande
parte das transmissões de variedades eram, de fato, o resultado da transposição
direta de uma forma de arte, o teatro, que se expressa em tempo presente.
Geralmente, estas emissões eram produzidas diante de um público que estava lá
como telespectador privilegiado, mais tarde substituído por risadas gravadas e
máquinas de aplausos.
Um elemento essencial do cinema, a montagem (que consiste numa
articulação no tempo), foi traduzida, nos primórdios da televisão, por um de seus
aspectos fundamentais, a emissão direta (que consiste numa articulação no
espaço), graças a um instrumento chave: a console. Foi graças a ela que
diferentes sequências foram organizadas para formar o programa destinado aos
telespectadores. Os elementos de base da linguagem cinematográfica estavam
contidos em sua própria estrutura. Um simples botão representava a montagem
soberana de Eisenstein, o corte, e, com um botão para cada câmera, os cortes
podiam ser realizados de qualquer ponto de vista. O fondu au noir de Griffith era
nada mais do que uma redução progressiva da voltagem do sinal, com um
potenciômetro variável. Os volets e as telas divididas foram transformadas
pelostécnicos em circuitos destinados a interferir eletronicamente com a voltagem
normal da corrente elétrica do sinal e a compensá-lo. Os modelos mais
simétricos de «postes de mixage» eram as notas harmônicas das freqüências
fundamentais do sinal de base do vídeo. Assim, na ausência de qualquer
possibilidade de gravação, e através de um instrumento eletrônico de emissão
direta, podia-se obter uma simulação de montagem cinematográfica do tempo.
Esta imitação dos modelos cinematográficos durou até o final dos anos
60, quando os artistas começaram a penetrar na superfície para revelar as
características fundamentais da «médium», liberando o potencial visual único da
imagem eletrônica, que hoje se costuma cosiderar banal, como uma das
características normais da televisão. A console foi logo depois transformada, e se
tornou o primeiro sintetizador de vídeo. Os príncipios em que se baseou foram
acústicos e musicais, uma etapa posterior na evolução dos primeiros sistemas de
música eletrônica, como o Moog. O videotape foi o último elo da cadeia a ser
desenvolvido, uma boa dezena de anos após o surgimento da televisão, e só foi
integrado de fato ao sistema de tratamento da imagem de vídeo no início dos
anos 70, com a introdução do time-based corrector. Graças à inclusão natural de
material gravado no fluxo das imagens, e ao progresso da montagem eletrônica,
sentiu-se cada vez mais a necessidade de identificar acontecimentos anteriores
como sendo ao vivo. O vídeo começou a ficar parecido não só com o cinema,
mas com todo o resto: a moda, as conversas, a política, as artes visuais e a
música.
«Um único neurônio funciona com a força de quase um bilionésimo de watt. O
cérebro inteiro funciona com quase dez watts.» 15
Em termos musicais, o processo físico da radiodifusão pode ser descrito
como uma espécie de bordão. A imagem de vídeo se repete sem cessar nas
mesmas freqüências. Esta nova estrutura comum do bordão representa uma
mudança significativa em nossos modelos culturais de pensamento. Isto aparece
de modo evidente ao compararmos um outro sistema baseado no bordão – a
música indiana tradicional – com a música clássica européia.
A música ocidental foi construída superpondo nota sobre nota, forma
sobre forma, do mesmo modo como se constrói um edifício, até o último pedaço.
Ela se baseia num princípio aditivo: o elemento de base é o silêncio, de onde
15 Sir
John Eccles, «The Physiology of the imagination», Scientific American, 1958.provém
todos os sons. A música indiana, ao contrário, tem o som como ponto de
partida. Ela é subtraente. Todas as notas e todas as formas que podem ser
utilizadas em música estão presentes antes mesmo que os principais músicos
comecem a tocar, afirmados pela presença e pela função do tambura. O tambura
é um instrumento de bordão, geralmente com quatro ou cinco cordas; graças à
estrutura peculiar de seu cavalete, ele amplifica as harmonias ou as séries
harmônicas de cada nota em cada uma das cordas. Ele é ouvido com mais nítidez
no início e no fim, mas está presente ao longo de todo o concerto. A série das
notas descreve a gama de música a ser tocada. Em consequência, assim que os
músicos principais começam a tocar, pensamos que eles emitem notas de um
campo musical já existente, ou seja, o bordão.
Esta estrutura musical reflete a teoria filosófica hindú que faz do som a
origem do universo, encarnada pela vibração essencial chamada Ohm. Ela estaria
sempre presente, sem início nem fim, em todos os lugares, e geraria todas as
formas do mundo fenomenal. Em música, acentua-se sobretudo o acorde, a
harmonia, enquanto que, em filosofia, fala-se em «harmonizar o indivíduo»
como um meio de tocar e enriquecer esta energia fundamental. A idéia de um
campo sonoro sempre presente desloca a ênfase dos objetos de percepção para o
campo no qual a percepção ocorre: um ponto de vista não específico.
Enquanto bordão, o aspecto mais significativo da televisão consiste em
que suas imagens eletrônicas existem em toda a parte, ao mesmo tempo; o
receptor é livre para deixar o sinal sair da linha em qualquer momento do seu
percurso e em qualquer lugar do campo de emissão. Sabe-se, por exemplo, que
as crianças podem captar sinais de rádio com seus aparelhos dentários, uma
espécie de versão contemporânea do «dom das línguas». O espaço de emissão
lembra o espaço acústico das catedrais góticas, onde todos os sons, próximos ou
afastados, fortes ou fracos, parecem ter como fonte um mesmo ponto afastado.
Eles parecem desprender-se da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o ponto
de vista torna-se o espaço inteiro.
No domínio da tecnologia, a passagem freqüente das ondas seqüenciais
do analógico aos códigos combinatórios digitais acelera a difusão do ponto de
vista. Assim como para a transformação da matéria, trata-se da passagem da
tangibilidade de um estado sólido ou líquido a um estado gasoso. Há menos
coerência; barreiras sólidas tornam-se porosas, e a perspectiva é aquela do
espaço inteiro: o ponto de vista do ar.
Algumas semanas depois do lançamento de seu satélite, o Brasil
estabeleceu comunicações com os quatro cantos do país e fez um mapa, emquilômetro
quadrado, de uma das regiões mais vastas e mais inexploradas do
planeta: a bacia Amazônica. Teoricamente, agora é possível telefonar,
fornecendo sua própria posição, de qualquer lugar perdido na selva, ou mesmo
assistir ao seriado Dinastia, bastando ter uma televisão e um gerador portátil.
Nos Estados Unidos, já existe um sistema que permite a um carro comunicar sua
posição e sua direção a um satélite capaz de retransmiti-la, e que faz aparecer um
mapa eletrônico numa tela colocada no painel de bordo. Neste mapa, cada rua da
região pode ser selecionada, chegando à precisão de alguns grupos de prédios.
Cada rua é reproduzida com seu nome. Atualmente, é impossível se perder.
Parece muito chato. E, também, mais um motivo de paranóia.
No final do século XX, a idéia do Desconhecido, do «outro lado da
montanha», que foi fundamental para o desenvolvimento do nosso pensamento,
desapareceu em termos de espaço geográfico. No início dos anos 80, toda a
superfície do planeta foi levantada via satélite com a máxima precisão – numa
resolução de até trinta pés. O fato de conhecer tudo criou novos modos de
consciência bastante estranhos, comparáveis aos sistemas militares de navegação
por computador, onde não há nenhum vínculo sensível direto com o mundo
exterior. Um foguete pode viajar em grande velocidade ao redor da Terra,
seguindo apenas as informações contidas na memória do computador de bordo –
dados que também foram coletados via satélide. A memória substitui a
experiência sensorial: um pesadelo proustiano.
O universo mental do pensamento e das imagens é um espaço sem
conteúdo. A maioria das técnicas xamânicas baseia-se na idéia de exercer um
controle poderoso e misterioso sobre o seu próprio ponto de vista – uma maneira
de dizer que ponto de vista não é necessariamente sinônimo de posição física.
Mircea Eliade, em seus estudos sobre as origens do pensamento religioso, sugere
que a passagem à posição vertical reorganizou a consciência em torno de um
eixo vertical, criando assim as quatro direções fundamentais: frente/trás,
direita/esquerda, e, talvez, alto/baixo. A isso pode-se acrescentar o centro
privilegiado, o eu, o ponto focal ptolomaico que daí decorre naturalmente. 16 A
peça formada por quatro paredes e seis faces é a destilação arquetípica desta
estrutura mental que se articula posteriormente na perspectiva de Brunelleschi
(produto da civilização urbana). A mente não apenas está dentro de um espaço
tridimensional: ela cria este espaço.
16 M.
Eliade, A History of Religious Ideas, vol. 1, Chicago: University of Chicago Press,
1978, p. 3.As paredes sólidas, com sua conotação claustral, começam a se dissolver
nos espaços transparentes da arquitetura informativa. Os mesmos termos
matemáticos que servem para descrever um espaço acústicamente plano, sem
reverberação, uma peça «neutra» completamente desprovida de eco, podem
igualmente servir para descrever um grande plano, uma planície. O termo
«plano» é utilizado nos dois casos. Para os índios da América que habitavam as
grandes planícies, ou mesmo para os Aborígenes do interior da Austrália, a
acústica não existe enquanto tal. O seu espaço acústico é interno.
«Quando um homem está na planície e eu na colina, eu o vejo falando
comigo, tranqüilamente. Ele me vê e se vira para mim. Eu digo: «Estás
me ouvindo?» Eu balanço a cabeça, olhando-o com severidade. Depois,
fixo o meu olhar nele e digo: «Vem, depressa!» Enquanto olho para ele
fixamente, vejo que ele se volta, porque sentiu o meu olhar. Ele ainda
vira para o outro lado e olha ao redor, enquanto eu continuo a mirá-lo.
Eu lhe digo, então: «Vem aqui, agora, aqui onde estou sentado». Ele vem
até mim, até onde estou, sentado atrás de uma moita. Eu o atraio com
meu poder (miwi). Nenhum gesto, nenhum grito. No final, ele sobe a
colina e vem direto para mim. Ele me diz: «Falaste comigo e eu ouvi.
Como podes falar assim?» Eu explico e ele diz: «Eu senti tuas palavras
enquanto falavas, e, depois, senti que estavas aí». Respondi: «É verdade,
foi assim que te falei e tu sentiste as palavras e também este poder».» 17
Lenda Aborígene, coletada por Ronald M. Berndt,
Lower Murray River, Austrália.
A telepatia e a «visão à distância» dos Aborígenes encarnam a imensidão
e o silêncio do deserto australiano, à imagem do telégrafo e dos outros meios de
comunicação sem fio, inventados para responder ao isolameno dos indivíduos
que moravam nos grandes espaços do Novo Mundo. A solidão do deserto é uma
das primeiras formas de tecnologia visionária. Ela pode ser encontrada, com
freqüência, na história das religiões. Os homens serviram-se dela para interrogar
o passado e o futuro, para se tornarem «profetas», para receber imagens ou,
como os índios da América, para incentivar sua «busca de visões». Quando o
barulho e a confusão da vida diária foram reduzidos à sua mais simples
17 Citado
por A.P. Elkin, in Aboriginal Men of High Degree, St. Lucia, Austrália: University
of
Quennsland Press, 1977, p. 45.expressão, as válvulas de segurança se abriram,
liberando as imagens do interior.
A fronteira entre o conforto do espaço interno e a aspereza da paisagem externa
ficou incerta: suas respectivas formas se misturaram, convergindo entre si.
Provas de sinestesia, o cruzamento e a intercambialidade dos sentidos
foram constatados em certas pessoas desde os tempos mais antigos. Esta idéia
inspirou os artistas, que sonharam com a reunificação dos sentidos. Na história
da arte, há muitos exemplos recentes, do piano cromático de Scriabine, que
criaria cores a partir de um teclado, aos repulsivos espetáculos de som e luz
feitos para turistas. Muitos artistas plásticos já afirmaram ter ouvido música ou
mesmo sons enquanto trabalhavam; assim como muitos compositores
declararam ter concebido sua música sob a forma de imagens.
«Tantas imagens cruzavam a minha mente; formas há muito perdidas, e
perseguidas com paixão, inscreviam-se de um modo ainda mais claro nas
realidades vivas. Um mundo de figuras surgia em minha mente, figuras
que se revelavam de um modo tão estranho, plástico e primitivo, que,
quando eu as distinguia claramente diante de meus olhos e ouvia suas
vozes em meu coração, não conseguia explicar a sua familiaridade quase
tangível e a segurança do seu comportamento.» 18
A sinestesia representa a tendência natural da mídia contemporânea.
Praticamente o mesmo material é utilizado para produzir sons a partir de um
aparelho estéreo, para transmitir a voz pelo telefone, e para materializar a
imagem numa tela de televisão. Com o desenvolvimento do uso de códigos
digitais para efetuar operações bancárias, encher o tanque, utilizar o microondas,
etc., as raízes comuns da linguagem vão se estender cada vez mais. Os esforços
realizados no domínio das tecnologias artificiais tornaram necessário distinguir a
sinestesia como teoria e prática artística, da sinestesia como verdadeira
capacidade subjetiva ou como condição involuntária para certos indivíduos.
Tendemos a relacionar o som e a imagem de um modo natural. A beleza destas
experiências está na sua linguagem fluida de imaginação pessoal, e depende do
humor do momento. Enquanto levarmos em conta o seu caráter subjetivo, e
enquanto elas não assumirem nenhum caráter convencional, estaremos salvos do
18 R.
Wagner, My Life, Dodd and Mead, 1911. Citado por C.E. Seashore, in Psychology of
Music, New
York: Dover Publications Inc., reedição do original de 1938, pp. 166-167.tédio do
dogma e das teorizações pessoais dos práticos, seja os «vídeo-músicos»,
seja os «músico-videastas».
A livre-troca das modalidades sensoriais, no entanto, é apenas a primeira
etapa rumo à transposição da barreira suprema que separa o território do corpo
físico do território da mente luminosa. Este limiar físico foi algumas vezes
ultrapassado, em casos extremos. Temos o exemplo de E. Lucas Bridges, filho
de um missionário cristão do final do século XIX, que vivia com uma população
indígena da Terra do Fogo, os Ona:
«Houshken (...) começou a cantar e pareceu entrar em transe, como se
estivesse possuído por um espírito. Ele se levantou, deu um passo em
minha direção e deixou cair a veste cerimonial, que era sua única roupa.
Levou as mãos à boca num gesto teatral, depois afastou-as, com os
punhos cerrados, os polegares juntos. E sustentou-as, por um momento,
na altura dos meus olhos. Depois, abriu as mãos, quando já estavam a
menos de um palmo do meu rosto. No seu interior, vislumbrei um
pequeno objeto quase opaco; seu diâmetro não ultrapassava meia
polegada e parecia terminar em ponta. Poderia ser um pedaço de massa
semitransparente ou um elástico, mas, o que quer que fosse, parecia estar
vivo e girar em grande velocidade, enquanto Houshken parecia tremer
violentamente, com todos os músculos retesados. A lua estava
suficientemente clara para que eu pudesse distinguir aquele estranho
objeto. Houshken abriu um pouco mais as mãos e o objeto parecia ficar
cada vez mais transparente, até que me dei conta, à medida que suas mãos
se aproximavam do meu rosto, que não estava mais lá. Ele não se
quebrou, não explodiu como uma bolha: simplesmente desapareceu,
depois que o percebi por menos de cinco segundos. Houshken não fez
nenhum gesto brusco; abriu lentamente as mãos e as exibiu para mim,
para serem inspecionadas. Pareciam limpas e secas. Ele estava
completamente nu e não havia ninguém ao seu lado. Olhei para a neve e,
apesar do meu estoicismo, Houshken não pode deixar de rir docemente,
pois não havia nada a ser visto em suas mãos.» 19
19 L.
Bridges, The Uttermost Ends of the Earth, New York: E.P. Dutton, 1948, citado por
J. Campbell,
The way of the animal powers, op. cit. p. 163.Quando as primeiras tecnologias do
som e da imagem viabilizaram a
produção de uma forma artificial de substituição dos cinco sentidos, a percepção
humana tornou-se objeto de uma compreensão imprevisível e assustadora. Do
mesmo modo, à medida em que os computadores substituírem a inteligência
humana, os novos laços criados entre o processamento de dados digitais e a
«inteligência» vão, com toda a certeza, favorecer possibilidades de tradução
ainda mais importantes, para além dos dados dos sentidos básicos. Ainda que
sejamos tentados a considerar as possibilidades de uma reunificação sinestésica
do domínio da percepção e do domínio do conhecimento no interior do domínio
da ciência (inspirada pela liberdade e fluidez da interação de nossos modos de
ver, graças à eletrônica), parece que, atualmente, começa a se manifestar uma
espécie de amnésia ou anestesia que se livra de um vasto panorama, desordenado
e confuso, de imagens fragmentárias: o sonho do semiólogo.
Esta situação da mídia contemporânea é encarnada de modo
extraordinário por um personagem do início do século, «mnemonista» notável,
capaz de ter acesso, de um modo fluido e incontrolável, a todas as modalidades
sensoriais. Este homem era constantemente assaltado por fluxos de imagens e de
associações que ocupavam sua mente durante horas, dias, e, por vezes, até
mesmo anos; ele estimava que a distinção entre passado (memória), presente
(experiência sensorial) e futuro (imaginação) era confusa e não existente.
Devemos o testemunho ao grande pesquisador russo A.R. Luria, que passou
trinta anos de sua vida estudando este estranho personagem profético, por ele
chamado simplesmente de S.
Luria descreveu S. como alguém que teria sido capaz de recitar dezenas
de páginas de textos repletas de todo o tipo de coisas, desde uma narrativa até
uma língua estranha, desconhecida dele, até termos científicos complicados ou
mesmo palavras desprovidas de sentido. Sua memória possuía um caráter
espacial: ele podia lembrar da posição de diferentes elementos numa página ou
num quadro-negro, apresentadas em qualquer ordem e mesmo anos depois.
Quando era criança, as imagens de sua escola adquiriam um tal caráter de
realidade que, muitas vezes, ele acabava saindo da cama para ir até lá. Uma das
particularidades de seu mundo interior que mais impressionou Luria foi a sua
aptidão natural para a sinestesia. Como Luria bem compreendeu, a sinestesia
estava na base de sua memória extraordinária. S. descrevia a sucessão de seus
pensamentos da seguinte forma:«Ouço a campainha tocar. Um pequeno objeto de forma
arredondada
rolou diante dos meus olhos... senti sob meus dedos alguma coisa que
parecia uma corda... Depois, senti o gosto de água salgada na boca... e
alguma coisa branca.
Estou agora num restaurante com música. Sabem por que tocam música
nos restaurantes? Porque a música modifica o gosto das coisas. Se você
escolhe a música certa, tudo tem gosto bom. As pessoas que trabalham
nos restaurantes sabem disso, com certeza.» 20
Pouco a pouco, a vida diária torna-se difícil para S.:
«Sempre tenho sensações desse tipo. Quando estou num bonde, sinto o
seu barulho metálico repercutindo em meus dentes. Uma vez, decidi
comprar um sorvete, pensando que, assim, ficaria absorvido pelo sorvete
e não sentiria aquele barulho metálico em meus dentes. Procurei uma
vendedora de sorvetes e perguntei-lhe quais os sabores. «Sorvetes de
frutas», ela disse, mas falou de tal modo que uma verdadeira montanha
de carvão e cinzas jorrou de sua boca e eu não pude mais me decidir a
comprar o sorvete... Outra coisa... se eu leio enquanto como, não consigo
compreender o que leio, porque o gosto da comida engole o sentido das
palavras.» 21
À medida em que S. envelhecia, sua incapacidade de esquecer tornava-se
cada vez mais incômoda, de tal forma que ele foi obrigado a deixar o emprego e
ganhar a vida exibindo-se como um fenômeno. Luria declarou que foi muito
difícil fazer um relato exaustivo a respeito de S., pois, mesmo durante as sessões,
ele era constantemente assaltado por fluxos de imagens que lhe faziam perder o
controle e o levavam a «agir automaticamente»: S. tornou-se verborrágico, sua
mente transbordava de detalhes e histórias fúteis, e ele se perdia em digressões
cada vez mais longas. Esta memória sobre-humana e indelével levou-o a um
sentimento poderoso e perturbador da precariedade das coisas.
Se S. fosse um Grego antigo, teria sido considerado como um dos
produtos mais extraordinários de sua cultura. Mas sua vida terminou como a de
um herói trágico contemporâneo, imortalizado por revistas científicas: suas
20 A.R.
21 Ibid.,
Luria, The Mind of a Mnemonist, New York: Basik Books, 1968, pp. 81-82.
p. 159.experiências nos lembram a vingança de um péssimo diretor de vídeos
musicais.
Atualmente, o sistema midiático que inventamos coloca à nossa disposição um
potencial criador antes reservado a indivíduos dotados de poderes especiais. As
possibilidades oferecidas pela sinestesia, nos domínios sensorial e conceitual,
são da ordem da inspiração. Em compensação, todos nós, vítimas de saudáveis
profissionais da comunicação, dotados de uma imaginação igualmente saudável,
estamos nos tornando iguais ao «mnésico» de Luria, totalmente imersos e
reduzidos à impotência por imagens sem fundamento e por vozes amplificadas.
É o feiticeiro da aldeia que nos falta, não as estruturas formais de um sistema
eficaz de processamento de informação, nem os profissionais da comunicação.
Os artistas, os poetas, os compositores e os sábios que ouviram vozes
sabem agora que não são loucos; o seu trabalho é testemunha disso. Porém,
formas graves de depressão nervosa podem ser consideradas como doenças
profissionais possíveis para as pessoas que trabalham no limiar do que
chamamos comumente de realidade, ou seja, um espaço culturalmente fabricado
em torno de convenções perceptivas, impostas pelos mecanismos que estruturam
a linguagem, pelo comportamento comum, e por histórias agora esquecidas. A
loucura criativa poderia ser simplesmente um desarranjo da história, que o
escoamento do tempo teria «corrigido», à medida que a perspicácia visionária
tornou-se um fato cultural banal. Em nenhum momento, ao longo de suas
sessões com Luria, S. referiu-se a si mesmo como louco. Apenas uma vez, ele
disse a Luria que, antes de se tornar adulto e de entrar no seu primeiro emprego,
sempre pensou que todo mundo funcionava igual a ele.
«Todos os homens podem ter sonhos e visões.»
William Blake.
(Este ensaio foi publicado originalmente sob a forma de um resumo no catálogo
do National Video Festival, publicado por The American Film Insitute, Los
Angeles, 1986.)
Notas Complementares da Redação:
Acústica: Na época de Pitágoras, a acústica era considerada a «ciência das
ciências». «Ela pretendia explicar o universo inteiro [...]. Os filósofosgregos
elaboraram toda uma doutrina onde os dados sobre os sons,
entremeados de considerações metafísicas, forneciam a base de uma vasta
harmonia universal». (E. Leipp, Accoustique et musique, Masson, 1971).
Vibração simpática: A onda sonora está intimamente ligada a uma forma
geométrica, a qual é capaz de emitir ou reforçar um som. Inversamente,
ela pode desempenhar o papel de receptor e começar a vibrar se for
alcançada por ele. Uma corda em repouso irá vibrar se receber de uma
outra fonte o som preciso que ela é capaz de emitir.
Ressonância: A forma do violino, por exemplo, é estudada para permitir o
reforço das ondas emitidas pela vibração das cordas em todos os seus
registros. A dificuldade consiste em conceber um violino que amplifique
os sons de modo harmonioso num espectro o mais amplo possível.
Imagem de vídeo: É produzida pelo recorte do quadro em linhas (625 linhas, por
exemplo). 25 vezes por segundo, o quadro é analisado linha por linha.
Cada linha é percorrida, «varrida». Um sinal elétrico proporcional à
intensidade luminosa encontrada é emitido. Ele varia, com certeza, ao
longo da linha, se esta recortar uma imagem não uniforme. Com a
imagem variando debilmente em relação à rapidez da análise do mesmo
ponto (25 vezes por segundo), cada ponto engendra uma onda de
freqüência de 1/25 avos de segundo, equivalente a uma onda sonora.
Tradução de Ana Luiza Martins CostaNós aprendemos com Atenas e Jerusalém o sopro, o
espírito, a voz, o logos, a escrita e
o erguer dos véus, o conhecimento revelado pela palavra ou pelo texto; nós
ignoramos
ainda de Roma e do Egito o ato discreto de penetrar, guardar, o silêncio e o negro,
a
caixa fechada, o objeto.
Michel SerresO Reencantamento do Concreto
Francisco J. Varela
O Desencantamento do Abstrato
Mudanças nas ciências cognitivas. "Racionalista", "cartesiana" ou
"objetivista": estes são alguns dos termos empregados nos últimos tempos
para caracterizar a tradição dominante dentro da qual fomos criados 1 . Mas,
quando se trata de uma reavaliação do conhecimento e da cognição,
constato que a noção que melhor descreve nossa tradição é "abstrata": nada
caracteriza melhor as unidades de conhecimento consideradas as mais
"naturais". É essa tendência em descobrir nosso rumo em direção à
atmosfera rarefeita do geral e do formal, do lógico e do bem-definido, do
representado e do planejado, que torna nosso mundo ocidental tão
nitidamente familiar.
A principal tese que pretendo investigar aqui é esta: há fortes
indícios de que, entre o grupo não-organizado das ciências que tratam do
conhecimento e da cognição - as ciências cognitivas -, vem crescendo
lentamente a convicção de que esse quadro está invertido, de que uma
mudança paradigmática ou epistêmica radical vem se desenvolvendo com
rapidez. Bem no centro dessa visão emergente está a crença de que as
próprias unidades de conhecimento são fundamentalmente concretas,
corporificadas, incorporadas, vividas. Esse conhecimento concreto e único,
sua historicidade e contexto, não constitui um "ruído" que obstrui o padrão
mais luminoso a ser captado em sua verdadeira essência, uma abstração,
nem se trata de um passo rumo a algo mais: trata-se de como chegamos e
aonde ficamos.
Talvez nada ilustre melhor essa tendência do que a gradual
transformação das idéias no campo bastante pragmático da inteligência
artificial. Nas duas primeiras décadas (1950-1970), as pesquisas basearam-
se no paradigma computacionalista segundo o qual o conhecimento opera
através de regras de tipo lógico para manipulação simbólica, uma idéia que
encontra sua plena expressão nos modernos computadores digitais.
Inicialmente, os esforços foram direcionados para a resolução de
problemas mais gerais, tais como a tradução da linguagem natural ou o
desenvolvimento de um "solucionador de problemas gerais". Considerava-
se que essas tentativas, que procuravam igualar a inteligência de um perito
altamente treinado, estavam lidando com as questões centrais da cognição.
Visto que as tentativas de cumprir essas tarefas invariavelmente
fracassavam, tornou-se evidente que a única maneira de se obterprogressos era
reduzindo a tarefa a algo mais modesto e localizado. As
tarefas mais comuns, mesmo aquelas executadas por insetos minúsculos,
são simplesmente impossíveis de se realizar com uma estratégia
computacional. Esses anos de pesquisa resultaram na compreensão, por
parte dos envolvidos, de que é necessário inverter as posições do perito e
da criança na escala de desempenho. Ficou claro que a forma de
inteligência mais profunda e fundamental é a de um bebê, que adquire a
linguagem a partir de emissões vocais diárias e dispersas e delineia objetos
significativos a partir de um mundo não especificado previamente.
Ao ser elaborada, essa visão revitalizou o papel do concreto,
concentrando-se em sua escala apropriada: a atividade cognitiva que
ocorre em um espaço muito especial, que denominarei "junções" do
presente imediato. Pois é no presente imediato que o concreto de fato vive.
Mas, antes de prosseguir, devo rever algumas suposições arraigadas que
foram herdadas da ortodoxia computacionalista.
Sobre os agentes cognitivos desunidos. Há muitas evidências que apoiam
a visão de que cérebros não são máquinas lógicas, mas redes distribuídas,
altamente cooperativas e não-homogêneas. O sistema todo lembra mais
uma colcha de retalhos, formada por sub-redes reunidas através de um
intrincado histórico de remendos, do que um sistema otimizado resultante
de um projeto claro e unificado. Esse tipo de arquitetura sugere também
que, ao invés de se procurarem grandiosos modelos unificados para todos
os comportamentos de rede, deveriam ser estudadas as redes cujas
capacidades estejam restritas a atividades cognitivas concretas e
específicas, enquanto interagem entre si.
De diferentes maneiras, os cientistas cognitivos começam a levar a
sério essa concepção de arquitetura cognitiva. Marvin Minsky, por
exemplo, apresenta uma visão na qual as mentes são constituídas por
diversos "agentes", cujas capacidades são fortemente circunscritas: tomado
individualmente, cada agente trabalha somente com problemas de pequena
escala ou com problemas do gênero "brinquedos de montar" 2 . Os
problemas devem ser dessa ordem, pois se tornam insolúveis para uma
única rede quando têm sua escala aumentada (esse último aspecto ficou
claro para os cientistas cognitivos há bem pouco tempo). A tarefa consiste,
então, em organizar os "agentes" que operam nesses domínios específicos
em sistemas ou "agências" eficientes e maiores e, em seguida, transformar
essas agências em sistemas de nível mais alto. A mente surge, então, como
uma espécie de "sociedade".
É importante lembrar aqui que, embora inspirado por uma nova
visão sobre o cérebro, este é um modelo de mente. Em outras palavras, nãose trata
de um modelo de sociedades ou redes neurais; é um modelo de
arquitetura cognitiva abstraído (de novo!) do detalhe neurológico, que
desconsidera, portanto, a "fluidez" da experiência viva e vivida. Agentes e
agências não são, portanto, nem entidades nem processos materiais; são
processos ou funções abstratas. Esse aspecto merece ser destacado,
principalmente pelo fato de Minsky por vezes escrever como se estivesse
falando a respeito da cognição em nível de cérebro. Como irei enfatizar, o
que está faltando é a conexão detalhada entre esses agentes e o
acoplamento encarnado, pelo sentir e agir, que é essencial à cognição viva.
Faremos agora uma pausa momentânea para examinar algumas das
implicações das concepções de sub-redes cognitivas fragmentadas e
localizadas.
O modelo da mente como uma sociedade composta por numerosos
agentes está concebido de forma a abranger uma multiplicidade de
abordagens para o estudo da cognição, que vão desde as redes distribuídas,
auto-organizáveis, até a concepção clássica, cognitivista, do processamento
simbólico. Essa visão abrangente desafia um modelo centralizado ou
unificado de mente, seja em um extremo, na forma de redes distribuídas
ou, em outro, na de processos simbólicos. Esse deslocamento é visível, por
exemplo, quando Minsky argumenta que existem qualidades não apenas na
distribuição, mas no isolamento, isto é, nos mecanismos que mantêm
separados os diversos processos. Essa idéia também foi amplamente
explorada, embora num contexto um pouco diferente, por Jerry Fodor 3 . Os
agentes situados no interior de uma agência podem estar conectados sob a
forma de uma rede distribuída; porém, se as próprias agências estivessem
conectadas da mesma maneira, elas praticamente iriam constituir uma
grande rede cujas funções estariam distribuídas de modo uniforme. Tal
uniformidade, contudo, restringiria a capacidade de combinar as operações
de agências individuais de forma produtiva. Quanto mais distribuídas
estiverem essas operações, mais difícil se torna para muitas delas agir ao
mesmo tempo sem que interfiram entre si. Contudo, esses problemas não
aparecem se houver mecanismos para manter as diversas agências isoladas
entre si. As agências continuariam a interagir, mas através de conexões
mais limitadas.
É claro que os detalhes dessa visão programática são discutíveis,
mas o quadro geral que ela sugere (que não se refere exclusivamente à
formulação de Minsky sobre agentes e agências) não é o da mente como
uma entidade unificada, homogênea, nem mesmo como um grupo de
entidades, mas sim como um grupo desunificado, heterogêneo, de
processos. Obviamente, esse conjunto desunificado pode ser considerado
em mais de um nível. O que se considera uma agência (isto é, um grupo deagentes)
poderia, se fosse alterado o enfoque, ser considerado
simplesmente um agente em uma agência maior. E, inversamente, o que se
considera um agente poderia, se focalizado mais de perto, ser visto como
sendo uma agência composta por diversos agentes. Da mesma forma, o
que se considera uma sociedade irá também depender do nível de enfoque
que se escolhe.
Tendo assim definido o cenário para essa questão crucial dentro das
ciências cognitivas contemporâneas, quero desenvolver suas implicações
para o ponto em questão: a centralização no presente que caracteriza o
concreto.
Sobre o Ser-Aí : Durante os Colapsos
Prontidão-para-ação no presente. Minha preocupação atual relaciona-se a
uma das muitas conseqüências dessa visão acerca da desunião do sujeito,
entendido como um agente cognitivo. A questão que tenho em mente pode
ser formulada da seguinte forma: dada a infinidade de subprocessos
competindo em cada ato cognitivo, como iremos entender o momento de
negociação e emergência, quando um deles assume o comando e
estabelece um comportamento definitivo? Ou, em termos mais evocativos:
como iremos compreender o momento exato do ser-aí, quando surge algo
concreto e específico?
Imagine-se andando pela rua, talvez indo ao encontro de alguém. O
dia está acabando e não há nada muito especial em sua mente. Você se
sente relaxado, naquele estado que podemos chamar de "prontidão" do
pedestre que está simplesmente dando uma caminhada. Você põe a mão
no bolso e de repente descobre que sua carteira não está lá como de
costume. Colapso: você pára, seu aparelho mental obscurece, sua
tonalidade emocional muda. Antes que você se dê conta, surge um novo
mundo: você percebe claramente que deixou sua carteira na loja onde
acabou de comprar cigarros. Sua disposição agora muda para uma
preocupação acerca de perder documentos e dinheiro, sua prontidão-para-
ação é agora a de voltar rapidamente para a loja. Você presta pouca
atenção para as árvores e os transeuntes a sua volta; toda a sua atenção
concentra-se em evitar maiores atrasos.
Situações como essa constituem exatamente a matéria-prima de que
são feitas as nossas vidas. Sempre operamos em uma espécie de
imediatismo em relação a uma dada situação: o mundo em que vivemos
está tão pronto e à mão que absolutamente não deliberamos sobre o que
ele é e de que forma o habitamos. Quando nos sentamos à mesa para
comer com um parente ou amigo, o conhecimento completo e complexo
acerca da manipulação de talheres, as posturas corporais e pausas durante
aconversação, tudo está presente sem deliberação. Nosso eu-à-mesa é
transparente 4 . Terminamos o almoço, retornamos ao escritório e entramos
em uma nova prontidão, com um modo diferente de falar, uma postura
diferente e avaliações diferentes. Apresentamos uma prontidão-para-ação
adequada para cada situação específica vivida. Maneiras novas de se
comportar e as transições ou pontuações entre elas correspondem a
microcolapsos que sofremos constantemente. Por vezes os microcolapsos
tornam-se não exatamente micro, mas sim microscópicos, como quando
um choque ou perigo súbito acontece de forma inesperada. Denominarei
qualquer uma dessas prontidões-para-ação como "microidentidade" e sua
situação correspondente como "micromundo". A maneira como nos
mostramos é indissociável da forma pela qual as coisas e os outros
apresentam-se para nós. Eu poderia discorrer um pouco sobre
fenomenologia elementar e identificar alguns micromundos típicos dentro
dos quais nos movimentamos ao longo de um dia normal, porém a questão
não é catalogá-los, mas direcionar sua recorrência: ser capaz de ações
apropriadas é, num sentido significativo, uma maneira pela qual
corporificamos uma torrente de transições de micromundos recorrentes.
Não estou negando que existam situações nas quais a recorrência não se
aplica. Por exemplo, quando se chega pela primeira vez a um país
estrangeiro, há uma ausência total de prontidão-à-mão e de micromundos
recorrentes. Diversas ações simples, tais como conversar socialmente ou
comer, devem ser executadas de forma deliberada ou aprendidas de
imediato. Em outras palavras, os micromundos e as microidentidades são
constituídos historicamente. Mas o modo mais comum de se viver se dá
por micromundos constituídos, que compõem nossas identidades.
Obviamente, há muito mais coisas que deveriam ser exploradas e ditas a
respeito da fenomenologia da experiência cotidiana e pouco foi feito até
agora 5 . Minha intenção aqui é mais modesta: apenas a de apontar um
campo de fenômenos intimamente próximos de nossa experiência normal.
Quando deixamos o domínio da experiência humana e mudamos
para o dos animais, o mesmo tipo de análise aplica-se como um relato
exterior. O caso extremo é ilustrativo: há algum tempo os biólogos têm
conhecimento de que os invertebrados possuem um repertório um tanto
reduzido de padrões de comportamento; por exemplo, uma barata
apresenta somente algumas poucas formas de movimento: ficar em pé,
andar devagar, andar depressa e correr. Contudo, esse repertório
comportamental básico permite que elas enfrentem de maneira apropriada
qualquer ambiente possível, tanto natural como artificial. Então, a questão
para o biólogo seria: como ela decide qual ação motora irá adotar em uma
dada circunstância? Como ela seleciona uma ação comportamentaladequada? Como ela
possui bom senso para avaliar uma dada situação e
interpretá-la como exigindo uma corrida ao invés de uma caminhada lenta?
Nos dois casos extremos -- a experiência humana durante os
colapsos e o comportamento animal em momentos de transições
comportamentais -- nos defrontamos, de formas tremendamente diversas, é
inegável, com uma questão comum: a cada colapso desses, a maneira pela
qual o agente cognitivo será em seguida constituído não é nem decidida
externamente nem simplesmente planejada. Ao contrário, trata-se de uma
questão de emergência segundo o bom senso, da configuração autônoma
de uma postura apropriada. Uma vez selecionada uma postura
comportamental ou gerado um micromundo, podemos analisar de forma
mais clara seu modo de operação e sua estratégia ótima. De fato, a chave
para a autonomia é que um sistema vivo encontre seu curso no momento
seguinte, agindo de maneira adequada a partir de seus próprios recursos. E
são os colapsos, as junções que articulam os micromundos, que constituem
a origem do lado autônomo e criativo da cognição viva. Esse bom senso
deve então ser examinado em uma microescala: no momento durante o
qual ocorre um colapso ele realiza o nascimento do concreto.
Conhecimento como enacção* . Permitam-me agora explicar como
pretendo utilizar a palavra "corporificado", ressaltando duas questões: em
primeiro lugar, a cognição depende dos tipos de experiência que advêm do
fato de se possuir um corpo dotado de diversas capacidades sensório-
motoras; e, em segundo lugar, essas capacidades sensório-motoras
individuais estão elas próprias embutidas em um contexto biológico e
cultural mais abrangente. Essas questões foram apresentadas acima em
termos de colapso e bom senso, mas desejo explorar ainda sua
especificidade corpórea e enfatizar que os processos sensoriais e motores,
a percepção e a ação, são basicamente inseparáveis na cognição vivida, e
não estão simplesmente conectados de maneira casual nos indivíduos.
Ao adotar o que denomino uma "abordagem enactiva da cognição" 6 ,
dois princípios são fundamentais: primeiro, a percepção consiste em ação
orientada perceptivamente; e, segundo, as estruturas cognitivas surgem a
partir de padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação
seja orientada perceptivamente. (Isso irá ficar mais claro à medida que eu
prosseguir.)
Deixe-me começar pelo conceito de ação orientada perceptivamente.
Para a tradição computacionalista dominante, o ponto de partida para se
*
O termo traduzido aqui por "enacção" foi transposto do inglês enaction, que é
utilizado pelo autor no
sentido de uma ação que "faz emergir". Pode também significar "acionamento".
(NdT)compreender a percepção é tipicamente abstrato: trata-se do problema de
reconstituir as propriedades preestabelecidas do mundo através do
processamento de informações. Em contraposição, o ponto de partida para
a abordagem enactiva é o estudo sobre como o "sujeito percipiente" orienta
suas ações em situações locais. Devido ao fato dessas situações locais
mudarem constantemente em decorrência da própria atividade do sujeito
percipiente, o ponto de referência para a compreensão da percepção não é
mais um mundo preestabelecido, independente do sujeito da percepção,
mas sim a estrutura sensório-motora do agente cognitivo, a maneira pela
qual o sistema nervoso conecta as superfícies sensoriais e motoras. É essa
estrutura -- a maneira pela qual o sujeito percipiente é corporificado --, e
não algum mundo preestabelecido, que determina como o sujeito da
percepção pode agir e ser modulado pelos eventos ambientais. Assim, a
preocupação geral de uma abordagem enactiva da percepção não é
determinar como algum mundo independente do sujeito que percebe vai
ser reconstituído; trata-se, sim, de determinar quais os princípios comuns
ou conexões lícitas entre os sistemas sensorial e motor que irão explicar
como a ação pode ser orientada perceptivamente em um mundo
dependente de um sujeito percipiente.
Essa preocupação central da abordagem enactiva situa-se em
oposição à visão convencionada de que a percepção é basicamente um
registro das informações ambientais existentes, com a finalidade de
reconstruir verdadeiramente um pedaço do mundo físico. A realidade não é
projetada como algo dado: ela é dependente do sujeito da percepção, não
porque ele a "constrói" por um capricho, mas porque o que se considera
um mundo relevante é inseparável da estrutura do percipiente.
Tal abordagem da percepção é na verdade um dos insights centrais
da análise fenomenológica empreendida por Maurice Merleau-Ponty em
seus primeiros trabalhos. Cabe citar aqui integralmente uma de suas
passagens mais visionárias:
O organismo não pode ser comparado estritamente a um teclado sobre
o qual os estímulos externos tocariam e no qual sua forma exata seria
delineada, pela simples razão de que o organismo contribui para a
constituição daquela forma... "As propriedades do objeto e as
intenções do sujeito... não estão apenas mescladas; elas constituem
também um novo todo". Quando o olho e o ouvido seguem um
animal em vôo, é impossível dizer "qual começou primeiro" na troca
de estímulos e respostas. Visto que todos os movimentos do
organismo são sempre condicionados por influências externas, pode-
se facilmente, se assim o quiser, tratar o comportamento como umefeito do meio.
Mas, da mesma forma, já que todos os estímulos que
o organismo recebe foram, por sua vez, possibilitados unicamente
pelos seus movimentos precedentes, que resultaram na exposição do
órgão receptor às influências externas, pode-se também dizer que o
comportamento é a primeira causa de todos os estímulos.
Assim, a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por
sua maneira particular de se oferecer à ações vindas do fora. Sem
dúvida, a fim de poder subsistir, ele deve se deparar com um
determinado número de agentes físicos e químicos a sua volta. Mas é
o próprio organismo -- segundo a natureza particular de seus
receptores, os limiares de seus centros nevrálgicos e os movimentos
dos órgãos -- que escolhe no mundo físico os estímulos aos quais ele
será sensível. "O ambiente (Umwelt) emerge a partir do mundo por
meio da realização ou do ser do organismo - [admitindo-se que] um
organismo somente pode existir se conseguir encontrar um ambiente
adequado no mundo". Isso seria um teclado que se move de tal forma
a oferecer -- e de acordo com ritmos variáveis -- essas ou aquelas de
suas teclas para a ação em si mesma monótona de um martelo
exterior 7 .
Segundo essa abordagem, então, a percepção não está simplesmente
embutida e confinada no mundo ao redor; ela também contribui para a
enacção desse mundo ao redor. Assim, como observa Merleau-Ponty, o
organismo simultaneamente instrui e é modelado pelo ambiente: M.-Ponty
admitiu claramente que devemos ver o organismo e o ambiente como
enlaçados em especificação e seleção recíprocas -- uma questão da qual
necessitamos nos recordar constantemente, pois ela é bastante contrária às
visões herdadas, oriundas da tradição cartesiana.
Um exemplo clássico do direcionamento perceptivo da ação é o
estudo de 1958 empreendido por Richard Held e Alan Hein, que criaram
gatos no escuro e os expuseram à luz somente sob condições controladas 8 .
A um primeiro grupo de animais foi permitido movimentar-se
normalmente enquanto atrelados a uma canga que puxava um cesto; seus
movimentos eram transferidos mecanicamente para um segundo grupo de
animais transportados nesse mesmo cesto. Os dois grupos compartilhavam
portanto da mesma impressão visual, mas o segundo grupo era
completamente passivo. Quando os animais foram soltos, após algumas
semanas sob esse tratamento, o primeiro grupo de gatinhos comportou-se
normalmente, mas os que haviam sido carregados comportavam-se como
se fossem cegos: eles colidiam com objetos e caíam das bordas. Esseestudo admirável
dá suporte à visão enactiva de que os objetos não são
vistos a partir da extração visual de suas características, mas sim pelo
direcionamento visual da ação. Resultados semelhantes foram obtidos sob
diversas outras circunstâncias e estudados até mesmo ao nível de uma
única célula.
Se o leitor julgar que esse exemplo é bom para gatos, mas distante
da experiência humana, vamos examinar outro caso. Em 1962, Paul Bach y
Rita projetou uma câmera de vídeo para pessoas cegas, que é capaz de
estimular pontos múltiplos na pele através de vibrações ativadas
eletricamente 9 . Utilizando essa técnica, fez-se com que as imagens
formadas com a câmera correspondessem a padrões de estimulação de
pele, dessa forma substituindo a perda visual. Os padrões projetados na
pele não possuem nenhum conteúdo "visual", a não ser que o indivíduo
esteja comportamentalmente ativo, dirigindo a câmera de vídeo através de
movimentos com a cabeça, mão ou corpo. Quando a pessoa cega de fato se
comporta assim ativamente, após algumas horas de experimento surge um
efeito notável: a pessoa não mais interpreta a sensação na pele como
estando relacionada ao corpo, mas sim como imagens projetadas no espaço
sendo exploradas pelo "olhar" corporalmente direcionado da câmera de
vídeo. Assim, a fim de perceber "os objetos reais do lado de fora", a pessoa
deve dirigir a câmera ativamente (utilizando sua cabeça ou mão).
A estrutura sutil do presente. Agora que situei o surgimento do concreto
dentro do quadro enactivo para a cognição, onde ele de fato faz sentido,
posso retornar à questão com a qual iniciei: como micromundos
emergentes podem surgir a partir de um turbilhão de diversos agentes e
sub-redes cognitivas? A resposta que proponho aqui é que no intervalo em
que ocorre um colapso há uma rica dinâmica envolvendo sub-identidades
e agentes simultâneos. Esse rápido diálogo, invisível à introspeção, foi
revelado recentemente em estudos sobre o cérebro.
Alguns aspectos centrais dessa idéia foram apresentados
primeiramente por Walter Freeman que, ao longo de vários anos de
pesquisa, conseguiu introduzir uma série de eletrodos no bulbo olfativo de
um coelho, de forma que uma pequena porção da atividade global pudesse
ser mensurada enquanto o animal agia livremente 10 . Ele constatou que não
havia um padrão claro de atividade global no bulbo, a não ser que o animal
fosse exposto a um odor específico por diversas vezes. Descobriu ainda
que esses padrões de atividade surgiam a partir de um cenário de atividade
incoerente ou caótica, em rápidas oscilações (isto é, com períodos de
aproximadamente cinco a 10 milissegundos), até que o córtex se
acomodasse a um padrão elétrico global, que durava até o final doprocedimento de
farejar e então dissolvia-se novamente no cenário
caótico 11 . As oscilações proporcionam, pois, um meio de amarrar
seletivamente um conjunto de neurônios em um todo transitório que
constitui o substrato para a percepção olfativa naquele instante preciso. O
ato de cheirar aparece nesse sentido não como uma espécie de
mapeamento de características externas, mas como uma forma criativa de
enactar significância levando em conta a história corporificada do animal.
E o que é mais importante, essa enacção ocorre na junção entre um
momento comportamental e o seguinte, através de rápidas oscilações entre
populações neurônicas capazes de dar origem a padrões coerentes.
Há crescente evidência de que, durante uma percepção, essa espécie
de ressonância rápida liga transitoriamente os conjuntos neurônicos. Isso
foi observado, por exemplo, no córtex visual de gatos e macacos
conectados a um estímulo visual 12 ; foi também constatado em estruturas
neurais radicalmente diferentes, como o cérebro das aves 13 , e mesmo nos
gânglios de um invertebrado, Hermissenda 14 . Essa universalidade é
importante, pois ela sugere a natureza fundamental da ligação por
ressonância como um mecanismo para a enacção de acoplamentos
sensório-motores. Se fosse um processo específico de uma espécie --
característico, digamos, apenas do córtex de mamíferos --, seria muito
menos interessante como hipótese de trabalho.
É importante observar que essa ressonância rápida não está
simplesmente relacionada a um gatilho sensorial: as oscilações surgem e
desaparecem de forma bastante espontânea em diversas partes do cérebro.
Isso sugere que essa dinâmica rápida diz respeito à todas as sub-redes que
dão origem à completa prontidão-à-mão no momento seguinte. Elas
envolvem não apenas a interpretação sensorial e a ação motora, mas
também toda uma gama de expectativas cognitivas e tonalidades
emocionais que são fundamentais para a modelagem de um micromundo.
Entre os colapsos, essas oscilações são os sintomas de rápidas cooperações
recíprocas e competições mútuas entre agentes distintos que são ativados
pela situação presente, rivalizando entre si para impor diferentes modos de
interpretação a fim de constituir um quadro cognitivo coerente e uma
prontidão-para-ação. Com base nessa dinâmica rápida, da mesma forma
que em um processo evolutivo, um conjunto neurônico (uma sub-rede
cognitiva) finalmente torna-se mais predominante e converte-se no modo
comportamental para o momento cognitivo seguinte. Por "torna-se mais
predominante" não quero dizer que se trata de um processo de otimização:
isso se assemelha mais a uma bifurcação ou forma de dinâmica caótica
destruidora de simetria. Segue-se que esse berço da ação autônoma está
sempre perdido para a experiência vivida, pois, por definição, somentepodemos
habitar uma micro-identidade quando ela já se encontra presente,
mas não quando ela está em gestação. Em outras palavras, no colapso que
antecede o surgimento do micromundo seguinte, há um número infinito de
possibilidades disponíveis até que, em virtude das imposições da situação e
da recorrência da história, uma única seja selecionada. Essa dinâmica
rápida é o correlato neural da constituição autônoma de um agente
cognitivo incorporado em um dado momento presente de sua vida.
Da sutil estrutura temporal à ação cognitiva. Conforme foi observado, a
ressonância rápida da reciprocidade de um agente proporciona o cenário
para o surgimento de um micromundo. Há indícios de que esse
acoplamento sensório-motor esteja relacionado com outros tipos de
desempenho cognitivo tipicamente humanos: em outras palavras, os níveis
cognitivos realmente "mais altos" surgem a partir do evento de sentir e agir
de nível "baixo", possibilitando que a ação seja direcionada
perceptivamente.
De fato, esse conceito básico está bem no núcleo do programa
piagetiano 15 . Como a idéia de estruturas cognitivas corporificadas foi
defendida por George Lakoff e Mark Johnson 16 , irei apresentá-la fazendo
menção especial ao trabalho desses autores. Novamente, devo sair do
abstrato e salientar uma abordagem experimentalista da cognição.
Conforme declara Lakoff, o argumento central de sua própria abordagem e
da de Johnson é que as estruturas conceituais significativas originam-se de
duas fontes: da natureza estruturada da experiência corpórea e de nossa
capacidade em projetar imaginativamente, desde certos aspectos bem-
estruturados da experiência corpórea e interativa até estruturas conceituais.
O pensamento racional e abstrato constitui ele próprio a aplicação de
processos cognitivos bastante gerais - focalização, varredura, sobreposição,
reversão fundo-figura e assim por diante - a essas estruturas conceituais 17 .
Em linhas gerais, as estruturas corporificadas (sensório-motoras)
constituem a essência da experiência e as estruturas experienciais
"motivam" a compreensão conceitual e o pensamento racional. Conforme
enfatizei, a percepção e a ação são corporificadas em processos sensório-
motores auto-organizáveis; segue-se, então, que as estruturas cognitivas
emergem a partir de padrões recorrentes de atividade sensória-motora. De
qualquer modo, a questão não é, como afirmaria Lakoff, que a experiência
determina de forma absoluta as estruturas conceituais e os modos de
pensamento; trata-se, antes, de que a experiência possibilita e ao mesmo
tempo restringe a compreensão conceitual por entre os múltiplos domínios
cognitivos.Lakoff e Johnson fornecem numerosos exemplos de estruturas
cognitivas geradas a partir de processos experienciais. Rever todos esses
exemplos iria me desviar muito de meu curso; assim, irei discutir de forma
resumida apenas um dos tipos mais significativos: as categorias de nível
básico. Pense nas coisas de tamanho médio com as quais interagimos
constantemente: mesas, cadeiras, cães, gatos, garfos, facas, xícaras e assim
por diante. Essas coisas pertencem a um nível de categorização que é
intermediário entre os níveis mais baixo (subordinado) e mais alto
(superior). Se tomarmos uma cadeira, por exemplo, no nível mais baixo ela
poderia pertencer à categoria "banco", enquanto no nível mais alto ela
pertence à categoria "mobília". Eleanor Rosch e seus co-autores
demonstraram que esse nível intermediário de categorização (mesa,
cadeira e assim por diante) é psicologicamente o mais fundamental ou
básico, pelas seguintes razões, entre outras: primeiro, o nível básico é o
nível mais geral no qual os membros da categoria possuem formatos
globais percebidos como semelhantes; segundo: é o nível mais geral no
qual uma pessoa utiliza ações motoras similares para interagir com os
membros da categoria; e, terceiro, é o nível no qual uma série de atributos
correlatos são mais aparentes 18 . Pareceria, assim, que o fato de uma
categoria pertencer ao nível básico depende não de como as coisas estão
organizadas em algum mundo preestabelecido, mas sim da estrutura
sensório-motora de nossos corpos e dos tipos de interações direcionadas
perceptivamente que essa estrutura possibilita. As categorias de nível
básico são tanto experienciais como corporificadas. Um raciocínio
semelhante pode ser construído para esquemas de imagens que emergem a
partir de determinadas formas básicas de atividades e interações sensório-
motoras.
Conclusão
Argumentei que a percepção não consiste na reconstituição de um mundo
preestabelecido, mas sim no direcionamento perceptivo da ação em um
mundo que é inseparável de nossas capacidades sensório-motoras. As
estruturas cognitivas emergem de padrões recorrentes de ação direcionada
perceptivamente. Posso resumir, então, afirmando que a cognição consiste
não de representações, mas de ação corporificada. De maneira
correspondente, o mundo que conhecemos não é preestabelecido; é, ao
contrário, enactado através de nosso histórico de acoplamento estrutural.
As junções temporais que articulam a enacção estão enraizadas na
dinâmica rápida não-cognitiva, onde uma série de micromundos
alternativos são ativados; essas junções são a fonte tanto do bom senso
como da criatividade na cognição.É portanto a busca, bastante contemporânea nas
ciências cognitivas,
de uma compreensão da compreensão que aponta numa direção que
considero pós-cartesiana de duas maneiras significativas. Primeiro, o
conhecimento parece cada vez mais como algo construído a partir de
pequenos domínios, isto é, micromundos e microidentidades. Esses modos
básicos de prontidão-à-mão variam, mas estão presentes em todo o reino
animal. Porém, o que todos os seres cognitivos vivos parecem ter em
comum é o conhecimento que é sempre um "know-how" constituído com
base no concreto; o que chamamos "geral" e "abstrato" são grupos de
prontidão-para-ação. Segundo: esses micromundos não são coerentes ou
integrados em alguma imensa totalidade que regula a veracidade das partes
menores. É mais como uma interação conversacional desregrada: a própria
presença desse desregramento permite que um momento cognitivo passe a
existir de acordo com a constituição e a história do sistema. A autêntica
fonte dessa autonomia, a rapidez de seleção do comportamento do agente,
está para sempre perdida para o próprio sistema cognitivo. Assim, o que
tradicionalmente chamamos "irracional" e "não-consciente" não contradiz
o que parece racional e intencional: constitui sua própria fundamentação.
Notas
1 Partes deste texto foram publicadas, com alterações, em James Ogilvy
(ed.), Revisioning Philosophy (Nova York: SUNY Press, 1991); e em
Jacques Montangero (ed.), Psychologie G‚n‚tique et Sciences Cognitives,
Cahiers de la Fondation Jean Piaget, n. 11 (Genebra, 1991).
2 Marvin Minsky, The Society of Mind (Nova York: Simon and Schuster,
1986).
3 Jerry Fodor, The Modularity of Mind (Cambridge, Massachusetts:
Bradford Books/MIT Press, 1983).
4 O conceito de transparência ‚ amplamente desenvolvido em um
manuscrito inédito de autoria de Fernando Flores e Michel Graves
(Logonet, Inc., Berkeley, Califórnia, 1990). Meus agradecimentos a
Fernando Flores por permitir-me ler esse trabalho em andamento, do qual
minhas próprias idéias tiraram grande proveito.
5 Como principais exemplos, refiro-me especificamente a Being and Time,
de Martin Heidegger, tradução de John Macquarrie e Edward Robinson
(Nova York: Harper, 1929) e Phenomenology of Perception, de Maurice
Merleau-Ponty, tradução de Colin Smith (Nova York: Humanities Press,
1962).
6 Francisco Varela, ConnaŒtre: Les Sciences Cognitives (Paris: Seuil,
1989); Varela, "Organism: A Meshwork of Selfless Selves", em Alfred
Tauber (ed.), Organism and the Origin of Self (Dordrecht/Uitgeverij:Reidel Kluwer,
1991); Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, The
Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience (Cambridge,
Massachusetts: MIT Press, 1991); e Thompson, Alden Palacios e Varela,
"Ways of Coloring: Comparative Color Vision as a Case Study in the
Foundations of Cognitive Science", Behavioral Brain Sciences, n. 16.1 (a
sair).
7 Maurice Merleau-Ponty, The Structure of Behavior, tradução de Alden
Fisher (Boston: Beacon, 1963), p. 13 (a ênfase é minha). A primeira
citação interna ‚ de V.F. von Weizsëcker, "Reflexgesetze", em Bethe (ed.),
Handbuch der Normalen und Pathologischen Physiologie, pp. 38-39; a
segunda ‚ de K. Goldstein, The Organism (Boston: Beacon, 1963).
8 Richard Held e Alan Hein, "Adaptation of Disarranged Hand-Eye
Coordination Contingent upon Re-afferent Stimulation", Perceptual and
Motor Skills, n. 8 (1958), pp. 87-90.
9 Paul Bach y Rita, Brain Mechanisms in Sensory Substitution (Nova
York: Academic Press, 1972).
10 Walter Freeman, Mass Action in the Nervous System (Nova York:
Academic Press, 1975).
11 Walter Freeman e Christine Skada, "Spatial EEG Patterns, Nonlinear
Dynamics, and Perception: The Neo-Sherringtonian View", Brain
Research Reviews, n. 10 (1985), pp. 147-75.
12 Charles Gray e Wolf Singer, "Stimulus-Specific Neuronal Oscillations
in Orientation Columns in Cat Visual Cortex", Proceedings of the National
Academy of Sciences of the USA, n. 86 (1989), pp. 1698-702.
13 Serge Neuenschwander e Francisco Varela, "Sensori-triggered and
Spontaneous Oscillations in the Avian Brain", Society Neuroscience
Abstracts, n. 16 (1990).
14 Alan Gelperin e David Tank, "Odour-Modulated Collective Network
Oscillations of Olfactory Interneurons in a Terrestrial Mollusc", Nature, n.
345 (1990), pp. 437-40. Para um estudo recente, ver Steven Bressler, "The
Gamma Wave: A Cortical Information Carrier", Trends in Neuroscience,
n. 13 (1990), pp. 161-62.
15 Jean Piaget, Biologie et Connaissance (Paris: Gallimard, 1969).
16 George Lakoff, Women, Fire and Dangerous Things (Chicago:
University of Chicago Press, 1983); e Mark Johnson, The Body in the
Mind (Chicago: University of Chicago Press, 1989).
17 George Lakoff, "Cognitive Semantics", em Umberto Eco et al. (eds.),
Meaning and Mental Representations (Bloomington: Indiana University
Press, 1988), p. 121, proporciona uma breve visão geral da abordagem
experimentalista de Lakoff e Johnson.18 Eleanor Rosch, Carolyn Mervis, Wayne Gray,
David Johnson e Penny
Boyes-Braem, "Basic Objects in Natural Categories", Cognitive
Psychology, n. 8 (1976), pp. 382-439.Antes do indivíduo
INDIVIDUAÇÃO E EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
LUIZ B. L. ORLANDI
À medida que lia pela primeira vez um conjunto de textos dedicados por
Gilbert Simondon e Gilles Deleuze ao problema da
individuação, textos finalmente publicados em boa hora neste volume 22,
sentia-me transformando em nuvem. Pior ainda, nuvem mais complicada
que as do céu, poeira de palavras movendo-se ao sabor de um descontrole
de ventos-frases. Ao reler o mesmo conjunto pela enésima vez, sinto que
me recupero muito lentamente daquele caos, daquele estado de interfusões
e extravios, daquele estado, digamos, de metaestabilidade, estado
brumoso, enfim. “A bruma solar”, diz Deleuze a propósito da descrição
que Thomas Edward Lawrence faz do deserto, “é o primeiro estado da
percepção nascente”, a “miragem na qual as coisas sobem e descem” 23,
como que indecisas quanto as suas próprias individualidades. Agora já
percebo algumas direções marcadas pelos ventos. Vejo que certas palavras
se atraem, reagrupando-se em cumplicidades conceituais, e isto
acontecendo numa luta em que elas experimentam sua capacidade de erigir
um domínio que outras palavras, distintamente imantadas, não teriam
conseguido circunscrever. Que novo domínio estaria sendo traçado por
esses textos, por essa nova maneira de dizer o problema da
individuação?
Ora, essa pergunta já estava querendo impor-se desde quando minhas
primeiras e nebulosas leituras sofriam o assédio desses textos. Ela continua
arregimentando a construção das minhas próprias frases, de tal modo que
um texto a ser por mim assinado começa a sofrer sua própria individuação
como resposta a essa pergunta, começa a compor-se, mesmo que de modo
indeciso, insuficiente ou errático, como aparentemente uno em si e distinto
daqueles outros também destinados a respondê-la. Repito a pergunta, como
se esta fôra um barco navegando de olho na variação dos sinais que vão
22
O Problema da individuação, seleção e tradução de Ivana Medeiros: I- Gilbert
SIMONDON, “O
indivíduo e sua gênese físico-biológica - Introdução” ; II - Gilles DELEUZE,
“Gilbert Simondon: o
indivíduo e sua gênese físico-biológica”.
23
DELEUZE, Gilles, Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993, p.144.mapeando sua
própria errância: que domínio está se erigindo quando esses
textos de Simondon e Deleuze redizem o problema da individuação?
Numa resumida história de conceitos, a individuação aparece como
problema explícito quando a questão da realidade do ser se contrai, se
encolhe numa viva atenção ao indivíduo, ao ente que se apresenta como
dado em sua imediatidade, este cristal, este vegetal, esta mulher ou esta
voz de cristal em Gal. Cada um desses entes, pensado como essência
inferior em Platão ou como substância primeira em Aristóteles,
fundamento e sujeito real dos predicados, foi considerado como indivíduo
pronto, como individuum, como não-dividido, como atomon. Se divido
esta flor em duas partes, já não posso oferecê-la assim inteira, como
individuo-camélia colhido no jardim de Zilda, ali onde vislumbro uma
pluralidade de outras camélias inteiras; posso também obter indivíduos-
pétalas, mas, a cada vez, o que preciso observar é se obtive uma
individualidade que resista em si como única entre as demais. Se divido
Sócrates ao meio, a coisa é mais grave, pois cometo homicídio com a
agravante de não obter uma duplicação de filósofo. Quando
Aristóteles24diz que Sócrates é um indivíduo único num conjunto
numericamente múltiplo, ele não está pensando na animalidade racional de
Sócrates, pois isto equivaleria a salientar tão somente a unidade formal
pela qual Sócrates e todos os homens se definem genérica e
universalmente como animais racionais. É por estar ligada à materialidade-
Sócrates que a animal-racionalidade-Sócrates pode ser encontrada pelos
habitantes de Atenas nos limites de um indivíduo inconfundível,
justamente ele que tinha a fama de confundir os demais com suas
perguntas pelo ser do ente. O indivíduo-Sócrates é um todo-inteiro de
matéria e forma, como se dizia, nem disperso na pura materialidade, nem
evaporando-se na pura generalidade. Pois bem, se atribuirmos à matéria o
poder de limitar uma forma universal, forma que, então, ganha os
contornos de uma indivídualidade, estaremos encontrando a resposta por
assim dizer aristotélica que um filósofo árabe do século XI, Avicena,
procurava para o problema que o atraiu e que nós herdamos, qual seja, o
problema da constituição do indivíduo: o que faz com que uma substância
ou natureza comum a vários se torne este ou aquele indivíduo?
24
ARISTÓTELES, Metafísica, XII,8,1074 a 33ss.Feita à maneira tradicional, essa
pergunta recebeu respostas que
variaram ao longo dos séculos. De um lado, diz Simondon, o
substancialismo atomista estabelece a individuação como um fato: seja
tomando o átomo como existência dada, seja apreendendo o composto
como fato resultante de um “encontro ao acaso”. Por outro lado, a posição
dominante caracteriza-se como um hilemorfismo que - privilegiando ora a
forma, ora a matéria, ora dosando combinações de ambas - procura dizer o
princípio de individuação, isto é, o princípio pelo qual o indivíduo é
individuável e individuado. Em sua resposta, Tomas de Aquino, por
exemplo, elabora a difícil noção de “matéria signata quantitate”, isto é, a
matéria disposta a variações de quantidade25. Respostas desse tipo, como
pode ser visto, são reunidas por Simondon como aplicações de um
esquema hilemórfico, isto é, um esquema que pensa a própria operação de
individuação como dependente de um princípio de individuação, um
princípio “contido na matéria ou na forma”. Tal esquema estaria supondo,
diz ele, uma “sucessão temporal” que, partindo do princípio de
individuação, chegaria ao indivíduo constituído depois de passar por aquilo
que esse esquema não estaria tematizando suficientemente: a própria
operação de individuação. Simondon está de olho nesse meio, nessa zona
obscura, um entremeio que certa tradição teria maltratado em suas
maneiras de ligar indivíduo pronto e princípio de individuação.
É a operação de individuação, ela mesma, portanto, que Simondon
reexamina. Ele o faz de tal modo que acaba abalando dois ancoradouros
tradicionais do pensamento. Nesse reexame, o princípio de individuação
não passará de um efeito daquela operação, ao mesmo tempo em que o
indivíduo não mais terá o monopólio do ser concreto em sua totalidade.
Para se sustentar esse resultado, é preciso pensar a individuação como
complexa operação ativada numa realidade pré-individual, num campo
de singularidades pré-individuais, campo cujos potenciais não se
esgotam nem mesmo na individuação. Para exemplificar isso, pensemos
um vegetal individuando-se no meio de um sistema que, por não
confundir-se com ele, é dito sistema pré-individual. Neste exemplo, o
sistema é composto de duas regiões, de duas ordens de realidade: uma
“ordem cósmica”, com sua energia luminosa, e uma “ordem
inframolecular”, com suas “espécies químicas distribuídas no solo e na
25
TOMÁS DE AQUINO, De ens et essentia, 2.atmosfera”, espécies “classificadas e
repartidas” justamente “por meio”
daquela energia luminosa “recebida na fotossíntese”. O vegetal vive
individuando-se como aquilo que vai dobrando, segundo estratégias de
entrelaçamento do dentro e do fora, do self e do non-self, como diria
Francisco Varela26, uma ordem pré-individual na outra; vive compondo-se
como mediação entre essas ordens, como ressonância interna de um
“sistema pré-individual feito de duas regiões de realidade primitivamente
sem comunicação”.
Posso agora retomar a pergunta feita anteriormente: que domínio se
erige com essa nova maneira de dizer o problema da individuação? Com
palavras de Deleuze, o domínio que se erige é o de uma “nova concepção
do transcendental”27. Sabe-se que Deleuze emprega um nome paradoxal
para designar essa concepção: empirismo transcendental 28. Roberto
Machado29 lembra que esse nome já se preparava, na obra de Deleuze,
desde os anos cinqüenta e início dos anos sessenta, na confluência de
pequenos e magníficos estudos dedicados a Hume e a Kant. Resumindo:
De um lado, Deleuze valoriza, em Hume, a idéia de separar as
relações e os termos que se encontram relacionados; valoriza, portanto, a
iniciativa humeana de estabelecer uma “dualidade empírica” entre “os
termos e as relações”, dualidade situada para além da dualidade, também
humeana, entre as impressões e as idéias30. Como se justifica essa
valorização? O empirismo de Hume, como diz Michel Malherbe, não é um
“empirismo vulgar”, aquele que reduz o conhecimento a uma “relação
entre um sujeito real e um objeto já constituído”31. Para Deleuze, ao
afirmar que “as relações são exteriores aos seus termos”, havendo
impressões e idéias de termos e distintas impressões e idéias de relações,
Hume estaria elevando “o empirismo a uma potência superior”, a potência
26 COSTA, Rogério da, Limiares do contemporâneo - Entrevistas, São Paulo, Escuta,
1993, p.83.
27 DELEUZE, G., Logique du sens, Paris, Minuit,1969,p.126, n.3; tr.br. de
L.R.Salinas Fortes, Lógica do
sentido, SP,Perspectiva,1974,p.107, n.3.
28
DELEUZE,G., Différence et répétition, Paris,PUF,1968,pp.186,187; tr.br. de Luiz
B.L.Orlandi e
Roberto Machado, Diferença e repetição, RJ,Graal,1988,pp.236,237.
29 MACHADO, Roberto, Deleuze e a filosofia, RJ,Graal,1990,pp.139ss.
30 DELEUZE,G., Empirisme et subjectivité, Paris,PUF,1953,p.122.
31 MALHERBE,
Michel, Kant ou Hume - ou la raison et le sensible, Paris,Vrin,1980,p.12.capaz de
descortinar um “mundo de exterioridade”, mundo em que o
próprio pensamento está em relação fundamental com o Fora”, mundo em
que as relações não derivam de termos, mas são como “passagens
externas”. É justamente graças a relações assim entendidas que o sujeito
humeano pode ultrapassar o imediatamente dado, ultrapassagens que se
dão num mundo feito de tecido “conjuntivo”, este em que “a conjunção e
destrona a interioridade do verbo é”, mundo rizomático, enfim32.
Por outro lado, Deleuze aponta o que julga ser insuficiente no
transcendental kantiano. Recordemos que, segundo ele, o termo
transcendental, com Kant, “qualifica o princípio de uma submissão
necessária dos dados da experiência às nossas representações a priori e,
correlativamente, de uma aplicação necessária das representações a priori
à experiência”, com o que se dispensaria a “idéia de uma harmonia entre o
sujeito e o objeto”33. Pois bem, o que Deleuze desvaloriza em Kant é o ter
ele acreditado que se possa induzir o transcendental a partir das “formas
empíricas ordinárias, tais como elas aparecem sob a determinação do senso
comum”; desvaloriza, pois, o “decalque do transcendental sobre o
empírico”, decalque que só não acontece, segundo ele, em passagens
dedicadas por Kant ao sublime na terceira Crítica 34,
Ora, o que pretende Deleuze, precisamente, com essa reapropriação
dissimétrica de iniciativas de Hume e Kant? Ele pretende dizer que a
exploração do domínio e das regiões do transcendental depende justamente
do exercício de um empirismo dito superior. Que significa isto? Significa,
no caso de qualquer faculdade, por exemplo, levá-la a um “exercício
transcendente não decalcado sobre o exercício empírico” vulgar, de tal
modo que, indo além das apreensões que costuma efetuar a partir “do
ponto de vista de um senso comum”, essa faculdade possa ir até o ponto de
sentir-se presa de tudo aquilo que “a força a exercer-se; assim procedendo,
ela pode vir a descobrir “a paixão que lhe é própria” 35 ; pode vir a
32 DELEUZE,G.,”Hume”,
in CHÂTELET,Fr.(org.), Histoire de la philosophie, vol.4, Les lumires, (Le
XVIIIème siècle),Paris,Hachette,1972,pp.66,67; tr.br. do artigo de Deleuze feita
por Guido de Almeida,
RJ,Zahar,1982, pp. 60,61.
33 DELEUZE,G.,La
philosophie critique de Kant, Paris,PUF,1963,pp.22,23.
34 DELEUZE,G.,Dif.
35 Idem,
ibidem.
et rép., op.cit., pp.186,187,187n.; tr.br.,pp.236,237,237n.descobrir os sistemas de
diferenças, as multiplicidades , as problemáticas,
as disparações em que ela própria é extremada e até extressada. Neste
sentido, praticar o empirismo transcendental implica viabilizar forças
eminentemente subver/sivas: indo por ele, experimentando-o, conforme
um “tipo de experiência muito particular” e que “permite descobrir as
multiplicidades”, como adverte e antevê Deleuze 36 , indo por ele, repito, a
primeira advertência é desconfiar de pontos de vista sobrepostos em
relação a este ou àquele campo de estudos; trata-se de, com cuidado e
operações especiais, colocar-se à disposição das emissões daquilo que se
estuda; é preciso lavrar contatos numa ambiência de reciprocidades de
aberturas, tendo-se em vista que estas são violenta ou suavemente impostas
pelas ações dos díspares. Ou seja, a exploração de um campo empírico-
transcendental exige variações ardilosas, como as operações de um
sub/ver, de um entre/ver, de um intra/ver, extra/ver, trans/ver etc,
operações articuladas no meio das maquinarias em que se agenciam níveis
disparatados de naturalidades e artificialidades; exige refinamentos táticos
da disposição de contemplar e contrair as intensidades de x, as pulsações
de uma questão, as intensificações que determinado problema exala em sua
pauta de efetuações. Mireille Buydens salienta justamente a "natureza
intensiva" das "singularidades nômades, impessoais e pré-individuais" que
povoam o campo transcendental, marcando-se, assim, o caráter virtual
desse campo, dado que pensar a singularidade em sua natureza intensiva
exige que se evite concebê-las tão somente como "infinitesimais", por
exemplo, concepção que apenas restauraria o império dos indivíduos 37 . A
exploração desse campo intensivo implica não só uma abertura do sensível
como também exige que se deixe a coisa “pensar em mim”, como diz
Pierre Lévy, exige, em suma, colocar-se como ampla suscetibilidade a
“possíveis metamorfoses sob o efeito” dos problemas 38 .
36 DELEUZE,G.,
“Lettre-préface”, in Jean-Clet MARTIN,
Variations - La philosophie de Gilles
Deleuze, Paris, Payot, 1993, p.8.
37
BUYDENS, Mireille, Sahara, L'Esthétique de Gilles Deleuze, Paris, Vrin, 1990, pp.
17, 14. (Agradeço
a Paulo César Lopes a lembrança desse interessante estudo).
38 LÉVY,Pierre,
1993,p.11.
As tecnologias da inteligência (1990), tr.br. de Carlos Irineu da Costa,
RJ,Ed.34,Pois bem, é nessa perspectiva de um empirismo transcendental que o
texto de Deleuze está lendo os textos de Simondon. Voltemos aos
indivíduos que encontramos em nossas relações empírico-vulgares. Em
vez de simplesmente abarcá-los com a ajuda de categorias mobilizadas em
estratégias dedutivas ou indutivas, devo operar transduções, diz Simondon.
Isto quer dizer que, ao inverso da dedução, esta operação que “procura
alhures um princípio para resolver o problema de um domínio”, a
transdução, mais sutil, deve “extrair das próprias tensões” desse domínio a
“estrutura” capaz de resolvê-las; isto também quer dizer, por outro lado,
que , embora a indução procure também extrair estruturas da “análise dos
próprios termos do domínio estudado”, ela acaba fraquejando ao conservar
tão somente o que “há de comum a todos os termos”, ao passo que a
transdução procura “descobrir dimensões”, vasculhar a problemática,
detetar disparidades etc, e dizer tudo isso com “a menor perda possível de
informação".
Pode-se ver que essa idéia de transdução sinaliza no sentido da
exploração de domínios empírico-transcendentais. Assim, para transduzir o
indivíduo, devo perguntar, por exemplo, pelo sistema no qual está ele
tomado no exercício de sua própria individuação, sistema dito metaestável
( nem estável, nem instável), sistema metaestável de singularidades pré-
individuais; devo perguntar pela ação dos díspares, pela disparação entre
pelo menos duas “escalas de realidades díspares”, disparação que, para
Deleuze, “define essencialmente um tal sistema”, sistema que implica,
portanto, uma “estado de dissimetria”, uma “diferença fundamental”. E
como devo perguntar pelo “problema colocado pelos díspares”? Devo
fazê-lo, parece-me, indiretamente, capturando a própria operação de
individuação como passagem que resolve, na composição do indivíduo,
um campo problemático pré-individual, campo distendido nas tensões
dos díspares. Com ou sem ironia ou humor, devo pensar o indivíduo que
vejo como sendo um precário, mutante e mutagênico revestimento de uma
individuação que se agita por ser “organização de uma solução”, por ser
“resolução para um sistema objetivamente problemático”.
Com Jean-Clet Martin, pode-se resumir deste modo as exigências
que se impõem a quem pretenda estudar um domínio empírico-
transcendental: estar atento ao “campo de resolução”, este campo de
realidade-atual, campo em que se “cristalizam singularidades segundo
percursos determinados”; mas essa atenção deve prolongar-se paraexplorar o “campo
problemático”, esse campo de realidade-virtual, campo
em que as singularidades pré-individuais se distribuem nomadicamente
como “instâncias topológicas” não ainda direcionadas39.
Finalmente, lembremos apenas que Deleuze retoma a inspiração de
Simondon em vários pontos de sua obra. Isto não quer dizer que deixe de
existir um importante desacordo. Por exemplo, ao mesmo tempo em que
destaca, concordando com Simondon, a “importância das séries
disparatadas e de sua ressonância interna na constituição dos sistemas”,
Deleuze evita a condição ainda mantida por Simondon às páginas 254-257
do seu livro, qual seja, “a exigência de semelhança entre séries ou de que
sejam pequenas as diferenças postas em jogo”. Ora, essa observação
crítica, essa manifestação de interessante acordo-discordante, acontece no
momento em que Deleuze enfrenta o que chama de “dificuldade maior”,
acontece quando pergunta pela “condição” da “comunicação entre séries
heterogêneas”, quando pergunta pelo seu “acoplamento” ou “ressonância”
interna, evitando aceitar, como resposta, que essa condição seja a de “um
mínimo de semelhança entre as séries” ou de uma “identidade no agente
(ou força) que opera a comunicação”. A resposta propriamente deleuziana
fala em “diferenciador”, em “precursor sombrio”, em “díspar”, em “em-si
da diferença”, em “diferentemente diferente”, em “objeto=x”, aquele que
“se desloca perpetuamente em si mesmo e se disfarça perpetuamente nas
séries”, resposta que remete de modo permanente ao estatuto do
problemático 40 . Mas é também certo que Deleuze vê em L’individu...,
apesar de não acompanhar as “conclusões” desse livro, a “primeira teoria
racionalizada das singularidades impessoais e pré-individuais”. Diz ainda
que Simondon nele analisa as “cinco características” pelas quais ele
próprio, Deleuze, tenta “definir o campo transcendental”. Essas
características já foram aqui esboçadas. Como não podemos estudá-las em
detalhe, por que, então, fazer mais uma passageira referência a elas?
O primeiro motivo é chamar a atenção para a importância que o texto
de Simondon ganha no conjunto da obra de um filósofo tão criativo e tão
mergulhado na história da filosofia quanto é Deleuze. O segundo motivo
explica o primeiro, mas dá também um sinal às divergências existentes
entre esses autores e que não pudemos aqui desenvolver: a reapropriação
39 MARTIN,
J-C, op.cit., p.22; sobre empirismo transcendental, ver cap.2.
40 DELEUZE,G.,
DR, op.cit., pp.158, 156 ss.; tr.br., pp. 201,199 ss.deleuziana do texto de
Simondon é mais do que um amparo bibliográfico
para conceitos já elaborados; ela participa de conceituações e
reconceituações em andamento; ela se imiscui como dobra criativa no
fluxo discursivo a que Deleuze se entrega; ela opera, funciona em linhas
decisivas do sistema deleuziano, do planômeno dessa filosofia da
diferença; engrena-se produtivamente com a maquinaria conceitual que a
deglute. Para se ter uma ligeira idéia disso, é suficiente ler esta passagem
de Logique du sens, passagem relativa à primeira característica do campo
transcendental, o campo que Deleuze procura determinar para evitar a
mera oscilação entre “campos empíricos”e “profundidade indiferenciada”:
“em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentos correspondem a
séries heterogêneas que se organizam em um sistema nem estável nem
instável, mas ‘metaestável’, provido de uma energia potencial em que se
distribuem as diferenças entre séries”, sendo, “a energia potencial”, diz ele,
“a energia do acontecimento puro, ao passo que as formas de atualização
correspondem às efetuações do acontecimento”.
Confusão? Se há, deve ser nossa. Deleuze sabe muito bem o que está
fazendo e com que ardil o faz! Com aquele hífen imbricando
singularidades-acontecimentos, ele está reativando, por contato poroso
com o texto de Simondon, seu próprio conceito empírico-transcendental de
acontecimento, sendo este um dos probletemas mais reincidentes em sua
obra e que acabará exigindo uma atenção especial ao conceito de
virtualidade. Na quinta característica do campo transcendental, a
complicação se rearma: “em quinto lugar, esse mundo do sentido tem por
estatuto o problemático: as singularidades se distribuem num campo
propriamente problemático e advêm neste campo como acontecimentos
topológicos aos quais não está ligada qualquer direção”. Por que a
complicação aqui se rearma? Porque há muito Deleuze vem urdindo a
relação acontecimento/problemático: “o modo do acontecimento”, diz ele,
“é o problemático”41. E ambos os conceitos, além de muitos outros mais,
são tratados de tal modo que neles se adensa essa perspectiva de
exploração de mundos empírico-transcendentais, perspectiva praticada
com competência justamente por esse texto tão reverenciado de Simondon.
41 DELEUZE,G.,
LS, op.cit., pp.126,125,127,69; tr.br., pp.107,106,57.Mas esses mundos empírico-
transcendentais existem de verdade? Aí
está a pergunta que denuncia minha recaída em brumas, agora já não mais
solares.A gênese do indivíduo
GILBERT SIMONDON
I NTRODUÇÃO 42
Existem duas vias segundo as quais a realidade do ser como
indivíduo pode ser abordada: uma via substancialista, que considera
o ser como consistindo em sua unidade, dado por si próprio,
fundado sobre si mesmo, inengendrado, resistente ao que não é ele
próprio; uma via hilemórfica, que considera o indivíduo como
engendrado pelo encontro de uma forma e de uma matéria. O
monismo, centrado em si mesmo, do pensamento substancialista
opõe-se à bipolaridade do esquema hilemórfico. No entanto, há algo
em comum nestas duas maneiras de abordar a realidade do
indivíduo: ambas supõem que existe um princípio de individuação,
capaz de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. A partir do
indivíduo constituído e dado, esforçamo-nos para remontar às
condições de sua existência. Essa maneira de colocar o problema da
individuação, partindo da constatação da existência de indivíduos,
encerra uma pressuposição que deve ser elucidada, porque conduz a
um aspecto importante das soluções que propomos e se insinua na
busca do princípio de individuação: é o indivíduo, enquanto
indivíduo constituído, que é a realidade interessante, a realidade a
explicar. O princípio de individuação será investigado como um
princípio capaz de explicar os caracteres do indivíduo, sem relação
necessária com outros aspectos do ser que poderiam ser correlativos
da aparição de um real individuado. Tal perspectiva de investigação
atribui um privilégio ontológico ao indivíduo constituído. Logo, ela
corre o risco de não operar uma verdadeira ontogênese, de não
colocar o indivíduo no sistema de realidade em que a individuação
se produz. Que a individuação tenha um princípio, isso é um
postulado na pesquisa do princípio de individuação. Na própria
noção de princípio, há um certo caráter que prefigura a
individualidade constituída, com as propriedades que terá quando
estiver constituída; a noção de princípio de individuação decorre, de
certo modo, de uma gênese às avessas, de uma ontogênese invertida:
42 Este
texto é a Introdução do livro L’Individu et Sa Genese Physico-Biologique, de
Gilbert
Simondon, PUF, 1964.para explicar a gênese do indivíduo, com seus caracteres
definidos, é
necessário supor a existência de um primeiro termo, o princípio, que
traz em si o que explicará que o indivíduo seja indivíduo e dará a
razão de sua hecceidade. Mas faltaria mostrar de maneira precisa
que a ontogênese pode ter, como condição primeira, um termo
primeiro: um termo já é um indivíduo ou, pelo menos, algo
individualizável e que pode ser origem de hecceidade, que é possível
converter em hecceidades múltiplas; tudo o que pode ser origem de
relação já é do mesmo modo de ser que o indivíduo, quer seja o
átomo, partícula insecável e eterna, a matéria-prima ou a forma: o
átomo pode entrar em relação com outros átomos pelo clinâmen e
constituir, assim, um indivíduo, viável ou não, através do vazio
infinito e do devir sem fim. A matéria pode receber uma forma, e
nesta relação matéria-forma se encontra a ontogênese. Se não
houvesse certa inerência da hecceidade ao átomo, à matéria ou à
forma, não haveria possibilidade de encontrar, nas realidades
invocadas, um princípio de individuação. Procurar o princípio de
individuação em uma realidade que precede a própria individuação
é considerar a individuação unicamente como ontogênese. Nesse
caso, o princípio de individuação é origem de hecceidade. Com
efeito, tanto o substancialismo atomista quanto a doutrina hilemórfica
evitam a descrição direta da própria ontogênese; o atomismo
descreve a gênese do composto, como o corpo vivo, que só tem
uma unidade precária e perecível, que resulta de um encontro casual
e que irá se dissolver novamente em seus elementos quando uma
força, maior que a força de coesão dos átomos, atacá-lo em sua
unidade de composto. As próprias forças de coesão, que poderíamos
considerar como princípio de individuação do indivíduo composto,
são rejeitadas na estrutura das partículas elementares que existem
pela eternidade afora e são os verdadeiros indivíduos; no atomismo, o
princípio de individuação é a própria existência da infinidade dos
átomos: já está presente no momento em que o pensamento quer
tomar consciência de sua natureza: para cada átomo, a individuação é
um fato, é sua própria existência dada e, para cada composto, é o
fato de ser o que é em virtude de um encontro casual. Segundo o
esquema hilemórfico, ao contrário, o ser individuado ainda não é
dado quando consideramos a matéria e a forma que se tornarão o s
### nolon43: não assistimos à ontogênese porque sempre nos
43 σ###νολον
− termo
grego
FRANÇAIS de A. Bailly,
que
significa
Hachette). Para
o
total,
o conjunto (Cf.
Dictionnaire
GREC-
Aristóteles σ ### νολον designa a substância, ocolocamos antes dessa tomada de
forma que é a ontogênese; logo, o
princípio de individuação não é apreendido na própria individuação
como operação, mas naquilo que esta operação necessita para poder
existir, isto é, uma matéria e uma forma: supomos que o princípio
está contido na matéria ou na forma, porque supomos que a operação
de individuação não é capaz de conter o próprio princípio, mas
unicamente de utilizá-lo. A pesquisa do princípio de individuação
realiza-se antes ou depois da individuação, conforme o modelo seja
tecnológico e vital (para o esquema hilemórfico) ou físico (para o
atomismo substancialista). Mas, em ambos os casos, existe uma zona
obscura que recobre a operação de individuação. Esta operação é
considerada como coisa a explicar e não como aquilo em que a
explicação deve ser encontrada: daí a noção de princípio de
individuação. E a operação é considerada como coisa a explicar
porque o pensamento tende para o ser individuado acabado, do qual
é necessário dar uma explicação, passando pela etapa da
individuação para chegar ao indivíduo após a operação. Logo, há
suposição da existência de uma sucessão temporal: primeiro, existe o
princípio de individuação; em seguida, este princípio opera em uma
operação de individuação; por fim, o indivíduo constituído aparece.
Se, ao contrário, supuséssemos que a individuação não produz
apenas o indivíduo, não
procuraríamos passar rapidamente pela
etapa de individuação para chegar a esta realidade última que é o
indivíduo: tentaríamos apreender a ontogênese em todo o
desenvolvimento de sua realidade, e conhecer o indivíduo pela
individuação muito mais do que a individuação a partir do
indivíduo.
Desejaríamos mostrar que é necessário operar uma reversão na
investigação do princípio de individuação, considerando como
primordial a operação de individuação a partir da qual o indivíduo
vem a existir e da qual ele reflete o desenrolar, o regime e, por
fim, as modalidades em seus caracteres. Então, o indivíduo seria
apreendido como uma realidade relativa, uma determinada fase do
ser que supõe uma realidade pré-individual anterior a ela, e que não
existe completamente só, mesmo depois da individuação, pois a
individuação não esgota de uma única vez os potenciais da realidade
pré-individual; por outro lado, o que a individuação faz aparecer é
composto de matéria e de forma. (N.T.)não só o indivíduo, mas também o par
indivíduo-meio44. Dessa
maneira, o indivíduo é relativo em dois sentidos: porque ele não é
todo o ser e porque resulta de um estado do ser em que ele não
existia como indivíduo, nem como princípio de individuação.
Por conseqüência, unicamente a individuação, enquanto
operação do ser completo, é considerada como ontogenética. A
individuação deve, então, ser considerada como resolução parcial e
relativa, que se manifesta em um sistema contendo potenciais e
encerrando uma certa incompatibilidade em relação a si próprio,
incompatibilidade feita tanto de forças de tensão quanto de
impossibilidade de uma interação entre termos extremos das
dimensões.
A palavra ontogênese ganha todo o seu sentido se, em vez de
lhe atribuirmos o sentido, restrito e derivado, de gênese do indivíduo
(em oposição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da espécie),
fazemo-la designar o caráter de devir do ser, aquilo por que o ser
devém enquanto é, como ser. A oposição do ser e do devir só pode
ser válida no interior de certa doutrina, supondo que o modelo
próprio do ser é a substância. Contudo, também é possível supor que
o devir é uma dimensão do ser, corresponde a uma capacidade que
o ser tem de defasar-se em relação a si próprio, de resolver-se
defasando-se; o ser pré-individual é o ser em que não existe fase;
o devir é o ser em cujo seio se efetua uma individuação, o ser em
que uma resolução aparece pela sua repartição em fases; o devir não
é um quadro no qual o ser existe; ele é dimensão do ser, modo de
resolução de uma incompatibilidade inicial, rica em potenciais45. A
individuação corresponde à aparição de fases no ser, as fases do
ser; ela não é uma conseqüência depositada ao lado do devir e
isolada, mas esta própria operação enquanto se efetua; só podemos
compreendê-la a partir dessa supersaturação inicial do ser homogêneo
e sem devir que, em seguida, se estrutura e devém, fazendo aparecer
indivíduo e meio, em conformidade com o devir, que é uma
resolução das tensões primeiras e uma conservação dessas tensões
sob forma de estrutura; em certo sentido, poderíamos dizer que o
44 Aliás,
o meio pode não ser simples, homogêneo, uniforme, mas ser originalmente atravessado
por uma tensão entre duas ordens extremas de grandeza que o indivíduo mediatiza
quando vem
a ser.
45 E
constituição de uma ordem de grandeza mediata entre termos extremos; o próprio
devir
ontogenético, em certo sentido, pode ser considerado como mediação.único princípio
pelo qual podemos nos orientar é o da conservação
do ser pelo devir; essa conservação existe pelas trocas entre estrutura
e operação, procedendo por saltos quânticos entre equilíbrios
sucessivos. Para pensar a individuação é necessário considerar o ser,
não como substância, matéria ou forma, mas como sistema tenso,
supersaturado, acima do nível da unidade; não consistindo
unicamente em si mesmo e
não podendo ser pensado,
adequadamente, mediante o princípio do terceiro excluído; o ser
concreto ou ser completo, isto é, o ser pré-individual, é um ser que
é mais que uma unidade.
A unidade, característica do ser
individuado, e a identidade, que autoriza o uso do princípio do
terceiro excluído, não se aplicam ao ser pré-individual, o que explica
a impossibilidade de o mundo ser recomposto, posteriormente, com
mônadas, mesmo acrescentando-lhes outros princípios, como o de
razão suficiente, para ordená-las em universo; a unidade e a
identidade só se aplicam a uma das fases do ser, posterior à
operação de individuação; essas noções não podem ajudar a descobrir
o princípio de individuação; elas não se aplicam à ontogênese,
entendida no sentido pleno do termo, isto é, ao devir do ser
enquanto ser que se desdobra e se defasa individuando-se.
A individuação não pôde ser pensada e descrita de maneira
adequada porque uma única forma de equilíbrio era conhecida, o
equilíbrio estável; o equilíbrio metaestável não era conhecido; o ser
era implicitamente suposto em estado de equilíbrio estável; ora, o
equilíbrio estável exclui o devir, pois corresponde ao mais baixo
nível possível de energia potencial; é o equilíbrio atingido em um
sistema quando todas as transformações possíveis foram realizadas e
não existe mais nenhuma força; todos os potenciais se atualizaram, e
o sistema não pode se transformar novamente, tendo atingido o seu
mais baixo nível energético. Os Antigos só conheciam a instabilidade
e a estabilidade, o movimento e o repouso, não conheciam clara e
objetivamente a metaestabilidade. Para definir a metaestabilidade é
necessário fazer intervir a noção de energia potencial de um sistema,
a noção de ordem e a de aumento da entropia; assim, é possível
definir este estado metaestável do ser, muito diferente do equilíbrio
estável e do repouso, que os Antigos não podiam fazer intervir na
investigação do princípio de individuação, porque, para eles, nenhum
paradigma físico preciso podia esclarecer o seu emprego46.
46 Existiu
entre os Antigos
equivalentes intuitivos e normativos da noção de metaestabilidade;
mas, como a metaestabilidade geralmente supõe a presença simultânea de duas ordens
deTentaremos, portanto, apresentar primeiro a individuação física como
um caso de resolução de um sistema metaestável, a partir de um
estado de sistema como o da superfusão ou da supersaturação que
preside a gênese dos cristais. A cristalização é rica em noções muito
estudadas e que podem ser empregadas como paradigmas em outros
domínios; ela não esgota, no entanto, a realidade da individuação
física.
Ora, podemos supor também que a realidade, em si mesma, da
mesma maneira que a solução supersaturada e ainda de modo mais
completo no regime pré-individual, mais que unidade e mais que
identidade, é primitivamente capaz de se manifestar como onda ou
corpúsculo, matéria ou energia, porque toda operação, e toda relação
no interior de uma operação, é uma individuação que desdobra,
defasa o ser pré-individual, correlacionando simultaneamente valores
extremos, ordens de grandeza primitivamente sem mediação. A
complementaridade seria, então, a repercussão epistemológica da
metaestabilidade primitiva e original do real. Nem o mecanicismo,
nem o energetismo, teorias da identidade, explicam a realidade de
maneira completa. A teoria dos campos, acrescentada à dos
corpúsculos, e a teoria da interação entre campos e corpúsculos,
ainda são parcialmente dualistas, mas encaminham-se para uma
teoria do pré-individual. A teoria dos quanta, por outra via,
apreende este regime do pré-individual que ultrapassa a unidade:
uma troca de energia se faz por quantidades elementares, como se
houvesse uma individuação da energia na relação entre as partículas,
que, em um sentido, é possível considerar como indivíduos físicos.
Nesse sentido é que poderíamos assistir à convergência de duas
novas teorias que, até hoje, se mantiveram impenetráveis, a dos
quanta e a da mecânica ondulatória: elas poderiam ser consideradas
como duas maneiras de exprimir o pré-individual pelas diferentes
manifestações em que ele intervém como pré-individual. Sob o
contínuo e o descontínuo há o quântico e o complementar
metaestável (o mais que unidade), que é o verdadeiro pré-individual.
A necessidade de corrigir e de acoplar os conceitos de base em
física, talvez traduza o fato de os conceitos serem adequados
unicamente à realidade individuada, e não à realidade pré-
individual.
grandeza e a ausência de comunicação interativa entre elas, este conceito deve
muito ao
desenvolvimento das ciências.Compreenderíamos, então, o valor paradigmático do
estudo da
gênese dos cristais como processo de individuação: ele permitiria
apreender, em uma escala macroscópica, um fenômeno que repousa
sobre estados de sistema pertencentes ao domínio microfísico,
molecular e não molar; apreenderia a atividade que ocorre no limite
do cristal em formação. Tal individuação não é o encontro de uma
forma e de uma matéria prévias, que existem como termos
separados, anteriormente constituídos, mas uma resolução que surge
no seio de um sistema metaestável rico em potenciais: forma,
matéria e energia preexistem no sistema. A forma e a matéria não
são suficientes. O verdadeiro princípio de individuação é mediação,
que geralmente supõe dualidade original das ordens de grandeza e
ausência inicial de comunicação interativa entre elas, em seguida,
comunicação entre ordens de grandeza e estabilização.
Ao mesmo tempo que uma energia potencial (condição de
ordem de grandeza superior) se atualiza, uma matéria se ordena e se
divide ( condição de ordem de grandeza inferior) em indivíduos
estruturados em uma ordem de grandeza média, que se desenvolve
por um processo mediato de amplificação.
O regime energético do sistema metaestável é que conduz à
cristalização e a sustenta, a forma dos cristais exprime, porém,
certos caracteres moleculares ou atômicos da espécie química
constituinte.
No domínio do vivo, a mesma noção de metaestabilidade pode
ser utilizada para caracterizar a individuação; mas a individuação não
se produz mais, como no domínio físico, apenas de maneira
instantânea, quântica, brusca e definitiva, deixando atrás de si uma
dualidade do meio e do indivíduo, o meio empobrecido do indivíduo
que ele não é, e o indivíduo não tendo mais a dimensão do meio.
Sem dúvida, tal individuação existe também para o vivo, como
origem absoluta, mas é acompanhada de uma individuação perpétua
que é a própria vida, conforme o modelo fundamental do devir: o
vivo conserva em si uma atividade permanente; ele não só é
resultado de individuação, como o cristal ou a molécula, mas também
teatro de individuação. A atividade do vivo, por conseqüência, não
está toda concentrada em seu limite, como a do indivíduo físico;
existe nele um regime mais completo de ressonância interna, que
exige comunicação permanente e mantém uma metaestabilidade que é
condição de vida. Não é esse o único caráter do vivo, e não
podemos assimilar o vivo a um autômato que manteria certo número
de equilíbrios ou buscaria compatibilidade entre várias exigências,segundo uma
fórmula de equilíbrio complexa, composta de
equilíbrios mais simples; o vivo é também o ser que resulta de uma
individuação inicial e amplifica esta individuação, o que não faz o
objeto técnico, ao qual o mecanicismo cibernético gostaria de
assimilá-lo funcionalmente. No vivo há uma individuação pelo
indivíduo e não apenas um funcionamento resultante de uma
individuação já efetuada, comparável a uma fabricação; o vivo
resolve problemas, não só adaptando-se, isto é, modificando sua
relação com o meio (como uma máquina pode fazer), mas também
modificando-se a si próprio, inventando novas estruturas internas,
introduzindo-se completamente na axiomática dos problemas vitais.47
O indivíduo vivo é sistema de individuação, sistema individuante e
sistema individuando-se; a ressonância interna e a tradução da
relação consigo próprio em informação estão neste sistema do vivo.
No domínio físico, a ressonância interna caracteriza o limite do
indivíduo individuando-se; no domínio vivo, ela devém o critério de
todo indivíduo enquanto indivíduo; ela existe no sistema do
indivíduo, e não apenas no que o indivíduo forma com seu meio; a
estrutura interna do organismo já não resulta (como a do cristal)
unicamente da atividade que se efetua e da modulação que se opera
no limite entre o domínio de interioridade e o domínio de
exterioridade; o indivíduo físico, perpetuamente descentrado, periférico
em relação a si próprio, ativo no limite de seu domínio, não tem
verdadeira interioridade; o indivíduo vivo, ao contrário, tem uma
verdadeira interioridade, porque a individuação se realiza dentro; no
indivíduo vivo o interior também é constituinte, enquanto no
indivíduo físico só o limite é constituinte, e o que é topologicamente
interior é geneticamente anterior. O indivíduo vivo é contemporâneo
de si próprio em todos os seus elementos, o que não é o indivíduo
físico, o qual contém passado radicalmente passado, mesmo quando
ainda está crescendo. O vivo, em seu próprio interior, é um núcleo
de comunicação informativa; ele é sistema em um sistema,
47 Por
esta introdução é que o vivo faz obra informacional, ele próprio tornando-se um
núcleo de
comunicação interativa entre uma ordem de realidade superior à sua dimensão e uma
ordem
inferior a esta, que ele organiza.comportando em si mesmo mediação entre duas
ordens de
grandeza.48
Em suma, é possível fazer uma hipótese análoga à dos quanta
em física, e também à da relatividade dos níveis de energia
potencial: é possível supor que a individuação não esgota toda a
realidade pré-individual, e que um regime de metaestabilidade não só
é mantido pelo indivíduo, mas também carregado por ele, de
maneira que o indivíduo constituído transporta consigo certa carga
associada de realidade pré-individual, animada por todos os
potenciais que a caracterizam; uma individuação é relativa como uma
mudança de estrutura em um sistema físico; um certo nível de
potencial se mantém e as individuações ainda são possíveis. Essa
natureza pré-individual, que permanece associada ao indivíduo, é uma
fonte de estados metaestáveis futuros de onde poderão sair novas
individuações. Segundo esta hipótese, seria possível considerar toda
verdadeira
relação como tendo posição de ser e como
desenvolvendo-se no interior de uma nova individuação; a relação
não surge entre dois termos que já seriam indivíduos; ela é um
aspecto da ressonância interna de um sistema de individuação; faz
parte de um estado de sistema. Esse vivo, que, simultaneamente, é
mais e menos que a unidade, comporta uma problemática interior e
pode entrar como elemento em uma problemática mais vasta que
seu próprio ser. A participação, para o indivíduo, é o fato de ele
ser elemento em uma individuação mais vasta, por intermédio da
carga de realidade pré-individual que o indivíduo contém, isto é,
graças aos potenciais que detém.
Torna-se, então, possível pensar a relação interior e exterior ao
indivíduo como participação, sem apelar para novas substâncias. O
psiquismo e o coletivo são constituídos por individuações produzidas
após a individuação vital. O psiquismo é continuação da
individuação vital em um ser que, para resolver sua própria
problemática, é obrigado a intervir, por sua própria ação, como
elemento do problema, como sujeito; o sujeito pode ser concebido
como a unidade do ser, enquanto vivo individuado, e como elemento
e dimensão do mundo, enquanto ser que se representa sua ação no
mundo; os problemas vitais não são fechados em si mesmos; sua
axiomática aberta só pode ser saturada por uma seqüência indefinida
48 Essa
mediação interior pode intervir como retransmissor em relação à mediação externa
que o
indivíduo vivo realiza, o que permite ao vivo fazer comunicar uma ordem de grandeza
cósmica
(por exemplo, a energia luminosa solar) e uma ordem de grandeza infra-molecular.de
individuações sucessivas que sempre introduzem mais realidade
pré-individual e incorporam-na na relação com o meio; afetividade e
percepção se integram em emoção e ciência que supõem um apelo a
novas dimensões. No entanto, o ser psíquico não pode resolver em
si mesmo sua própria problemática; sua carga de realidade pré-
individual, ao mesmo tempo que ela se individua como ser psíquico
que ultrapassa os limites do vivo individuado e incorpora o vivo em
um sistema do mundo e do sujeito, permite a participação sob forma
de condição de individuação do coletivo; a individuação sob forma
de coletivo faz do indivíduo um indivíduo de grupo, associado ao
grupo pela realidade pré-individual que traz consigo e que, reunida à
de outros indivíduos, se individua em unidade coletiva. As duas
individuações, psíquica e coletiva, são recíprocas uma em relação à
outra; elas permitem definir uma categoria do transindividual, que
contribui para a explicação da unidade sistemática da individuação
interior (psíquica) e da individuação exterior (coletiva). O mundo
psicossocial do transindividual não é o social bruto nem o
interindividual; ele supõe uma verdadeira operação de individuação a
partir de uma realidade pré-individual, associada aos indivíduos e
capaz de constituir uma nova problemática, tendo sua própria
metaestabilidade; exprime uma condição quântica, correlativa de uma
pluralidade de ordens de grandeza. O vivo é apresentado como ser
problemático, simultaneamente superior e inferior à unidade. Dizer
que o vivo é problemático é considerar o devir como uma dimensão
do vivo: o vivo é conforme o devir, que opera uma mediação. O
vivo é agente e teatro de individuação; seu devir é uma individuação
permanente, ou melhor, uma seqüência de acessos de individuação,
avançando de metaestabilidade em metaestabilidade; assim sendo, o
indivíduo não é substância nem simples parte do coletivo: o coletivo
intervém como resolução da problemática individual, o que significa
que a base da realidade coletiva já está parcialmente contida em um
indivíduo sob a forma da realidade pré-individual que permanece
associada à realidade individuada; o que geralmente consideramos
como relação, em razão da substancialização da realidade individual
é, de fato, uma dimensão da individuação por que o indivíduo
devém: a relação com o mundo e com o coletivo é uma dimensão
da individuação da qual o indivíduo participa a partir da realidade
pré-individual que se individua etapa por etapa.
Logo, psicologia e teoria do coletivo estão ligadas:
a
ontogênese é que indica o que é a participação no coletivo e
também o que é a operação psíquica, concebida como resolução deuma problemática. A
individuação que é a vida é concebida como
descoberta, em uma situação de conflito, de uma nova axiomática
incorporando e que unificando todos os elementos desta situação em
sistema que contém o indivíduo. Para compreender o que é a
atividade psíquica no interior da teoria da individuação, enquanto
resolução do caráter conflituoso de um estado metaestável, é
necessário descobrir as verdadeiras vias de instituição dos sistemas
metaestáveis na vida; neste sentido, tanto a noção de relação
adaptativa do indivíduo com o meio 49 quanto a noção crítica de
relação do sujeito do conhecimento com o objeto conhecido devem
ser modificadas; o conhecimento não se edifica de maneira abstrativa
a partir da sensação, mas de maneira problemática a partir de uma
primeira unidade tropística, par de sensação e de tropismo 50,
orientação do ser vivo em um mundo polarizado; ainda aqui é
necessário desligar-se do esquema hilemórfico; não há uma sensação
que seria uma matéria constituindo um dado a posteriori para as
formas a priori da sensibilidade; as formas a priori são uma
primeira resolução por descoberta da axiomática das tensões,
resultante do afrontamento das unidades tropísticas primitivas; as
formas a priori da sensibilidade não são a prioris nem a posterioris
obtidos por abstração, mas as estruturas de uma axiomática que
aparece em uma operação de individuação. Na unidade tropística já
há o mundo e o vivo, mas o mundo figura aí unicamente como
direção, como polaridade de um gradiente que situa o ser
individuado em uma díade indefinida, a qual se estende a partir
dele e na qual ele ocupa o ponto mediano. A percepção,
posteriormente a ciência, continuam a resolver essa problemática, não
só pela invenção dos quadros espaço-temporais, mas também pela
constituição da noção de objeto, que devém fonte dos gradientes
primitivos e que os ordena entre si em conformidade com um
mundo. A distinção de a priori e a posteriori, repercussão do
esquema hilemórfico na teoria do conhecimento, encobre, com sua
49 Particularmente,
a relação com o meio não poderia ser considerada, antes e durante a
individuação, como relação com um meio único e homogêneo: o próprio meio é
sistema,
grupamento sintético de duas ou várias escalas de realidade, sem intercomunicação
antes da
individuação.
50 Noção
introduzida por Loeb no estudo do comportamento animal, designando os fenômenos de
crescimento, de orientação local e de deslocamento. Cf. Vocabulaire Technique et
Critique de la
Philosophie, André Lalande, PUF, p. 1154. (N.T.)obscura zona central, a verdadeira
operação de individuação, que é o
centro do conhecimento. A própria noção de série qualitativa ou
intensiva merece ser pensada segundo a teoria das fases do ser: ela
não é relacional e sustentada por uma preexistência dos termos
extremos, mas se desenvolve a partir de um estado médio primitivo
que localiza o vivo e o insere no gradiente que dá um sentido à
unidade tropística: a série é uma visão abstrata do sentido, segundo
o qual a unidade tropística se orienta. É necessário partir da
individuação, do ser apreendido em seu centro em conformidade
com a espacialidade e com o devir, não de um indivíduo
substancializado diante de um mundo estranho a ele.51
O mesmo método pode ser empregado para explorar a
afetividade e a emotividade, que constituem a ressonância do ser em
relação a si próprio e ligam o ser individuado à realidade pré-
individual que lhe é associada, como a unidade tropística e a
percepção o ligam ao meio. O psiquismo é feito de sucessivas
individuações que permitem ao ser resolver os estados problemáticos
correspondentes à permanente comunicação do maior e do menor que
ele.
Contudo, o psiquismo não pode resolver-se ao nível do ser
individuado isolado; ele é o fundamento da participação em uma
individuação mais vasta, a do coletivo; o ser individual isolado, que
se coloca a si próprio em questão, não pode ultrapassar os limites
da angústia, operação sem ação, emoção permanente que não chega
a resolver a afetividade, experimentação pela qual o ser individuado
explora suas dimensões de ser, sem as poder ultrapassar. Ao
coletivo, apreendido como axiomática que resolve a problemática
psíquica, corresponde a noção de transindividual.
Tal conjunto de reformas das noções é sustentado pela hipótese
de que uma informação nunca é relativa a uma realidade única e
51 Com
isso queremos dizer que o a priori e o a posteriori não se encontram no
conhecimento;
não são forma nem matéria do conhecimento, pois não são conhecimento, mas termos
extremos
de uma díade pré-individual e, conseqüentemente, pré-noética. A ilusão de formas a
priori
procede da preexistência, no sistema pré-individual, de condições de totalidade,
cuja dimensão é
superior à do indivíduo em processo de ontogênese. Inversamente, a ilusão do a
posteriori
provém da existência de uma realidade cuja ordem de grandeza, quanto às
modificações espaço-
temporais, é inferior à do indivíduo. Um conceito não é a priori nem a posteriori,
mas a
praesenti, pois ele é uma comunicação informativa e interativa entre o que é maior
e o que é
menor que o indivíduo.homogênea, mas a duas ordens em estado de disparation: a
informação, quer ao nível da unidade tropística, quer ao nível do
transindividual, jamais é depositada em uma forma que pode ser
dada; ela é a tensão entre dois reais díspares, a significação que
surgirá quando uma operação de individuação descobrir a
dimensão segundo a qual dois reais díspares podem tornar-se
sistema; portanto, a informação é um início de individuação, uma
exigência de individuação, nunca é uma coisa dada; não há unidade
e identidade da informação, pois a informação não é um termo; ela
supõe tensão de um sistema de ser; só pode ser inerente a uma
problemática; a informação é aquilo por intermédio de que a
incompatibilidade do sistema não resolvido devém dimensão
organizadora na resolução; a informação supõe uma mudança de
fase de um sistema, porque ela pressupõe um primeiro estado pré-
individual que se individua conforme a organização descoberta; a
informação é a fórmula da individuação, fórmula que não pode
preexistir a esta individuação; poderíamos dizer que a informação é
sempre no presente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um
sistema se individua.52
A concepção do ser sobre a qual repousa este estudo é a
seguinte: o ser não possui uma unidade de identidade, que é a do
estado estável em que nenhuma transformação é possível, o ser
possui uma unidade transdutora, isto é, ele pode defasar-se em
relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de outro
de seu centro. O que consideramos relação ou dualidade de
princípios é, de fato, escalonamento do ser, que é mais que unidade
e mais que identidade; o devir é uma dimensão do ser, não o que
lhe advém conforme uma sucessão que seria sofrida por um ser
primitivamente dado e substancial. A individuação deve ser
apreendida como devir do ser, e não como modelo do ser que
esgotaria sua significação. O ser individuado não é todo o ser nem
o ser primeiro: em vez de apreender a individuação a partir do ser
52 Essa
afirmação não leva a contestar a validade das teorias quantitativas da informação e
das
medidas da complexidade, mas supõe um estado fundamental – o do ser pré-individual
– anterior
a qualquer dualidade do emissor e do receptor, portanto, a qualquer mensagem
transmitida. O
que subsiste deste estado fundamental, no caso clássico da informação transmitida
como
mensagem, não é a fonte da informação, mas a condição primordial sem a qual não há
efeito
de informação, logo, nada de informação: a metaestabilidade do receptor, quer se
trate de ser
técnico ou de indivíduo vivo. Podemos nomear esta informação de “informação
primeira”.individuado, é necessário apreender o ser individuado a partir da
individuação e a individuação a partir do ser pré-individual,
repartido segundo as várias ordens de grandeza.
Logo, a intenção desse estudo é estudar as formas, modos e
graus da individuação a fim de recolocar o indivíduo no ser,
consoante os três níveis: físico, vital, psicossocial. Em lugar de
supor substâncias para explicar a individuação, consideramos os
diferentes regimes de individuação como fundamento de domínios
tais como matéria, vida, espírito, sociedade. A separação, o
escalonamento, as relações desses domínios aparecem como aspectos
da individuação conforme suas diferentes modalidades; as noções de
substância, de forma e de matéria são substituídas pelas noções mais
fundamentais de informação primeira, de ressonância interna, de
potencial energético, de ordens de grandeza.
Para que essa modificação de noções seja
possível é
necessário, todavia, fazer intervir simultaneamente um método e uma
noção novos. O método consiste em não tentar compor a essência de
uma realidade por meio de uma relação conceitual entre dois termos
extremos, e em considerar qualquer verdadeira relação como tendo
posição de ser. A relação é uma modalidade do ser; é simultânea
relativamente aos termos de que assegura a existência. Uma relação
deve ser apreendida como relação no ser, relação do ser, maneira de
ser e não como simples relação entre dois termos que poderíamos
conhecer de modo adequado mediante conceitos, porque teriam uma
existência efetivamente separada. Porque os termos são concebidos
como substâncias é que a relação é relação de termos, e o ser é
separado em termos porque o ser é, primitiva e anteriormente a
qualquer exame da individuação, concebido como substância. Em
contrapartida, se a substância deixa de ser o modelo do ser é
possível conceber a relação como não-identidade do ser em relação a
si próprio, inclusão no ser de uma realidade que não é só idêntica a
ele, de maneira que o ser enquanto ser, anteriormente a qualquer
individuação, pode ser apreendido como mais que unidade e mais
que identidade.53 Tal método supõe um postulado de natureza
ontológica: ao nível do ser apreendido antes de qualquer
individuação, o princípio do terceiro excluído e o princípio de
identidade não se aplicam; esses princípios aplicam-se unicamente ao
ser já individuado, e definem um ser empobrecido, separado em
53 Particularmente,
a pluralidade das ordens de grandeza, a ausência primordial de comunicação
interativa entre estas ordens faz parte de tal apreensão do ser.meio e indivíduo;
não se aplicam, então, ao todo do ser, isto é, ao
conjunto formado ulteriormente por indivíduo e meio, mas somente
àquilo que, do ser pré-individual, se tornou indivíduo. Nesse sentido,
a lógica clássica não pode ser empregada para pensar a individuação,
pois ela obriga a pensar a operação de individuação com conceitos e
com relações entre conceitos, que só se aplicam aos resultados da
operação de individuação considerados de maneira parcial.
Do emprego desse método, que considera o princípio de
identidade e o princípio do terceiro excluído como excessivamente
estreitos, libera-se uma noção que possui uma multidão de aspectos
e de domínios de aplicação: a de transdução. Por transdução
entendemos uma operação física, biológica, mental, social, por que
uma atividade se propaga gradativamente no interior de um domínio,
fundando esta propagação sobre uma estruturação do domínio
operada de região em região: cada região de estrutura constituída
serve de princípio de constituição à região seguinte, de modo que
uma modificação se estende progressivamente ao mesmo tempo que
esta operação estruturante. Um cristal que aumenta e cresce, a partir
de um germe muito pequeno, em todas as direções em sua água-
mãe, fornece a imagem mais simples da operação transdutora: cada
camada molecular já constituída serve de base estruturante à camada
em formação; o resultado é uma estrutura reticular amplificante. A
operação transdutora é uma individuação em progresso; no domínio
físico, ela pode efetuar-se de maneira mais simples sob forma de
iteração progressiva; mas em domínios mais complexos, como os
domínios de metaestabilidade vital ou de problemática psíquica, ela
pode avançar com um passo constantemente variável e estender-se em
um domínio de heterogeneidade; há transdução quando há atividade,
estrutural e funcional, partindo de um centro do ser e estendendo-se
em diversas direções a partir desse centro, como se múltiplas
dimensões do ser aparecessem em torno desse centro; a transdução é
aparição correlativa de dimensões e de estruturas em um ser em
estado de tensão pré-individual, isto é, em um ser que é mais que
unidade e mais que identidade, e que ainda não se defasou em
relação a si próprio em múltiplas dimensões. Os termos
extremos,
atingidos pela operação transdutora, não preexistem a essa operação;
seu dinamismo provém da tensão primitiva do sistema do ser
heterogêneo que se defasa e que desenvolve dimensões segundo as
quais ele se estrutura; ele não procede de uma tensão entre os
termos que serão atingidos e depositados nos limites extremos datransdução54. A
transdução pode ser uma operação vital; em
particular, exprime o sentido da individuação orgânica; pode ser
operação psíquica e procedimento lógico efetivo, ainda que não seja
absolutamente limitada ao pensamento lógico. No domínio do saber,
ela define a verdadeira maneira de progredir da invenção, que não é
indutiva nem dedutiva, mas transdutora, isto é, que corresponde a
uma descoberta das dimensões segundo as quais uma problemática
pode ser definida; é a operação analógica no que ela tem de válida.
Essa noção pode ser empregada para pensar os diferentes domínios
de individuação: ela se aplica a todos os casos em que uma
individuação se realiza, manifestando a gênese de um tecido de
relações fundadas sobre o ser. A possibilidade de empregar uma
transdução analógica para pensar um domínio de realidade indica que
este domínio é efetivamente a sede de uma estruturação transdutora.
A transdução corresponde a essa existência de relações que nascem
quando o ser pré-individual se individua; ela exprime a individuação
e permite pensá-la, logo, é uma noção simultaneamente metafísica e
lógica; aplica-se à ontogênese e é a própria ontogênese.
Objetivamente, ela permite compreender as condições sistemáticas da
individuação, a ressonância interna55, a problemática psíquica.
Logicamente, pode ser empregada como fundamento de uma nova
espécie de paradigmatismo analógico, para passar da individuação
física à individuação orgânica, da individuação orgânica à
individuação psíquica e da individuação psíquica ao transindividual
subjetivo e objetivo, o que define o plano dessa pesquisa.
Poderíamos afirmar, sem dúvida alguma, que a transdução não
poderia ser apresentada como procedimento lógico possuindo valor de
prova; aliás, não queremos dizer que a transdução é um
procedimento lógico no sentido corrente do termo; ela é um
procedimento mental, e mais ainda que um procedimento uma
maneira de progredir do espírito que descobre. Essa maneira de
progredir consiste em seguir o ser em sua gênese, em efetuar a
54 Ele
exprime, ao contrário, a heterogeneidade primordial de duas escalas de realidade,
uma
maior que o indivíduo – o sistema de totalidade metaestável –, a outra menor que
ele, como
uma matéria. Entre estas duas ordens primordiais de grandeza o indivíduo se
desenvolve por um
processo de comunicação amplificante, do qual a transdução é o modo mais primitivo,

existente na individuação física.
55 A
ressonância interna é o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de
ordens
diferentes; ela contém um duplo processo de amplificação e de condensação.gênese do
pensamento ao mesmo tempo que ocorre gênese do objeto.
Nessa pesquisa, ela é chamada a representar um papel que a
dialética não pode representar, porque o estudo da operação de
individuação não parece corresponder à aparição do negativo como
segunda etapa, mas a uma imanência do negativo na condição
primeira sob forma ambivalente de tensão e incompatibilidade; isso
é o que há de mais positivo no estado do ser pré-individual, isto é,
a existência de potenciais, que é também a causa da
incompatibilidade e da não estabilidade deste estado: o negativo é
primeiro como incompatibilidade ontogenética, mas ele é a outra face
da riqueza em potenciais: logo, não é um negativo substancial;
jamais é etapa ou fase, e a individuação não é síntese, retorno à
unidade, mas defasagem do ser a partir de seu centro pré-individual
de incompatibilidade potencializada. Nessa perspectiva ontogenética, o
próprio tempo é considerado como expressão da dimensionalidade do
ser individuando-se.
Conseqüentemente, a transdução não só é maneira de progredir
do espírito, mas também intuição, visto que ela é aquilo por que
uma estrutura aparece em um domínio de problemática, fornecendo a
resolução dos problemas colocados. Mas, ao contrário da dedução, a
transdução não vai procurar alhures um princípio para resolver o
problema de um domínio: ela extrai a estrutura resolutiva das
próprias tensões deste domínio, da mesma maneira que a solução
supersaturada cristaliza-se graças a seus próprios potenciais e
conforme a espécie química que contém, não pela contribuição de
alguma forma estrangeira. Ela também não é comparável à indução,
pois a indução conserva realmente os caracteres dos termos de
realidade compreendidos no domínio estudado, extraindo as estruturas
da análise destes próprios termos, mas só conserva o que há de
positivo, isto é, o que há de comum a todos os termos, eliminando
o que estes têm de singular; a transdução, ao contrário, é uma
descoberta de dimensões, as dimensões de cada um dos termos que
o sistema faz comunicar, de tal maneira que a realidade completa de
cada um dos termos do domínio possa vir a ordenar-se sem perda,
sem redução, nas novas estruturas descobertas; a transdução
resolutiva opera a inversão do negativo em positivo: aquilo por que
os termos não são idênticos uns aos outros, aquilo por que são
díspares (com o sentido que este termo ganha na teoria da visão) é
integrado ao sistema de resolução e devém condição de significação;
não há empobrecimento da informação contida nos termos; a
transdução caracteriza-se pelo fato de o resultado dessa operação serum tecido
concreto que compreende todos os termos iniciais; o
sistema resultante é feito de concreto, e compreende todo o concreto;
a ordem transdutora conserva todo o concreto e caracteriza-se pela
conservação da informação, enquanto a indução reclama uma perda
de informação; à semelhança da progressão dialética, a transdução
conserva e integra os aspectos opostos; à diferença da progressão
dialética, a transdução não supõe a existência de um tempo prévio
como quadro em que a gênese se desenrola, o próprio tempo sendo
solução, dimensão da sistemática descoberta: o tempo sai do pré-
individual, da mesma maneira que as outras dimensões segundo as
quais a individuação se efetua 56 .
Ora, para pensar a operação transdutora, que é o fundamento
da individuação em seus diversos níveis, a noção de forma é
insuficiente. A noção de forma, a de substância ou a de relação,
como relação posterior à existência dos termos, fazem parte do
mesmo sistema de pensamento: estas noções foram elaboradas a
partir dos resultados da individuação; podem apreender unicamente
um real empobrecido, sem potenciais, e, portanto, incapaz de
individuar-se.
A noção de forma deve ser substituída pela de informação, a
qual supõe a existência de um sistema em estado de equilíbrio
metaestável podendo individuar-se; a informação, à diferença da
forma, jamais é um termo único, mas a significação que surge de
uma “disparation”. A antiga noção de forma, tal como a libera o
esquema hilemórfico, é excessivamente independente de qualquer
noção de sistema e de metaestabilidade. A que foi dada pela Teoria
da Forma comporta, ao contrário, a noção de sistema e é definida
como o estado para o qual o sistema tende quando encontra seu
equilíbrio: ela é uma resolução de tensão.
Infelizmente, um
paradigmatismo físico sumariíssimo levou a Teoria da Forma a
considerar exclusivamente o estado de equilíbrio estável, como estado
de equilíbrio de um sistema que pode resolver as tensões: a Teoria
da Forma ignorou a metaestabilidade. Desejaríamos retomar a Teoria
56 Essa
operação é paralela à da individuação vital: um vegetal institui uma mediação, pelo
emprego da energia luminosa recebida na fotossíntese, entre uma ordem cósmica e uma
ordem
inframolecular, classificando e repartindo as espécies químicas contidas no solo e
na atmosfera .
Ele é um núcleo interelementar, e
individual feito de duas
desenvolve-se como ressonância interna deste sistema pré-
camadas de realidade primitivamente sem comunicação. O núcleo
interelementar faz um trabalho intraelementar.da Forma e mostrar, mediante a
introdução de uma condição
quântica, que os problemas colocados pela Teoria da Forma não
podem ser diretamente resolvidos pelo emprego da noção de
equilíbrio estável, mas unicamente utilizando a de equilíbrio
metaestável; então, a Boa Forma não é mais a forma simples, a
forma geométrica pregnante, mas a forma significativa, isto é,
aquela que estabelece uma ordem transdutora no interior de um
sistema de realidade que comporta potenciais. Essa boa forma é que
mantém o nível energético do sistema, conserva seus potenciais,
compatibilizando-os: ela é a estrutura de compatibilidade e de
viabilidade, é a dimensionalidade inventada segundo a qual há
compatibilidade sem degradação57. A noção de Forma merece,
então, ser substituída pela de informação. No decurso desta
substituição, a noção de informação jamais deve ser reduzida aos
sinais ou suportes ou veículos de informação, como a teoria
tecnológica da informação, inicialmente extraída por abstração da
tecnologia das transmissões, tende a fazê-lo. Logo, a noção pura de
forma deve ser salva duas vezes de um paradigmatismo tecnológico
sumariíssimo: uma primeira vez, relativamente à cultura antiga, por
causa do uso redutor que é feito desta noção no esquema
hilemórfico; uma segunda vez, no estado de noção de informação,
para salvar a informação como significação da teoria tecnológica da
informação, na cultura moderna. Pois nas sucessivas teorias do
hilemorfismo, da Boa Forma, em seguida da informação, a visada é
exatamente a mesma: a que procura descobrir a inerência das
significações no ser ; esta inerência deve ser descoberta na operação
de individuação.
Assim, um estudo da individuação pode tender para uma
reforma das noções filosóficas fundamentais, pois é possível
considerar a individuação como aquilo que, do ser, deve ser
conhecido em primeiro lugar. Antes mesmo de perguntar porque é
ou não legítimo fundar julgamentos sobre os seres, devemos
considerar que o ser se diz em dois sentidos: em um primeiro
sentido, fundamental, o ser é enquanto é; mas em um segundo
sentido, sempre sobreposto ao primeiro na teoria lógica, o ser é o
ser enquanto individuado. Se fosse verdade que a lógica só funda as
enunciações relativas ao ser após a individuação, uma teoria do ser
anterior a toda lógica deveria ser instituída; essa teoria poderia servir
57
Por conseqüência, a forma aparece da mesma maneira que a comunicação ativa
ressonância interna que opera a individuação: ela aparece com o indivíduo.

ade fundamento para a lógica, porque, de antemão, nada prova que o
ser seja individuado de uma única maneira possível; se existissem
diversos tipos de individuação, deveriam existir também diversas
lógicas, cada uma correspondente a um tipo definido de
individuação. A classificação das ontogêneses permitiria pluralizar a
lógica com um fundamento válido de pluralidade. Quanto à
axiomatização do conhecimento do ser pré-individual, ela não pode
estar contida em uma lógica prévia, pois nenhuma norma, nenhum
sistema destacado de seu conteúdo podem ser definidos: só a
individuação do pensamento pode, ao se realizar, acompanhar a
individuação de seres outros que o pensamento; portanto, não é um
conhecimento imediato, nem um conhecimento mediato que podemos
ter da individuação, mas um conhecimento que é uma operação
paralela à operação conhecida; não podemos, no sentido habitual do
termo, conhecer a individuação; podemos unicamente individuar,
individuar-nos e individuar em nós; logo, esta apreensão à margem
do conhecimento propriamente dito é uma analogia entre duas
operações, o que é um certo modo de comunicação. A individuação
do real, exterior ao sujeito, é apreendida pelo sujeito graças à
individuação analógica do conhecimento no sujeito; mas a
individuação dos seres não sujeitos é apreendida pela individuação
do conhecimento e não só pelo conhecimento. Os seres podem ser
conhecidos mediante o conhecimento do sujeito, mas a individuação
dos seres só pode ser apreendida mediante a individuação do
conhecimento do sujeito.
Tradução de Ivana MedeirosA propósito de Simondon
GILLES DELEUZE
O princípio de individuação é respeitado, considerado venerável,
mas parece que a filosofia moderna se guardou até agora de retomar por
sua conta o problema. As aquisições da física, da biologia e da psicologia
levaram-nos a relativizar, a atenuar o princípio, não a reinterpretá-lo. Já a
força de Gilbert Simondon é de apresentar uma teoria profundamente
original da individuação, que implica toda uma filosofia. G.S. parte de
duas observações críticas: 1° Tradicionalmente, o princípio de
individuação é relacionado a um indivíduo inteiramente pronto, já
constituído. Perguntamos somente o que constitui a individualidade de tal
ser, isto é, o que caracteriza um ser já individuado. E porque "colocamos"
o indivíduo depois da individuação, simultaneamente, "colocamos" o
princípio de individuação antes da operação de individuar, aquém da
própria individuação; 2° Desde então, "colocamos" a individuação em
tudo; fizemos dela um caráter coextensivo ao ser, pelo menos ao ser
concreto. Fizemos dela todo o ser, e o primeiro momento do ser fora do
conceito. Este erro é correlativo ao precedente. Em realidade, o indivíduo
só pode ser contemporâneo de sua individuação, e a individuação,
contemporânea do princípio: o princípio deve ser verdadeiramente
genético, não simples princípio de reflexão. E o indivíduo não é só
resultado, mas meio de individuação. Todavia, deste ponto de vista
precisamente, a individuação deixa de ser coextensiva ao ser; ela deve
representar um momento, que não é o primeiro nem todo o ser. Deve ser
situável, determinável em relação ao ser, em um movimento que nos fará
passar do pré-individual ao indivíduo.
A condição prévia da individuação, segundo G.S., é a existência de
um sistema metaestável. Foi por não ter reconhecido a existência de tais
sistemas que a filosofia caiu nas duas aporias precedentes. Mas o que
define essencialmente um sistema metaestável é a existência de uma
"disparação", pelo menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas de
realidade díspares, entre as quais ainda não há comunicação interativa. Ele
implica, portanto, uma diferença fundamental, como um estado dedissimetria. Se é,
entretanto, sistema, é à medida que nele a diferença é
como energia potencial, como diferença de potencial repartida em tais ou
tais limites. Neste ponto, a concepção de G.S. nos parece poder ser
reaproximada de uma teoria das quantidades intensivas; visto que é em si
mesma que cada quantidade intensiva é diferente. Uma quantidade
intensiva compreende uma diferença em si, contém fatores do tipo E-E ao
infinito e se estabelece primeiro entre níveis díspares, ordens heterogêneas
que só entrarão em comunicação mais tarde, em extensão. Como o sistema
metaestável, ela é estrutura (ainda não é síntese) do heterogêneo.
A importância da tese de G.S. já aparece. Descobrindo a condição
prévia da individuação, ele distingue rigorosamente singularidade e
individualidade. Pois o metaestável, definido como ser pré-individual, é
perfeitamente provido de singularidades que correspondem à existência e à
repartição dos potenciais. (Não ocorre o mesmo na teoria das equações
diferenciais, em que a existência e a repartição das "singularidades" são de
outra natureza que a forma "individual" das curvas integrais em sua
vizinhança?) Singular sem ser individual, tal é o estado do ser pré-
individual. Ele é diferença, disparidade, disparação. E entre as mais belas
páginas do livro, há aquelas em que G.S. mostra como a disparidade,
enquanto primeiro momento do ser, enquanto momento singular, é
efetivamente suposta por todos os outros estados, quer sejam de
unificação, de integração, de tensão, de oposição, de resolução das
oposições... etc. Especialmente contra Lewin e a teoria da Gestalt, G.S.
sustenta que a idéia de disparação é mais profunda que a de oposição, a
idéia de energia potencial mais profunda que a de campo de forças: "Antes
do espaço hodológico, há este acavalamento das perspectivas que não
permite apreender o obstáculo determinado, porque não há dimensões em
relação às quais o conjunto único se ordenaria; a fluctuatio animi, que
precede a ação resolvida, não é hesitação entre vários objetos ou mesmo
entre várias vias, mas recobrimento movente de conjuntos incompatíveis,
quase semelhantes, e, no entanto, díspares" (p.233). Mundo acavalado de
singularidades discretas, acavalado porque estas ainda não comunicam, ou
não são apreendidas em uma individualidade: tal é o primeiro momento do
ser.
Como a individuação vai proceder a partir desta condição? Como ela
estabelece uma comunicação interativa entre as ordens de grandeza ou derealidade
díspares, dir-se-á que atualiza a energia potencial ou integra as
singularidades; que resolve o problema colocado pelos díspares,
organizando uma nova dimensão na qual formam um único conjunto de
grau superior (assim a profundidade para as imagens retinianas). A
categoria do "problemático" ganha no pensamento de G.S. uma grande
importância, na medida exata em que é possuidora de um sentido objetivo:
com efeito, ela não designa mais um estado provisório de nosso
conhecimento, um conceito subjetivo indeterminado, mas um momento do
ser, o primeiro momento pré-individual. E, na dialética de G.S., o
problemático substitui o negativo. A individuação é, portanto, a
organização de uma solução, de uma "resolução" para um sistema
objetivamente problemático. Esta resolução deve ser concebida de duas
maneiras complementares. Por um lado, como ressonância interna, sendo
esta "o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordem
diferente", (e acreditamos que G.S. chegou a fazer da "ressonância interna"
um conceito filosófico extremamente rico, suscetível de toda sorte de
aplicação, mesmo e sobretudo em psicologia, no domínio da afetividade).
Por outro lado, como informação, estabelecendo esta, por sua vez, uma
comunicação entre dois níveis díspares, um definido pela forma já contida
no receptor, outro pelo sinal trazido do exterior (aqui reencontra-se as
preocupações de G.S. concernente à cibernética, e toda uma teoria da
"significação" em suas relações com o indivíduo). De qualquer modo, a
individuação aparece como a chegada de um novo momento do Ser, o
momento do ser fasado, acoplado a ele próprio: "É a individuação que cria
as fases, pois estas são apenas o desenvolvimento do ser de um lado e de
outro dele próprio... O ser pré-individual é o ser sem fases, enquanto o ser
posterior à individuação é o ser fasado. Tal concepção identifica, ou ao
menos associa, individuação e devir do ser" (p. 276).
Até agora só indicamos os princípios muito gerais do livro. No
detalhe, a análise organiza-se em torno de dois centros. Primeiro um
estudo dos diferentes domínios de individuação; notadamente as diferenças
entre a individuação física e a individuação vital são objeto de uma
profunda exposição. O regime de ressonância interna aparece como
diferente nos dois casos; o indivíduo físico contenta-se em receber uma
única vez a informação, e reitera uma singularidade inicial, enquanto o
vivo recebe sucessivamente diversas contribuições de informação econtabiliza várias
singularidades; a individuação física se faz e se
prolonga, sobretudo, no limite do corpo, por exemplo o cristal, enquanto o
vivo cresce do interior e do exterior, todo o conteúdo de seu espaço interior
estando "topologicamente" em contato com o conteúdo do espaço exterior
(sobre este ponto, G.S. escreve um capítulo admirável, "topologia e
ontogênese"). Surpreender-se-á que, no domínio da biologia, G.S. não
tenha utilizado muito os trabalhos da escola de Child sobre os gradientes e
os sistemas de resolução no desenvolvimento do ovo; visto que estes
trabalhos sugerem a idéia de uma individuação pela intensidade, de um
campo intensivo de individuação, que confirmaria em muitos pontos as
teses de G.S. Mas sem dúvida é porque quer, não limitar-se a uma
determinação biológica da individuação, mas precisar níveis cada vez mais
complexos: há assim uma individuação propriamente psíquica, que surge
precisamente quando as funções vitais não são mais suficientes para
resolver os problemas colocados ao vivo, e quando uma nova carga de
realidade pré-individual é mobilizada em uma nova problemática, em um
novo processo de solução (cf. uma teoria bastante interessante da
afetividade). E o psiquismo, por sua vez, abre-se para um "coletivo
transindividual".
Vê-se qual é o segundo centro das análises de G.S. Em um sentido,
trata-se de uma visão moral do mundo. Pois a idéia fundamental, é que o
pré-individual permanece e deve permanecer associado ao indivíduo,
"fonte de estados metaestáveis futuros". Desde então, o estetismo é
condenado como o ato pelo qual o indivíduo se separa da realidade pré-
individual na qual mergulha, fecha-se sobre uma singularidade, recusa
comunicar-se e provoca, de certa maneira, uma perda de informação. "Há
ética à medida que há informação, isto é, significação superando uma
disparação de elementos de seres, e fazendo assim com que o que é interior
seja também exterior" (p.297). A ética percorre, portanto, um tipo de
movimento que vai do pré-individual ao transindividual pela individuação.
(O leitor pergunta-se, entretanto, se em sua ética, G.S. não restaura a forma
de um Eu que, no entanto, havia conjurado em sua teoria da disparidade ou
do indivíduo concebido como ser defasado e polifásico).
Poucos livros, em todo caso, fazem-nos sentir tanto a que ponto um
filósofo pode simultaneamente inspirar-se na atualidade da ciência e, noentanto,
reunir os grandes problemas clássicos, transformando-os,
renovando-os. Os novos conceitos estabelecidos por G.S. parecem-nos de
extrema importância; a riqueza e a originalidade destes impressionam ou
influenciam o leitor. E o que G.S. elabora é toda uma ontologia, segundo a
qual o Ser jamais é Um: pré-individual, ele é mais que um metaestável,
superposto, simultâneo a si próprio; individuado, é ainda múltiplo, porque
"polifase", "fase do devir que conduzirá a novas operações".Ciberespaço: alucinação
consensual vivida cotidianamente por bilhões de
operadores, em plena legalidade e em todos os países... Representação gráfica
dos dados provindos de todos os bancos de todos os computadores gerados pelo
homem. Complexidade inimaginável. Raios de luz lançados no não-espaço do
espírito, agregados e constelações de dados. A perder de vista, como as luzes das
megalópolis do planeta.
William GibsonDa linguagem Zaum à rede tecnomaya
Franco Berardi
Leibniz escreveu: "Poderia introduzir-se na comunicação um
caractere universal, algo melhor do que os caracteres usados pelos
chineses. Poderemos empregar pequenas figuras no lugar das palavras, no
sentido de representar coisas visíveis e também invisíveis. Isto serviria
para a comunicação com nações distantes, mas também poderia ser
utilizado na comunicação ordinária. O emprego dessa forma de escritura
seria muito útil para o enriquecimento da imaginação e para a produção de
pensamentos."
A caractteristica universalis, como simbolização translingüística, é
uma questão de grande atualidade, mais hoje em dia do que na época de
Leibniz, já que uma comunicação intercultural planetária faz-se cada vez
mais necessária.
Transmentalismo simbolista
A poesia simbolista trabalha sobre a mesma intuição: deve existir
uma substância translingüística na comunicação, uma vibração do ser que
se possa perceber e comunicar com outros instrumentos, que não as
palavras. A poética simbolista tenta superar o limite lingüístico da
compreensão inter-humana, e procura uma forma de comunicação que seja
livre da convenção semântica. O conceito central da escola poética
simbolista é a noção de linguagem transmental.
Mallarmé busca uma poética capaz de transmitir emoções ao invés
de significados. A palavra torna-se uma corda musical que quer vibrar em
uníssono com o seu mundo. A concepção mallarmeana de emoção deve ser
entendida para além do contexto romântico e da sua sugestão decadente.
Mallarmé escreve que o simbolismo é "uma poética totalmente nova,
que pode pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz". Pintar, diz ele,
não a coisa, mas o efeito produzido na mente daquele que recebe a
mensagem poética. Estamos distantes da aura romântica: o efeito
emocional do qual Mallarmé está falando é a transmissão do estado
mental. A ação exercida pela cor, pelo fonema, por uma imagem ou por
uma palavra tem o propósito de produzir uma mutação mental, uma
emoção neurológica ou uma telepatia sinestésica.Aqui deve-se mencionar o poeta
russo Velemir Khlebnikov, que
pertenceu ao movimento futurista e foi amigo de Maiakovski nos anos
budetljane. Dentre os futuristas, Khlebnikov pode ser visto como o poeta
mais póximo do espírito da pesquisa simbolista. De resto é preciso dizer
que as afinidades entre estas duas tendências literárias (simbolismo e
futurismo) são muito mais interessantes do que as suas diferenças.
Khlebnikov, que adorava viajar de trem de um vilarejo a outro da sua terra
russa, e que amava os modos de vida arcaicos e freqüentava as práticas
mágico-xamânicas da Rússia tradicional, queria criar uma linguagem
virtualmente planetária, capaz de ser entendida para além das fronteiras
nacionais e lingüísticas. Chamou Zaum esta sua linguagem, palavra que
pretendia significar uma linguagem emocional translinguística.
Angelo Maria Ripellino, um italiano erudito que escreveu livros
belíssimos sobre a literatura eslava, aponta que "o futurismo tem duas
faces. De um lado ele enfatiza a tecnologia, os arranha-céus, as máquinas;
do outro é movido pelos trogloditas, pelos selvagens, pelas cavernas, pela
idade da pedra; e assim opõe a dormência de uma Ásia pré-lógica ao
frenesi da metrópole moderna européia" 1
Com efeito estamos num terreno ambíguo, aberto em duas frentes
diferentes. A linguagem Zaum foi seduzida pelas formas pré-simbólicas
de comunicação, pela vocalidade original protolingüística, a linguagem das
emoções originais. Mas ao mesmo tempo está predisposta a imaginar a
possibilidade de uma comunicação pós-simbólica, ou seja, uma tecnologia
telepática. Neste sentido, vemos simbolismo e futurismo convergindo na
direção da imaginação das utopias lingüísticas, fundindo o arcaico e o
futuro.
Khlebnikov estava fascinado pelas encantadoras virtudes dos sons,
pelas feitiçarias fonemáticas. "Crença na bruxaria dos fonemas, interesse
na cultura xamânica, pesquisa de uma linguagem ritual...; esta é a
influência simbólica, que considera a poesia uma ação mágica, espécie de
mensagem oracular. Vários poemas de Bal'mont, Bel'ij, Blok são
concebidos como significados de uma ação mágica, semelhantes aos
1
Angelo Maria RIPELLINO: tentativo di esplorazione del continente
Khlebnikov, in Saggi in forma di ballate, Torino, 1978, pag. 93.ungüentos dos
feiticeiros, aos cérebros dos animais, à pele de cobra, às
folhas de beladona ou figueira-brava e assim por diante." 2
Khlebnikov volta suas costas para o mundo europeu moderno, não
obstante os seus flertes futurísticos, preferindo a Ásia eterna, e mergulha
na "noite etimológica", nas profundezas de um passado que tende em
direção às origens imaginárias. Neste pano de fundo mágico, ele vislumbra
a possibilidade de um efeito telepático de transmissão do significado, sem
a mediação de um "significante" convencional, através da estimulação
direta das emoções neurológicas correspondentes ao significado. O
caminho de Khlebnikov conduz a uma comunicação pré-simbólica, mas
esta estrada acaba convergindo com aquela da busca pós-simbólica, que
hoje, à luz do desenvolvimento das tecnologias de realidade virtual,
constituem o verdadeiro problema. Khlebnikov parece ser o ponto de
convergência das duas modalidades comunicativas: a arcaica-ritual pré-
simbólica e aquela tecnológico-virtual pós-simbólica.
O objetivo da linguagem transmental de Khlebnikov é encontrar
uma dimensão não-convencional de comunicação através de uma viagem
de regresso ao território noturno das etimologias e das origens. A partir de
Khlebnikov podemos hoje progredir na direção da mesma finalidade,
através das ousadas experimentações das técnicas telepáticas.
Shabda e Mantra
A pesquisa simbolista está explicitamente conectada às buscas
místicas de todos os tempos, porque o misticismo conhece o caminho para
a dimensão não-convencional da comunicação.
Nos "Fundamentos do Misticismo Tibetano", Lama Anagarika
Govinda escreve: "A natureza essencial das palavras não se esgota no seu
significado presente, e nem sua importância está limitada à sua utilidade
como transmissoras de pensamentos e idéias" 3
Anagarika Govinda está perfeitamente consciente do fato de que,
neste campo, o simbolismo budista mostra uma profunda coincidência com
2
Ripellino, pag.4
Lama ANAGARIKA GOVINDA: Foundations of Tibetan Mysticism, London,
1960,
3
pag. 17.o simbolismo poético, e observa: "A magia que a poesia exerce sobre nós
deve-se a esta qualidade do ritmo ... o nascimento da linguagem foi o
nascimento da humanidade mesma. Cada palavra era o equivalente sonoro
de uma experiência, conectada a um estímulo interno e externo." 4 A
consistência material do signo poético (isto é, do som, do ritmo, da
vibração) produz sua eficácia e a capacidade para criar efeitos mentais.
Referindo-se à tradição tibetana, Anagarika Govinda faz uma distinção
entre a palavra como shabda e a palavra como mantra; shabda é a
palavra ordinária que compõe o discurso comum, a palavra capaz de
carregar significação através de uma compreensão convencional. O
mantra, ao contrário, é o impulso que cria uma imagem mental, é um
instrumento capaz de criar um estado mental sem passar pela significação
convencional. "Mantra é um instrumento para pensar, algo que cria uma
imagem mental". Através do seu som, traz à tona seu conteúdo como um
estado de realidade imediata. Mantra é poder, não meramente um discurso
com o qual a mente pode contradizer ou evadir-se. O que o mantra
expressa pelos seus sons existe no tempo, e depois desaparece. O fato de
que a palavra cria algo de atual reflete a verdadeira peculiaridade da
poesia. A sua palavra não fala, mas age." 5 O mantra é uma força capaz de
evocar imagens, e de criar e transmitir estados mentais.
Realidade mental e ideografia dinâmica
O simbolismo poético e o simbolismo mágico estão ambos
envolvidos no processo de evocação que a palavra e o signo podem
produzir. Mas hoje devemos reconsiderar o problema partindo de um dado
novo, oriundo da tecnologia eletrônica: a máquina para a produção de
realidade virtual, que repropõe o mesmo problema colocado pela poética
simbolista e pelo simbolismo mágico, quer dizer, o problema da
comunicação telepática.
A comunicação lingüística tornou-se possível graças aos sinais
convencionais, conectados arbitrariamente a um significado: estamos
falando aqui de uma comunicação que estimula estados mentais
4
5
Lama ANAGARIKA GOVINDA: Foundations...pag. 18.
A.GOVINDA, ibi, pag. 19.correspondentes à imagem, à emoção, ao conceito que o
emissor quer
transmitir ao seu receptor.
A produção de instrumentos técnicos para a estimulação,
especialmente as máquinas de realidade virtual, colocam o problema sob
uma nova luz.
Não me interessam estes aparelhos de Virtual Reality que podem ser
encontrados no mercado de entretenimento, que na verdade são pouco
mais do que videogames interativos. Para além da sua aplicação presente,
o que me interessa é a dimensão conceitual da realidade virtual.
O que há de novo na realidade virtual? Ela pode ser definida como
uma tecnologia capaz de transmitir impulsos diretamente de um cérebro a
outro, com o objetivo de estimular uma certa configuração sináptica no
cérebro do receptor, e, portanto, uma imagem, um conceito, uma emoção.
De modo puramente abstrato podemos dizer que a realidade virtual é a
estimulação de uma onda neuronal, estruturada segundo modelos que são
intencionais e isomórficos aos estados mentais que correspondem a uma
certa experiência. Nesse sentido é uma tecnologia adequada para um tipo
de comunicação telepática.
Jaron Lanier, que foi o primeiro a construir máquinas de realidade
virtual, fala de comunicação pós-simbólica. Se é possível criar uma
impressão mental correspondente a uma certa experiência, e compartilha-
se esta impressão mental com uma outra pessoa, ou outras pessoas, então
não há mais necessidade de descrever-se o mundo, porque basta
simplesmente criar esta contingência, esta coincidência. Não há mais
necessidade de descrever uma ação, basta criá-la.
Ideografia Dinâmica
Partindo destas premissas, podemos voltar ao problema colocado por
Leibniz, aquele do caractere universal. Em termos contemporâneos, é o
problema de uma linguagem planetária, de uma linguagem capaz de
agregar pessoas que pertencem a contextos e tradições culturais e
lingüísticas diferentes.
Pierre Lévy propôs a idéia de uma tecnologia de comunicação que
ele mesmo definiu como ideografia dinâmica.
O que quer dizer, sinteticamente? A ideografia dinâmica é uma
tecnologia de comunicação que permite transmitir estados mentais,
imagens, emoções, conceitos, configurações de sentido, sem nenhumacodificação, e,
portanto, sem nenhum meio de tipo convencional. A
transmissão de estados mentais torna-se possível pela estimulação direta
das conexões neurofísicas correspondentes às configurações de sentido.
Podemos dizer que a ideografia dinâmica é uma tecnologia de
comunicação capaz de transferir de uma pessoa a outra os modelos mentais
que estão envolvidos na visão de uma certa imagem, na experiência de
uma determinada situação, no ato de pensar um certo conceito.
É fácil ver a relação entre Virtual Reality e ideografia dinâmica. A
ideografia dinâmica é uma técnica que coloca em ação uma seqüência de
realidades virtuais, correspondentes aos conteúdos que eu quero mandar a
alguém — leia-se comunicar a ele (no sentido de partilhar com ele).
Estamos aqui num terreno que não é redutível à informática ou à
telemática, porque estas são tecnologias capazes de produzir e comunicar
modelos lógicos, enunciados de tipo digital. Tecnologias que podem tornar
mais performáticos os processos de abdução, dedução e indução, ou seja,
naqueles processos nos quais estão envolvidas combinações de um número
de unidades finitas, portadoras de significados convencionais codificados.
A informática introduz um reino da comunicação discreta, já
que a intensidade e a complexidade das configurações semióticas
produzidas pelas máquinas informáticas provocam um efeito de tipo
contínuo na mente de quem a usa. Mas o fluxo da comunicação humana,
o fluxo perceptivo e mesmo o processo de elaboração consciente têm
características de continuidade. Para realizar processos de tipo ideo-
dinâmico — para levar a cabo o processo de realidade virtual — é
necessário criar interfaces capazes de traduzir séries digitais em síntese
contínua, ou seja, de conectar o digital com o orgânico, de traduzir em
termos de configuração neuronal algorítmos correspondentes aos
significados.
A ideografia dinâmica, como transmissão de modelos mentais
(emocionais, perceptivos ou conceituais) é uma ferramenta de tipo
analógico, global e sinestésica, e não opera na base de escolhas binárias ou
segundo um modelo de tipo recombinatório, apoiado em unidades discretas
elementares. Ela funciona diretamente sobre a imaginação.
O que é a imaginação ?
A imaginação é uma faculdade de variação infinita capaz de
combinar elementos analógicos. A imaginação é uma variação infinita
depossibilidades que a mente elabora partindo dos diagrama disponíveis, dos
fragmentos memorizados da experiência passada. O depósito da memória é
limitado, mas as possibilidades de composição dos conteúdos estocados
são ilimitadas. Ao processo de combinação destes elementos analógicos,
deterioráveis e plásticos, chamamos imaginação.
Ao estudo prático e teórico do devir da imaginação podemos chamar
Psicodelia. Com efeito, Psicodelia significa a possibilidade de
modificação da atividade da mente através das estimulações de tipo
químico, elétrico, e assim por diante.
Como se produz uma estimulação programada, intencional,
controlada, da atividade mental do nosso partner comunicativo? Partindo
da possibilidade de transmissão dos modelos mentais, de estímulo das
ondas sinápticas correspondentes aos estados mentais que queremos
comunicar, vemos que é possível compartilhar mundos imaginários em co-
evolução mental. "Entender uma proposição significa intuir e imaginar
como seria o mundo se aquela proposição fosse verdadeira. Podemos
pensar a significação seguindo a metáfora da composição de fragmentos,
ao invés da concepção clássica da tradução ou expressão." 6
Sobre esta base podemos dizer que cada forma de linguagem é a
transmissão de sinais com a finalidade de desencadear na mente do
receptor a construção de modelos mentais, que seguem as intenções do
emissor.
Tecnomaya
Até agora falamos de comunicação, agora falemos do mundo.
William Gibson vê o mundo como ciberespaço. "Uma alucinação
compartilhada cotidianamente por milhares de operadores em todo mundo,
meninos que aprendem os conceitos matemáticos, representações gráficas
dos dados recebidos de cada computador do sistema nervoso humano." 7 O
ciberespaço é uma nova hipótese de mundo: ontologia e gnoseologia não
são mais distinguíveis, porque o Ser revela-se essencialmente uma
projeção. "Estamos numa espécie de caverna, como disse Platão, e fazem-
nos assistir sessões intermináveis de filmes funky." (Philip Dyck)
6
7
P.LEVY: L'ideographie dynamique, Paris, 1991, pag. 95.
W.GIBSON: Neuromance.Podemos pensar que a realidade seja uma projeção infinita de
filmes
intermináveis sobre a tela do nosso cérebro. Mas se queremos nos deslocar
do mundo alucinatório para a dimensão do mundo real, simplesmente
temos que introduzir a noção de comunicação, ou seja, de partilha da
alucinação. "Quando duas pessoas dividem o mesmo sonho, não se trata
mais de uma ilusão: a prova fundamental que distingue a realidade da
imaginacão é o consensus gentium, o fato que uma outra pessoa ou muitas
outras vêem a mesma coisa que eu vejo. Isto é idios kosmos, o sonho
privado, oposto ao sonho que dividimos, o koinos kosmos. O que é novo,
no nosso tempo, é isto: começamos a ver a qualidade plástica e vibrátil do
mundo comum, e isto nos dá medo, porque mostra a sua
insubstancialidade, e nós estamos começando a ver que a qualidade da
imaginação não é meramente fumaça. Como a ficção científica, uma
terceira realidade está emergindo entre ficção e realidade." 8
Os hindus o chamam Maya. Mas a significação profunda deste
conceito não é de fácil compreensão. "Maya é o resultado de um processo,
de um congelamento, rígido na forma e no conceito, é ilusão, porque foi
modelado pelas suas conexões viventes e limitada no espaço e no tempo. A
individualidade e corporeidade do ser humano não iluminado, que procura
manter e preservar a sua identidade ilusória, é maya em seu sentido
negativo. Até o corpo do iluminado é maya, mas não no sentido negativo,
porque é criação consciente de uma mente livre da ilusão e por isso
ilimitada, não mais constrangida pelo ego." 9
Maya não significa ilusão, mas algo mais: quero dizer que significa
projeção do mundo. A projeção do mundo pode ser congelada e tornar-se
mera ilusão, auto-engano, se pensamos que o mundo imaginado seja
independente da comunicação e do devir do mundo. Mas maya em si
significa ação que projeta, criação do mundo. "Do ponto de vista da
consciência do Dharmakaya, todas as formas de aparência são maya.
Todavia, Maya, no sentido mais profundo, é realidade no seu aspecto
criativo, ou o aspecto criativo da realidade. Assim maya torna-se a causa
da ilusão, mas não é ilusão em si, se sabemos vê-la como uma globalidade,
8
P.DICK: Only apparently real, New York, 1974.
9 A.GOVINDA:
Foundations...pag.220.na sua continuidade, na sua função criativa, ou como poder
infinito de
transformação e de relação universal." 10
O conceito de maya como projeção do mundo é extremamente útil
para nós que estamos assistindo ao processo de proliferação dos
instrumentos tecnológicos para a simulação dos mundos. A tecnologia
social de comunicação objetiva ligar imaginação e a projeção dos
indivíduos e dos grupos. A rede projetiva pode ser denominada
tecnomaya, uma rede neurotelemática que está empenhada em projetar
incessantemente um filme compartilhado por todos os organismos
conscientes e conectados dentro de uma sociedade. Esta tecno-imaginação,
esta implicação recíproca no koinos kosmos é a socialização mesma.
Através da proliferação de máquinas para a estimulação eletrônica e
holográfica, e a neuroestimulação programada, podemos entrar no domínio
de tecnomaya, porque produzimos mundos de significados e, ao tramsiti-
los, colocamos em movimento a imaginação das pessoas que nos
circundam.
Tradução de Sílvio Miele
10
A.GOVINDA: Foundations...pag. 219.Viajei ao passado, até os tempos pré-históricos
das grutas de Lascaux, explorei a
caverna de Platão, e tive mais do que um vislumbre de um futuro tecnológico ao qual
devemos dedicar nossa atenção a partir de agora. Pois a realidade virtual
balbuciante de
hoje vai amadurecer em alguns anos apenas; e, promessa e ameaça ao mesmo tempo,
ela tem o potencial de modificar isto que se entende como o ser homem ou mulher.
Howard RheingoldA máquina-cinema
Raymond Bellour
Se Lang é o cineasta por excelência ou pelo menos de um certo cinema
anterior a Rossellini e à Nouvelle Vague, que, pela voz de Godard, prestou-lhe
duas vezes a homenagem que conhecemos, é porque Lang é o homem do
dispositivo, aquele que lançou o olhar mais agudo sobre a máquina-cinema:
olhar que vai até o ponto em que o olho se estende ao próprio corpo, do qual ele
parece ser a ponta afinada. Sustentada em Mabuse e Splone por todo-poder do
olhar delegado e pela reflexão sobre a hipnose, metaforizada, em Metrópolis,
pela invenção do andróide e uma primeira antecipação da dinâmica da mídia, a
figuração do dispositivo impregna de um modo excessivo, físico e mítico, o
último filme mudo do seu período alemão: Frau Im Mond.
Esta mulher que parte em direção à lua dá o seu nome ao foguete, Friede,
que leva uma tripulação de três homens, um velho e uma criança. O caráter
antecipatório da viagem (em 1929) não basta para explicar a loucura que a
anima. Chega um momento em que é preciso inverter o que se acredita ver para
encontrar algo que se pareça com a razão, fazendo dos atores do drama também
espectadores. Não como esses heróis quaisquer, que se tornaram, no cinema
moderno, aqueles que vêem, no sentido deleuziano, a sua própria inércia motriz
e a propagam para o espectador. Mas como seres significativos, especimens de
espécies exemplares, confrontados à dinâmica do movimento que os une, do
ponto de vista deste viajante imóvel que sempre foi, desde o início, o espectador
de cinema.
Isto pode ser uma ficção. O efeito de uma impressão. Um desejo indevido
de extrapolação. Mas ao rever Frau Im Mond há quase um ano, compreendi de
repente o estranho efeito produzido por aquele longo trajeto da terra até a lua,
preparado por uma mise-en-scène impecável, que culmina nos célebres planos da
partida do foguete. Simplesmente isso: o foguete, que é o próprio movimento,
também é um espaço fechado, próximo da sala de cinema. Ele materializa bem
de perto (como já fazia o trem, em Splone) o deslocamento fixo, onde os corpos
são a própria presa, quando submetidos à uma projeção que sutiliza sua
espessura e motricidade para favorecer as sombras jogadas na tela. As
transformações sofridas pelos viajantes do espaço, vestidos assim como nós, é
uma maneira de expressar as transformações vividas pelos espectadores,
imobilizados em suas cadeiras. Isto ilustra uma idéia que já ficou evidente:
ocinema é contemporâneo das máquinas de transformar o espaço e vive esta
transformação de uma maneira bastante peculiar, como um olho que, ao mesmo
tempo, se liga e se desliga das máquinas e, por isso, pode figurá-las, assim como
substituí-las. Lang enriquece esta colusão com um suplemento: é aí que reside
todo o seu interesse.
Tais idas-e-vindas, cena-sala, foguete-cinema, foram sabiamente
manejadas durante a primeira fase do filme, antes da decolagem. Por quatro
vezes, em quatro níveis superpostos. Os planos extraordinários que preludiam a
projeção, quando o foguete é exibido aos possíveis financiadores do projeto,
servem de base prévia: tela que desce, painel móvel que sobe, janela minúscula,
onde se enquadra a cabeça de quem faz a projeção, feixe de coisas que jorram à
direita, onde não são esperadas, como se para reduzir ao espaço-plano o que
pertence ao volume – problema que Lang dominou plenamente com seus
espaços secos, cinzas, átonos, tons sobre tons, onde cada coisa vibra por ser
remetida ao seu valor mínimo e absoluto. A assimilação máquina-espaço-
tempo/máquina-de-visão é concluída nos poucos planos (interiores a esta
seqüência) que mostram um foguete concebido por Hélius, o herói, e dotado de
uma câmera que permitiu captar as primeiras imagens da face oculta da lua. Por
outro lado, há uma longa seqüência da partida do foguete. Sua força é midiática:
acima de tudo, por envolver os olhares dos espectadores. Espectadores da era das
multidões, ao mesmo tempo sujeitos e objetos do ponto de vista, massificados e
semi-individualizados, trabalhados de um jeito como só Lang sabe fazer, na
tenaille en recul de um olhar que não parece ter começo nem fim, que parece
sempre ter estado lá onde se encontra. De tal modo que, ao olharmos o foguete
partir, este instrumento da viagem a que somos conduzidos, somos ainda re-
projetados no interior da sala de cinema em que estamos. Enfim, podemos
lembrar de um plano extraordinário, que quase só Lang sabe fazer: Hélius
sentado num carro, encobrindo a borda de uma minúscula janela de trás que
lembra uma cabine de projeção. O enquadramento é fechado, o herói é
«capturado» na sua cadeira, vítima daquele humor delicado, tão característico
dos grandes filmes mudos, o qual atinge excessos grotescos ou sublimes em
Frau Im Mond, dependendo de como é visto. Estes pensamentos indecisos
podem ser atribuídos a um fracasso sentimental junto a Friede (noiva, não se
sabe porque, de Hans Windegger, um amigo comum, ainda que fique claro que
ela ama Hélius) e à aventura extrema que prepara, da qual ele é o cérebro
científico e o metteur-en-scène. Ora, enquanto ele rumina à beira do indizível,
efeitos de luz e sombra, projeções mínimas e desmesuradas percorrem asuperfície da
tela. Elas provém, logicamente, das janelas do carro, hors champ,
mas de tal modo concentradas no campo que perdemos qualquer idéia de sua
localização, para sermos atraídos pelo efeito de duas forças que se atraem: de um
lado, a agitação interna deste ator sentado, paralisado, quase um espectador de
sua própria imagem, interior-exterior, cujos eflúvios o invadem; por outro, a
força ligada a um meio de deslocamento, de translação, que já é uma pura
máquina de visão.
No momento em que entramos no foguete para fazer a viagem, estamos
prontos para aquele efeito de reversão do qual eu falava, o efeito que imagino.
Atores que se tornam espectadores. Não somente por causa do espetáculo para o
qual se preparam, e que vai culminar na terceira fase da viagem. Mas porque
compõem um microcosmos da sociedade humana, reduzida a um estado coletivo
e diferenciado, em função do qual eles abraçam a situação em que se encontram:
rumo à lua, ao cinema. É muito simples afirmar que Lang só estava interessado
no foguete (o que é dito por Lotte Eisner, sem mais detalhes), e jogar para algum
porta-voz ou para Thea von Arbou (então cenógrafa e mulher de Lang) a
responsabilidade de algumas linhas assinadas por ele, publicadas na Deutsche
Filmzeltung:
«Quatro homens, uma mulher, uma criança: um punhado de seres
humanos com destinos entrelaçados. Num veículo jamais visto até então,
numa nave espacial rumo a um solo que ninguém ainda pisou,
percorrendo a solidão infinita da lua – mas todos permanecem
acorrentados pelo destino, na lua como na terra, segundo as leis de seu
sangue, de suas paixões, de sua felicidade e de suas tragédias. Representar
tudo isso: tal era o sonho que flutuava diante dos meus olhos.»
Lang não estava interessado apenas no foguete, mas em algo ainda mais
inquietante. Ele se apropriou de sentimentos e de relações bastante rudimentares,
ao mesmo tempo excessivas, delicadas e convencionais, para circunscrever um
espaço misto que permite que elas sejam simuladas não só pelos heróis efetivos,
mas também por espectadores potenciais, cujas forças expressam estados ligados
não só ao filme mas à idéia, ao corpo do cinema. Assim, no foguete estão:
Helius, bravo, frio e incandescente, uma espécie de Siegfried científico, mestre
de si mesmo, assim como do universo; Windegger, um ser frouxo e violento,
covarde e indeciso, de sentimentos sem qualidade; Friede, a mulher antiga e
também nova, que sofre mudanças a partir da fusão do romantismo, do
modernismo e da tecnologia; o professor Mansfeldt, o iniciador, muito velho e
frenético: com trinta anos de antecedência, profetizou a existência de ouro na luae
os meios de se chegar até lá; Turner, técnico e homem de finanças
inescrupuloso, enviado pela firma que garante o financiamento da operação em
troca do monopólio da exploração do ouro; por fim, Gustav, a criança valorosa
que se escondeu no foguete, assim como nas histórias em quadrinhos que são a
sua paixão. Estamos diante de um resumo da humanidade, personalidades,
idades e sexos (não falta nem um mascote, o camundongo Josefine, levado por
Mansfeldt). Os espectadores podem se reconhecer como tais no grupo humano
assim constituído, indentificando-se individualmente com cada um dos
personagens por pulsões e repulsões, como ocorre diante de todos os corpos do
cinema. Mas estes corpos também são qualificados, um por um e em conjunto,
pelos estados singulares característicos da experiência extrema que atravessam.
A combinação destes estados com os seus traços de humanidade acaba
produzindo neles o mesmo número de faces compósitas. E os espectadores – os
verdadeiros – têm, assim, a impressão de viver uma experiência una e múltipla,
que toca as raízes obscuras de seu ser de espectador de cinema.
Três estados se sucedem durante o vôo do foguete. Primeiro, o choque da
decolagem. Em diversos estágios, superpostos no tempo e variando segundo as
posturas dos corpos, todos os personagens desfalecem. Um sono singular. Uma
hipnose favorecida pela conjugação da imobilidade (todos estão presos em suas
camas) e do movimento-deslocamento, como em certas máquinas de inibição
sensorial. O segundo estado é a embriaguez ligada à ausência de peso. Basta um
leve movimento para Gustav levantar-se e passar de um andar a outro do
foguete, prestes a medir mal o efeito e bater no teto. Sonhos de vôo, sonho de
decolagem. O terceiro estado, que se afirma à medida que o foguete se aproxima
da lua, é de pura fascinação. Em momentos de estonteante beleza, as imagens do
solo lunar desfilam pelas janelas do foguete. É Mansfeldt que fica possuído por
este estado, abrindo perigosamente as janelas até o pouso na lua, para ver e ver
sempre mais, e querer tocar o que vê, abraçando a imagem com as mãos, para
acariciá-la, arranhá-la, apagá-la, até mesmo para mergulhar nela, num gesto
alucinado que será novamente encontrado por Ulisses, nos Carabiniers. Mas
todos os viajantes entram em êxtase, mais ou menos assim como acreditamos, às
vezes, ter entrado na imagem – o que pode ser visto nos planos que lembram,
com muita precisão, a massa de espectadores diante da pista no momento do
lançamento do foguete. O círculo que assim se fecha tem o propósito de nos
fazer sentir que estes três grandes estados, suportes de estados intermediários e
de posturas singulares, são claramente sucessivos, na medida em que participam
da construção de uma história. Mas a cronologia que os separa de nós faz comque
possamos apreender até que ponto também eles se encontram misturados,
nas profundezas do corpo. Intimidades do corpo arcaico apreendido em seu
pertencimento à máquina-cinema.
Quanto ao que ocorre na lua, é um pouco indizível, pelo tanto que as
almas e os corpos parecem vítimas de afectos erráticos que às vezes ultrapassam
o limite das marcas de ação e de conduta (Mansfeldt é perseguido por Turner,
numa busca de ouro alucinada, e desaparece num buraco, sem que sua morte
tenha qualquer efeito; Turner procura se apossar do foguete – com que
finalidade? – e acaba morto por Windegger, etc...). Fraqueza do cenário?
Divórcio entre as intenções iniciais e o filme pronto (como em tantos filmes
mudos de Lang, pelo que Lotte Eisner dá a entender)? Pelo menos duas coisas
são certas. Existe na lua uma atmosfera; podemos respirar como na terra. Este
retorno do real tem o propósito de aproximar o que o fantástico da viagem
poderia ter afastado. Ele nos leva para o lugar de onde partimos, com o
suplemento adquirido pelo trajeto, que permanece essencial. E existe ouro na
lua. Esta resposta à miragem inicial faz da lua uma terra prometida, uma espécie
de Eldorado: uma imagem do cinema, tal como havia sido para Méliès em seus
devaneios de origem, tal como ela se torna também aqui, através das
especulações financeiras que têm por objeto a expedição – o filme. A lua-
cinema, quando suas fases ainda não eram refletidas pelo circuito abstrato dos
monitores (Palk) e quando não estava cheia, como uma imagem pobre de pub
(Fellini).
No entanto, existe ainda um suplemento, expresso no próprio título do
filme. Ele também toca, por outro lado, na máquina, no destino do dispositivo.
Uma mulher na lua: é exatamente isto que está em jogo, algo dificilmente
concebível (em 1929), e sem o qual o filme seria inconcebível. A cena do
lançamento é explícita: Helius sugere a Friede que ela poderia desistir da
viagem; ela responde (indo ainda mais longe do que o peso do olhar dos
espectadores): «Você está tentando me dizer que nós, mulheres, não somos
suficientemente corajosas para esta aventura? Os olhos do mundo inteiro nos
vêem – as orelhas do mundo estão à escuta.» A réplica é uma oportunidade para
Lang conceber um daqueles estranhos planos modernistas que contrastam com
seu minimalismo: uma mistura de rostos e engrenagens (objetivas? alto-
falantes?), comparável ao plan de genérique do último Mabuse. Um plano-
máquina que evoca aquilo que prefigura. Como sabemos, o foguete tem o nome
da heroína. Simbolismo bastante simples, apagado pelo fato de que ela entra lá
dentro. A não ser por ele vincular o foguete, uma vez na lua e através de Friede,a
uma outra máquina que, de um modo bem mais direto, cabe à mulher: a
câmera, que a câmera de Fritz Lang se incumbe de nos mostrar. Em planos
magníficos, ele filma Friede filmando o solo desértico da lua, revelando seus
filmes dentro do foguete.
Mas porque é preciso que seja a mulher que filme? Evidentemente, para
que o dispositivo-cinema dependa da mulher. Que tipo de dependência,
exatamente? Em Metrópolis, duas Marias se confundem e se opõem: Maria-
puro-amor e Maria-máquina, que encarnam, ao mesmo tempo, o processo de
fabricação das imagens e o poder negativo e mortífero, ligado a este processo,
que o filme acaba restituindo ao puro amor. E também em Splone, Sônia, a bela
esplonne (representada por Gerda Maurus, a atriz de Frau Im Mond), passava da
esfera de Haghi-o-enunciador à esfera de Trémaine-o-herói (representado por
Willy Fritsch, que também é Helius em Frau Im Mond) através do trem – a
máquina Splone. Desse modo, o personagem feminino deixava a vertente do
terror negativo, vinculada ao olhar da mise en scène desde o início do filme, para
entrar na dimensão do amor, que também pertence à própria imagem (no cinema
mudo, o rosto extático de Gerda Maurus, em close, de Sônia à Friede, é uma
expressão muito forte disso). Neste sentido, Frau Im Mond leva tudo para o lado
do puro amor. Foguete e câmera se conjugam para, na lua, conduzir o destino
dos heróis, do casal, a um último estado: o estado amoroso, próximo dos estados
que o precedem, em particular, da hipnose (como sabemos, Freud faz esta
associação no famoso capítulo 8 de Psicologia de massas e análise do eu). Nesta
viagem, neste filme, não há nada comparável ao desejo de domínio desregrado
que associa numa mesma imagem – fundada na força (real e virtual) das
máquinas – Mabuse e Haghi, o mestre de Metrópolis e Rotwang. Esta força é
dividida entre homem e mulher, deslizando de um a outro em cada filme
mencionado: Helius e Friede permanecem juntos na lua após a partida forçada
do foguete (o final real); ou Helius permanece só para esperar a volta de seus
amigos (outro final previsto, segundo Lotte Eisner). De qualquer forma, este
abandono tem sucesso no amor, assim como o dispositivo-cinema conduz o
herói ao apaziguamento (Friede) – estranho estado de graça que poderia explicar
o seu nome solar. Hélius: o noivo da lua, mais mulher – mulher-cinema – do que
nunca. Assim, o estado do cinema, projetado através do espectro de mitologias
imemoriais – sua herança – ocorre aqui como o casamento imaginário da lua
com o sol.
Traduzido por Ana Luiza Martins CostaO Trabalho Afetivo
Michael Hardt
A atenção que têm suscitado a produção dos afetos tanto em nosso
trabalho como em nossas práticas sociais tem constituído, freqüentemente,
um solo fértil para projetos anti-capitalistas, no contexto dos discursos, por
exemplo, sobre o desejo ou sobre o valor de uso. O trabalho afetivo é, não
só em si mesmo, mas também de forma direta, a constituição de
comunidades e subjetividades coletivas. O circuito produtivo de afeto e de
valor tem parecido, assim, de várias maneiras, como um circuito
autônomo de constituição de subjetividade, alternativo ao processo de
valorização capitalista. Modelos teóricos articulando Marx e Freud
conceberam o trabalho afetivo utilizando termos como produção de desejo
e, de maneira ainda mais significativa, diversas pesquisas feministas vêm
analisando as potencialidades existentes dentro daquilo que tem
tradicionalmente sido designado como trabalho feminino, e têm abordado
o trabalho afetivo a partir de termos como trabalho familiar e trabalho de
cuidados i . Cada uma dessas análises revela os processos pelos quais nossas
práticas de trabalho produzem tanto subjetividades coletivas, como
sociabilidade e, em última análise, os processos pelos quais tais práticas
produzem a própria sociedade.
Tais concepções do trabalho afetivo hoje (e este é o aspecto
fundamental deste ensaio), devem, entretanto, ser situadas no contexto das
transformações do papel do trabalho afetivo dentro da economia
capitalista. Em outras palavras, embora o trabalho afetivo nunca tenha
estado inteiramente fora da produção capitalista, os processos de pós-
modernização econômica que têm estado em curso ao longo dos últimos
anos, colocaram o trabalho afetivo em uma situação em que surge não só
como diretamente produtor de capital mas, de como o elemento que ocupa
o topo da hierarquia das formas produtivas. O trabalho afetivo é uma das
facetas daquilo que chamarei de “trabalho imaterial”, o qual assumiu uma
posição preponderante em relação a outras formas de trabalho na economia
capitalista global.
Dizer-se que o capital incorporou e valorizou o trabalho afetivo e
que este é uma das mais elevadas formas de produção de valor do ponto devista do
capital não significa, entretanto, que, mesmo assim contaminado,
ele não possa ser utilizado em projetos anti-capitalistas. Pelo contrário,
dado o papel do trabalho afetivo como um dos elos mais fortes na corrente
da pós-modernização capitalista, seu potencial de subversão e constituição
autônoma se torna ainda maior. Dentro desse contexto podemos
reconhecer o potencial biopolítico do trabalho, usando biopoderaqui num
sentido que, a um tempo, adota e inverte o uso do termo em Foucault.
Gostaria de desenvolver este ensaio, então, em três etapas: em
primeiro lugar, primeiro situando o trabalho imaterial dentro da fase atual
da pós-modernização capitalista; em segundo, situando a posição do
trabalho afetivo em relação as outras formas de trabalho imaterial; e, por
fim, explorando o potencial do trabalho afetivo em termos de biopoder.
Pós-modernização
É hoje comum considerarmos que a sucessão dos paradigmas
econômicos nos países capitalistas dominantes, ii desde a Idade Média, a
partir de três momentos distintos, cada um deles definido pelo
predominância de um setor da economia: no primeiro paradigma, a
agricultura e a extração de matérias-primas dominavam a economia; no
segundo, eram a indústria e a manufatura de bens duráveis que ocupavam
posição privilegiada e, no paradigma atual, a prestação de serviços e o
processamento da informação ocupam o centro da produção econômica. A
posição dominante passou, assim, da produção primária, para a secundária
e desta para a terciária. Chamou-se modernização econômica a passagem
do primeiro paradigma para o segundo, isto é, à passagem do domínio da
agricultura para o da indústria. Modernização significava industrialização.
Poderíamos chamar a passagem do segundo para o terceiro paradigma, isto
é, a passagem do domínio da indústria para o dos serviços e da informação,
de pós-modernização, ou melhor, de informatização econômica.
Os processos de modernização e industrialização transformaram e
redefiniram todos os elementos do plano social. Quando a agricultura foi
modernizada como uma indústria, a fazenda transformou-se
progressivamente numa fábrica, absorvendo todos os seus elementos de
disciplina, tecnologia e relações salariais, entre outros. A própria sociedade
foi gradualmente se industrializando, chegando mesmo ao ponto de ver
transformadas as relações e a natureza humana. A sociedade tornou-se
uma fábrica. No início do séc. XX, Robert Musil, refletindo sobre as
transformações da humanidade na passagem do mundo agrícola para afábrica social,
observava com elegância que: “Houve um tempo em que as
pessoas cresciam naturalmente dentro das condições que se encontravam
esperando por elas e isso era uma forma muito saudável de se tornar um
indivíduo. Mas, nos dias de hoje, com toda essa turbulência, quando tudo
é separado do solo em que cresceu, mesmo quando se trata da
constituição do espírito, deveríamos de fato, substituir, por assim dizer, os
artesanatos tradicionais pelo tipo de inteligência que vem associada às
máquinas e às fábricas” A humanidade e seu espírito são formados dentro
dos processos mesmos de produção econômica. Os processos pelos quais
alguém se tornava humano e a própria natureza do humano em si mesma
foram fundamentalmente transformados na mudança qualitativa trazida
pela modernização.
1
Hoje, no entanto, a modernização chegou a um fim, ou, para
usarmos as palavras de Robert Kurz, a modernização fracassou. Em outras
palavras, a produção industrial não está mais expandindo seus domínios
sobre outras formas econômicas e outros fenômenos sociais. Um sintoma
dessa alteração se manifesta em termos de mudanças quantitativas no
emprego. Enquanto os processos de modernização eram indicados por uma
migração do trabalho da agricultura e da mineração (setor primário) para a
indústria (setor secundário), os processos de pós-modernização e
informatização são perceptíveis pela migração de empregos da indústria
para o setor de serviços (setor terciário), mudança esta que vem ocorrendo
nos países capitalistas dominantes, e em particular nos EUA, a partir do
início dos anos 70. O termo “serviços” aqui cobre um grande leque de
atividades, desde assistência médica, educação e serviços financeiros até
transportes, entretenimento e publicidade. Os empregos são, em sua
maioria, altamente móveis e envolvem habilidades flexíveis. De maneira
ainda mais importante, tais empregos caracterizam-se, em geral, pelo papel
central desempenhado por conhecimento, informação, comunicação e
afeto. Nesse sentido, podemos dizer que a economia pós-industrial é uma
economia informacional iii .
2
A afirmação de que o processo de modernização está acabado e de
que a economia globalizada está hoje vivendo um processo de pós-
modernização em direção a uma economia informacional não significa que
a produção industrial será abolida ou que deixará de desempenhar um
papel relevante, mesmo nas regiões mais desenvolvidas do globo. Assim
como a revolução industrial transformou a agricultura e tornou-a mais
produtiva, a revolução informacional irá transformar a indústria
redefinindo e rejuvenescendo os processo de produção - através da
integração, por exemplo, de redes de informação a processos industriais. Onovo
imperativo operacional, em termos administrativos, é o de se “tratar a
produção como um serviço”. 3 Com efeito, à medida em que as indústrias
se transformam, a distinção entre manufatura e serviços vai se tornando
menos nítida.
Da mesma forma como, através do processo de
modernização, toda produção se tornou industrializada, é também através
do processo de pós-modernização que toda produção caminha na direção
da produção de serviços e tende a se tornar informatizada.
O fato de que a informatização e a preponderância do setor de serviços
sejam mais visíveis nos países capitalistas dominantes, no entanto, não nos
deveria fazer retroceder a uma compreensão da situação econômica global
contemporânea em termos de estágios de desenvolvimento – como se hoje
os países dominantes fossem economias informacionais de serviços, os
países de economia industrial seus subordinados diretos e como se, em
condição de subordinação ainda mais aguda, estivessem os países de
economia agrícola.
Para os países subordinados o colapso da modernização significa, antes
de mais nada, que a industrialização não pode mais ser vista como a chave
para o desenvolvimento e a competitividade econômica. Algumas das
regiões mais subordinadas do mundo, tais como regiões da África Sub-
Saariana, foram efetivamente excluídas não só dos fluxos de capital e do
acesso às novas tecnologias como até mesmo da ilusão das estratégias de
desenvolvimento e, se encontram, assim, à beira da fome (embora
devessemos perceber a forma como a pós-modernização impõe essa
exclusão e, não obstante, domina tais regiões).
A competição pelas posições intermediárias na hierarquia global é
levada a efeito, em grande parte, através não da industrialização mas da
informatização da produção. Países territorialmente extensos, com
economias variadas, tais como a Índia, o Brasil ou a Rússia, podem dar
apoio, simultaneamente, a toda a variedade de processos produtivos: à
produção de serviços baseada na informação, à moderna produção
industrial de bens, bem como às tradicionais produções artesanal, agrícola
e mineira. Não é preciso que haja uma progressão histórica entre essas
formas, que, pelo contrário, freqüentemente coexistem e se mesclam; não é
necessário que se pela modernização antes da informatização – a produção
artesanal tradicional pode ser imediatamente computadorizada; telefones
celulares podem utilizados imediatamente em remotas vilas de pescadores.
Todas as formas de produção existem dentro das redes presentes no
mercado mundial e sob a dominação da produção informacional de
serviços.O Trabalho Imaterial
A passagem para uma economia informacional envolve
necessariamente uma transformação tanto na qualidade quanto na natureza
dos processos de trabalho. Esta é a implicação sociológica e antropológica
mais imediata da mudança de paradigmas econômicos. Informação,
comunicação, conhecimento e afeto passam a desempenhar um papel
estrutural nos processos produtivos.
Um primeiro aspecto dessa transformação é visto por muitos em
termos da mudança do processo de produção industrial – tomando-se a
indústria automobilística como elemento central de referência- do modelo
Fordista para o Toyotista 4 . A mudança estrutural fundamental entre esses
modelos envolve o sistema de comunicação entre a produção e o consumo
de mercadorias, isto é, envolve a transmissão da informação entre a fábrica
e o mercado. O modelo Fordista construía uma relação relativamente
‘muda’ entre a produção e o consumo. A produção em massa de bens de
consumo padronizados na era Fordista podia contar com uma demanda
adequada e, assim, tinha pouca necessidade de “ouvir” atentamente o
mercado. Embora um circuito de feedback do consumo à produção
possibilitasse mudanças no mercado para acelerar mudanças na produção,
essa comunicação era restrita (devido a canais de planejamento fixos e
estanques) e lenta (devido à rigidez das tecnologias e procedimentos da
produção de massa).
O Toyotismo é baseado numa inversão da estrutura Fordista de
comunicação entre produção e consumo. Idealmente, de acordo com esse
modelo, o planejamento da produção estaria em comunicação constante e
imediata com o mercado. As fábricas manteriam um estoque zero e as
mercadorias seriam produzidas apenas no último instante, de acordo com
nível de demanda existente no mercado. Esse modelo não envolve, assim,
apenas um retorno mais rápido do feedback mas opera também uma
inversão na relação na medida em que, ao menos em teoria, as decisões da
produção ocorrem efetivamente em momento posterior às decisões do
mercado, e surgem como reação a elas. Este contexto industrial nos
oferece uma primeira percepção sobre a forma como a comunicação e a
informação passaram a desempenhar um papel cuja centralidade é recente
dentro do processo de produção. Poder-se-ia dizer que a ação instrumental
e a ação comunicativa se entrelaçaram profundamente nos processos
industriais informatizados. (Seria interessante e útil considerar, aqui, o
modo como ambos os processos rompem com a divisão entre ação
instrumental e ação comunicativa proposta por Habermas, da mesma forma
como, em outro sentido, eles o fazem com as distinções que Hanna Arendtestabelece
entre trabalho, ação e obra 5 ). Contudo, é preciso que se ressalve,
desde logo, a noção de comunicação como mera transmissão de dados de
mercado é bastante pobre.
Os setores de serviço na economia apresentam um modelo mais rico
de comunicação produtiva. A maioria dos serviços está, de fato, baseada
no intercâmbio contínuo de informações e conhecimentos. Uma vez que a
produção de serviços não resulta em um bem material ou durável,
poderíamos definir o trabalho envolvido nessa produção como trabalho
imaterial – isto é, trabalho que produz um bem imaterial, como, serviços,
conhecimento, ou comunicação. 6 Uma das faces do trabalho imaterial pode
ser percebida através de uma analogia com o funcionamento de um
computador. O uso cada vez mais amplo de computadores tem levado
progressivamente à redefinição de práticas e relações de trabalho
(juntamente, na verdade, com a redefinição de todas as práticas e relações
sociais). A familiaridade e a intimidade com a tecnologia dos
computadores vêm se tornando, de forma cada vez mais generalizada, uma
qualificação básica para o trabalho nos países dominantes. Mesmo quando
não se trata de contato direto com computadores, é extremamente comum
exigir-se a capacidade de se lidar com símbolos e informação nas linhas do
modelo de operação de um computador.
Um aspecto novo trazido pelo computador é o de que ele pode
modificar continuamente sua própria operação através de seu uso. Mesmo
as formas mais rudimentares de inteligência artificial permitem ao
computador expandir e aperfeiçoar suas operações baseado na interação
com seu usuário e seu ambiente. O mesmo tipo de interatividade contínua
caracteriza uma ampla gama de atividades produtivas contemporâneas em
todos os setores da economia, quer o computador esteja diretamente
envolvido ou não. Há algum tempo, os operários aprendiam a agir como
máquinas tanto dentro quanto fora da fábrica. Hoje, a medida em que o
conhecimento social se torna cada vez mais uma força de produção direta,
pensamos cada vez mais como computadores enquanto que o modelo
interativo das tecnologias de comunicação torna-se cada vez mais central
para nossas atividades de trabalho. 7 As máquinas interativas e cibernéticas
se tornaram uma nova prótese integradas aos nossos corpos e mentes e,
também, uma lente através da qual redefinimos nossos próprios corpos e
mentes. 8
Robert Reich chama esse tipo de trabalho imaterial de “serviços
simbólico-analíticos” – tarefas que envolvem “atividades de identificação
de problema, de solução de problema e de intermediação estratégica.” 9
Esse tipo de trabalho é, hoje, o mais valorizado e por isso Reich oidentifica como
a chave para a competição na nova economia global. Ele
reconhece, entretanto, que o aumento de postos para esse tipo de emprego,
que exige tanto um conhecimento especializado como a capacidade de
manejo criativo de símbolos, implica um crescimento correspondente de
empregos de baixa qualificação e pouco valorizados, e que exigem uma
manipulação rotineira de símbolos, como, por exemplo, a digitação de
textos e o processamento de dados. É nesse ponto que começa a emergir
uma divisão fundamental de trabalho dentro do campo dos processos
imateriais.
O modelo do computador, no entanto, pode explicar apenas uma
face do trabalho imaterial e de comunicação envolvido na produção de
serviços. A outra face do trabalho imaterial é o trabalho afetivo de contatos
e interações humanas. Este é o aspecto do trabalho imaterial que tem
menos possibilidades de ser discutido por economistas como Reich, mas
esse me parece ser o aspecto mais importante, o elemento que liga todos os
demais. Os serviços de saúde, por exemplo, baseiam-se fundamentalmente
em atividades de cuidados e no trabalho afetivo, ao passo que a indústria
do entretenimento e as várias indústrias culturais igualmente enfatizam a
criação e manipulação dos afetos. Em maior ou menor grau, esse trabalho
afetivo desempenha algum tipo de papel em cada um dos segmentos da
indústria de serviços, das lojas de fast food às instituições financeiras,
estando inserido nos momentos de interação e de comunicação humana.
Este trabalho é imaterial, mesmo sendo corporal e afetivo, no
sentido de que seus produtos são intangíveis: um sentimento de
tranqüilidade, bem estar, satisfação, entusiasmo, paixão – mesmo uma
sensação de integração ou de pertença a uma comunidade. Categorias
como a de serviços que exigem a presença ou a proximidade física de uma
outra pessoa são freqüentemente utilizadas para identificar esse tipo de
trabalho, embora o que nele seja essencial, seu aspecto de presença física,
seja, de fato, a criação e manipulação dos afetos. Esta produção, troca e
comunicação afetiva é geralmente associada ao contato humano, à
presença efetiva de um outro, ainda que esse contato possa ser tanto real
quanto virtual. Na produção dos afetos na indústria do entretenimento, por
exemplo, o contato humano, a presença de outros, é sobretudo virtual mas,
nem por isso, menos real.
Essa segunda face do trabalho imaterial, sua face afetiva, se estende
para além do modelo de informação e comunicação definido pelo
computador. O trabalho afetivo pode ser melhor entendido se começarmos
por aquilo que as análises feministas do “trabalho da mulher” têm
chamado de “trabalho na modalidade corporal”. 10 As atividades de ajudaestão, com
certeza, completamente imersas no corporal e no somático, mas
os afetos que elas produz são, não obstante, imateriais. O que o trabalho
afetivo produz são redes sociais, formas de comunidade, biopoder.
Aqui se poderia perceber, ainda uma vez, que a ação instrumental da
produção econômica se fundiu à ação comunicativa das relações humanas.
Neste caso, entretanto, a comunicação não foi empobrecida mas, pelo
contrário, a produção foi incrementada até o nível de complexidade da
interação humana. Embora, num primeiro momento, seja possível dizer-se
que na informatização da indústria, por exemplo, a ação comunicativa, as
relações humanas e a cultura foram instrumentalizadas, reificadas e
rebaixadas ao nível das interações econômicas, deve-se também logo
acrescentar-se que, em um processo recíproco, a produção tornou-se, num
segundo momento, comunicativa, afetiva, desinstrumentalizada, e elevada
ao nível das relações humanas – embora, evidentemente, ao nível das
relações humanas inteiramente dominadas pelo capital e internas a ele. (E
aqui a distinção entre cultura e economia começa a se esfacelar). Na
produção e reprodução de afetos, naquelas redes de comunicação e cultura,
subjetividades coletivas são produzidas e é produzida a sociabilidade–
mesmo que essas subjetividades e essa sociabilidade sejam diretamente
exploráveis pelo capital. É aqui que nos damos conta do enorme potencial
do trabalho afetivo.
Não pretendo afirmar que o trabalho afetivo seja em si mesmo uma
novidade ou que seja novo o fato de o trabalho afetivo, em algum sentido,
produzir valor. As análises feministas, em particular, já reconheceram, há
muito tempo, o valor social dos trabalhos de cuidado, do trabalho familiar
e das atividades maternas. O que é novo, por outro lado, é o quanto esse
trabalho imaterial afetivo é agora diretamente produtor de capital e a forma
como ele se generalizou em amplos setores da economia. De fato, como
um componente do trabalho imaterial, o trabalho afetivo conquistou uma
posição dominante do mais alto valor dentro da economia informacional
contemporânea. No que diz respeito à produção do espírito, como diria
Musil, não deveríamos olhar mais para o solo e o desenvolvimento
orgânico, nem para a fábrica e o desenvolvimento mecânico, mas para as
formas econômicas hoje dominantes, ou seja, para a produção definida por
uma combinação de afetos e cibernética.
Este trabalho imaterial não está restrito a alguns grupos de
trabalhadores como, por exemplo, programadores de computadores ou
enfermeiras, que formariam potencialmente uma nova aristocracia de
trabalhadores. Ao invés disso, o trabalho imaterial em suas várias formas (
informacional, afetivo, comunicativo e cultural) tende a se espalhar portodas as
forças produtivas e por todas as tarefas, como um componente,
maior ou menor, de todos os processos de trabalho. Dito isto, entretanto, é
preciso lembrar que existem várias divisões dentro do universo do trabalho
imaterial – divisões internacionais do trabalho imaterial, divisões de
gênero, divisões raciais, e assim por diante. Como diz Robert Reich, o
governo dos Estados Unidos vai fazer todo o possível para manter o
trabalho imaterial mais valioso nos Estados Unidos e exportar os de menor
valor para outras regiões. Esclarecer essas divisões do trabalho imaterial é
tarefa de extrema importância, e estas, é importante que frise, não são as
divisões de trabalho às quais estamos acostumados, particularmente no que
diz respeito ao trabalho afetivo.
Resumindo, podemos distinguir três tipos de trabalho imaterial que
levam o setor de serviços ao topo da economia informacional. O primeiro
está envolvido numa produção industrial que foi informatizada e
incorporou tecnologias de comunicação em um modo que transforma o
próprio processo de produção industrial. A produção industrial é
considerada como um serviço e o trabalho material da produção de bens
duráveis se confunde com o trabalho imaterial e dele se aproxima. O
segundo é o trabalho imaterial de tarefas analíticas e simbólicas, que, por
sua vez, se divide em manipulação criativa e inteligente, por um lado e, por
outro, em tarefas simbólicas de rotina. Finalmente, um terceiro tipo de
trabalho imaterial envolve a produção e manipulação de afetos e requer o
contato e a proximidade humana (virtuais ou efetivos). Esses são os três
tipos de trabalho que conduzem a pós-modernização ou informatização da
economia global.
Biopoder
Denomino de biopoder o potencial do trabalho afetivo. Biopoder é o
poder de criação da vida; é a produção de subjetividades coletivas, da
sociabilidade e da própria sociedade. A observação atenta dos afetos e das
redes de produção de afetos revela esses processos de constituição social.
O que se cria nas redes de trabalho afetivo são formas-de-vida.
Quando Foucault discute o biopoder ele o faz apenas de uma
perspectiva que olha de cima para baixo. É o patria potestas, o direito de
vida e morte do pai sobre seus filhos e servos. Mais importante, biopoder é
o poder que têm as forças emergentes da governabilidade de criar,
administrar e controlar populações – o poder de administrar a vida. 11
Outros estudos mais recentes ampliaram essa perspectiva de Foucault,tomando o
biopoder como o poder do soberano sobre a “vida real”, ou
seja, a vida enquanto distinta de suas várias formas sociais. 12 Em ambos os
casos, o que está em jogo no poder é a própria vida. Essa passagem política
em direção à fase contemporânea do biopoder corresponde à passagem
econômica da pós-modernização capitalista na qual o trabalho imaterial foi
levado a uma posição dominante. Aqui também, na criação de valor e na
produção de capital, o que é central é a produção da vida, ou seja, a
criação, a administração e o controle das populações. Essa visão
foucaultiana do biopoder, no entanto, situa a questão apenas de um ponto
de vista que parte de cima, como prerrogativa de um poder soberano. Por
outro lado, quando olhamos para a situação do ponto de vista do trabalho
envolvido na produção biopolítica, podemos começar a reconhecer o
biopoder a partir de um ponto de vista que vem de baixo.
O primeiro fato que observamos quando adotamos essa perspectiva é
que o trabalho da produção biopolítica é fortemente configurado como
trabalho de gênero. De fato, diferentes linhas de teorias feministas já nos
forneceram análises amplas da produção de biopoder sob este ponto de
vista. Uma corrente do eco-feminismo, por exemplo, emprega o termo
biopolítica (de uma forma que poderia parecer, à primeira vista, bastante
diferente daquela utilizada por Foucault) para se referir às políticas das
várias formas de biotecnologia que são impostas por corporações
transnacionais a populações e ao meio ambiente, especialmente em regiões
dependentes do mundo. 13 A Revolução Verde e outros programas
tecnológicos, que foram colocadas como meios do desenvolvimento
econômico capitalista, trouxeram com eles, na verdade, tanto a devastação
para o meio ambiente como novos mecanismos de subordinação da
mulher. Esses dois efeitos, no entanto, na verdade não passam de um só. É
fundamentalmente o papel tradicional da mulher de realizar as tarefas de
reprodução, lembram-nos essas autoras, aquele mais severamente afetado
pelas intervenções ecológicas e biológicas. A partir dessa perspectiva,
então, mulher e natureza são dominadas conjuntamente, mas também
trabalham juntas numa relação cooperativa, contra o ataque das tecnologias
biopolíticas, para produzir e reproduzir vida. Sobrevivência iv ]: a política
tornou-se uma questão que envolve a própria vida e a luta assumiu a forma
de um biopoder que se produz na base contra um biopoder que é imposto
de cima.
Num contexto bastante diferente, várias autoras feministas nos
Estados Unidos vêm analisando o papel essencial do trabalho feminino na
produção e reprodução da vida. De modo especial, o trabalho de cuidado
envolvido nas atividades maternas (distinguindo-se estas atividades dosaspectos
biologicamente específicos do trabalho de dar à luz) tem provado
ser um terreno extremamente rico para a análise da produção biopolítica. 14
Produção biopolítica aqui consiste basicamente no trabalho envolvido na
criação da vida – não nas atividades de procriação, mas na criação da vida
precisamente na produção e reprodução de afetos. Aqui podemos perceber
claramente que a distinção entre produção e reprodução se rompe, assim
como aquela entre economia e cultura. O trabalho atua diretamente nos
afetos; ele produz subjetividade; ele produz sociedade; ele produz vida. O
trabalho afetivo, nesse sentido, é ontológico – ele revela o trabalho vivo
constituindo uma forma de vida e, assim, demonstra novamente o potencial
da produção biopolítica. 15
Devemos logo acrescentar, no entanto, que não podemos
simplesmente sustentar nenhuma dessas perspectivas sem qualificá-las de
alguma maneira, e sem reconhecer o enorme perigo que elas apresentam.
No primeiro caso, a identificação entre mulher e natureza cria o risco de se
naturalizar e absolutizar a diferença sexual, além de propor uma definição
espontânea da própria natureza. No segundo caso, a celebração do trabalho
materno poderia facilmente servir para reforçar tanto as divisões de gênero
do trabalho quanto as estruturas familiares de sujeição e subjetivação
edípicas. Mesmo nessas análises feministas do trabalho materno fica claro
o quanto pode ser difícil, às vezes, deslocar-se o potencial do trabalho
afetivo seja das construções patriarcais da reprodução, seja do “buraco
negro” subjetivo da família. Esses perigos, no entanto, por mais relevantes
que sejam, não invalidam a importância de se reconhecer o potencial do
trabalho como biopoder, um biopoder que vem de baixo.
Esse contexto biopolítico é precisamente a base para uma
investigação da relação produtiva entre afeto e valor. O que encontramos
aqui não é tanto a resistência àquilo que poderíamos chamar de “trabalho
afetivamente necessário” 16 v , mas sim o potencial do trabalho afetivo
necessário. Por um lado o trabalho afetivo, a produção e a reprodução da
vida, plantou-se firmemente como um alicerce necessário para a
acumulação capitalista e a ordem patriarcal. Por outro lado, no entanto, a
produção de afetos, de subjetividades, e de formas de vida, apresentam um
enorme potencial para circuitos autônomos de valorização e, talvez, de
liberação.
Tradução de Elizabeth Araújo Lima e Paulo Augusto Certain – Revisão
J.G.GhirardiOs doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem
escandalosamente a ciência,
perturbando-1he o remanso com um retinir de esporas insolentes - e formulam leis
para
a guerra pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como
agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais
-
guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista -
se
ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às
grandes matas virgens.
Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território - orlando as
fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e
impossibilitando a translação das artilharias - se tornam de algum modo neutras no
curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dois beligerantes
oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as
manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos.
São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais
opostos valores.
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta.
Entram
também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Traçam-se,
impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto
que
ali nasceu e cresceu.
E o jagunço faz-se o guerri1heiro-tugue, intangivel..
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.
Euclides da CunhaUma política do futuro-presente
Mauro Sá Rego Costa
1. O que importa não é o futuro da revolução mas o devir
revolucionário58. Vamos agora ouvir falar de novo em revolução. Em vez
do fim da História, como desejam alguns, uma história em várias camadas,
tempos não sucessivos, mas simultâneos, vários ritmos incongruentes e
superpostos como na música dos pigmeus, tempos não pulsados como em
Boulez e Cage, devires com movimento retrógrado. A revolução é o
corpo-sem-órgãos da política. É a partir dela que se distribui o novo espaço
da política no tempo que a sucede. A revolução não tem passado, não é
determinada; é num surto que se dá o acesso ao corpo-sem-órgãos da
socialidade. Os períodos revolucionários são assustadores e fascinantes.
Benjamin: são como surtos para fora da História, para fora do tempo.
Kayrós, quando se cruzam o tempo dos Deuses e o tempo dos homens.
Durante a Revolução, não há tempo, não há História. A História nasce à
medida que se cristaliza e se perde o vigor dos novos potenciais que se
comunicam na sua eclosão.
Lembranças da revolução.
Em 1972, os maoístas franceses explodiam bombas em Nice e na
Espanha para estragar o verão dos burgueses. Terrorismo e disparate. La
révolution sera faite. "A revolução será feita", berravam voluntaristas. Em
73, vários grupos transformaram-se em bandas. Tocavam nas esquinas,
davam concertos em asilos de velhos e de órfãos. La révolution c’est la
fête. "A revolução é a festa", gritavam cheios de compaixão.
Paris, Maio de 68.
Quanto mais eu faço amor, mais eu faço a revolução.
Uma revolução que não se preocupa em tomar o poder. Dez mil
palavras de ordem. Dez mil questões diferentes. Em junho, ainda nas ruas,
guerra de paralelepípedos contra o gás lacrimogêneo da polícia. Uma
greve geral pára a França. Param as fábricas, os transportes, as
comunicações. Ocupações de fábricas e a criação de conselhos operários
como os sovietes. Ocupação dos prédios das faculdades para fazer festas e
mudar currículos e programas. A imaginação no poder. Cada grupo faz
sua própria revolução. Não há questões unificadas, nem líderes. Nos
campos, os proprietários fogem de suas terras, armados. Vão acampar nos
bosques, nas montanhas, organizados para enfrentar o exército
58
Deleuze Gilles e Parnet, Claire. Dialogues.revolucionário que não chega. É a
guerra. Mas ninguém sabe quem manda
nem o que quer essa revolução.
Frankfurt, 68.
Theodor Adorno chama a polícia para desalojar os estudantes que
ocupam o Instituto de Pesquisas Sociais. Para Adorno é a volta da
barbárie, que ele identifica, míope, com a dos nacional-socialistas. Os
estudantes não perdoam.
Como morreu Adorno, o grande ideólogo do marxismo de
Frankfurt? Adorno não cansa de olhar os peitinhos e as coxas de suas
alunas, durante as aulas. Depois da rebelião de Maio, as meninas contra-
atacam. Invadem seu escritório de Diretor do Instituto. Tiram as blusas, os
soutiens e passam os peitinhos na sua cara. Depois tiram o resto da roupa e
encenam uma trepada sobre sua mesa de Reitor. Horas depois, Adorno
morre de enfarte.59
Não interessa o futuro da revolução. O que interessa é o devir
revolucionário.
2. O primeiro grande teórico contra-revolucionário foi Richard
Hooker, criticando a Revolução Inglesa, a primeira aliás, a merecer esse
nome. Em seu Ecclesiastical Polity, Hooker faz um perfil dos mais
radicais entre os revolucionários, os Puritanos.
Para colocar em marcha um movimento, é preciso ter uma “causa”.
Há pouco tempo se usa este termo em política, ele foi lançado pelos
Puritanos. Para promover sua “causa”, segundo Hooker, deve-se criticar
severamente os males sociais e principalmente o comportamento das elites,
e fazê-lo repetidamente. Os críticos devem ser considerados, pelos que os
ouvem, homens de grande integridade, “pois somente homens muito bons
podem ofender-se tão profundamente com o mal”. Depois, deve-se dirigir
a crítica de forma direta sobre o governo instituído. Todos os defeitos e a
corrupção do mundo devem ser atribuídas ao governo. Fica claro então o
que deve ser atacado a fim de livrar o mundo de todo o mal. E após esta
preparação, é o momento de indicar uma nova forma de governo como “o
remédio para todos os males”, assim como identificar os líderes do
movimento. Os seguidores do movimento preferirão a companhia de outras
pessoas envolvidas com a mesma causa, aceitarão facilmente os conselhos
e as orientações dos líderes, “negligenciarão seus próprios interesses para
devotar todo o seu tempo ao serviço da causa”.
59
Uma história ouvida de estudantes universitários alemães no início dos anos 70. Não
sei se é a
verdadeira história da morte de Adorno. Nesse momento, não me importa se é
verdadeira: é um mito bem
construído.“Se algum indivíduo de opinião contrária abre a boca para persuadi-
los, eles se comportam como surdos, não ponderam as razões que lhe são
oferecidas, a tudo respondem repetindo as palavras de João: ‘Nós somos de
Deus; aquele que conhece Deus nos ouve’. Quanto aos demais, vocês
pertencem ao mundo, e falam da pompa e da vaidade do mundo; e o
mundo, feito de gente como vocês, lhes dá ouvido”60.
O primeiro recurso usado pelos Puritanos para garantir seu apoio é o
de reescrever as Escrituras. Usá-las para finalidades que não estão nelas,
para sustentar suas próprias teses. A proposta da Reforma de que todos
devem interpretar livremente as Escrituras, certamente levaria ao caos - é o
que pensam. Cada um dos Reformadores, a partir de Calvino, escreve
então seu próprio texto canônico. Os seguidores dos Puritanos se abstém
da leitura de qualquer outra fonte. E exercem uma censura cerrada àqueles
que lêem ou citam outros autores além dos de sua corrente. A crítica livre,
o exercício livre da teoria são naturalmente banidos61.
Como coloca Eric Voegelin: “nenhum trecho do Novo Testamento
permite extrair conselhos em prol de uma ação política revolucionária.
Nem mesmo a Revelação de S. João, animada pela expectativa
escatológica do Reino de Deus... coloca o estabelecimento desse reino nas
mãos de um exército puritano... ...No capítulo 20 da Revelação, um anjo
desce dos céus e lança Satã num poço sem fundo por mil anos: na
Revolução Puritana, [eles] arrogam para si próprios essa função angelical.”
Passagens de um panfleto puritano de 1641 – “Um Vislumbre da
Glória de Sion”, citado por Voegelin: “Deus tenciona empregar os homens
do povo na grande tarefa de proclamar o reino de Seu Filho. ... [A voz de
Cristo] vem primeiramente da multidão, dos homens comuns. A voz se faz
ouvir inicialmente por meio deles, antes que outros a expressem. Deus usa
a gente comum para proclamar que Deus Nosso Senhor Onipotente reina”.
“...o povo de Deus é feito de gente desprezada. Os santos são chamados de
facciosos, carismáticos e puritanos, de sediciosos e perturbadores do
Estado. No entanto eles serão libertados desse estigma, e os governantes
se convencerão (...) que os Santos de Deus (...) são os melhores cidadãos”.
A convicção dos governantes, aponta Voegelin, será reforçada por
mudanças drásticas nas relações sociais. O panfleto cita Isaías 49:23: “Os
reis serão teus provedores; prostrados diante de ti, a face contra a terra,
lamberão a poeira de teus pés”.
60 Voegelin, Eric. A Nova Ciência da Política. Trad. José Viegas Filho, Editora
UnB, 1982, 2 a ed., 103.
61 Idem, 104-105.Na concepção dos Puritanos, a vitória de sua revolução implicará
numa mudança radical
dos governantes, que agora deverão ser
obviamente seguidores de sua doutrina. Outro panfleto, de 1649, com a
revolução já em pleno curso – e intitulado Perguntas - também citado por
Voegelin:
“O antigo grupo de governantes deve ser eliminado, pois ‘que
direito tem os homens meramente naturais e mundanos de deter o governo,
que carece de uma justificativa santificada para as menores graças
tangíveis?’ “ (... ) “Se esperamos novos céus e uma nova terra ‘como
poderá ser legal remendar o velho governo mundano’. O único curso
correto de ação será aquele que resulte em ‘suprimir para sempre os
inimigos da religiosidade’ ”. (...) “Este mundo é feito de trevas, as quais
devem ceder lugar a uma nova luz. Consequentemente são inviáveis os
governos de coalizão”62.
Nessa perspectiva, “o novo reino será universal na substância como
o será em sua reivindicação quanto ao poder: ele se estenderá [querem os
puritanos]: ‘a todas as pessoas e coisas universalmente’. E continua
Voegelin: “Os Santos antevêem que o universalismo de sua reivindicação
não será aceito sem luta pelo mundo das trevas, e sim produzirá uma
aliança igualmente universal do mundo contra eles. Por isso os Santos
terão de unir-se ‘contra os poderes anti-cristãos do mundo’ enquanto tais
poderes ‘concertar-se-ão universalmente contra eles’. Assim os dois
mundos, que supostamente deveriam seguir-se cronologicamente, na
realidade histórica transformar-se-ão em dois campos armados universais,
empenhados em luta mortal”63.
3. É preciso ver na Revolução Inglesa, a revolução paradigmática
dos tempos modernos. É ela que inaugura a era das revoluções como as
conhecemos, até a de 1917. Todas tem uma pretensão ética universalista,
trazem um novo quadro ético e político que a partir delas deverá se
instaurar de modo universal na Terra, e ao mesmo tempo, têm seu espaço
de ação concreta delimitado por fronteiras nacionais.
Richard Hooker é um modelo para os críticos reacionários, que se
oporão às revoluções em nome da Razão – foi o principal inspirador do
pensamento de John Locke, criador do liberalismo político. Eric Voegelin
é um teórico político contemporâneo, que se inspira em Hooker, no texto
citado, “A Nova Ciência da Política”. Hooker e Voegelin, percebem
62 Ibidem, 108.
63 Ibidem, 110-111.muito claramente os aspectos sombrios das Revoluções e dos
revolucionários, aspectos que vem perseguindo os projetos revolucionários
desde a Revolução Inglesa – o sectarismo, a incapacidade de diálogo com
outras formas de pensar, o comportamento de rebanho dos seguidores,
satisfeitos com a sua visão rígida da realidade e com a convivenciazinha
incestuosa com outros que repetem seus mesmos bordões. Sua crítica
lembra a leitura que D.H. Lawrence faz do culto do Apocalipse de S. João
e das Igrejas que o incorporam – como religião da vingança e do
ressentimento – completamente distante da nobreza e generosidade do
Cristo dos Evangelhos64.
Os aspectos descritos por Hooker e Voegelin são, numa perspectiva
nietzscheana, os aspectos reativos das Revoluções e dos revolucionários.
E é claro, apesar da precisão de suas críticas aos aspectos reativos, eles não
são capazes de ver ou descrever os aspectos ativos e criadores de uma
Revolução, seu corpo-sem-órgãos, que só é experimentado por quem a
vive no centro de seu movimento de criação. Este movimento, aliás é
sempre traído em sua narração posterior, que exclui todo o devir, a
ambigüidade, as contradições, suas zonas de indiscernibilidade, sua alegria
enlouquecida, sua paixões e tragédia. Seu caráter paradoxal e criador é
traído nas formas cristalizadas da História.
4. 68 marcou o fim da era das Revoluções Modernas. Ainda não
falando sua língua, mascarada com os discursos e categorias do passado,
ela produz paradoxalmente outra coisa. Sem fala. 68 representa o ponto
mais alto e mais paradoxal dos processos revolucionários e assim dá a ver,
com clareza, a beleza paradoxal de todos os outros. Uma revolução que
não apresenta mais um novo quadro de valores com pretensões universais.
Ao contrário, promove singularizações, faz diferir continuamente suas
intenções; não tem centro, nem se delimita por fronteiras nacionais. Do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (UFRJ), na rua Marques de
Olinda, acompanhávamos nossa revolução em Paris, Chicago, Buenos
Aires, Frankfurt, cidade do México. Fizemos uma manifestação em
Botafogo contra os tanques soviéticos invadindo Praga.
5. A Cristã, a Reforma, a Liberal e a Comunista. As revoluções
foram os grandes momentos de criação ética, quando se produziram e se
exercitaram novos modos de ser em sociedade, novas maneiras de existir.
O caráter de surto criador, ou o corpo-sem-órgãos das revoluções
transforma-as em caixas-pretas para seus sucessores. O Iluminismo é a
64 Lawrence,
D.H. Apocalypse, London, Penguin 1976 (1a ed. 1931)traição inteligente da
revolução, os aristocratas alemães que colonizam o
pensamento revolucionário inglês e francês a partir de Kant. E inventam
uma revolução movida pela Razão. A invenção de valores não é
racionalizável. Os modos–de-ser, a sua construção é estética, ou ético-
estética, movimentos corporais, correspondências sensíveis, ritmos, cores e
afetos. A crítica racional dos valores é igualmente inútil, filha da mesma
traição iluminista. Em caixas-pretas, traços das grandes revoluções, cristã,
da Reforma, Liberal e Comunista brilham ainda, como universos
incorporais, balizando a construção de territórios existenciais. Ver, por
exemplo, os traços de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na trilogia do
cineasta polonês Kieslowski - Azul, Branco e Vermelho65.
6. O trabalho e a Técnica eram compreendidos por Marx como
mediadores entre a sociedade e a Natureza, num longo processo que se
acelerara com a Revolução Industrial. O trabalho como forma de
organização da sociedade, e as máquinas que lhe estão associados,
produziriam uma hominização da Natureza. A Revolução comunista viria
apenas completar, no plano da organização da sociedade, um processo
iniciado com a revolução técnica da indústria. O lugar da técnica, no
entanto, foi deslocado com a atual revolução tecnológica. Em lugar de
objeto neutro, cujo sentido estava sujeito à ética da organização social; em
lugar de materialização da teoria e do pensamento operatório, que teria seu
valor ético acrescentado de fora, pelo seu uso social, as máquinas hoje são
imediatamente expressão de valor. Gilbert Simondon. “Do modo de
existência dos objetos técnicos”.66 Não há novos agenciamentos técnicos
que não sejam imediatamente novos agenciamentos éticos. Revolução
técnica e revolução ética imediatamente associadas. Este foi o grito
enigmático de 68.
A atual revolução tecnológica pede a criação de grandes
exploratoria éticos. Não mais a definição de uma nova tábua de valores -
como a cristã, a liberal ou a comunista – mas matrizes de grades
valorativas experimentais, múltiplas variações dos usos da vida. Como os
funtores e os diagramas nas Cartografias Esquizoanalíticas de Felix
Guattari67.
65
Trois Couleurs: Bleu, Trois Couleurs: Blanc, Trois Couleurs: Rouge (em português: A
Liberdade é
Azul, A Igualdade é Branca, A Fraternidade é Vernelha). Ver: França, Andréa. Azul,
Branco e Vermelho.
A Trilogia de Kieslowski. Rio de Janeiro. Sette Letras, 1996.
66 Simondon, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques.Paris, Aubier,
1989. (ed. Revisada)
67 Guattari, Felix. Cartographies Schizoanalytiques. Galilée, 1989.7. Em 1987,
Felix Guattari e Antonio Negri escrevem Os Novos
Espaços de Liberdade, por saudosismo ou bela homenagem, um novo
manifesto comunista.
Nós recomeçaremos a chamar comunismo à luta coletiva pela libertação
do trabalho. (...) Só um movimento imenso de reapropriação do trabalho,
enquanto atividade livre e criadora, enquanto transformação das relações
entre os sujeitos, só uma revelação das singularidades individuais e/ou
coletivas, esmagadas, bloqueadas (...) irá gerar novas relações de desejo
suscetíveis de “inverter” a situação presente. (....) Trata-se de (...) uma
reconquista do domínio sobre o tempo de produção, que é o essencial do
tempo da vida. A produção de novas formas de subjetividade coletiva,
capazes de gerir segundo finalidades não capitalísticas as revoluções da
informática, da comunicação, da robótica e da produção difusa68.
Definem mui claramente as novas categorias revolucionárias, que
implicam numa compreensão do trabalho não mais como praxis, mas
como poiesis, meio de produção de mundo, imediatamente técnica e valor,
ação produtiva de objetos e produção de subjetividade; o fim de qualquer
pretensão universalista na expressão de seus valores, e a contínua produção
de mundo e valor com a velocidade das novas tecnologias - i.e. um estado
de revolução permanente.
Continuam Guattari e Negri:
Os universais políticos não são portadores de nenhuma verdade
transcendente; (...) eles são inseparáveis dos territórios particulares de
poder e de desejo dos homens. A universalidade política não poderá pois
se desenvolver através da dialética aliado/inimigo, como as tradições
reacionária e jacobina o prescrevem. A verdade “ao alcance do universo”
constitui-se pela descoberta do amigo na sua singularidade, do outro na
sua irredutível heterogeneidade, da comunidade solidária no respeito
pelos seus valores e finalidades próprias. Tais são o “método” e a
“lógica” das marginalidades que são assim o sinal exemplar de uma
inovação política adequada às transformações
revolucionárias
solicitadas pelos modos de agir produtivos atuais69.
E concluem:
68 Guattari,
69
Felix e Negri, Toni. Novos Espaços de Liberdade. Lisboa, Centelha, 1987, 9.
Idem, 24.Após alguns séculos de domínio capitalista e/ou socialista, produção e
sociedade tornaram-se uma e a mesma coisa. É um fato sem retorno. As
máquinas de luta revolucionária devem tornar-se elas mesmas modos de
agir produtivos das novas realidades sociais e das novas subjetividades.
Sua questão passa a ser então, estritamente, a da Produção de
Subjetividade. Este seria o campo de luta principal pois é por aí, contra a
produção de subjetividade monopolizada pela mídia e o consumo cada
vez mais uniformizado do Capitalismo planetário que se devem
desenvolver os meios de singularização individual ou coletiva, de
heterogênese, a abertura para novos modos de ser, que chamaremos hoje
de comunismo70.
Em 84, Guattari e Negri ainda falavam do Estado, dos partidos
políticos e do movimento sindical, da necessidade de atuar com e sobre
esses espaços, na busca de mudanças legislativas que propiciem a
promoção e desdobramento dos modos de ser singulares. Mas, em 1987,
no texto liminar ao Cartografias Esquizoanalíticas, Guattari já não se
refere ao Estado nem a quaisquer das instâncias a ele associadas. Como se
o poder dos estados-nacionais já não representasse grande coisa para uma
luta que tem o Capital Mundial Integrado como seu opositor e que portanto
só se pode organizar em agenciamentos internacionais articulados a partir
de movimentos locais, para os quais os limites nacionais pouco significam.
(Obs. É evidente que a forma estado-nação tem cada vez menos
importância na Europa de Maastricht ou em todo o velho Primeiro Mundo,
no entanto a ação sobre o Estado, passando pela via legislativa tem ainda
espaço nos países do Terceiro Mundo como mostra, por exemplo, Peter
Evans em seu estudo sobre a globalização econômica e a função dos
Estados nas economias emergentes - México, Índia, Brasil, Coréia,
Singapura, Vietnã, Malásia, etc71 - e - Harry Cleaver72 falando do uso de
noções como sociedade civil e direitos humanos pela esquerda mexicana
ou brasileira, num movimento de criação de um estado democrático que
realmente funcione - o que soa como um anacronismo para as alternativas
de esquerda européias.)
70 Ibidem, 36.
71 Evans, Peter. Embedded Autonomy. States & Industrial Transformation. Princeton
University Press,
1995.
72 Cleaver,
Harry. "The Chiapas Uprising and the Future of Class Strugle in the New World
Order".
February 1994 --- primeiro publicada na revista italiana RIFF-RAFF (Padova)
(s.d.)8. Mas onde está a revolução proposta por Guattari?
Um passeio pela Internet, mostra uma ampla variedade de sites
políticos, para todos os gostos, desde os ambientalistas que já foram mais
ativos e eficazes, como o da GreenPeace, aos mais recentes como o
Indigenous Environmental Network, ligando as lutas ambientalistas às
lutas dos povos indígenas; sites dos movimentos minoritários como os
homossexuais Lesbian Mothers Support Society, National Freedom to
Marry Coalition, Digital Queers, ou os da liberação do uso de drogas - o
mais articulado National Organization for the Reform of Marijuana Law
(específico para os EUA); até os sites de discussão política como o
Liberals & Libertarians, ou a Netizen da Hot Wired, que acompanhou
durante um ano as práticas curiosas da mídia e dos diversos agentes nas
campanhas dos dois partidos para as últimas eleições presidenciais nos
Estados Unidos.
Mas algo com a intensidade e as passagens entre dimensões e
naturezas diversas que caracterizam um movimento revolucionário só
aparece nos sites que se associaram em torno do Exército Zapatista de
Libertação Nacional mexicano - o movimento dos grupos indígenas
federados, que circula pela Selva de Lacandona, em Chiapas.
A comunicação internacional e apoio às lutas dos Zapatistas através
da Internet tiveram um efeito evidente sobre os modos como o Governo e
o exército mexicano se comportaram em relação à revolta armada em
Chiapas, que no dia 1 de janeiro de 1994 - dia em que entrou em vigor o
acordo de livre comércio Estados Unidos/Canadá/México, o NAFTA -,
ocupou militarmente cinco vilas da região.
A primeira reação do governo mexicano teve a brutalidade que
marca esse tipo de ação militar no Ocidente, desde o Vietnã, invasão de
aldeias, massacres indiscriminados de camponeses suspeitos de
pertencerem ao EZLN, etc. 73 Mas esse primeiro movimento foi logo
sustado com a quantidade e variedade dos apoios vindo do exterior assim
como de outras camadas da sociedade mexicana organizadas na CND,
Convenção Nacional Democrática, um movimento não-partidário, da
sociedade civil. Muitos suspeitos ainda estão na cadeia, o Exército
continua ocupando a região, e os grupos para−militares matam (numa
guerra de “baixa intensidade”), mas o governo propõe negociações (lentas,
intermináveis...) e evita o escândalo de ações extremadas. Outras lutas
73
Entre 3 e 10 de janeiro de 1994, a "resposta" do exército mexicano matou 157
pessoas e deixou 427
"desaparecidos", além de deslocar 30.000 civis de suas aldeias para acampamentos
nas montanhas e
campos de refugiados.camponesas e de povos indígenas por todo o México, se
articularam às
lutas dos zapatistas. A Internet foi o principal meio de comunicação nessa
luta.
Diz um documento da Accion Zapatista, o principal site de apoio,
sediado na Universidade do Texas, em Austin - o "Zapatismo no
Cyberespaço"74:
O computador também favoreceu uma nova forma de organizar que se
aproxima do espírito dos Zapatistas em sua forma de organizar − se em
Chiapas. As redes eletrônicas permitem a criação de um tecido de
comunicação e cooperação democráticas, que move − se rapidamente e
com fluidez. Em contraste com organizações tradicionais que tendem a ter
estruturas rígidas, hierárquicas, de cima a baixo − inclusive as
organizações revolucionárias − este tecido eletrônico de organização é
uma rede horizontal com uma infinidade de nós. Os esforços para IMPOR
estruturas hierárquicas no ciberespaço tem pouco resultado porque os
participantes podem abandonar esse terreno com facilidade e criar de
novo seus próprios contatos, listas, conferências, ou grupos noticiosos.
Foi através da rede que se organizou o primeiro Encontro
Internacional, na selva, em Chiapas, em julho de 1996, reunindo 3.000
ativistas e intelectuais de 42 países e 5 continentes. O encontro foi
convocado em janeiro de 1966, com a preliminar de cinco conferencias nos
cinco continentes, para discutir Ações pela Humanidade e contra o Neo-
liberalismo – os efeitos do neo-liberalismo em diversas áreas de
experiência: econômica, política, social, cultural e sobre as populações
indígenas. Na convocação para os Encontros, os Zapatistas afirmam seu
compromisso pela paz e sua analise de uma transição necessária para um
“verdadeiro espaço de luta democrático”. Recusam o papel de vanguarda
numa luta que deve incluir todos os setores da sociedade mexicana e
propõem que a atual fase do capitalismo globalizado oferece condições
para integrar através das redes eletrônicas, e outros meios, um amplo
espectro de grupos políticos em todo o planeta. Eles insistiam sobre a
nova forma dos fóruns como a produção de “diálogos sem fim” baseados
74
In http://www.eco.utexas.edu/faculty/Cleaver/chiapas95.html
gopher://eco.utexas.edu.
ounecessariamente sobre relações sociais não hierárquicas e pelo conflito
democrático”75.
Lá estavam Mme. Mitterand e Regis Debray, representantes do PT e
de muitos partidos socialistas e comunistas das Américas e de centenas de
organizações não-governamentais de todo o mundo. Um dos resultados do
encontro foi a criação da RICA - Rede Intercontinental de Comunicação
Alternativa - como veículo para “troca de experiências e discussão de
estratégias globais para a luta contra o capitalismo e para o
desenvolvimento e expansão de uma ampla variedade de modos de
organizar a vida social”, como diz sua carta de princípios. O segundo
Encontro aconteceu entre 25/7 e 3/8/97, na Espanha.76
Entre os sites associados à RICA, e à Accion Zapatista, estão The
Guatemalan Students Home Page, do movimento estudantil guatemalteco,
a The Mexican Solidarity Page sediada em Montreal, no Canadá (ambas
tem versões em inglês e espanhol); o Movimento dos Trabalhadores pela
Solidariedade (Workers Solidarity Movement ), um grupo anarquista na
Irlanda; a Instructional Workers Page, do sindicato dos trabalhadores
intelectuais nas universidades públicas do Texas; a página Food Not
Bombs, An) Anarchy Homepage; Burn!, uma revista eletrónica sediada na
Universidade da Califórnia em San Diego, e que integra os grupos Arm the
Spirit, Long Haul Infoshop, Groundwork Books, a Rede de Informação
Kurdo-Americana (American Kurdish Information Network), e Art For @
Change. Outra página é a SOLIDARITY, organização socialista fundada
em 1986, por socialistas revolucionários que buscam um reagrupamento
das esquerdas nos EUA, a partir de organizações de base. Fora dos Estados
Unidos, em Hanôver, Alemanha, o The Alternative Guide through the
WWW-Galaxy canaliza os sites em alemão, a European Counter Network,
os sites em italiano e inglês.77
Não há muitos recursos diferentes na rede: contactos de pessoa a pessoa,
conferencias ou conversas em tempo real; listas, em que muitas pessoas
contribuem e têm suas propostas acrescentadas num conjunto crescente, e
coordenadas por um moderador – não em tempo real; revistas /noticiosos
75 Idem.
76 Idem. Em 1998, novembro 22−25, o encontro do EZLN com a sociedade civil, em
Chiapas, contou
com representantes de muitos grupos internacionais que apoiam a luta zapatista. Em
dezembro/1998,
aconteceram encontros regionais na Dinamarca, na Alemanha e na Itáilia.
77
Idem.que podem ter um corpo de editores e colaboradores espalhados por
qualquer parte do planeta onde haja um telefone. Como coloca Pierre
Levy, a diferença principal em relação à mídia eletrônica anterior é a
passagem de um sistema de comunicação um-todos a um sistema todos-
todos. Todos podem acessar todos. A diferença política aí é como propõe
um artigo de John Arquilla e David Ronfeldt da Rand Corporation 78,
sobre a Cyberwar – os usos do ciberespaço na guerra:
A História demonstra que na vida incipiente de uma nova tecnologia,
as pessoas enfatizam os efeitos de eficiência e subestimam os efeitos
potenciais sobre o sistema social. O avanço nas tecnologias de rede torna
possível pensar pessoas, juntamente com bases de dados e processadores
como recursos de uma rede (...) A revolução da informação põe em cheque
o design de muitas instituições. Rompe com as hierarquias e redistribui o
poder, freqüentemente em benefício dos agentes considerados mais fracos
e menores. Atravessa fronteiras e redesenha os limites de escritórios e
responsabilidades. Expande os horizontes espacial e temporal que os
agentes levam em conta. Assim, ela obriga sistemas fechados a abrirem-
se. Embora isto seja difícil para instituições antigas, grandes e
burocráticas, a forma institucional per se não está se tornando obsoleta.
(...) As mudanças que preocupam as instituições, como a erosão da
hierarquia, também favorecem o crescimento de redes multi-
organizacionais. (...) A rede tem uma forma diferente da forma
institucional (...) redes multi-organizacionais consistem de (sempre
pequenas) organizações ou partes de instituições que se ligaram para agir
conjuntamente. (...) [Assim,] agentes diversos e dispersos podem se
comunicar, consultar, coordenar e operar juntos através de grandes
distancias e com base em mais e melhor informação que nunca antes.
Eles criam uma nova categoria de guerra, além da política, econômica,
social, todas podendo se associar à guerra militar propriamente dita: a
netwar, guerra de rede. E entre as netwars descritas está esta em que
movimentos em torno do mundo se organizam de modo crescente
atravessando as fronteiras nacionais e criando coalizões, e identificando-se
mais com a sociedade civil – uma sociedade civil globalizada – que com os
estados-nações. Segundo os autores, esta deveria ser a próxima grande
CYBERWAR IS COMING! John Arquilla and David Ronfeldt, International
Policy Department, RAND Journal of Comparative Strategy, Volume 12, no. 2,
pp. 141-165, 1993.
78fronteira do conflito ideológico e a netwar seria sua principal
característica.
Os zapatistas foram um pouco mais longe. Em La Revolúción Global,
dizem:
“No passado, os esforços revolucionários buscaram a unidade através da
promulgação e adesão a uma ideologia. Aprendemos de forma dura e
penosa que esta prática não serve. Nós, os seres humanos, nossas idéias,
nossas culturas, nossas formas de fazer as coisas são muito variadas. Os
esforços de homogeneizar-nos são destinados ao fracasso. Em lugar disto,
devemos buscar uma unidade mais orgânica, como as diferentes e
complementares formas de vida que evoluem numa ecologia auto-
sustentada”.
Onde a rede atua diretamente? Os militares falam de C3I, "comando,
controle, comunicações e inteligência".79
9. Pierre Levy fala de sinergia, em que, em um trabalho de grupo, a
proposição de um se prolonga na do outro, dos outros, em tempo real –
mensagens que se ampliam/reformam / crescem / transformam no ato da
troca. Ao processo como um todo ele chama de criação de uma
"inteligência coletiva".
Pierre Levy criou um sistema de produção de Inteligência Coletiva,
num software intitulado Arvore do Conhecimento; infelizmente não está na
rede. Ele o vende e ensina como usar, para grandes empresas e instituições.
Está sendo usado pelo Metrô de Paris, por algumas universidades, uma
francesa e outra escocesa. No Brasil, seu uso é promovido pela DDIC
(http://www.ddic.com.br). A DDIC já o está implantando no programa de
pós-graduação da PUC−São Paulo, como árvore de gestão de projetos de
pesquisa (professores, mestrandos, doutorandos...). Já foi implantado em
uma escola particular de São Paulo (Logos) e deve chegar à ESAF -Escola
Superior de Administração Fazendária −, em Brasília80.
79
In Arquilla e Ronfeldt, op. cit.
80 Levy,
Pierre. As Tecnologias da Inteligência. O Futuro do Pensamento na Era da
Informática. Trad.
Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, 34 letras, 1993; Levy, Pierre e Authier,
Michel. As árvores de
conhecimentos. Trad. Monica M. Seincman. São Paulo, Escuta, 1995. Mais informações
em: Arbor &
Sens - http://www.globenet.org/arbor/ ; Arbres de connaissance pour une nouvelle
école http: // www.No modelo original de Levy é um sistema em que se inscrevem
todos os participantes de uma instituição de tamanho razoável e portanto
tendente à impessoalidade nas relações e à criação de grupelhos variados,
separados por preconceitos, ou simplesmente lutando pelo poder, nas
formas mais baixas, como acontece nas nossas grandes universidades.
Cada pessoa, do servente ao Reitor, faz um currículo onde especifica tudo
o que sabe fazer, de preferencia, na ordem em que esses saberes foram
adquiridos, mas não restritos aos diplomas acadêmicos – entra tudo no
currículo: aprendi piano com minha mãe, faço uma ótima macarronada, sei
comprar peixe, soltar pipa, jogar poker, fui jornalista e sou doutor em
matemática. Essas fichas são feitas de modo que possam todas interagir.
Na hora que eu preciso de uma receita de macarronada especial, eu tenho a
lista dos bons cozinheiros; da mesma forma, se quero montar um grupo de
pesquisas e preciso de um modelizador matemático, um antropólogo, um
biólogo, e estagiários em antropologia e biologia. Em cada situação e em
cada posição que eu esteja e precise e queira ter a ajuda de outras pessoas
ou fazer algo com um ou mais parceiros/parceiras. O sistema corrói o peso
da hierarquia da instituição, dá uma flexibilidade e uma velocidade muito
grande a qualquer momento da produção ... ou do lazer.
Talvez, o aspecto central da estética das revoluções seja este da
ampliação de possibilidade de relações entre as pessoas de origens, classes,
culturas, raças, sexos, países, planetas os mais diversos. É uma festa. A
revolução é uma festa, como diziam os ex-maoístas franceses com suas
bandas.
(Pierre Levy é criticado como crente num certo determinismo das
mudanças tecnológicas sobre as transformações sociais. A mesma crítica
era feita, com um pouco mais de conseqüência, em relação a Marshall
McLuhan, nos anos 70, por toda a intelectualidade européia de esquerda.
Como engenheiro de softwares, no entanto, Pierre Levy tem a experiência
da interpetinência entre os aspectos técnicos e éticos [ou etológicos, ou
políticos] em qualquer sistema informatizado, e é nessa direção, na
linhagem simondoniana, que aponta, ao não discutir de maneira
independente as questões técnicas e ético−políticas das novas tecnologias.)
10. Giorgio Agamben pergunta como fazer política hoje, quando todas as
categorias políticas ruíram. Pergunta se tem sentido propor um novo
Comunismo. Lembra então a categoria da Escolástica, do quodlibet, a
"qualquer coisa". (Quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum –
erasme. org/ acne/ ;
Asociación Española de Teletrabajo - http://www.ciberteca.es/aet/; - Cereq -
http://www.cereq.fr/ e - Cortex - Gingo - http://www.mosquitoweb.fr/cortex/qualquer
ente é uno, verdadeiro, bom, ou perfeito). “Qualquer coisa” não
era entendido como "não importa o que", mas como "o que realmente
importa". Libet, é do verbo querer, como em português – qual-quer – qual
dentre todas as coisas eu quero. Os seres na sua singularidade não podem
ser conhecidos de forma meramente intelectual com as categorias ou
classes aristotélicas (quando, sempre o ente x pertence à classe y). Assim
é por exemplo, no amor: eu não posso dizer que amo Fulana porque ela é
bela, inteligente, tem olhos vibrantes, cabelos da cor da asa da graúna.
Todas as características de Fulana incluídas, amá-la é algo a mais que não
está em nenhuma classe. O grau de conhecimento mais profundo que é o
amor, o amor terreno e o amor de Deus, me coloca nesse estado. Aquilo
que eu não posso esgotar com as palavras; que por mais que fale ainda não
apreendo inteiramente. Isto é o que é verdadeiramente comum a todas as
coisas: a sua singularidade. Como organizar−se politicamente não em
função da classe a que se pertence: ser trabalhador, ser negro, ser mulher,
ser brasileiro ou camponês? Como organizar politicamente fora de
qualquer classe, a partir disto que é comum a todos? – eis o novo projeto
Comunista81.
A proposta é bonita. Seu efeito é, ao mesmo tempo, poético e,
aparentemente, um bom argumento. Mas, e daí? Uma etimologia pode ser
responsável por escolhas políticas? Etimologias são bons argumentos
políticos? Nosso encanto apenas mostra o quanto ainda nos resta da
esperança, de que todas as lutas singulares e dispersas encontrem novos
modos de se articular naquela grande nuvem luminosa que varria o planeta
e costumávamos chamar de Revolução. Estas articulações vão precisar se
fazer sempre e se refazer, não para a construção de um só caminho, mas
integrações variadas marcadas por correspondências sensoriais, e entre
afetos, concepções do trabalho ou da natureza, casamentos provisórios,
coletivos provisórios, sempre a se constituir e desconstituir, como o
movimento das redes. Não interessa o futuro da revolução, o que interessa
é o devir revolucionário.
Voltemos então aos zapatistas, e ao presságio poético de Ricardo
Rodriguez:
Na selva delirante de Lacandona flutua uma construção temporária de
plantas, carne e circuitos que está tentando desenvolver uma perturbação
rizomática, a "ante − câmara" de uma "revolução que tornará a revolução
81
Agamben, Giorgio. The coming community. Trad. por Michael Hardt. The University of
Minnesota
Press, 1993.possível...". Os Zapatistas não são a primeira revolução pós − moderna,
mas a última; eles são a mediação, em vias de desaparecer, entre a quebra
do espelho da produção (capital morto) e o estilhaçar do cristal da
(des)materialização (capital virtual).82
R.R. Dominguez, "Run for the Border: The Taco Bell War", p.1 // Ricardo
Dominguez trabalha ao lado de Stefan Wray no projeto The Electronic
Disturbance Theater, que coordenou bloqueios eletrônicos a sites como o da
Presidência da República do México, a Bolsa de Valores do México ou a Casa
Branca, em datas determinadas, em apoio à luta do EZLN. Para informações:
http://www.thing.net/~rdom
82A C IENCIA COMO R EDE DE A TORES : R ESSONANCIAS F ILOSOFICAS
Marcia Oliveira Moraes
O que significa pensar as ciências sem referi-las a priori às noções
de sujeito e objeto, sociedade e natureza? O que significa pensar a ciência
sem partir de a prioris, como objetividade, neutralidade, racionalidade.
Levantar tais questões não significa enveredar por um mundo irracional do
qual não se pode extrair nenhuma forma, nenhum rigor. Ao contrário, o
mundo não-moderno que a teoria de rede de atores traz para as ciências,
por ser definido ontologicamente por sua multiplicidade e disparidade de
elementos e conexões, leva-nos a pensar um rigor plano, horizontalizado;
um rigor que, conforme salienta Deleuze83, não é inexato, mas anexato.
Falar da exatidão ou inexatidão de um critério significa referi-lo a
parâmetros que de antemão definem o que é exato e o que não é. Em outras
palavras, trata-se nesse caso de demarcar de saída o que é certo e o que não
é, produzindo com isso um rigor verticalizado, isto é, pré-definido .
Quando Deleuze declara que, no plano das multiplicidades, o rigor é
anexato, parece-me que ele aponta para um rigor construído como efeito de
conexões heterogêneas; um rigor, portanto, a posteriori e, por isso mesmo,
não referido a nenhuma unidade que lhe transcenda ou que antecipe os
seus efeitos. Do mesmo modo, parece-me que no mundo não-moderno
trazido pela teoria de rede de atores para as ciências está em jogo a
construção de efeitos de racionalidade, de rigor, de objetividade. Sendo
efeitos, tais noções são marcadas por uma instabilidade que as torna
formas instáveis, abertas, sempre prestes a diferir segundo direções
múltiplas e não antecipáveis. A aventura nos conduz a interrogar sobre o
que é possível às ciências na medida em que, libertadas dos a prioris, elas
são referidas a um campo de multiplicidades e, mais do que isso, somos
levados a nos interrogar sobre as conseqüências filosóficas de uma prática
científica assim entendida.
Na teoria de rede de atores, a noção de rede refere-se a fluxos,
circulações, alianças, movimentos em vez de remeter a uma entidade fixa.
Uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, ela
é composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados
conectados, agenciados. Por um lado, a rede de atores deve ser
diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoria que
exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também
83
Cf. D ELEUZE , G. 1992, p. 42.não pode ser confundida com um tipo de vínculo que
liga de modo
previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as
entidades da quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais,
podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas
relações, trazendo novos elementos para a rede. Assim, uma rede de atores
é simultaneamente um ator84, cuja atividade consiste em fazer alianças
com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus
componentes85. Essa definição de rede implica uma ontologia de
geometria variável cujas conseqüências para os estudos em ciências devem
ser seguidas a fim de não deixarmos escapar as contribuições da teoria de
rede de atores tanto em relação aos estudos sociais em ciências quanto em
relação aos estudos epistemológicos.
A noção de rede de atores fala de um plano de conexões
heterogêneas a partir do qual emergem tanto as ciências quanto as crenças,
as religiões, etc. Retomando o sentido de rede proposto por Serres,
podemos dizer que ela se caracteriza por estabelecer um campo de tensões
heterogêneas no qual a síntese não é um resultado necessário. Uma rede,
como já dissemos acima, é marcada por múltiplas conexões, múltiplas
entradas. Diferentemente de um enfoque dualista que afirma a existência
de dois pólos privilegiados - o sol e a terra, o sujeito e o objeto, deus e o
diabo - uma ontologia de geometria variável afirma múltiplas entradas
possíveis. Penso ser o princípio de simetria generalizada proposto por
Latour uma conseqüência dessa ontologia de múltiplas entradas e
conexões. Trata-se de analisar simetricamente não apenas o erro e o acerto,
mas antes, todo e qualquer efeito das negociações em rede, dentre eles, a
natureza e a sociedade. Latour86 reconhece a importância dos estudos
sociais em ciências e do princípio de simetria tal como ele foi proposto por
David Bloor. A análise social das ciências teve, segundo Latour, o mérito
84
Latour utiliza a noção de ator - algumas vezes ele fala em actantes - no sentido
semiótico: um ator ou
actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência,
isto é, produz efeitos no
mundo e sobre ele. É importante diferenciar a noção de ator no sentido semiótico
que lhe atribui Latour,
da noção de ator no sentido sociológico tradicional. Porque, nesse último caso, a
noção de ator se
confunde com a noção de fonte de ação atribuída a um humano. Na acepção de Latour,
um actante é
caracterizado pela heterogeneidade de sua composição, ele é antes, uma dupla
articulação entre humanos
e não-humanos e sua construção se faz em rede. Cf. L ATOUR , B. 1992-b, p.59, nota
11; 1991, p. 15-6,
1992-a, p.293, nota 5.
85 Cf. C ALLON , M. 1986, p. 93.
86 Cf. L ATOUR , B. 1996, p. 41.de estabelecer um princípio de análise a-
epistemológico que colocava em
cena a prática mesma dos cientistas estabelecendo uma exigência de que o
verdadeiro e o falso fossem explicados com os mesmos termos.
Contudo, na perspectiva de Latour, esse princípio a-epistemológico
é ainda assimétrico porque joga todo o peso de suas explicações no pólo da
sociedade. É, portanto, assimétrico porque mantém a sociedade como uma
entrada privilegiada para os estudos sociais em ciências. Por isso, Latour
propõe uma extensão radical desse princípio, fazendo-o valer tanto para a
natureza quanto para a sociedade. Ele nos propõe portanto “mais uma volta
nos estudos sobre ciências depois da volta social”87. Isso significa dizer
que, para estabelecer uma simetria generalizada, é preciso uma guinada a
mais nos estudos sobre as ciências, de modo que a sociedade assim como a
natureza sejam simetricamente estudadas. Natureza e sociedade são efeitos
negociados em rede, nem uma nem outra podem funcionar como
fundamentos preestabelecidos para os estudos sobre ciências. O princípio
de simetria não tem como finalidade apenas estabelecer uma condição de
igualdade entre natureza e sociedade. Ele tem por finalidade “gravar as
diferenças, ou seja, no fim das contas, as assimetrias, e o [objetivo] de
compreender os meios práticos que permitem aos coletivos dominarem
outros coletivos”88.
As redes não são, portanto, amorfas. Ao contrário, elas são
altamente diferenciadas. Eliminar a oposição binária característica do
pensamento moderno não implica a afirmação de um solo homogêneo e
indiferenciado. Está em foco a afirmação de uma diferença ontológica. A
rede é nesse sentido uma afirmação dessa diferença. Ela consolida a
potência do empírico como solo de invenção da razão, da verdade, da
sociedade, da natureza.
Uma ciência definida como rede de atores não se caracteriza por sua
racionalidade, sua objetividade ou pela veracidade dos fatos por ela
engendrados. Todas essas noções, tão caras ao pensamento moderno, são
redimensionadas pela noção de rede e devem ser entendidas como efeitos,
resultados alcançados a partir das tensões próprias à rede de atores. Definir
a ciência como rede de atores significa defini-la por sua não-modernidade,
por suas hibridações, enquanto considerar as ciências a partir de noções
tais como objetividade, neutralidade, etc. implica considerá-las à luz do
ideal de purificação, princípio característico do pensamento crítico ou
moderno. Nesse último caso as ciências são consideradas a partir de uma
87 Cf. L ATOUR , B. 1992-a, p. 279.
88 L ATOUR , B. 1994-a, p. 105.crítica cuja função é estabelecer as condições
ideais a priori para o
conhecimento científico. Insisto que, para o pensamento crítico, interessa
demarcar as condições ideais do conhecimento científico, o que nos leva a
pensar numa analogia entre as ciências e o mito bíblico da queda: para
regressar ao paraíso perdido, as ciências precisam excluir do seu domínio
tudo o que é da ordem da hibridação e que, em última instância, constitui a
sua prática, numa palavra, as ciências precisam excluir aquilo que Serres
nomeava o mal, a morte, o sofrimento. Latour89 concorda com Serres: o
pensamento moderno faz nascer a ciência pela exclusão da finitude do
homem e, partindo dessa concordância entre os autores, parece-me lícito
afirmar que, assim como a filosofia mestiça de Serres nos convida a
instruir a razão na mestiçagem, a teoria de rede de atores, proposta por
Latour, convida-nos a instruir a ciência nas práticas de hibridação.
Consequentemente, a racionalidade passa a ser um efeito de rede
obtido a partir das tensões que a constituem. Um pesquisador, salienta
Latour90, interessado única e exclusivamente pela humanidade estará fora
do campo da ciência, porque a atividade científica tem por natureza uma
dimensão coletiva, pública, cujo resultado é a impossibilidade de se
enunciar um fato e confirmá-lo sem a presença dos “caros colegas”. Para
ser científico, um enunciado precisa ser validado e retomado pelos “caros
colegas”. O vácuo produzido por Boyle se constituiu como um fato
científico não por ser um representante objetivo da natureza, mas por ter
sido retomado pelos colegas de Boyle, pela Royal Society. A difusão da
bomba de ar pela Europa fez com que o vácuo se tornasse um fato a
disposição do mundo. Um fato não se constitui por sua racionalidade, mas
antes pelos efeitos de racionalidade produzidos a partir do momento em
que ele é acolhido na comunidade científica, sendo que, para ser acolhido,
um fato precisa interessar, convencer, produzir informação nova. Latour,
parece-me, assinala um sentido amplo do termo interessar cujo fio
condutor é a disparidade constitutiva das redes. A meu ver, Isabelle
Stengers nos fornece a chave para entendermos a noção de interesse no
enfoque latouriano. Ela sugere que, como a verdade, a lei moral, ou
qualquer outra instância transcendente, tem a pretensão de poder orientar
os humanos numa direção unívoca, os interesses não têm esse poder. O
interesse não se presta à unanimidade; ao contrário, ele se “presta à
proliferação e à associação com outros interesses disparates ...”91 Na
89 L ATOUR , B. 1995, p. 38.
90 Cf. L ATOUR , B. op. cit.
91 S TENGERS , I. 1993, p. 109.construção de um fato científico, o cientista não
exige dos “caros colegas”
um interesse por sua proposição igual ao seu, basta que aceitem passar por
algumas condições nas quais esta proposição lhe interessa. Um cientista se
endereça não à natureza em si, mas aos seus caros colegas e à rede que o
constitui como tal. Lembremos que dessa rede fazem parte os colegas, as
instituições de financiamento, as rivalidades, a mídia, os periódicos de
divulgação científica, o mercado consumidor. Numa palavra, uma vez
constituído, um fato implica uma redefinição de valores, uma redefinição
simultânea da natureza e da sociedade. Os fatos científicos são
heterogêneos e impuros por natureza e destino, “eles são compostos de
elementos heterogêneos, associam competências à equipamentos, textos a
saberes tácitos, humanos à não-humanos. É desta impureza que depende
sua capacidade de resistir e interessar.”92
Um fato científico, portanto, só existe na medida em que é
sustentado por uma rede de atores. A epistemologia de língua francesa já
nos ensinou que um fato é feito, isto é, ele é construído a partir de uma
articulação entre o falso e o verdadeiro ou, conforme diz Canguillhem,
entre ideologia científica e ciência. Até um certo ponto, sua perspectiva se
coaduna com aquela proposta pela teoria de rede de atores. No entanto,
esse último enfoque vai mais longe do que o primeiro quando afirma haver
na constituição de um fato uma disparidade radical, composta não apenas
de elementos no campo do conhecimento mas, antes de tudo, composta de
elementos tão díspares quanto uma bomba de ar e uma rivalidade entre
filósofos. Tais elementos díspares são partes constitutivas do fato, eles são
o modo como se compõe a rede que produz e sustenta um fato. Um fato,
científico ou não, só existe na medida em que é sustentado por uma rede de
atores.
Com a noção de rede de atores, Latour aponta para o caráter
heterogêneo da atividade científica. Enquanto na perspectiva
epistemológica essa atividade era definida a partir da sua produção
conceitual e teórica, na análise de Latour ela é definida a partir das
conexões estabelecidas entre atores muito heterogêneos, em última
instância, entre humanos e não-humanos. Não há nenhum princípio
essencialista capaz de estabelecer de antemão que atores serão mobilizados
para a construção de uma rede. Ao contrário, uma rede de atores se define
por engendrar conexões performativas93 as quais, uma vez estabelecidas,
dotam de propriedades novas os atores nelas implicados. “Um potente ator,
92 C ALLON , M. 1989, p.32-3.
93 Sobre o caráter performativo das conexões em rede, ver C ALLON , M. op. cit.
P.80, L AW , J. 1996, p.06.mobilizado sem esforço, vê-se redefinido pelo simples
fato que ele adere a
um projeto que não é o seu.”94
Para que uma aliança desse tipo venha a ser constituída, é preciso
que os interesses em jogo sejam traduzidos, deslocados, desviados a fim de
poderem mobilizar outros atores. A noção de tradução95 é fundamental
para entendermos o que se passa no nível das redes de atores. No domínio
destas, tradução não significa apenas uma mudança de um vocabulário
para outro, ela implica acima de tudo um deslocamento, um desvio de rota,
uma mediação ou invenção de uma relação antes inexistente que de algum
modo modifica os atores nela implicados. Tradução não se confunde com
interação96, pois esta última parece remeter a um sentido de interação
social, um tipo de relação linear que vincula humanos a humanos. O
sentido de tradução envolve ao mesmo tempo um desvio e uma articulação
de elementos díspares e heterogêneos. Tradução, assim, refere-se a
hibridação, mestiçagem, multiplicidade de conexões mais do que à
repetição de elementos-chave. A tradução é sustentada por uma ontologia
definida por sua hibridação e, a meu ver, ao ser enfatizada como o cerne
das atividades científicas, ela acarreta a afirmação de um vetor de devir
intrínseco a tais atividades. A não-modernidade das ciências faz delas uma
prática em devir, uma prática que se constitui pela articulação de
diferenças cujo operador é a tradução. Eis o que, do meu ponto de vista ,
forma a novidade em se pensar a ciência como rede de atores.
Entender a ciência como rede de atores implica uma revisão das
tarefas que nos foram legadas, por um lado, pelos herdeiros de Boyle e, por
outro, pelos herdeiros de Hobbes. Os primeiros, os cientistas naturais,
criaram um parlamento - o laboratório - onde os cientistas, e somente eles,
falavam em nome das coisas. Os segundos criaram a República, na qual
somente o soberano podia falar em nome dos cidadãos. De um lado,
representação científica; de outro, representação política. Em ambas, uma
dupla possibilidade de traição: até que ponto os cientistas falam em nome
das coisas, até que ponto as ciências são fiéis às coisas? - questão de cunho
epistemológico. A outra questão é de cunho político - até que ponto o
soberano fala em nome dos cidadãos? Com a noção de rede de atores essa
dupla tarefa é revista. “Não há dois problemas de representação, mas
apenas um. Não há dois ramos, apenas um único, cujos produtos só podem
94 C ALLON , M. op. cit., p. 80.
95 Cf. C ALLON , M. 1981; C ALLON , M. 1989; L ATOUR , B. 1994-b.
96 Cf. C ALLON , M. & L ATOUR , B. 1992, p.347.ser distinguidos a posteriori e após
exame comum.”97 No plano das redes,
há operações de tradução que engendram ao mesmo tempo natureza e
sociedade, sujeito e objeto. As práticas de mediação, de hibridação
dispõem todo o espaço de tal modo, que já não falamos mais em dois tipos
de representação, mas apenas em híbridos ou quase-objetos. Latour nos
convida a lançar luz sobre esses quase-objetos, efeitos das redes de atores.
A não-modernidade das ciências torna legítimos tais objetos híbridos.
Conforme indica Latour98, o paradoxo da constituição moderna é
estabelecer as práticas de purificação como um ideal a atingir e, ao mesmo
tempo, fazer proliferar os híbridos, esses quase-objetos que não se deixam
purificar. Para homologar a prática de hibridação que nos faz não-
modernos, Latour traz à luz os quase-objetos por meio de um parlamento
das coisas. Esse parlamento não é proposto como uma utopia, algo ainda
futuro, ao contrário, ele pertence ao presente como uma experiência de
pensamento, “quer dizer, instrumento de diagnóstico, de criação e de
resistência”99. Em vez de uma revolução, estamos diante de uma
afirmação daquilo que somos em nosso engajamento prático: não-
modernos. Do ponto de vista de Isabelle Stengers100, o parlamento das
coisas expõe uma deformação do presente, que não se confunde nem com
uma revolução nem tampouco com uma reforma. Nem revolucionário,
nem reformista, o parlamento das coisas supõe uma imagem da ciência
como prática de mediação, aguçando novas sensibilidades voltadas para a
proliferação dos híbridos, para a sua entrada nos coletivos. Os dois
sentidos de representação separados por Boyle e Hobbes se reúnem em
torno do parlamento das coisas que, desse modo, recompõe a continuidade
do coletivo. Não há verdades nuas, nem cidadãos nus, há mediação,
híbridos, articulação entre humanos e não-humanos. Assim, no parlamento
das coisas,
“pouco nos importa que um dos mandatários fale do
buraco de ozônio, que um outro represente as
indústrias químicas, um quarto os eleitores, um quinto
a meteorologia das regiões polares, que um outro fale
em nome do Estado, pouco nos importa, contanto que
eles se pronunciem todos sobre a mesma coisa, sobre
este quase-objeto que criaram juntos, este objeto-
97 L ATOUR , B. 1994-a, p. 141.
98 Cf. L ATOUR , B. op. cit.
99 S TENGERS ,
100
I. 1993, p.174.
S TENGERS , I. op. cit.discurso-natureza-sociedade cujas novas propriedades
espantam a todos e cuja rede se estende de minha
geladeira à Antártida passando pela química, pelo
direito, pelo Estado, pela economia e pelos satélites.
Os imbróglios e as redes que não possuíam um lugar
possuem agora todo o espaço. São eles que é preciso
representar, é em torno deles que se reúne, de agora
em diante, o Parlamento das Coisas.” (L ATOUR , B.
1994-a, p. 142).
O parlamento das coisas celebra a não-modernidade das práticas
científicas definidas como práticas de mediação, porque nele os cientistas
não são os únicos representantes das coisas. Eles falam ao lado dos outros
atores, como os empresários, os representantes do governo, etc.; em outras
palavras, as práticas científicas encontram-se ao lado de outras práticas até
então vistas como terrenos baldios disponíveis aos avanços da ciência101.
Ao princípio de conquista que avança em nome da ciência e da
racionalidade definida como condições a priori para o conhecimento, o
parlamento das coisas se apresenta como um princípio de multiplicidade,
segundo o qual todo o novo representante das coisas será acrescentado aos
outros por meio de relações de interesse e de alianças performativas. O
princípio de conquista se faz em nome de um ideal moralizante que de
antemão separa o científico daquilo que não é, estabelecendo, portanto, um
princípio de demarcação entre ciência e outras práticas humanas. O
princípio de multiplicidade colocado em cena pelo parlamento das coisas é
o princípio de conexão das redes de atores: alianças performativas
conectam entre si atores heterogêneos e têm como resultado os muitos
representantes que falam em nome das coisas. Assim, no parlamento das
coisas, como diz Latour, não importa se alguém fala no buraco da camada
de ozônio enquanto outro fala dos eleitores, porque o que os une é o tecido
único das coisas definidas por seu hibridismo. À multiplicidade ontológica
das coisas segue a multiplicidade dos seus representantes. A ciência é,
nesse caso, um representante das coisas, dentre outros. Aqui, os cientistas
não são como os conquistadores que fazem valer uma verdade, uma razão
em nome da ciência. Não há um centro unificador do qual emana o poder
de julgar, de estabelecer demarcações ou, em outras palavras, não há um
pensamento crítico que se aplique aos fatos, como se fosse uma forma
aplicada sobre um matéria bruta. O parlamento das coisas aponta para um
“modo de medida a mais, que se acrescenta aos outros e cria novas
101
Cf. S TENGERS , I. op. cit., p. 172-3.possibilidades de história e não o modo de
medida enfim alcançado”102.
Nele não há mais lugar para um julgamento, para um império de uma
verdade. Uma ressalva se faz necessária: ao evocar o parlamento das
coisas, Latour não está procurando numa referência mais forte a
possibilidade de superar ou ultrapassar nossa crença na verdade objetiva
porque, fosse esse o caso, o parlamento funcionaria como um tribunal que
julgaria uma verdade como ultrapassada para afirmar outra. Mas não é esse
o caso. Não se trata de um julgamento, de uma recondução do heterogêneo
ao homogêneo103. O parlamento das coisas é uma afirmação da
coexistência das práticas científicas com as demais práticas humanas.
Assim, por exemplo, nas pesquisas sobre a AIDS, os cientistas não são os
únicos representantes do vírus HIV, ao lado deles estão os doentes, as
indústrias farmacêuticas, os grupos de apoio, o governo. Entre esses atores
heterogêneos são estabelecidas alianças performativas, negociações das
quais emanam as decisões a serem tomadas a respeito do vírus e da
doença. O parlamento das coisas é uma rede, um rizoma104 que funciona
sem o julgamento de uma unidade transcendente, sem demarcações
preestabelecidas, sem bordas. Assim como na filosofia de Deleuze &
Guattari, o rizoma é o modo de realização das multiplicidades, para Latour,
o parlamento das coisas é o modo de realização da rede de atores. Ele
implica um vetor de devir e risco no campo das ciências. Não há razão
nem método que possibilite a economia desse risco. O parlamento das
coisas acarreta uma visada sobre as ciências a partir de “sua audácia, sua
experimentação, sua incerteza, seu calor, sua estranha mistura de híbridos,
sua capacidade louca de recompor os laços sociais”.105 O parlamento das
coisas é um outro modo de dizer que está em foco a ciência em ação, a
ciência como rede de atores, ciência como prática de mediação.
A idéia de um parlamento das coisas implica uma redefinição das
relações entre ciência e política. Isso porque, no contexto desse parlamento
não é possível dizer que os cientistas falam apenas dos fatos enquanto os
políticos se ocupam dos valores e das relações entre os homens. O
parlamento das coisas coloca em cena um híbrido de fatos e valores, um
híbrido de humanos e não-humanos. Não há portanto, como estabelecer de
antemão uma linha demarcatória que separe de um lado os fatos científicos
102 S TENGERS , I. op. cit. , p. 186.
103 Cf. S TENGERS , I. op. cit.
104 Sobre as relações entre os conceitos de rede para Latour e rizoma para Deleuze
& Guattari, conferir
K ASTRUP , V. 1997, p. 61-67.
105
L ATOUR , B. 1994-a, p. 140.e de outro os valores humanos. Um exemplo recente dessa
idéia de um
parlamento das coisas: as conferências de Kyoto, no Japão. Representantes
de 170 países se reuniram para discutir o aquecimento global ou o efeito
estufa106. Na perspectiva de Latour107, nessa conferência o clima
comparece simultaneamente como um objeto científico - cientistas
concordam que a emissão de poluentes resultantes, por exemplo, da
queima de combustíveis provoca uma alteração climática elevando a
temperatura em todo o planeta -, e como um objeto político - ele exige uma
ação que se estenda ao planeta inteiro. O efeito estufa é, portanto, um
híbrido que redefine nossas relações com a ciência e a política. O que
Latour pretende com a noção de parlamento da coisas é mostrar que esses
híbridos que emergem em nossos coletivos exigem um filosofia que possa
acolhê-los e uma política que os tome como alvo de discussão.
A meu ver, o parlamento das coisas situa o trabalho de Latour num
cruzamento entre as filosofias de Serres e de Deleuze & Guattari. Serres é
uma referência necessária não só porque as coisas estão aí presentes na
condição de híbridos, mas porque o parlamento das coisas lança luz sobre
uma genealogia das coisas, uma genealogia das trocas de propriedades
entre humanos e não-humanos definida por Latour como um dos pontos
relevantes da filosofia de Serres108. Latour se utiliza dessa genealogia
como uma saída frente aos impasses do paradigma dualista para mostrar
como, por meio das traduções, mobilizações, alianças performativas, as
coisas se constituem como híbridos de natureza e sociedade, híbridos de
humanos e não-humanos que, passam a exigir não apenas uma filosofia
que lhes dê acolhida, mas também um parlamento, uma política.
Deleuze & Guattari são também referências necessárias porque, se o
parlamento das coisas implica uma visão da ciência como um vetor de
devir, parece-me imprescindível a referência à noção de um nomadismo na
ciência tal como é proposta pelos dois filósofos. A noção de rede está
implicada filosoficamente com a filosofia mestiça de Serres e, ao mesmo
tempo, encontra ressonâncias com a filosofia da diferença de Deleuze &
Guattari.
Parece-me possível dizer que a ciência entendida como rede de
atores opera um duplo deslocamento: por um lado, o objeto se impõe por
sua variação, isto é, ele comparece no campo científico como
multiplicidade, como zona de flutuação objetiva. Por outro lado, o sujeito
106 Cf. T RAUMAN , T. ,1997.
107 L ATOUR , B. 1997.
108 Cf. L ATOUR , B. 1994-c, p. 794.se impõe, ele também como rede, como
multiplicidade. Nesse sentido, é
preciso ajustarmos a nomenclatura: há um deslocamento da noção de
sujeito - fortemente marcado como centro unificador do conhecimento -
para a noção de subjetividade - constituída num processo genético que
articula elementos díspares e conexões múltiplas.
Por certo, o deslocamento da noção de objeto - tal como definido
pelo pensamento crítico - para a noção de coisa - definida por seu
hibridismo - desemboca num nomadismo, numa deriva verificável no
domínio das práticas científicas. Trata-se aqui de uma questão levantada
anteriormente por Michel Serres. Do ponto de vista da filosofia mestiça, as
coisas não se confundem com o objeto passivo e dominado pela razão
humana, objeto identificado por Serres como alvo do conhecimento na
filosofia cartesiana. A natureza reage às intervenções da razão, ela
interroga a razão acerca de suas práticas, de suas finalidades, dos seus
modos de realização. Com os grandes desastres ecológicos, a camada de
ozônio, etc., deixamos o cartesianismo: o objeto deixou de ser uma
propriedade da razão, para afirmar-se como coisa, híbrido de sujeito e
objeto. “Os objetos são sujeitos de direito e não mais simples suportes
passivos da apropriação. (...) Se os próprios objetos se tornam sujeitos de
direito, então, todas as balanças tendem a um equilíbrio.”109 Parece-me
que o parlamento das coisas se constitui como uma revisão ao mesmo
tempo filosófica e política. Filosófica, porque nos deparamos com os
limites das filosofias centradas na figura do sujeito legislador. A palavra
política sofre uma revisão no sentido de não se referir apenas aos homens
entre si, mas sim, no de englobar em seu terreno as coisas, os híbridos
sócio-técnicos. Michel Serres afirma que o contrato social era um contrato
jurídico que estabelecia uma relação dos homens entre si. Mas desde que a
natureza irrompeu em nossos coletivos, somos levados a estabelecer o que
ele chama de contrato natural, isto é, um acordo não assinado, virtual, que
reconhece “um equilíbrio entre a nossa potência atual e as forças do
mundo.”110 Serres observa que, assim como o contrato social reconhecia
uma certa igualdade entre os homens, e os diversos contratos de direito
procuravam equilibrar os interesses das partes, o contrato natural, de modo
semelhante, reconhece a igualdade entre “a força de nossas intervenções
globais e a globalidade do mundo”.111 A meu ver, o parlamento das coisas
é um outro modo de marcar a urgência desse contrato natural. Latour, do
109 S ERRES , M. 1991, p. 50.
110 S ERRES , M. op. cit., p. 59.
111 S ERRES , M. op. cit., p. 59.mesmo modo que Serres, considera a reação da
natureza às intervenções
humanas como uma palavra-chave para entendermos a não-modernidade
do mundo em que vivemos. Ele considera o ano de 1989 exemplar por ter
sido nesta data que em Paris, Londres e Amsterdã foram realizadas as
primeiras conferências sobre o estado global do planeta, em outras
palavras, nessas conferências “a natureza compareceu ao tribunal na
qualidade de vítima dos excessos do mundo moderno”.112 Mais uma vez
podemos falar das recentes conferências de Kyoto, no Japão. O que se
espera dessa conferência? Um contrato natural que, diferentemente do
contrato social, “nos leva a considerar o ponto de vista do mundo em sua
totalidade.”113
Numa palavra, espera-se das conferências de Kyoto - ou do
parlamento das coisas - uma retenção dos excessos do pensamento
moderno. O parlamento das coisas dá consistência ao que Serres afirmava
com sua filosofia mestiça: uma retenção da razão e de seus dualismos, uma
retenção do pensamento crítico. Em outras palavras, isso significa dizer
uma retenção das relações de propriedade e de dominação da razão sobre
os seus objetos do conhecimento.
Isabelle Stengers indica que o parlamento das coisas não envolve a
utopia da intersubjetividade, mas sim aquilo que Guattari chamou de
produção coletiva de subjetividade. Citando Guattari, Stengers diz que “os
diversos níveis de prática não somente não têm que ser homogeneizadas ,
reunidos uns aos outros sob uma tutela transcendente, mas convém engajá-
los em um processo de heterogênese”.114 O processo de heterogênese
remete à multiplicidade de componentes que compõem a subjetividade.
Esta por sua vez, passa a ser vista como um efeito, uma dobra a partir de
um campo de multiplicidades. Conforme Guattari, o sujeito, no sentido
tradicional, identifica-se com o centro unificador dos estados da
consciência e com o ponto originário a partir do qual o mundo é
apreendido. Com as noções de subjetividade e heterogênese o autor traz a
cena um processo de constituição da subjetividade a partir de elementos
díspares. O processo heterogenético aponta para um campo de
multiplicidades pré-individuais. Por isso na perspectiva de Guattari
importa a
“apreensão da existência de máquinas de subjetivação
que não trabalham apenas no seio de ‘faculdades da
112 P EREIRA , M.N.F. 1997, p. 12.
113 S ERRES , M. 1991, p. 59.
114 G UATTARI , F. apud S TENGERS , I. 1993, p. 182.alma’, de relações
interpessoais ou nos complexos
intrafamiliares. A subjetividade (...) [é fabricada] nas
grandes
máquinas
sociais,
mass-mediáticas,
linguísticas, que não podem ser qualificadas de
humanas.” (G UATTARI , F. 1992, p. 20)
Nesse sentido, enquanto o sujeito se marca por sua unidade, a
subjetividade é sempre parcial, pré-pessoal, polifônica, coletiva115. Do
ponto de vista da teoria de rede de atores, parece-me pertinente afirmar que
esse processo de heterogênese está em obra nas controvérsias científicas,
na construção de uma rede a partir da mobilização de aliados. Penso ser
possível dizer que uma rede de atores se define tanto pela mobilização do
mundo quanto pela produção de subjetividade. Em outras palavras, trata-se
de um caminho de duas vias: uma rede é um processo de produção ao
mesmo tempo do mundo e da subjetividade. Como sociólogo da ciência,
Latour explicita o modo como uma rede engendra o mundo, mas deixa em
aberto a questão acerca da produção de subjetividade. A meu ver, o
parlamento das coisas traduz essa dupla exigência da ciência definida
como rede de atores: redefinição dos objetos e redefinição do sujeito, numa
palavra, podemos dizer que um e outro se definem por sua multiplicidade,
tanto um como outro se definem como rede de atores.
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T RAUMAN , T. Fumaça da discórdia. Revista Veja, ano 30, no 49, pp. 55-6,
10 de dezembro de 1997.Notas sobre os autores
Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, filósofo e ativista político, autor entre
outros
de A revolução molecular (Brasiliense, 1985), O inconsciente maquínico (Papirus,
1988) e As três ecologias (Papirus, 1989). Publicou com Gilles Deleuze O Anti-Édipo
(Imago, 1978), Mille Plateaux (ed. 34, 1995) e O que é a filosofia? (ed. 34, 1994).
Pierre Lévy é filósofo, historiador das ciências e especialista das novas
tecnologias de
informática. Atualmente é professor na Université du Quebec, Canadá. Publicou
notadamente As Tecnologias da Inteligência (ed. 34,1993), O que é o Virtual (ed.
34,
1995), Cibercultura (ed. 34, 1999).
Bill Viola é artista, músico e videasta. Sua obra soma mais de cinquenta
instalações e
vídeos, além de ensaios e entrevistas. Trabalha fundamentalmente com toda a
diversidade de recursos tecnológicos disponíveis.
Francisco Varela (1946-2001), biólogo, diretor de pesquisa no laboratório de
neurociências do CNRS (Paris) e co-fundador da teoria da autopoiese em biologia
teórica. Autor de The Tree of Knowledge (1992) e The Embodied Mind: Cognitive
Science and Human Experience (1994).
Luiz Orlandi é filósofo, autor de A voz do intervalo (Atica, 1981), Falares de
Malquerença (Boletim IFCH/Unicamp) e vários artigos em torno da obra de G.
Deleuze. Traduziu, deste autor, A dobra: Leibniz e o Barroco (Papirus,1991), O
bergsonismo (Ed. 34, 1999) e com a colaboração de Roberto Machado Diferença e
Repetição (Graal, 1989). Coordena atualmente o curso de graduação em Filosofia da
Unicamp.
Gilbert Simondon (1924-1989) é filósofo, autor de Du mode d'existence des objets
techniques (1958), L'individu et sa genèse physico-biologique (1964) e
L'individuation
psychique et collective (1989, póstumo).
Gilles Deleuze (1925-1995) é filósofo, autor entre outros de Diferença e Repetição
(Graal, 1989) e Conversações (ed. 34, 1993). Publicou com Félix Guattari O Anti-
Édipo (Imago, 1978), Mil Platôs (Ed. 34, 1995) e O que é a filosofia? (ed. 34,
1994).Franco Berardi (Bifo), militante e teórico italiano, foi fundador da Rádio
Alice,
experiência alternativa cujo nome foi inspirado na leitura que Gilles Deleuze fez
de
Lewis Carroll em “Lógica do Sentido”. Pesquisa atualmente as relações entre a
questão
social e a utilização das novas tecnologias, enfocando particularmente a emergência
de
uma nova dimensão cognitiva que transforma os processos produtivos em
infoprodução. Publicou, entre outros, “Come si cura il Nazi”; “Lavoro Zero” e
“Neuromagma” (Castelvecchi, Roma).
Raymond Bellour, diretor de pesquisa no CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique), trabalha sobre literatura, cinema e vídeo. É autor entre outros de:
L'
analyse du film (1979), Henri Michaux ou une mésure de l' être (1986), Passages de
l'
image (1990, org.), e animador da revista de cinema Trafic, da qual foi co-
fundador.
Michael Hardt é filósofo e professor na Universidade de Duke (EUA). É autor de
Gilles Deleuze - um aprendizado em filosofia (Ed. 34, 1996), e com Antonio Negri,
de
Labor of Dionysus : A critic of State-form (Un. Of Minnesota Press) e Império (ed.
Record, 2001).
Mauro Sá Rego Costa é doutor em Educação pela UFRJ, professor do Programa de
Pós−graduação do Conservatório Brasileiro de Música e da Faculdade de Educação da
Baixada Fluminense, UERJ. É membro fundador da Universidade Livre do Rio de
Janeiro.
Marcia Oliveira Moraes é doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP) e professora
Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
Peter Pál Pelbart é filósofo, professor na PUC-SP e terapeuta no Hospital-Dia “A
Casa”. É autor de Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão
(Brasiliense, 1989), A Nau do Tempo-rei: 7 ensaios sobre o tempo da Loucura (Imago,
1993), O Tempo não-reconciliado (Perspectiva, 1998) e A vertigem por um fio
(Iluminuras, 2000) . Traduziu de Gilles Deleuze Conversações, Crítica e Clínica e
parcialmente Mil Platôs vol. 5 (Ed. 34).
Rogério da Costa é filósofo, engenheiro de sistemas, professor do Pós
Graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP e do dept. Ciência da
Computação da PUCSP. Organizou Limiares do Contemporâneo (ed, escuta,1993), autor
de L Ontologie du Contingent (ed. Press Universitaire du
Septentrion, 1999) e Cultura Digital (ed. Publifolha, 2002).FONTES de artigos
traduzidos
O comunismo da imanência, Toni Negri e Felix Guattari, in Futur Antérieur,
"Plissê Fractal", de Pierre Lévy, "Plissê Fractal", Chimères n.22, Paris, 1994.
A paixão das máquinas, de Félix Guattari, "A propos des machines", Chimères n.19,
Paris, 1993.
Da Linguagem Zaum à rede tecnomaya, de Franco Berardi, inédito, 1992.
"Gênese do Indivíduo", de Gilbert Simondon, L'individu et sa génèse physico-
biologique, "Introduction", Paris, AUBIER, 1989.
"A propósito de Simondon", de Gilles Deleuze, "Gilbert Simondon: l' individu et sa
génèse physico-biologique", Revue de Philosophie.
"O reencantamento do concreto", de Francisco J. Varela, "The Reenchantement of the
Concrete", Zone n.6, Nova Iorque, 1992.
"A máquina-cinema", de Raymond Bellour, "La machine-cinema", Catálogo Le temps
des machines, Paris, 1990.
"O som de uma linha de varredura", de Bill Viola, "Le son d' une ligne de
balayage",
Chimères n. 11, Paris, 1991.
Affective Labor, inédito, 1998.Colaboraram neste número :
...
Mara Selaibe
[caso entrem as ilustrações] :
Leila Reinert
Beá ( ?)
Nelson Kohn
Guto Lacaz
Maria Regina ( ?)
Notas
i
N.T. O autor utiliza aqui os termos kin work e caring labor. Kin designa parentes
ou familiares; o que
está em jogo neste tipo de atividade são os cuidados que tradicionalmente as
mulheres dedicam a pessoas
da família (crianças, idosos, enfermos, etc...), no desempenho de um trabalho que,
muitas vezes, não é
reconhecido como tal.
ii
Optamos por manter a denominação escolhida pelo autor para designar a posição que
os países ocupam
na economia globalizada, traduzindo os termos utilizados, dominant capitalist
countries e subordinated
countries, por “países capitalistas dominantes” e “países dependentes”.
Robert Musil, The man without qualities, v. 2. New York: Vintage, 1996, p. 367.
(Publicado em
português como Homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Trad.
Lya Luft e Carlos
Abbenseth).
1
Sobre as mudanças na oferta de empregos nos países dominantes, ver Manuel Castells
and Yuko
Aoyama, “Paths towards the informational society: employment structure in G-7
countries, 1920-90” ,
International Labour Review 133:1, 1994: 5-33.
2
iii
N.T. O termo informational economy refere-se tanto à informatização da economia,
quanto ao papel
central desempenhado pela informação nesta mesma economia.
3
François Bar, “Information infrastructure and the transformation of manufacturing”,
In: The new
information infrastructure: strategies for U.S. policy, ed. William Drake, New
York: Twentieth Century
Fund Press, 1995, p. 56.
4
Sobre a comparação entre os modelos Fordista e Toyotista, ver Benjamin Coriat.
Penser à l’envers:
travail et organization dans l’entreprise japonaise. Paris: Christian Bourgois,
1994. (Publicado em
português como Pensar pelo avesso. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994).
5
Penso primeiramente em Jürgen Habermas, The theory of communicative action. Boston:
Beacon
Press, 1984; e Hannah Arendt, The human condition. Chicago: University of Chicago
Press, 1958.
(Publicado em português como Condição humana. São Paulo: EdUSP, 1981). Para uma
crítica excelente
da divisão Habermasiana entre ação comunicativa e ação instrumental no contexto da
pós-modernização
econômica, ver Christian Marazzi, Il posto dei calzini: la svolta linguistica
dell’economia e i suoi effeti
nella politica. Bellinzona, Switzerland: Casagrande, 1995, p. 29-34.
6
Para uma definição e análise do trabalho imaterial, ver Maurizio Lazzarato,
“Immaterial Labor”, In:
Radical thought in Italy, ed. Paolo Virno e Michel Hardt. Minneapolis: University
of Minnesota Press,
1996, p. 133-147.7
Peter Drucker entende a passagem em direção à produção imaterial como a completa
destruição das
categorias tradicionais da economia política. “The basic economic resource – ‘the
means of production’,
to use the economist’s term – is no longer capital, nor natural resources (the
economist’s ‘land’), nor
‘labor’. It is and will be knowledge.” (O recurso econômico básico - os meios de
produção, para usar o
termo dos economistas – não é mais o capital, nem os recursos naturais ( a “terra”
dos economistas), nem
o trabalho. É e será o conhecimento). Peter Drucker, Post-capitalist society, New
York: Harper, 1993, 8.
(Publicado em português como Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Livraria
pioneira Ed., Coleção
Novos Umbrais, 1993. Trad. Nivaldo Montingelli Jr.). O que Drucker não compreende é
que o
conhecimento não é dado mas produzido e que sua produção envolve novos tipos de
meios de produção e
trabalho.
8
Marx usa o termo “general intellect” para referir-se a esse paradigma da atividade
social produtora.
“The development of fixed capital indicates to what degree social knowledge has
become direct force of
production, and to what degree, hence, the conditions of the process of social life
itself have come under
the control of the general intellect and been transformed in accordance with it. To
what degree the
powers of social production have been produced, not only in the form of knowledge,
but also as
immediate organs of social practice, of the real life process.” (“O desenvolvimento
de capital fixo indica
em que grau o conhecimento social tornou-se força direta da produção, e,
consequentemente, em que
grau, as condições do próprio processo da vida social ficaram sob controle da
inteligência coletiva, sendo
transformadas de acordo com ela. Em que grau o poder da produção social foi ele
mesmo produzido, não
somente na forma de conhecimento, mas também como parte imediata da prática social
e do processo da
vida real.”) Karl Marx, Grundrisse. New York: Vintage, 1973, 706; trad. Martin
Nicolaus. (Publicado em
português como Contribuições à Crítica da Economia Política. São Paulo: Ed. Flama,
1946; trad.
Florestan Fernandes).
9
Robert Reich, The work of nations: preparing ourselves for 21 st century
capitalism. New York: Knopf,
1991, 177. (Publicado em português como O trabalho das nações: preparando-nos para
o capitalismo
do séc. XXI. São Paulo: Educator, 1993.)
10
Ver Dorothy Smith, The everyday world as problematic: a feminist sociology. Boston:
Northeastern
university Press, 1987, 78-88.
11
Ver principalmente Michel Foucault, The history of sexuality, vol 1. New york:
Vintage, 1978,135-45;
trad. Robert Hurley. (Publicado em português como História da sexualidade I: a
vontade de saber. Rio
de Janeiro: Graal, 1997; trad. De Albuquerque, M.T.C. & Guillon de Albuquerque, J.
A.)
12
Ver de Giorgio Agamben, Homo Sacer. Turim: Einaudi, 1995; e “Form-of-life” In:
Radical thought in
Italy, ed. Paolo Virno e Michael Hardt. Mineapolis: University of Minnesota Press,
1996; 151-56.
13
Ver Vandana Shiva e Ingunn Moser, ed. Biopolitics: a feminist and ecologial reader.
London: Zed
Books, 1995; e Vandama Shiva, Staying alive: womem, ecology and survival in India.
London: Zed
Books, 1988.
iv
N.T. Staying Alive. O autor brinca , aqui, com o título do livro de Vandama Shiva,
citado acima,
indicando que, para sobrevivermos no mundo atual, temos que estar atentos ao fato
de a política ter-se
tornado um questão de vida.
14
Ver Sara Ruddick. Maternal thinking: towards a politics of peace. New york:
Ballantine Books, 1989.
15
Sobre as capacidades ontologicamente constitutivas do trabalho, especialmente no
contexto das teorias
feministas, ver Kathi Weeks, Constituting feminist subjects. Ithaca: Cornell
University Press, 1998; 120-
51.
16
Ver Gayatri Chakravorty Spivak. “Scattered speculations on the question of value”.
In: Other worlds.
New york: Routledge, 1988; 154-75.v
N.T. O autor faz aqui uma alusão à idéia marxista de “trabalho socialmente
necessário”.

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