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BOSI, ALFREDO. In. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1987.

OS TRABALHOS DA MÃO
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para Ecléa
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão
apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha,
arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha,
aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dorido. A mão tateia com as pontas dos
dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas.
Com o nó dos dedos, bate.

A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pêlo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e
desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.

Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar;
baixando-o, manda matar.

Mede com o palmo, sopesa com a palma.

Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito,
o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o
nunca, o nada. É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego. Faz levantar a voz, amaina o
vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira
o braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.

Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as
pregas, dobra-a, guarda-a.

A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura, descarna o peixe,
depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em
quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma,
desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.

A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.


A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca,
estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do
piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os
dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão
rege a orquestra.

A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrançados os dedos.
Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à água do batismo e
asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no
ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se
mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as
mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos
levam a extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a bênção e o voto da paz. In manus tuas,
Domine, commendo spiritum meum.
Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúctil anatomia: oito ossinhos no pulso,
cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.

Mas será um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a prolongam e potenciam
os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.

A mão lavra a terra há pelo menos oito mil anos, quando começou o Neolítico em várias partes do
globo. Com as mãos, desde que criou a agricultura, o homem semeia, poda e colhe. Empunhando o
machado e a foice, desbasta a floresta; com a enxada revolve a terra, limpa o mato, abre covas. Com
a picareta, escava e desenterroa. Com a pá, estruma. Com o rastelo e o forcado, gradeia, sulca e
limpa. Com o regador, água. Desgalha com a faca e o tesourão. Manejando o cabo dos utensílios de
cozinha, o homem pode talhar a carne, trinchar as aves, espetar os alimentos sólidos e conter os
líquidos que escoariam pelas juntas das mãos em concha.

Morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambus,
assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto,
argamassam juntas, desempenam o reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé,
pregam ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam
janelas, chumbam batentes, dão à pintura a última demão.

A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. A mão do vidreiro faz a bolha de areia, e do sopro nasce
o cristal.
A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava,
pesponta, chuleia, cirze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda.

A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco. Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho:
raspa e desbasta com a plaina, apara com o formão, alisa e desempena com a lixa, penetra com a
cunha, corta com a serra, entalha com a talhadeira, boleia com o torno, crava pregos com o martelo,
marcheta com as tachas, encera e lustra com o feltro.

O ferreiro malha o ferro na bigorna, com o fogo o funde, com o cobre o solda, com a broca o fura,
com a lima o rói, com a tenaz o verga, torce e arrebita.

O gravador entalha e chanfra com o cinzel, pule com o buril. O ourives lapida com diamante, corta
com o cinzel, afina com o buril, engasta com a pinça, apura com o esmeril.

O escultor corta e lavra com o escopro e o formão.


O pintor, lápis ou pincel na mão, risca, rabisca, alinha, enquadra, traça, esboça, debuxa, mancha,
pincela, pontilha, empastela, retoca, remata.
O escritor garatuja, rascunha, escreve, reescreve, rasura, emenda, cancela, apaga.

Na Idade da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava
às saliências e reetrâncias da matéria? O artesanato, por força, recua ou decai, e as mãos manobram
nas linhas de montagem à distância dos seus produtos.

Pressionam botões, acionam manivelas, ligam e desligam chaves, puxam e empurram alavancas,
controlam painéis, cedendo à máquina tarefas que outrora lhes cabiam. A máquina, dócil e por isso
violenta, cumpre exata o que lhe mandam fazer; mas, se poupa o músculo do operário, também sabe
cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar: se não, decepa dedos distraídos. Foram oito milhões
os acidentes de trabalho só no Brasil de 1975.

Alfredo Bosi
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