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à volta dum mestre (guru) Burqa: Véu das mulheres muçulmanas Chapati:
bolo folhado sem fermento Charpoy: tábua (de cama) de corda Cipaye:
soldado de infantaria indígena Dhoti: pano de algodão Ghât: escada
descendente do Gange Ghí: manteiga purificada Hartal: jornada de não-
acção e de luto Khadi: algodão cru (fiado à mão) Kirpan: sabre ritual dos
Sikhs Lathi: moca comprida de bambu Mantra: fórmula sagrada Namaste: bom-
dia Rishi: casto da índia antiga Sadhu: asceta
(narrativa)
Jawaharlal Nehru
Tudo isto parece hoje bastante longínquo. A Porta das índias não é hoje
mais do que um simples monumento histórico como os de Roma ou da
Babilónia, um padrão esquecido glorificando uma epopeia que morreu sob a
sua abóboda apenas há vinte e cinco anos.
<Página em branco>
NOTA DOS AUTORES AO LEITOR
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«Somos um país pobre, afirmara John Maynard Keynes aos seus compatriotas,
e temos que aprender a viver como tal.»
12
Uma convocação oficial arrancara o seu passageiro às férias com a família
na Suíça para o fazer regressar urgentemente a Londres, onde acabava de o
deixar um avião especial da R.A.F. O carro parou em frente da porta
decerto mais fotografada do mundo, a do 10 Downing Street. Durante seis
anos, a imprensa mundial associara a imagem desta porta a uma silhueta
conhecida, com um chapéu de feltro preto na cabeça, enorme charuto na
boca, bengala numa das mãos, e a outra levantada mostrando o «V» da
vitória. Winston Churchill já não habitava esta casa de onde travara duas
grandes batalhas, uma para vencer Hitler, a outra para defender o Império
britânico.
Nota 1 - Ascetas.
Nota 2 - Nome dado aos ingleses que habitavam as Índias.
13
Attlee tinha com efeito a intenção de o nomear vice-rei das índias,
dando-lhe assim o posto mais elevado do Império, o prestigioso cargo de
uma longa linhagem de ingleses que haviam presidido ao destino da
quinquagésima parte do género humano. Mas não era para governar o Império
das Índias que Clement Attlee escolhera Luís Mountbatten. Era para
cumprir a missão mais dolorosa de que podia encarregar-se um britânico,
organizar a retirada da Inglaterra das Índias.
Este prestigioso almirante de sangue real não desejava por nada deste
mundo que lhe confiassem esta tarefa de executor. Na ingénua esperança de
obrigar Attlee a renunciar à sua nomeação, subordinara a sua aceitação a
todo um leque de exigências, desde a escolha caprichosa de uma equipa de
colaboradores até querer que fosse posto à sua disposição um avião
especial de quatro motores. Com grande espanto seu Attlee concordara com
todos os seus pedidos. Por isso Mountbatten estava disposto a apresentar
naquele dia novas pretensões particularmente audaciosas.
Naquela manhã do dia de Ano Novo de 1947, um dos bisnetos dessa rainha
acabava de pedir ao Primeiro ministro da Grã-Bretanha que marcasse o dia
que havia de pôr termo a essa eternidade.
As epopeias mais grandiosas podem ter uma origem das mais banais. Se a
Grã-Bretanha se tivesse lançado três séculos antes na grande aventura
colonial que Luís Mountbatten recebera ordem de concluir, teria sido por
causa de cinco miseráveis chelins. Era este o preço atribuido a uma libra
de pimenta — condimento muito apreciado nas mesas isabelinas — e imposto
pelos traficantes holandeses que controlavam o comércio das especiarias.
Escandalizados com esta provocação, vinte e quatro comerciantes da Cidade
de Londres reuniram-se na tarde de 24 de Setembro de 1599, num prédio da
rua Leadenhall situado a menos de uma milha da residência em que Attlee e
Mountbatten acabavam de se encontrar.
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O seu objectivo era fundar uma modesta casa de comércio com o capital
inicial de setenta e duas mil libras esterlinas, subscrito por cento e
vinte e cinco accionistas. Apenas o lucro motivara esta empresa que
recebeu o nome de East índia Trading Company.
O comandante só veria essa índia no caminho para Agra. Mas o seu encontro
com o Grão Mogol ia recompensá-lo plenamente das fadigas da viagem.
Encontrou-se perante um monarca ao lado de quem a rainha Isabel parecia a
senhora de um pequeno feudo de província. Reinando sobre setenta milhões
de vassalos, Jehangir era o rei mais rico e mais poderoso do mundo, o
quarto e último grande imperador mogol das Índias. O primeiro inglês
recebido na sua corte foi tratado com deferências que teriam decerto
espantado os austeros accionistas da East índia Trading Company. O Mogol
nomeou-o oficial da sua casa real e ofereceu-lhe como presente de boas-
vindas a jovem mais bela do seu harém uma cristã arménia.
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Foram recebidos em geral sem hostilidade pelos soberanos e pelas
populações indígenas. A sua divisa repetida a cada passo explicava esse
acolhimento. «Trade not territory — Comércio, não colonização»,
proclamavam.
Este encargo monumental fora exercido por uma elite minúscula, os dois
mil membros do Indian Civil Service e os dois mil oficiais ingleses que
preenchiam o quadro do Exército das Índias. Apoiada em sessenta mil
soldados britânicos e duzentos mil soldados indígenas, a autoridade deste
punhado de homens governara e mantivera a ordem num país de trezentos
milhões de habitantes. Nenhuma estatística poderia definir melhor do que
estes números a natureza do domínio inglês nas Índias e traduzir o grau
de submissão que encontrou da parte das massas indianas.
21
O jantar mais íntimo reunia pelo menos quarenta convidados, com um criado
por detrás de cada um. Os negociantes não assistiam a estas recepções,
nem os indianos, evidentemente: ninguém se atrevera nunca a dar-se com
eles. Nada era mais importante do que a presença, e seria uma falta
imperdoável faltar a essa regra. Imaginem o gelo que se faria de repente
numa dessas festas se a esposa do secretário geral de um ministério
descobrisse que a tinham sentado ao lado de um oficial de patente
inferior à do marido!»
O maior divertimento dos ingleses nas Índias tinha sido sem dúvida o
desporto. A sua paixão pelo cricket, o ténis, o squash e o hóquei sobre a
relva seria por isso, além da língua inglesa, a herança mais durável que
deixariam atrás de si estes colonizadores. Jogava-se ao golfe em Calcutá
desde 1829, trinta anos antes de Nova York, e o percurso mais elevado do
mundo foi iniciado a três mil metros de altitude, em pleno Himalaia.
Nenhum saco de golfe era mais apreciado do que os fabricados com a pele
de sexo de elefante — com a condição de que o seu proprietário tivesse
ele próprio morto o animal. Toda a cidade que se presava tinha uma equipa
de caça a cavalo, com a sua matilha de cães importados de Inglaterra.
Audaciosos cavaleiros de jaqueta vermelha e toque preta galopavam no
calor das planícies áridas em perseguição dos chacais que a Índia
proporcionava à falta de raposas. Os mais temerários caçavam o javali à
lança, e a lenda afirmava que alguns tinham mesmo carregado desta forma
sobre tigres e panteras. Estes apaixonados por cavalos tinham adoptado o
jogo nacional indiano ao ponto de tornarem o polo num verdadeira
instituição britânica. E a final anual do torneio de polo entre os vinte
e um regimentos de cavalaria do Exército das Índias constituirá durante
décadas o acontecimento desportivo mais brilhante da Índia imperial.
A Índia permanecera fiel às suas lendas até na morte. O tenente St. John
Shaw, da Royal Horse Artillery, sucumbira «às feridas causadas por uma
pantera a 12 de Maio de 1866, com vinte e seis anos de idade». O major
Archibald Hibbert, comandante da 80.a bateria da Royal Field Artillery
falecera a 15 de Junho de 1902 perto de Raipur «nas hastes de um búfalo
selvagem». Harris Mc Quaid fora «espezinhado por um elefante em Saugh a 6
de Junho de 1902», e Thomas Butler, um contabilista das Obras públicas de
Jabalpur, tivera «a pouca sorte de ser devorado por um tigre na floresta
de Tilman a 25 de Fevereiro de 1897». A morte mais insólita tinha sido a
do general de engenharia Henry Durand, que caíra do seu elefante de
passeio ao inaugurar o arco de triunfo de que calculara mal a altura.
Mais anónimas mas não menos significativas do preço em vidas humanas que
custara o sonho imperial inglês eram as pedras funerárias de todos os
inspectores de polícia, ferroviários, plantadores, missionários,
lanceiros de Bengala, e de todas as mulheres que a doença cerceara.
Ninguém fora poupado, nem mesmo a mulher do primeiro vice-rei das Índias,
Lady Canning, que morrera com a febre dos pântanos no seu palácio, embora
este ficasse longe das regiões pestíferas. Ainda mais comoventes e
significativas dos sacrifícios impostos aos conquistadores da Índia
imperial eram as pequenas sepulturas de todas as crianças vítimas de um
clima e de doenças que nunca teriam sofrido na Inglaterra de seus pais.
Dois epitáfios na mesma campa do cemitério de Asigarh resumiam bem toda
esta crueldade: «19 de Abril de 1845, Alexander, de sete meses, filho do
ferroviário Johnson Scott e de sua mulher Martha, morto de cólera», «30
de Abril de 1845, William John, de quatro anos, filho do ferroviário
Johnson Scott e de sua mulher Martha, morto de cólera». E por baixo
estava gravado o adeus dos pais inconsoláveis.
Aqui repousam
Duas crianças
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Funcionários ou soldados prestigiosos, estas gerações de ingleses tinham
administrado as Índias como elas nunca tinham sido administradas antes.
Dedicados e desprovidos de outra ambição que não fosse a de inspirar o
respeito pela lei e pela justiça a uma sociedade fundada na desigualdade,
eles tinham sido, com raras excepções, homens capazes e incorruptíveis.
Mas a insignificância do seu número e o complexo de superioridade racial
que os dominava tinham-nos afastado de verdadeiros contactos com as
populações postas sob a sua autoridade. Este preconceito vitoriano da
superioridade do homem branco nunca foi expresso com mais clareza do que
por um antigo administrador do Indian Civil Service durante um debate
parlamentar no princípio do século. Existia, afirmou ele, «uma convicção
enraizada comum a todos os ingleses que vivem nas Índias, desde o mais
poderoso ao mais humilde, desde o plantador na sua casa-mata longínqua
até ao director de qualquer jornal da capital, do perfeito de uma grande
província ao vice-rei no seu trono, a convicção entranhada no íntimo de
cada um, de que pertenciam a uma raça que Deus escolhera para governar e
dominar».
24
Capítulo segundo
25
Para transmitir a sua doutrina, Gandhi recorrera aos métodos mais
elementares. Escrevia à mão à maioria dos seus correspondentes, mas
sobretudo, falava. Falava aos discípulos, aos fiéis das suas reuniões de
oração, nas assembleias do partido do Congresso. Não utilizava nenhuma
das técnicas preparadas para condicionar as massas e sujeitá-las à
vontade dos dirigentes e dos ideologistas. Todavia, a sua mensagem
espalhava-se num continente desprovido de todos os meios de comunicação
modernos: Gandhi possuía a arte dos gestos simples que falam à alma da
Índia. Realizava actos de uma originalidade surpreendente. Num país
devastado pela fome havia séculos, a sua técnica mais eficaz consistia em
privar-se de alimento, fazendo uma série de jejuns públicos. Punha a
Inglaterra de joelhos bebendo água e bicabornato de sódio.
Raros eram os ingleses que lhe falaram que o tivessem compreendido e mais
raros ainda os que gostavam dele. O seu embaraço perante aquele
homenzinho era compreensível.
Naquele dia de Ano Novo de 1947, a ameaça de uma partilha das Índias
afligia igualmente Gandhi. Todas as fibras do seu ser se revoltavam
contra a divisão do seu amado país que exigiam os chefes muçulmanos da
Índia e que muitos ingleses estavam prontos a aceitar. Os diferentes
povos indianos e as suas crenças estavam tão intrincadamente misturados
aos seus olhos como os fios entrelaçados de um tapete oriental. Ele
estava ferozmente convencido de que a Índia não podia ser dividida sem
que fosse destruída a essência da sua realidade, tal como um tapete não
pode ser rasgado sem que se quebre a harmonia do seu desenho.
Era para procurar novas razões de crer, para achar forma de curar a
doença, de impedir que ela contaminasse e fizesse naufragar a Índia
inteira, que ele viera à aldeia devastada de Srirampur. Durante vários
dias, percorrera o povoado, falando com os habitantes, orando e meditando
à escuta da sua «voz interior» que tantas vezes o iluminara em tempos de
crise.
«Não ouças o mal, não vejas o mal, não digas mal.» No seu saco de algodão
meteu os livros que exprimiam o eclectismo deste original mensageiro da
reconciliação: a Bhagavad Gitâ hindu, o Alcorão, as Práticas e Preceitos
de Jesus, e uma selecção de pensamentos judaicos.
«Se eles não respondem à chamada, cantarolava ele, vai sozinho, vai
sozinho.»
A religião de Maomé chegara muito mais tarde, depois das hordas de Gengis
Khan e de Tamertão terem forçado a passagem de Khyber para cairem sobre a
extensa planície indogangética hindu. Durante dois séculos os imperadores
mogois muçulmanos tinham imposto o seu domínio despótico e implacável
sobre uma grande parte da península, espalhando a mensagem de Alá, único
e misericordioso.
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Os muçulmanos reúnem-se para uma oração comum todas as semanas,
prostrando-se juntos na direcção de Meca e psalmodiando em coro os
versículos do Alcorão. O hindu reza sozinho, escolhendo o seu deus
pessoal, emanação do Deus único, num panteão espantoso de três milhões de
divindades. A sua religião é uma selva tão complexa que apenas alguns
homens santos que consagraram a vida ao seu estudo conseguem compreendê-
la. O princípio básico, até onde é possível simplificar, explica o
mistério da vida pela acção de uma trindade de deuses, Brahma, o criador
Siva, o destruidor, e Vishnu, o conservador, expressões de forças
cósmicas que se manifestam no mundo e garantem o seu equilíbrio e uma
criação contínua. Depois vêm todas as outras divindades, os deuses e
deusas das estações, do clima, das colheitas e das doenças humanas, como
Mariamma, deusa da varíola, venerada com uma festa anual, muito
semelhante à Páscoa judaica.
Contudo, o que mais separava os hindus dos muçulmanos não era de ordem
metafísica, mas social. A grande barreira era o sistema hindu das castas.
Segundo as escrituras védicas, a sua origem remonta a Brahama, o Criador.
Os Brahamanes, a casta mais elevada, tinham saído da sua boca; os
Kshatriyas, os guerreiros, dos biceps; os Vaiçyas, os comerciantes, das
ancas; os Çudras, os artífices, dos pés. No ponto mais baixo encontravam-
se os sem-casta, a quem chamavam os Intocáveis e que, esses, teriam
nascido da terra. Esta segregação era todavia muito menos divina do que
sugeriam os Vedas. Fora utilizada pelas classes dominantes arianizadas
para permitir a continuação da escravatura das populações aborígenes de
pele negra que habitavam a península. Aliás, diz-se que o termo sânscrito
varna, que significa casta, significa também: cor. A pele negra dos
párias da Índia indicaria ainda de forma concreta as verdadeiras origens
do sistema.
30
Da mesma forma que a Igreja cristã exortava os servos da Idade Média a
suportarem a sua sorte fazendo-lhes entrever as recompensas da vida
eterna, assim o hinduísmo encorajou os miseráveis da Índia a aceitarem a
deles com resignação; esta constituía o meio mais seguro de ter um
destino melhor na próxima encarnação.
A veneração pela vaca remonta aos tempos bíblicos, quando o destino das
tribos arianas a caminho do sub-continente dependia da vitalidade dos
seus membros. Como os rabis da antiga Judeia tinham proibido aos judeus o
uso da carne de porco para evitar os males da triquinose, os sábios da
antiga Índia tinham sagrado a vaca para evitar que fossem abatidos os
rebanhos de que dependia a sobrevivência dos seus povos.
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O acontecimento que iria servir de catalizador ao ódio entre muçulmanos e
hindus deu-se em 16 de Agosto de 1946, cinco meses antes da partida de
Gandhi para a sua peregrinação de penitência. O seu teatro foi a segunda
cidade do Império britânico a seguir a Londres, uma metrópole cuja
reputação de violência e selvageria não tinha rival, Calcutá. A longa
tradição criminosa desta cidade enriquecera os dicionários da língua
inglesa com a palavra «thug» — o estrangulador, nome de uma seita cujos
membros roubavam as suas vítimas depois de as estrangularem com um lenço
onde estavam cosidas nos quatro cantos medalhas com a efígie de Kali, a
deusa hindu da destruição. O inferno — dizia-se, era ter nascido
Intocável nos bairros da lata de Calcutá. Ali se acumulava a maior
concentração mundial de miseráveis, muçulmanos e hindus numa mistura
desordenada.
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<Página em branco>
Capítulo terceiro
OS CAMINHOS DA LIBERDADE
O jovem almirante nunca estava naquela sala que não se lembrasse de outro
primo, o seu amigo mais antigo, o que fora seu padrinho em Westminster no
dia do seu casamento, o homem que devia ter sido rei de Inglaterra,
David, o príncipe de Gales, mais tarde duque de Windsor. Ligavam-nos
laços de amizade desde a mais tenra infância. Quando em 1936 David, então
rei Eduardo VIII, decidira abdicar porque não queria reinar sem ter a seu
lado a mulher que amava, «Dickie» Mountbatten testemunhara-lhe sem
descanso a sua fiel amizade.
37
A Índia, anotara nessa noite o jovem Mountbatten no seu diário, «é aquele
país de que ouvimos sempre falar e com que sempre sonhámos». Durante a
visita real nada poderia desiludi-lo. O Império estava então no zénite.
Nenhuma recepção parecia bastante sumptuosa, nenhuma manifestação
bastante grandiosa para festejar a visita do herdeiro do trono imperial,
o «Shahza-da Sahib», e do seu séquito. Fizeram a viagem no comboio branco
e dourado do vice-rei e a sua estadia foi uma sequência ininterrupta de
desfiles, de partidas de polo, de caçadas ao tigre, de passeios ao luar a
dorso de elefante, de bailes, de banquetes e recepções de uma elegância
sem rival, oferecidos pelos aliados mais seguros da coroa, os marajás e
nawabs das Índias. A despedida, Mountbatten anotara ainda: «A Índia é o
país mais maravilhoso do mundo e o vice-rei tem o lugar mais maravilhoso
do mundo. » Jorge VI confirmava-lhe que este «maravilhoso lugar» lhe
pertencia.
Jorge VI morreria efectivamente sem ter pisado esse país fabuloso, jóia
do império que herdara do irmão. Para ele não haveria nem caçada ao
tigre, nem desfiles de elefantes constelados de ouro e de prata, nem
cortejos de príncipes cobertos de jóias, vindos para lhe prestar
homenagem. Ele apenas recolhera as migalhas da mesa da rainha Vitória. O
seu reinado, que parecia não ter sido previsto pela história da
Inglaterra, ia registar uma das épocas mais trágicas dessa história.
Nessa manhã de Maio de 1937, quando o arcebispo de Cantuária tinha, pela
graça de Deus, proclamado Jorge VI rei da Grã-Bretanha, da Irlanda e dos
Domínios situados além-mar, protector da fé e imperador das Índias, vinte
e oito dos noventa milhões de quilómetros quadrados das terras do globo
estavam ligadas de uma forma ou de outra à sua coroa. O único facto deste
reinado ia ser a dispersão da herança. Coroado rei-imperador de um
império que ultrapassava as mais extravagantes conquistas de Alexandre o
Grande, de Roma, de Gengis Khan, dos califas e de Napoleão, Jorge VI
acabaria soberano de um reino insular a ponto de se tornar uma nação
europeia como as outras.
- Sei que vou ser obrigado a retirar o «I» das minhas iniciais de Rex
Imperator, mas ficaria muito preocupado se tivesse de quebrar todos os
laços com as Índias.
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As origens da sua família remontavam ao século IV, e tinha como
antepassado directo o imperador Carlos Magno. Estava, ou estivera ligado
por laços de sangue ou por alianças ao kaiser Guilherme II, ao czar
Nicolau II, ao rei Afonso XIII de Espanha, a Fernando I da Roménia, a
Gustavo VI da Suécia, a Constantino I da Grécia, ao rei Haakon VII da
Noruega e a Alexandre I da Jugoslávia. Para Luís Mountbatten, as crises
da Europa eram questões de família.
Não havia muitos tronos vagos em 1900. O quarto filho da neta preferida
da rainha Vitória, a princesa Vitória de Hesse, e do seu primo, o
príncipe Luís de Battenberg, não devia saborear o prazer da vida real
senão por meio de intermediários. Passou os Verões da sua infância nos
castelos dos seus primos mais favorecidos, guardando dessas férias
idílicas, fortes recordações: os chás tomados nos canteiros do castelo de
Windsor, onde quase todos os convivas eram cabeças coroadas; cruzeiros no
iate do czar; longos passeios nas florestas vizinhas de São Petersburgo
em companhia do primo, o czar Alexis e a irmã deste, a grã-duquesa Maria,
por quem se apaixonara loucamente.
Muitos dos seus subordinados tinham mais vinte anos do que ele e eram de
gradução superior. Alguns consideravam-no um play-boy que conseguira,
graças às suas relações com reis, trocar o smoking pela farda de
almirante.
Consagrou toda a sua energia a reanimar o moral das suas tropas, visitou
regularmente todas as frentes, obrigou os seus generais a continuarem a
combater sob o dilúvio da monção birmanesa, arrancou quilo por quilo aos
seus superiores de Londres e de Washington, o reabastecimento
indispensável aos soldados. O resultado não se fez esperar: em 1945,
aquele exército havia pouco desencorajado e desorganizado ganharia a
maior vitória terrestre jamais conseguida sobre um exército nipónico.
40
Só a explosão da bomba atómica impediu o seu chefe de realizar o seu
grande projecto, «a operação Zipper», que visava a reconquista da Malásia
e de Singapura por meio de uma audaciosa operação anfíbia cuja amplitude
só seria ultrapassada pelo desembarque da Normandia.
43
Primeira escala do calvário de Gandhi «Como utilizar a luz do Sol»
44
Vou ensiná-los a empregar melhor a terra de que são feitos os vossos
corpos; como beber a força da vida no infinito do céu acima das vossas
cabeças; como reforçar a vossa energia vital respirando o ar que vos
rodeia; como utilizar judiciosamente a luz do Sol.»
Todas as noites, fazia uma reunião pública de oração para que convidava
também os muçulmanos, tendo sempre o cuidado de completar a recitação do
Gitâ com alguns versículos do Alcorão. Durante estas reuniões, qualquer
pessoa o podia interrogar sobre qualquer assunto. Um aldeão fez-lhe notar
uma noite que em vez de perder tempo em Noakhali, era melhor voltar a
Nova Delhi para negociar com Jinnah e a Liga muçulmana.
«Um chefe, explicou Gandhi, é apenas o reflexo do povo que ele dirige.
Ora o povo tem primeiro necessidade de ser guiado para fazer as pazes
consigo próprio.» Depois acrescentou: «O desejo do povo de viver em
entendimento fraterno há-de reflectir-se depois fatalmente nos actos dos
seus chefes.»
45
Quando chegava à etapa seguinte, os pés nus do velho Mahatma estavam com
frequência completamente em ferida. Antes de iniciar a sua missão, Gandhi
mergulhava-os numa bacia de água quente, e depois abandonava-se ao único
prazer da sua vida dolorosa. Deixava Manu, a sua fiel e encantadora neta,
aliviar-lhe as dores massajando-os com uma pedra.
Durante trinta anos, estes pés martirizados tinham levado Gandhi aos
cantos mais longínquos da Índia, até milhares de aldeias semelhantes às
que ele visitava hoje, às sórdidas colónias de leprosos, às mais
desgraçadas cidades da lata, aos salões dos palácios imperiais e às celas
das prisões, para conseguir o objectivo da sua vida, a libertação da
Índia.
Porque é um comilão
Segundo o costume indiano da época, Gandhi casou aos treze anos com uma
rapariguinha completamente analfabeta chamada Kasturbai. Aquele que mais
tarde daria ao mundo um exemplo de pureza ascética descobriu com espanto
os prazeres da carne.
46
Quatro anos mais tarde, Gandhi e a esposa entregavam-se a esse prazer,
quando foram interrompidos por uma forte pancada na porta. Era um criado
anunciando ao jovem que o pai acabava de morrer. Ganhdi ficou
horrorizado. Adorava o pai. Momentos antes, estivera junto do doente,
tentando aliviar-lhe as dores massajando-lhe as pernas. Mas um forte
desejo sexual afastara-o do leito do moribundo para ir acordar a mulher,
que estava grávida. A partir de então, um invencível complexo de culpa
começou a adormecer nele as paixões da carne.
O seu regresso não teve nada de triunfal. Durante um mês, errou pelos
tribunais de Bombaim em busca de uma causa para defender. O homem cuja
voz levantaria um dia um povo, revelava-se incapaz de articular as poucas
frases susceptíveis de impressionar um magistrado.
O verdadeiro contacto de Gandhi com este novo país deu-se durante uma
viagem em caminho de ferro de Durban a Pretória. No fim da vida, Gandhi
ainda considerava esta viagem como «a experiência mais decisiva da sua
existência». A meio caminho de Pretória, um branco irrompeu no
compartimento de I classe e mandou-o para a carruagem das mercadorias.
Gandhi, que comprara um bilhete de I classe, recusou-se a obedecer. Na
paragem seguinte, o branco chamou um polícia e Gandhi foi expulso do
comboio em plena noite. Sozinho, tiritando de frio porque não se atrevera
a reclamar as malas que despachara, Gandhi passou uma noite de profundo
desalento. Era o seu primeiro confronto com a injustiça racial. Como um
cavaleiro da Idade Média na sua velada de armas, implorou ao deus do Gitâ
que lhe desse coragem e o iluminasse. Quando rompeu o dia na pequena
estação de Maritzburgo, o jovem tímido e desajeitado tomara a decisão
mais importante da sua vida. A partir de agora, Mohands Gandhi diria
«não».
Uma semana mais tarde, fazia o seu primeiro discurso público aos indianos
de Pretória. O advogado inexperiente que demonstrara uma timidez doentia
nos tribunais de Bombaim soltara de repente a língua. Exortou os seus
irmãos a unirem-se para defender os seus interesses, e antes de mais
nada, a aprenderem a fazê-lo na língua inglesa dos seus opressores. Na
tarde seguinte, Gandhi começava sem dar por isso, a cruzada que ia no
futuro libertar quatrocentos milhões de indianos, ensinando a gramática
inglesa a um lojista, um barbeiro e um funcionário. E dentro de pouco
tempo, ganhou a sua primeira vitória. Conseguiu arrancar às autoridades
dos Caminhos de ferro o direito de os indianos decentemente vestidos
viajarem em I ou II classe nos comboios sul-africanos.
Dez anos após a sua chegada, outra viagem por caminho de ferro provocou a
segunda mudança da sua vida. Quando subia para o comboio de
Johannesburgo-Durban, numa noite de 1904, um amigo inglês ofereceu-lhe um
livro do filósofo John Ruskin, intitulado Unto This Last.
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Gandhi leu a obra numa noite. Foi a sua revelação na estrada de Damasco.
Antes de chegar ao seu destino no dia seguinte de manhã, tinha feito a
promessa de renunciar a todos os bens terrenos e viver de acordo com o
ideal de Ruskin. A riqueza era apenas uma arma para propagar a
escravatura, escrevia o filósofo. Um camponês era tão útil à sociedade
com a sua pá, como um advogado com os seus dotes oratórios, e a vida
daquele que lavrava a terra era a única que valia a pena ser vivida.
A decisão de Gandhi era tanto mais notável, porquanto ele era, naquela
altura da vida, um homem extraordinariamente próspero, que ganhava mais
de cinco mil libras esterlinas por ano, quantia fabulosa para a África do
Sul da época. Havia dois anos contudo que sentia a dúvida lavrar-lhe no
íntimo. Estava obcecado pela moral de renúncia pregada pelo Bhagavad Gítâ
como condição de todo o acordar espiritual. Ele já tinha enveredado por
esse caminho. Cortava o cabelo a si próprio, lavava a sua roupa e fazia
os despejos. Ajudara até a mulher no seu último parto. Os escritos de
Ruskin concordavam com ele nesta atitude.
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Foi a lutar pelos seus irmãos da África do Sul que Gandhi elaborou as
duas doutrinas que o iam tornar mundialmente célebre — a não-violência e
a desobediência civil. Curiosamente, foi um texto dos Evangelhos que o
levou a meditar sobre a não-violência.- Ficara impressionado com o
conselho de Cristo aos discípulos para estenderem a outra face aos
agressores. Já aplicara muitas vezes espontaneamente esta regra
suportando com estoicismo as humilhações e golpes dos brancos. A pena de
Talião — «olho por olho, dente por dente» — não podia conduzir senão a um
mundo de cegos, achava ele, e não se mudam as convicções de um homem
cortando-lhe a cabeça, assim como não se enche de amor um coração,
trespassando-o com uma bala. A violência atrai a violência. Gandhi queria
transformar os homens com o exemplo do bem, e reconciliá-los pela vontade
de Deus em vez de os dividir pelos seus antagonismos.
Na sua cela, Gandhi ia descobrir a segunda obra profana que devia exercer
no seu pensamento uma influência profunda, o ensaio do escritor americano
Henry Thoreau acerca do Dever de Desobediência Civil (Nota 1). Thoreau
revoltava-se contra a complacência do seu governo em relação à
escravatura e contra a guerra injusta que ele fazia no México. Afirmava
que um indivíduo tem o direito de não cumprir as leis arbitrárias e
recusar obedecer a um regime cuja tirania se tornou insuportável.
O filho pródigo que regressava à terra natal já não tinha nada de comum
com o jovem advogado tímido que desembarcara vinte e um anos antes na
Africa do Sul. Nesta terra inóspida descobrira os seus três mestres:
Ruskin, Thoreau e Tolstoi, um inglês, um americano e um russo. Os seus
ensinamentos e as duras experiências vividas entre os seus compatriotas
tinham-lhe permitido elaborar as duas doutrinas — não-violência e
desobediência civil — graças às quais iria durar os trinta anos
seguintes, humilhar o mais poderoso império do mundo.
52
Convencido de que tinha feito «um bom trabalho», o general Dyer retirou-
se (Nota 1).
Gandhi deu o exemplo dedicando ele próprio com a maior regularidade meia
hora por dia à fiação e obrigando os discípulos a fazerem o mesmo. A
sessão diária de dobadoura tomou o aspecto de uma verdadeira cerimónia
religiosa, tornando-se o tempo gasto a fiar num interlúdio de oração e
meditação. O Mahatma psalmodiava o nome de Deus, «Rama, Rama, Rama», ao
ritmo do estalar da roda.
Gandhi foi libertado por questões de saúde antes do termo da sua pena e
recomeçou imediatamente as suas peregrinações através da Índia,
inoculando nas multidões os seus princípios de não-violência a fim de
impedir a repetição dos acontecimentos sangrentos que o tinham forçado a
interromper a sua acção.
56
Em toda a parte acenderam-se milhares de fogueiras para queimarem, numa
espécie de arraial, todos os produtos importados de Inglaterra.
Durante cerca de cinquenta anos desde que, jovem oficial de cavalaria que
abraçara a carreira do jornalismo e da política, se tinha juntado às
fileiras desta assembleia, a sua voz encarnar ali o sonho imperial, como
acontecera, durante a Segunda Guerra mundial, a consciência da Inglaterra
e o catalizador da sua coragem. Político de rara visão, mas inflexível
nas suas convicções, Churchill dedicava ao Império uma afeição
apaixonada.
57
E de todos os vastos e pitorescos territórios que o compunham, nenhum
ocupava no seu coração lugar comparável ao das Índias. Churchill amava as
Índias com todas as fibras do seu ser. Tinha prestado serviço ainda muito
jovem, como oficial do 4.° regimento de Hussardos da rainha, e vivera
todas as aventuras das personagens de Kipling. Jogara o polo nos relvados
das suas maidan, perseguira os javalis à lança e caçara o tigre. Escalara
as vertentes da passagem de Khyber e galopara contra os patans da
fronteira de noroeste. Um gesto simbolizava a solidez dos laços que o
ligavam àquele país: cinquenta anos após a sua partida, ainda mandava
todos os meses duas libras esterlinas a um antigo criado de Bangalore.
1948».
59
Radiante de alegria como um avô que encontra os netos preferidos, Gandhi
precipitou-se para o grupo. Mas o cheikh levantou-se imediatamente e com
um gesto brusco e zangado, mandou as crianças entrarem para a sua cabana,
como se aquele velho fosse um feiticeiro que lhes viesse lançar mau
olhado. Cheio de espanto, Gandhi ficou em frente da cabana, fazendo
tristes sinais com a mão às crianças que distinguia na penumbra,
recebendo em troca os seus olhares sombrios cheios de curiosidade. Depois
levou a mão ao coração para os saudar com um «saiam» à maneira muçulmana.
Nenhuma das crianças lhe correspondeu. Nem mesmo aqueles inocentes tinham
o direito de aceitar a sua mensagem de fraternidade. Com um doloroso
suspiro, Gandhi deu meia volta e retomou o seu caminho.
Este apelo não teve o mais pequeno eco em Nova Delhi. As negociações
desenrolaram-se durante três semanas, constando de oito entrevistas, e
terminaram por um acordo conhecido pelo nome de «Gandhi-Irwin Pact». Este
pacto, semelhante em todos os pontos a um tratado entre duas potências
soberanas, dava a medida da vitória alcançada por Gandhi. O vice-rei
aceitava libertar os milhares de indianos que tinham acampanhado o seu
chefe na prisão (Nota 1). Gandhi concordava por seu turno em suspender a
campanha de desobediência e a tomar parte numa mesa redonda em Londres, a
fim de discutir o futuro das Índias.
— Não lhes falta cinismo, gentlemen — berrou ele — vão enforcar-me e dão-
me os parabéns!
Gurcharan Singh foi liberto algumas semanas mais tarde. A primeira coisa
que fez foi uma peregrinação ao asbram de Gandhi. O ardente
revolucionário ficou fascinado com o Mahatma. Jurou seguir-lhe os passos
e tornou-se adepto.
61
Oito meses depois, em Outubro de 1931, com espanto de toda a Inglaterra,
o Mahatma Gandhi, usando sempre um pano de algodão e sandálias — retrato
vivo do Gunga Din de Kiling que «não usava quase nada pela frente e ainda
menos por trás» —, dirigia-se ao palácio de Buckingham para tomar chá com
o rei-imperador. Interrogado sobre a razão da sua vestimenta, Gandhi
respondeu com malícia que «Sua Majestade tinha fatos por nós dois».
Saíra do navio vestido apenas com o seu pano, amparado ao bambu, sem
oficial às ordens, sem criados, sem guardas. Apenas alguns discípulos e
uma cabra desceram a ponte atrás dele, uma cabra que fornecia ao Mahatma
a sua tijela de leite diária. Desprezando os hotéis, instalou-se num
bairro pobre de East End. Aquele que fora, naquela mesma cidade, um
estudante incapaz de articular três palavras revelava agora uma
eloquência inesgotável. Falou com mineiros, com crianças, conheceu
Bernard Shaw, o arcebispo da Cantuária, Charlie Chaplin, os operários das
fábricas têxteis de Lancashire que os seus companheiros na Índia tinham
reduzido ao desemprego: em resumo, toda a gente, excepto Winston
Churchill que se recusou obstinadamente a recebê-lo, da não-violência. A
ironia do destino quis que fosse ele quem recolheu nos braços, à hora da
morte, aquele que lhe salvara a vida.
62
O mundo está farto de ver correr sangue. Procura sair desse pesadelo e
agrada-me crer que será talvez privilégio da velha terra indiana apontar
uma saída ao mundo sequioso de paz». Mas por enquanto, o Ocidente ainda
não estava maduro. Em vésperas de nova guerra mundial, uma cabra parecia-
lhe uma arma menos eficaz do que uma metralhadora. Todavia, quando tornou
a partir, no trajecto do caminho de ferro que o levava ao porto de
Brindes, milhares de franceses, de suíços e de italianos acorreram na
esperança de verem a sua frágil silhueta à janela da carruagem de III
classe.
Em Paris, uma multidão tão compacta invadira a gare do Norte, que Gandhi
teve de subir para um vagão de bagagens a fim de discursar. Na Suíça,
onde foi recebido pelo seu amigo Romain Rolland, o sindicato dos
leiteiros de Lérrian reivindicou a honra de alimentar o «rei das Índias».
Em Roma, avisou Mussolini de que o fascismo «cairia como um castelo de
cartas» e chorou perante o Cristo na cruz da capela Sistina.
63
A persistência da selvageria dos nazis perante a entrada resignada,
alguns anos mais tarde, de seis milhões de judeus nas câmaras de gaz
desmentiria cruelmente as utópicas esperanças de Gandhi.
Quando finalmente a guerra estalou de facto, Gandhi orou para que pelo
menos pudesse surgir do holocausto, como um romper de Sol, alguma atitude
heróica, o sacrifício não violento que iluminasse o caminho da humanidade
e lhe permitisse escapar à garra inexorável da autodestruição. Enquanto
Churchill galvanizava os seus compatriotas prometendo-lhes «sangue, suor
e lágrimas», Gandhi, esperando que os ingleses fossem um povo bastante
corajoso para pôr as suas teorias pessoais à prova, propôs-lhes outro
processo: «Convidem Hitler e Mussolini a conquistarem os países que
quiserem entre aqueles a que vocês chamam as vossas possessões, escreveu-
lhes ele após o maior dos bombardeamentos alemães sobre Londres. Deixem-
nos apoderar-se da vossa bela ilha com os seus numerosos e magníficos
monumentos. Abandonem-lhes tudo isso, mas não lhes entreguem o vosso
espírito nem a vossa alma.»
Foi Churchil quem os reconciliou. Fiel à sua política, o velho leão não
tencionava satisfazer os compromissos que os nacionalistas indianos
reclamavam como preço da sua participação na guerra. No decurso do seu
primeiro encontro com Franklin Roosevelt para lançar as bases da carta do
Atlântico, tinha feito claramente saber que as generosas disposições
previstas para o tratado não podiam em caso nenhum referir-se às Índias.
O seu partenaire americano ficou espantado com tanta intransigência. Uma
nova fórmula lapidar de Churchill ia espalhar-nos nos conselhos aliados:
«Não me tornei Primeiro ministro de Sua Majestade para presidir à
dissolução do Império britânico.»
Gandhi rejeitou este presente envenenado, considerando que ele tinha como
único objectivo conseguir a colaboração imediata da Índia na defesa do
seu solo pela violência. E isto era a última coisa que ele estava
disposto a consentir.
64
Se era preciso resistir aos japoneses, Gandhi achava que a única arma a
empregar era a não-violência. O Mahatma acalentava um sonho secreto.
Resignara-se a ver correr rios de sangue, contando que fosse por uma
causa justa. Imaginava fileiras de indianos disciplinados e não violentos
avançando para as baionetas dos japoneses para morrerem uns após outros
até ao momento crítico em que a enormidade deste sacrifício vencesse os
inimigos, desarmando-os, provando ao mesmo tempo a eficácia da não-
violência, e mudando o curso da história da humanidade.
Não foi a liberdade mas nova prisão o que Gandhi ganhou antes da
alvorada. Numa operação cuidadosamente preparada, os ingleses prenderam
Gandhi e todos os responsáveis do Congresso, resolvidos a deixarem-nos na
prisão até ao fim da guerra. Uma curta explosão de violência seguiu-se a
esta medida. Mas, em menos de três semanas, os ingleses estavam outra vez
senhores da situação.
Gandhi também não queria morrer numa Índia britânica. Refugiado numa
vivenda de um dos seus partidários ricos, recobrava a pouco e pouco a
saúde. Às cartas urgentes do vice-rei avisando Churchill do agravamento
da fome na Índia, o Primeiro-ministro respondeu apenas com um telegrama
lacónico: «Porque razão Gandhi ainda não morreu?»
— Ah, Bapu (Pai), respondeu o dono da casa, veja como procedem os seus
companheiros: um está de cabeça para baixo, o outro fala com o além, o
terceiro dorme, e vós, o seu chefe, estais sentado no trono a fazer as
necessidades.
66
Julgais que é com soldados destes que podemos libertar as Índias?
67
O York MW 102 deslizou sobre a pista, e descolou rumo a leste em direcção
das Índias. O último acto da grande aventura que o comandante Hawkins
começara, três séculos e meio antes, navegando para o Oriente no seu
galião Hector, ia ser representado.
Capítulo quarto
Nada nem ninguém o conseguia fazer parar. Impulsionado pela sua energia
infatigável, o velho dos pés doridos ia de aldeia em aldeia para aplicar
o seu bálsamo de amor nas chagas da Índia. E essas chagas cicatrizavam a
pouco e pouco. No resto da silhueta patética, as paixões acalmavam-se.
Essa crise não tinha qualquer relação coma sua luta política. Também não
estava ligada com o caudal de horrores que o haviam levado a Noakhali,
nem com a tragédia que ameaçava dividir o país em dois no momento em que
este saía do jugo imperialista. Dizendo respeito só a ele próprio, nem
por isso deixaria de ter influência na história de toda a Índia. Um povo
inteiro arriscava-se a ver perdida a sua confiança na Grande Alma que o
tinha conduzido nos caminhos da liberdade. O drama de Gandhi tinha a sua
origem na luta que ele travava havia quarenta anos para dominar e
sublimar a sua sexualidade. Veio à luz com a presença de uma rapariguinha
de dezanove anos, sua sobrinha neta Manu. Órfã desde a mais tenra idade,
Manu fora educada em casa de Gandhi. Ele tinha-a mandado ir à prisão para
tratar a esposa moribunda; ao expirar, Kasturbai confiara a pequena ao
marido. Depois disso, Manu nunca mais se separou de Gandhi, que se
considerava ao mesmo tempo como «sua mãe» e guia espiritual. Era ele quem
dirigia todos os actos da sua vida, desde a maneira de vestir e do regime
alimentar até à sua educação e formação religiosa.
Gandhi viu na confissão de Manu um sinal de que a sobrinha neta podia ser
o soldado perfeito para a sua luta. «Se, entre milhões de raparigas da
Índia, conseguir formar uma que seja perfeita, declarou-lhe ele, terei
prestado um serviço único às mulheres.» mas queria primeiro pô-la à
prova. Só os discípulos mais chegados o poderiam acompanhar a Noakhali,
anunciou-lhe; ela poderia ir também, com a condição de aceitar todas as
experiências a que ele a quisesse submeter.
E antes de mais, iam compartilhar o rude colchão que lhe servia de cama.
Se fossem ambos sinceros, ele no seu juramento de castidade, ela na sua
declaração de pureza, poderiam dormir juntos com a mesma inocência de mãe
e filha. Se não fossem sinceros, descobri-lo-iam imediatamente.
A jovem concordou. A partir daí, a sua grácil e suave presença nunca mais
abandonou o velho Mahatma.
Para guia dos que adoptassem esta ética, os sábios tinham elaborado um
código de nove regras. Um verdadeiro brahmachari não devia viver entre
mulheres, nem animais, nem eunucos. Não tinha o direito de se sentar numa
esteira em companhia de uma mulher, nem de pousar os olhos em qualquer
parte do corpo feminino.
70
Era-lhe recomendado que evitasse as doçuras sensuais de um banho quente
ou de uma massagem com óleo, e se defendesse dos perigos afrodisíacos
atribuídos ao leite, ao iogurte, ao ghi (Nota 1) e aos alimentos ricos em
gordura.
As razões que tinham levado Gandhi a fazer voto de castidade não eram
todas de origem mística. Assentavam também na convicção de que só o
domínio dos sentidos lhe daria força para cumprir a missão terrena de que
se sentia investido. Nada era negado àqueles que se libertavam dos seus
apetites. «Os órgãos sexuais dos verdadeiros brahmachari são apenas
símbolos, declarava ele, e as suas secreções sublimam-se numa energia
vital que invade todo o seu ser.» O perfeito brahmachari era aquele que
podia «dormir ao lado de uma Vénus em todo o esplendor da sua nudez sem
sentir a menor perturbação mental ou física».
- Não se trata disso, respondeu Wavell. Sabe que tenho uma grande
simpatia por si, mas a missão que lhe confiaram é impossível.
Experimentei tudo para tentar resolver este problema e não vejo a menor
parcela de esperança. O impasse é total.
73
Wavell evocou pacientemente os esforços que tinha desenvolvido para
resolver a crise. Depois levantou-se e foi abrir um cofre forte. No
interior encontravam-se dois objectos que legava ao seu sucessor. O
primeiro faiscava sobre o veludo escuro de uma pequena caixa de madeira.
Era a placa cravejada de diamantes de grande mestre da ordem da Estrela
das Índias, o emblema das suas novas funções que Mountbatten poria ao
pescoço dentro de quarenta e oito horas por ocasião da cerimónia da
entronização.
74
Colossal, majestosa, a morada do vice-rei das Índias era o último
monumento que o mundo teria construído para uso apenas de um homem. A
Índia das multidões famintas era o único país que podia ter edificado e
mantido, em pleno século XX, um palácio semelhante.
78
«Esperava, escreveu ela à tia do jovem noivo, que Edwina escolhesse
alguém destinado a um futuro mais brilhante.»
79
no cabo Samorim cujos recifes tinham visto passar os galeões de Isabel I;
em frente do forte Saint George de Madras onde o acto de compra da
primeira concessão territorial da Companhia das Índias estava gravada
numa placa de ouro; em Poona, em Peshawar e em Simla, em todos os pontos
da Índia onde havia uma guarnição, as tropas alinhadas em parada
apresentaram armas. Atiradores das forças da fronteira, lanceiros dos
regimentos de cavalaria, cipaios sikhs e drogas, jats e patans, madrassis
e mercenários gurkhas, todos suspenderam o fôlego enquanto os canhões
faziam ouvir as últimas salvas do Império e as fanfarras tocavam o God
Save The King.
Antes de fazer aceitar as suas vontades aos chefes políticos das Índias,
Luís Mountbatten considerou que devia começar por se impor a si próprio à
Índia. O último vice-rei talvez regressasse a Inglaterra «com o corpo
crivado de balas», mas antes que isso acontecesse, ele não seria como
nenhum dos seus antecessores. Estava fortemente convencido de que «era
impossível ocupar o trono das Índias sem dar um grande espectáculo».
80
Fora enviado a Nova Delhi para pôr termo ao domínio inglês, mas resolvera
transformar esse crepúsculo numa auréola de ouro e púrpura, e ressuscitar
num último fogo de artifício os faustos do império.
Foi com algumas pinceladas que Mountbatten começou a sua revolução. Com
indignação dos seus colaboradores, ordenou que as escuras madeiras
preciosas do seu gabinete, onde tantas negociações tinham falhado, fossem
imediatamente pintadas com uma camada brilhante de tinta verde. Esta
medida tinha por fim pôr os interlocutores na mais jovial das
disposições. Depois transtornou a rotina do palácio, transformando-o num
quartel-general quase militar, fervente de actividade. Todos os dias
começavam com uma conferência de trabalho, em breve chamada «a oração da
manhã».
81
Se passeava a cavalo, um esquadrão da sua guarda lançava-se atrás dele.
A esposa fez uma revolução ainda mais radical. Por consideração para com
as tradições alimentares dos seus convivas indianos, mandou preparar uma
comida que um século de hospitalidade imperial nunca tolerara, cozinha
indiana vegetariana. Providenciou para que os acepipes fossem servidos,
segundo o costume, em pratos individuais, e para que um criado com uma
bacia, um jarro e um guardanapo ficasse por detrás de cada convidado.
Agora, podia comer-se com as mãos à mesa do vice-rei e lavar as mãos nos
vasos rituais.
Vindo de um homem com o renome de Abell, este aviso não podia deixar de
alarmar o novo vice-rei. Não era todavia mais do que o prelúdio da
torrente de informações com que iria lutar nos dez primeiros dias da sua
missão nas Índias. Aquele que escolhera para director do seu gabinete, o
general Lord Ismay, antigo chefe do estado maior particular de Churchill
de 1940 a 1945, antigo oficial do Exército das Índias e secretário de um
vice-rei anterior, concluía a sua análise por estas palavras: «A Índia é
um navio que arde em pleno oceano, com os porões acumulados de munições».
A única questão era saber se poderia extinguir-se o incêndio antes dele
atingir as munições.
83
Houve uma zaragata, depois um motim. Duas horas mais tarde, cem pessoas
jaziam no campo, massacradas a golpe de foices e de sabres.
84
Capítulo quinto
85
Os dois homens já se conheciam. Tinham-se encontrado a seguir à guerra em
Singapura, onde o jovem almirante acabava de instalar o seu quartel
general de comandante supremo. Desprezando a recomendação dos
companheiros para que não tivesse quaisquer relações com um homem que
acabava de sair de uma prisão britânica, Mountbatten não hesitara em
receber o líder indiano.
Mas o jovem Nehru depressa teve consciência dos limites dessa «de-
sindianisação». Quando quis inscrever-se no clube britânico local, a sua
candidatura foi rejeitada. Embora tivesse feito os seus estudos em Harrow
e Cambridge, para os membros ultra burgueses, ultra brancos e ultra
britânicos do clube de Allahabad não deixava de ser um «black Indian».
Para Nehru, Gandhi era um génio. Embora se tivesse sempre oposto por
racionalismo às grandes iniciativas do Mahatma — a desobediência civil, a
Marcha do sal, a campanha de «Saiam da Índia» —, seguira-o sempre por
amizade e, conforme constatou mais tarde, tivera razão.
Gandhi fora, até certo ponto, o guru de Nehru. Fora ele quem o «rein-
dianisara», mandando-o às aldeias para conhecer o verdadeiro rosto da sua
pátria, a fim de permitir à sua alma embeber-se nos sofrimentos da Índia.
Quando os dois homens se encontravam, Nehru precipitava-se aos pés de
«Bapuji» para o ouvir, para conversar, ou simplesmente meditar. Eram para
ele sementes de intensa espiritualidade em que o seu coração de ateu
sentia o sopro da fé.
Mas tudo os separava, antes de mais nada a religião. Nehru odiava todas
as manifestações religiosas; a própria essência de Gandhi era a sua fé
inabalável em Deus. Nehru, cujo carácter agitado era a antítese da não--
violência, cultivava a literatura, a ciência, a técnica; Gandhi
considerava estas «feiticeiras» responsáveis por todas as desgraças da
humanidade.
Relações de pai e filho — com tudo o que tais laços implicam de tensão,
impulsos e inibições — estabeleceram-se entre eles. Durante toda a vida,
Nehru sentira a necessidade de se apoiar em alguém, de sentir junto de si
uma presença tranquilizadora a quem recorrer nos momentos de crise a que
o condenava a sua ardente personalidade. O pai, um jovial advogado com
bastante tendência para o bom whisky e para o vinho de Bordéus, ocupara
em princípio esse lugar. Semelhante papel pertencia agora a Gandhi.
88
Nehru, o pensador abstracto, admirava o dinamismo prático de Mountbatten
e aquela capacidade de decisão que lhe tinham merecido as suas altas
responsabilidades durante a guerra. Por seu turno, Mountbatten sentia-se
estimulado pela cultura de Nehru e a agudeza do seu pensamento. Iria
depressa compreender que o único político indiano capaz de compartilhar o
seu desejo de manter as relações entre a Inglaterra e a nova Índia era
Jawahrlal Nehru.
O vice-rei dava tal importância a este primeiro encontro com Gandhi, que
mesmo antes da cerimónia da entronização lhe escrevera uma carta
convidando-o a visitá-lo. Gandhi redigiu a resposta e depois, pensando
melhor, pediu ao secretário que «esperasse dois dias para a meter no
correio. Não quero que esse jovem pense que estou morto por aceder ao seu
convite.»
O «jovem» adornara este convite com uma dessas deferências muito suas que
faziam embuchar os velhos ingleses das Índias. Oferecera a Gandhi mandar-
lhe o seu avião particular ao Bihar para o trazer a Delhi. O Mahatma
declinou o oferecimento, preferindo viajar como de costume de comboio,
sentado no banco de madeira de uma carruagem de III classe.
Mountbatten viu-lhe então lágrimas a brilhar nos olhos. Era essa a razão
do seu desgosto. Não a perda do relógio mas o facto de eles não terem
compreendido. Não era um relógio de oito xelins que lhe tinham roubado
nessa carruagem à cunha, mas um pouco da fé nos seus irmãos. (Nota 1)
Após um grande silêncio, Gandhi começou a falar dos males que esmagavam a
Índia; Mountbatten interrompeu-o com um gesto amigável.
Nota 1 - Seis meses mais tarde, em Setembro de 1947, quando Gandhi vivia
em Nova Delhi em casa do industrial Birla, um desconhecido pediu para
falar com ele. Depois de negar identificar-se e dizer o motivo da visita
confessou ter roubado o relógio de Gandhi. Vinha devolvê-lo e pedir-lhe
perdão. «Perdoar-lhe? exclamou o secretário do Manahtman. Vai abraçá-lo!»
Levou o homem junto de Gandhi saltando de alegria como uma criança, ele
abraçou-o e chamou todos os presentes para lhes mostrar o relógio e
apresentar o filho pródigo que viera devolvê-lo.
91
Durante este primeiro encontro que se prolongou por duas horas, deu-se
uma cena banal e todavia extraordinária. O vice-rei ficou certo de que a
sua atitude tocara uma corda sensível do Mahatma.
Nova Delhi sufocava com o primeiro vento tórrido da estação quente quando
Gandhi foi visitar o vice-rei pela segunda vez. Abrasados de sol, os
renques de laranjeiras dos jardins mongóis pareciam soltar faíscas. O
único oásis confortável no meio deste inferno era o gabinete de Luís
Mountbatten. O requinte que o levara a mandar pintar aquela sala tinha-
lhe aconselhado a equipá-la com o melhor sistema de climatização da
capital, que mantinha uma temperatura de vinte graus.
— Senhor, indignou-se Edwina, vai fazer com que o nosso amigo apanhe uma
pneumonia!
92
A sua cortesia natural aliada ao sentido do dever faz com que Mountbatten
aceitasse uma colherada.
93
Mountbatten afirmou que a Partilha era a última solução que ele quereria
adoptar. Mas que outra possibilidade havia?
— O que o leva a crer que o seu próprio partido aceitaria essa sugestão?,
perguntou o almirante, inquieto.
— Se lhe for dizer que sou eu o autor deste plano, respondeu o Mahatma
com um sorriso malicioso, ele responde-lhe: «Ah, esse patife de Gandhi!»
Algumas horas mais tarde, um jornalista indiano teve ocasião de falar com
Gandhi no caminho para a sua oração pública. O Mahatma parecia «arder de
felicidade». Quando chegaram ao local da reunião, o velho voltou-se para
o jornalista, e com um sorriso de beatitude, murmurou: «Parece-me que fiz
mudar os ventos.»
94
Lá fora, com os olhos brilhantes, num misto de receio e curiosidade, os
filhos dos varredores da Bhangi Colony, o bairro da lata superlotado dos
Intocáveis que limpavam as ruas e as fossas de Nova Delhi, acotovelavam-
se às janelas para espreitar o Mahatma e os chefes do seu partido do
Congresso.
Gandhi convocara-os para este bairro infame empestado pelo cheiro dos
excrementos que subia dos canais abertos que faziam as vezes de esgotos.
Era ali, no meio de uma das populações mais miseráveis do mundo, entre
aqueles rostos patéticos cobertos de chagas, que ele resolvera viver
durante a sua estadia na capital. A luta pelos oprimidos da sociedade
hindu, aqueles Intocáveis a quem chamava os Harijan — Filhos de Deus —,
tivera sempre no seu coração um lugar igual à outra, a da libertação da
Índia.
95
Mais ainda, para condenar a intocabilidade de forma espectacular, não
hesitou em executar a tarefa considerada mais degradante para um hindu da
sua casta. Limpou à vista de todos a barrica de um Intocável.
Em 32, quase tinha dado a vida por eles, fazendo uma greve da fome com
vista a impedir uma greve da fome com vista a impedir uma reforma
institucionalizando a sua segregação do resto da sociedade indiana. Na
sua obstinação de só viajar nas carruagens de III classe por eles usadas,
de morar nos seus bairros da lata, queria comover toda a Índia pela
desgraça da sua condição (Nota 1).
96
As suas razões eram diferentes, mas todos sabiam que na luta pela
independência, só o seu génio podia reunir as multidões indianas sob uma
única bandeira. A luta comum impusera o silêncio às suas divergências.
Todavia, nessa noite, elas acabavam de ressurgir bruscamente com a
singular sugestão do seu velho chefe: pôr Jinnah e um governo muçulmano à
frente da Índia independente. Se eles se recusassem a apoiar o seu plano,
proclamava Gandhi, o novo vice-rei seria obrigado à Partilha. Durante a
sua longa marcha de penitente em Noakhali e depois no Bihar, pudera,
muito melhor do que os políticos de Delhi, analizar a amplitude da
tragédia que ameaçava provocar a partilha. Nas aldeolas e nos pântanos do
delta do Ganges, vira nascer e explodir o ódio racial e religioso. A
Partilha só podia agravar estas lutas em vez de as acalmar. Pedia aos
companheiros que aderissem à sua solução, a única possibilidade, no seu
parecer, de preservar a unidade da Índia.
A entrevista começou com uma gafe, que revelava de forma evidente que
nada era espontâneo naquele homem de setenta anos. Sabendo que seria
fotografado em companhia dos seus anfitriões, imaginara com antecedência
um galanteio para dirigir a Edwina Mountbatten. Contrariamente às suas
previsões, foi a ele e não a Edwina que o vice-rei convidou por cortesia
a ficar no meio. Jinnah teve pouca sorte! Tudo nele estava programado
como num horário. E não pôde deixar de dizer o seu galanteio. «Ah,
exclamou encantado, é uma rosa entre dois espinhos!»
97
Assim que entrou no gabinete, informou o vice-rei de que viera expor-lhe
a sua posição e aquilo que apenas estava disposto a aceitar. Tal como
tinha feito com Gandhi, o almirante interrompeu-o.
98
Adorava ostras e caviar, champanhe, conhaque e os bons vinhos de Bordéus.
De uma honestidade e integridade acima de toda a suspeita, a sua
filosofia resumia-se no respeito escrupuloso do direito e das fórmulas.
Era, segundo contou um dos seus íntimos, «o último dos vitorianos, um
parlamentar à maneira de Gladstone e de Disraeli».
99
Os livros de direito e os jornais constituíam a sua única leitura. De
facto, os jornais pareciam apaixonar esta personagem enigmática. Recebia-
os do mundo inteiro. Recortava artigos, anotava comentários à margem,
colava-os cuidadosamente em álbuns que se acumulavam nas prateleiras da
sua biblioteca.
100
Para o líder muçulmano, a Índia ultrapassara o estádio das transacções.
Só uma solução era possível, uma rápida «operação cirúrgica».
Para Jinnah, a divisão era a única via possível. Faltava ainda que ela
resultasse num Estado viável. Isso pressupunha, esclareceu, que duas
grandes províncias das Índias onde viviam importantes comunidades
muçulmanas, o Bangal e o Panjab, fizessem parte integrante do Paquistão
apesar das suas abundantes populações hindus. A argumentação de Jinnah
assentava num princípio: os muçulmanos das Índias não deviam ser
obrigados a viver sob a palmatória da maioria hindu. Era uma atitude
lógica. Mas como podia ele justificar o seu desejo de absorver num Estado
Muçulmano as minorias hindus do Panjab e do Bengal? Se a Índia devia ser
partilhada para excluir a minoria muçulmana da lei da maioria hindu, o
Panjab e o Bengal deviam ser cortados em dois por razões inversas mas
idênticas, declarou Mountbatten.
Pois bem, se Jinnah acha realmente que esse país corre o risco de ser
roído pelas traças», não tem mais do que recusá-lo, propôs Mountbatten
que de qualquer forma não queria conceder-lhe Paquistão nenhum.
- Ah! respondeu Jinnah. Vossa Excelência parece não compreender muito bem
o problema.
101
Um homem é panjabi ou bengali antes de ser hindu ou muçulmano.
Compartilha com os seus uma história, uma língua, uma cultura, uma
economia comuns. Não deve separá-los porque fará correr sangue
indefinidamente.
— Deveras?
102
A PARTILHA DO IMPÉRIO DAS ÍNDIAS EM DOIS ESTADOS: A ÍNDIA E O PAQUISTÃO
<Mapa: omitido>
No dia seguinte de manhã, depois de analisar a situação com os seus
colaboradores, o vice-rei voltou-se para o chefe de gabinete.
- Meu caro Ismay, disse ele com tristeza, chegou infelizmente a hora de
preparar um plano para a partilha das Índias.
104
Nas suas superfícies imensas tinham ecoado os galopes das hordas
conquistadoras da Ásia. A sua terra inspirara o canto celestial do livro
sagrado do hinduísmo, o Bhagavad Gitâ, narrando o diálogo místico entre o
deus Krishna e o rei-guerreiro Arjuna. As legiões persas de Dário e de
Ciro, os macedónios de Alexandre o Grande tinham acampado nas suas
planícies. Os mauras, os citas, os parsos tinham-nas ocupado antes de
serem expulsos pelas vagas dos hunos e pelos califas do Islão que traziam
a sua religião monoteísta ás populações politeístas hindus. Três séculos
de dominação mogol tinham depois levado o panjab ao seu apogeu e semeado
a sua terra com os monumentos indestrutíveis da Índia muçulmana.
105
Mais populoso do que a Grã-Bretanha e a Irlanda reunidas, Bengala contava
trinta e cinco milhões de hindus e trinta milhões de muçulmanos num
território que se estendia das selvas do Himalaia até aos pântanos do
delta do Ganges e do Brahmaputra. Apesar das duas comunidades religiosas
distintas, Bengal, mais ainda do que o Panjab, constituía uma unidade.
Quer fossem muçulmanos ou hindus, os bengalis tinham as mesmas origens
rácicas, falavam a mesma língua, compartilhavam da mesma cultura. Tinham
uma maneira típica de se sentarem no chão, de dizer as frases com um
crescendo final, e todos celebravam o Ano Novo no dia 15 de Abril. Os
seus poetas, como Rabindranath Tagore, os pensadores como Sri Aurobindo,
os filósofos Swami Vivekananda eram glorificados por todos.
Em 1905, Lord Curzon, um dos mais eminentes vice-reis das Índias, tentou
ratificar politicamente esta diferença dividindo oficialmente o Bengal em
duas regiões mais fácies de administrar. Seis anos mais tarde, a sua
tentativa resultou num fracasso, ficando demonstrado com uma sangrenta
revolução que entre os bengalis a paixão nacionalista era superior à
paixão religiosa.
107
Guardada num sobrescrito sem referência, esta chapa estava fechada no
cofre-forte do doutor Jal R. Patel, um médico de Bombaim. O seu cliente
era o homem glacial e inflexível que aniquilara todos os esforços de
Mountbatten para preservar a unidade das Índias. Mohammed Ali Jinnah, o
único obstáculo invencível desse objectivo, estava condenado à morte. Em
Junho de 1946, nove meses antes da chegada do novo vice-rei, o doutor
Patel diagnosticara a terrível doença cujo desfecho só podia ser fatal, e
a curto prazo. A tuberculose, essa maldição que matava todos os anos
milhões de indianos subalimentados, atacara o profeta do Paquistão, nessa
altura com setenta anos de idade.
Para Mountbatten, esta confrontação era uma prova delicada. Com quarenta
e seis anos, era o mais novo de todos. Desembarcara em Nova Delhi sem
nenhuma das qualificações habituais exigidas para o seu alto cargo, tais
como uma carreira parlamentar exemplar ou um brilhante passado de
administrador. Também não estava familiarizado com os problemas deste
país onde a maior parte dos governadores tinham passado a vida inteira,
embrenhando-se nele até ao interior, conhecendo os dialectos, tornando-se
como alguns, peritos mundialmente reputados da sua complicada história.
Estes homens orgulhosos do seu passado não podiam deixar de receber com
cepticismo os planos deste jovem neófito chegado de fresco.
Com o rosto tenso, os olhos pisados de fadiga, Sir Olaf Caroe, governador
da fronteira e guarda do desfiladeiro por onde se tinham introduzido,
durante trinta séculos, os conquistadores das Índias, tomou a palavra.
Não dormia há três dias devido à avalanche de telegramas anunciando novos
incidentes. Quase toda a carreira de Caroe decorrera naqueles confins do
Império. Nenhum etnólgo vivo podia pretender rivalizar com ele no
conhecimento dos belicosos patans, da sua língua e cultura. A sua
capital, Peshawar, mantinha ainda um dos bazares mais pitorescos da Ásia;
todas as semanas chegava de Cabul uma caravana de camelos carregada de
peles, açúcar, ópio, tapetes, baixela de prata, relógios, produtos de um
rendoso contrabando vindo do mundo inteiro, inclusivamente da U.R.S.S. As
grutas cavadas nas montanhas formavam um labirinto de oficinas secretas
de onde saíam armas reluzentes detinadas aos musudis, aos afridis, aos
wazirs, esses gurrreiros lendários das tribus patans.
110
As tribus patans instaladas no Afganistão só esperavam a oportunidade
irromperem pela passagem de Khyber sobre Peshawar e o vale do Indo à
conquista dos territórios que reivindicavam havia um século. «Se não
tomarmos medidas urgentes, declarou, vamos ter uma crise internacional às
costas».
O plano — cujo nome era inspirado pela fragmentação dos Balcans num
cardume de Estados após a guerra de 14-18 — dava a cada uma das onze
províncias indianas a escolha de se integrar quer no Paquistão, quer na
Índia; ou então, se a maioria dos habitantes hindus e muçulmanos o
resolvessem, de se tornar independente.
112
O líder local era um chefe tribal muçulmano chamado Abdul Ghaffar Khan,
um colosso barbudo que fazia lembrar um profeta do Velho Testamento.
Tinha consagrado a sua vida à pregação da mensagem de amor e não-
violência de Gandhi àqueles guerreiros para quem a vingança do sangue era
uma tradição sagrada. Alcunhado «o Gandhi da Fronteira», esta personagem
singular mantivera o apoio popular até ao dia em que, fiel ao Mahata, se
revoltara contra a pretensão do Jinnha de criar um Estado muçulmano.
Influenciada pelos agentes da liga muçulmana, a população tinha-se
finalmente revoltado contra Abdul Gaffar Khan e o governo provincial que
ele nomeara em Pahawar.
114
Outras conseguiram escapar aos raptores para se irem lançar nas chamas e
morrerem com as famílias. Impossível de dominar, o incêndio atingiu o
bairro muçulmano e acabou por fazer desaparecer Kahuta.
115
E esta luta nunca mais teria fim.
O drama de Gandhi era não ter outro caminho a propor aos companheiros
senão obedecerem ao seu instinto, aquele instinto que no passado os
guiara tantas vezes para a luz. Ora o velho profeta deixara de o ser aos
seus olhos. Com Mountbatten, todos sentiam que estava iminente uma
catástrofe e que a Partilha, por mais dolorosa que fosse, era a única
forma de lhe escapar.
Gandhi acreditava com todas as fibras do seu ser que eles estavam
enganados. E, de qualquer forma, na sua opinião era preferível o caos à
Partilha. Jinnah não conseguiria o seu Paquistão, a não ser que os
ingleses lho dessem, proclamava ele, e não lho darão se esbarrarem com a
oposição de uma maioria do Congresso. Digam aos ingleses para se irem
embora, sejam quais forem as consequências da sua partida, pediu ele.
Digam-lhes que abandonem a Índia «a Deus, ao caos, à anarquia, ao que
quiserem, mas que se vão embora». «Caminharemos sobre as chamas, mas
seremos purificados por elas».
Abandonado pelos seus, Gandhi ficou sozinho com o seu sonho desfeito.
116
Todos os esforços do vice-rei para preservar a integridade do continente
indiano tinham finalmente esbarrado perante a intransigência de Jinnah.
Mountbatten continuava a ignorar a existência do único elemento que teria
podido modificar a situação, a doença de que morreria o líder muçulmano.
Durante o resto da vida, consideraria a sua impotência em convencer
Jinnah como o único fracasso da sua carreira. A angústia que sofria à
ideia de ficar na História como o autor da partilha das Índias exprimia-
se num documento levado também por Ismay. Era o quinto relatório do
último vice-rei das Índias ao governo de Clement Attlee.
O outro polo da vida mundana era o holtel Cecil, cuja hospitalidade era
considerada uma das mais faustosas do mundo. Todas as noites às 20 h 15,
um criado de turbante percorria os corredores cobertos de grossas
alcatifas, tocando a sineta para o jantar, como nos paquetes da
Peninsular and Orient Oriental. Os homens casaca e as senhoras em traje
de noite desciam então para tomar lugar nas mesas cobertas de baixela de
Mappin Webb, loiça de Dalton e copos de cristal da Boémia sobre toalhas
de bordado irlandês. Em frente de cada talher perfilavam-se cinco copos —
para champanhe, whisky, vinho de Bordéus, Porto e água.
120
Até à Primeira Guerra mundial, o Mali era interdito aos indianos. Esta
segregação tinha um carácter simbólico. A migração anual até às alturas
de Simla representava muito mais do que um rito da estação. Levava
consigo a subtil confirmação da superioridade racial da Inglaterra, da
graça da Providência que permitia aos ingleses viverem fora dos
formigueiros humanos que pululavam a seus pés nas planícies áridas.
- Acabou-se!
Foi uma carta que informou no dia seguinte de manhã Luís Mountbatten da
reacção do líder indiano. O soberbo edifício que o vice-rei tinha
construído pacientemente durante as seis semanas anteriores abatia-se
como um castelo de cartas. O seu plano, escrevia-lhe Nehru, causava uma
tal impressão «de divisão, de possibilidade de conflitos e desordens» que
«não podia deixar de ser amargamente julgado e completamente desaprovado
pelo partido do Congresso».
123
A nova redacção devia eliminar os pontos sombrios que tinham provocado a
sua hostilidade. Só deveria deixar às onze províncias e aos Estados
principescos uma única possibilidade de escolha: a integração com a Índia
ou a integração com o Paquistão. O sonho de um Bengal independente
desvanecera-se.
Gandhi ergueu para ele um olhar desesperado. «Nem o povo nem os que estão
no poder precisam de mim, suspirou tristemente. O meu único desejo é
morrer entregue à minha tarefa, pronunciando o nome de Deus com o meu
último fôlego».
125
<14 páginas de fotografias: rainha Vitória, Índia imperial, Lord e Lady
Mountbatten, Gandhi, etc.: omitidas>
Victória Imperatriz das Índias
Império da História
» Começada por uma tímida aventura colonial, a conquista das Índias deu
origem ao último grande império romântico do mundo. Com o seu palácio
Vestindo o seu humilde dhoti, Gandhi veio várias vezes reclamar a Londres
a independência do seu país (em 1931, foto de cima). Suas campanhas de
desobediência civil, de boicote de produtos ingleses, de manifestações
silenciosas e as perturbações da Segunda Guerra Mundial, acabaram por
constranger a Inglaterra a dar-lhe satisfação. Em 2 de Junho de 1947 (ao
lado), Lord Mountbatten anunciava aos principais líderes indianos a
partida da Inglaterra e a partilha das Índias em dois Estados: o
Paquistão e a União Indiana. A seguir, à direita de Mountbatten: os
Hindus Nehru, Patel e Kripalani, representando o Congresso indiano;
Baldev Singh, representando a comunidade sikh; Rab Nishtar, Liaquat Ali
Khan e Mohammed Ali Jinnah, representando a Liga muçulmana. Atrás do
vice-rei, seus colaboradores Sir Eric Miéville e Lord Ismay. Não ocupando
qualquer cargo oficial na hierarquia Indiana, Gandhi absteve-se de
participar nesta reunião histórica. (Fotos Popperfoto).
É no ombro da vice-rainha que se apoia o velho adversário dos Ingleses
Mountbatten compreendeu desde a sua chegada a Nova Delhi que era Gandhi
que possuía a chave do dilema indiano. Entre o velho profeta da não
violência e o prestigioso chefe de guerra, iam-se unir laços de afeição
que salvariam a Inglaterra e as Índias de um desastre. A saída da sua
primeira entrevista, o adversário mais encarniçado dos Ingleses poisa
espontaneamente a mão no ombro da última vice-rainha das Índias. (Foto
Associated Press).
Capítulo sétimo
Para Gandhi, Nehru e o Congresso, a resposta era clara. Era preciso pôr
termo ao reinado desses senhores feudais e integrar os seus Estados na
Índia independente. Esta perspectiva não tinha a menor probabilidade de
receber a aprovação de Yadavindra Singh nem dos seus pares. O seu Estado
de Patiala, no coração do Panjab, era um dos mais ricos e ele contava com
um exército de quinze mil homens, equipado com tanques Centurion e
baterias de artilharia.
Este homem não era um marajá, mas um inglês. Tinha partido de Nova Delhi
para Londres sem o vice-rei saber. Filho de um pastor missionário, Sir
Conrad Corfield representava uma das grandes forças e ao mesmo tempo uma
das grandes fraquezas da administração britânica das Índias.
128
Tinha feito quase toda a sua carreira na secretaria das Questões dos
principados, e a Índia dos príncipes tinha-se tornado a sua própria
Índia. O que achava bom para os seus príncipes parecia-lhe bom para a
Índia. Odiava os inimigos daqueles, em especial Nehru e o Congresso, com
tanta força como eles próprios.
O marajá de Baroda tinha pelo ouro e pelas pedras preciosas uma veneração
feiticista. Apenas uma família tinha o privilégio de tecer com fios de
ouro as túnicas de cerimónia do marajá. As unhas desses tecelões eram
cortadas em forma de dente de pente, para conseguirem a maior perfeição
no tecido. A sua colecção de diamantes incluía a famosa Estrela do Sul, o
sétimo diamante do mundo pelo tamanho, e o Eugenia que fora oferecido por
Napoleão III à esposa depois de ter pertencido a Potemkine, o favorito da
grande Catarina da Rússia. Mas as peças mais admiráveis do seu tesouro
eram uma colecção de tapetes todos feitos de pérolas ornamentados com
desenhos em rubis e esmeraldas.
131
Fazendo tremer a terra com o seu peso colossal e o céu com os seus urros,
combatiam até à morte de um deles. O vencedor recebia a honra de entrar
para a quadra do príncipe.
Um marajá de Gwalior usou mesmo certa vez um dos seus animais para uma
tarefa que nenhum outro paquiderme realizara nunca. Tendo encomendado em
Veneza um candeeiro cujo peso e tamanho excediam as dimensões do maior
lustre do palácio de Buckingham, resolveu verificar a solidez do telhado
do palácio pondo ali a passear o mais pesado dos seus elefantes, que para
lá foi içado por meio de um guindaste especialmente concebido.
132
Assim que os seus régios olhos viam, no interior das muralhas da sua
capital, um carro que lhe agradava, mandava ao feliz proprietário que
«Sua Alteza Exaltada» teria o maior prazer em recebê-lo de presente. Em
1947, as garagens do soberano abarrotavam de centenas de carros de que
nunca se servia.
Alguns marajás tinham pela deslocação ferroviária tanta paixão como pelos
automóveis. O de Indore mandara construir na Alemanha uma carruagem
especial dotada de um luxo provavelmente único no mundo. Decorada pelos
maiores ourives da casa parisiense Puiforcat, esta carruagem era um
verdadeiro iate sobre rodas. O caminho de ferro preferido do marajá do
poderoso Estado de Gwalior era um brinquedo tão aperfeiçoado como nunca
criança nenhuma sonhou receber do pai Natal. A sua rede de carris de
prata maciça corria sobre a imensa mesa em forma de ferradura da sala de
jantar do palácio e prolongava-se, através das paredes, até às cozinhas.
Em noites de gala, um quadro de comandos era colocado junto do soberano.
Mexendo em manípulos, alavancas, botões e sereias, o príncipe-chefe de
estação regulava a marcha dos comboios miniatura que traziam as bebidas,
cigarros, charutos e gulodices aos seus hóspedes. As carruagens-
cisternas, cheias de whisky, vinho, Porto e Madeira, paravam em frente de
cada conviva para lhe matar a sede. Carregando com o dedo num botão, o
monarca podia, se quisesse, privar de bebida ou de charutos um dos seus
convidados.
133
Certa noite dos anos 30, durante um banquete em honra do vice-rei, deu-se
um curto-circuito no quadro de comandos. Perante os olhos horrorizados de
Suas Excelências, os comboios do marajá, como loucos, correram de um
extremo a outro da sala de jantar, atirando para cima dos vestidos das
senhoras, das casacas e dos uniformes dos homens um verdadeiro dilúvio de
vinho e de sherry. Esta catástrofe, única nos anais ferroviários, quase
provocou um incidente diplomático.
134
A sua concepção original inspirava-se também no exemplo ilustre do Rei-
Sol: no veludo dourado do assento havia um orifício de retrete. Este
reizinho oriental podia assim, tal como o grande monarca, fazer as suas
necessidades em público sem interromper o curso das questões do seu
reino.
135
No auge da sua glória, o harém real de Patiala contava com trezentas e
cinquenta esposas e concubinas.
A Índia mística tinha por hábito atribuir origens divinas aos maiores dos
seus príncipes. As do marajá de Mysore confundiam-se com o nascimento da
Lua. Todos os anos, pelo equinócio de Outono, o soberano tornava-se para
o seu povo num deus vivo.
136
Como um sadhu no interior de uma gruta do Himalaia, separava-se do mundo
dentro de uma sala escura do palácio. Não se barbeava nem se lavava. Nem
mãos nem olhares humanos podiam pousar sobre ele durante o tempo em que
Deus habitava o seu corpo. Tornava a aparecer no nono dia. Um elefante
coberto de veludo constelado de ouro e pedrarias, com uma cabeçada
incrustada de esmeraldas, esperava à porta do palácio para o conduzir no
meio de uma escolta de lanceiros a um sítio mais popular do que divino, o
campo de corridas da capital. Ali, perante a multidão dos seus súbditos,
sacerdotes brâmanes banhavam-no cantando mantra, barbeavam-no e davam-lhe
de comer. Enquanto o Sol se escondia na floresta, era apresentado ao
monarca um cavalo preto. No momento em que o montava, milhares de
archotes acendiam-se em redor da pista. O príncipe galopava em toda a
volta desta coroa de chamas, desencadeando aplausos à passagem. O filho
da Lua regressara para o seu povo.
O marajá de Udaipur, esse, tinha a sua origem no Sol. O seu trono, com
dois mil anos de idade, era o mais antigo e prestigioso das Índias. Uma
vez por ano, também se tornava um deus vivo. De pé à proa de uma galera
semelhante ao barco de Cleópatra, passeava sobre as águas infestadas de
crocodilos do lago que banhava o seu palácio. Na ponte, atrás dele, como
o coro de uma tragédia antiga, em atitude de veneração, estavam os
dignitários da corte, com túnicas de musselina branca.
137
Em 1943, sob as ordens do seu jovem marajá, comandante nos Lifeguards, os
cipaios da cidade cor-de-rosa de Jaipur tinham limpo as encostas do monte
Cassino e aberto o caminho de Roma aos exércitos aliados. Para premiar a
sua coragem à frente do seu batalhão, o maharao rajá de Bundi recebera a
Military Cross em plena selva birmanesa.
A Índia dos marajás e dos nawabs apresentava uma outra face. Muitos
príncipes tinham viajado no Ocidente, estudado em universidades,
descoberto os benefícios da ciência, da técnica, da educação. Muitos
tinham lutado para transformar os seus Estados em pilares da civilização
e do progresso, por vezes únicos na Ásia.
138
Milhões de homens gozavam nestes reinos de condições de existência e
vantagens materiais e sociais que a Inglaterra desconhecia na Índia.
A Segunda Guerra mundial vira subir aos tronos indianos uma nova geração
de príncipes menos fanáticos, menos extravagantes, menos fabulosos que os
pais, mas cada vez mais conscientes de escassez dos seus privilégios e da
necessidade de reformar os costumes dos seus reinos. Uma das primeiras
decisões do oitavo marajá de Patiala fora encerrar o lendário harém de
seu pai Sir Bhupinder Singh «O Magnífico». O marajá de Gwalior desposara
uma plebeia, filha de um funcionário, e abandonara o enorme palácio da
família para viver numa casa de tamanho mais compatível com as realidades
do mundo do após-guerra.
Para dois Estados da Índia dos príncipes, dois soberanos que desfrutavam
a suprema honra da salva de vinte e um tiros de canhão, a iniciativa
tomada em Londres por Sir Conrad Corfield podia ter consequências
profundas. Os dois reinos tinham dimensões excepcionais. Ambos eram
enclaves. Ambos tinham como monarcas homens de uma região diferente da
maioria dos seus súbditos. E ambos acalentavam o mesmo sonho: fazer do
Em 1947, o nizam passava por ser o homem mais rico do mundo. Cunhava
moeda, e a sua fortuna legendária só era comparável em reputação à sua
avareza não menos legendária.
140
Era tal a sua mesquinhes, que o médico vindo de Bombaim para lhe observar
o coração, não conseguiu obrigá-lo a fazer um electrocardiograma. Nenhum
aparelho eléctrico funcionava como devia ser em casa dele: por medida de
economia, o nizam ordenara à central eléctrica de Hyderabad que reduzisse
a voltagem.
Contudo, este palácio da miséria albergava nos seus recantos uma fortuna
que desafiava a imaginação. A gaveta da secretária desengonçada continha,
embrulhado num jornal velho, o Koh-i-Noor — «A Montanha de Luz», um
fabuloso diamante de 280 quilates que fora a grande jóia do tesouro dos
imperadores mongóis. O nizan utilizava-o às vezes como pisa-papéis. No
jardim abandonado havia uma dúzia de camiões tão carregados que se
enterravam no chão até aos eixos. Estavam cheios de lingotes de ouro. Uma
colecção de jóias, tão fantástica que se dizia que podia cobrir os
passeios de Picadilly, enchia todas as gavetas e o velho cofre-forte do
seu quarto. Possuía baús cheios de rupias, de dólares e de libras
esterlinas, embrulhadas em papel de jornal e totalizando cinco biliões de
francos antigos. Uma legião de ratos que dela faziam a sua refeição
favorita, desfalcavam todos os anos em vários milhões esta fortuna.
Pessoa fraca e indecisa, o marajá Hari Singh dividia o seu tempo entre as
festas luxuosas de Jammu, sua capital de Inverno, e as lagoas cobertas de
lótus da sua capital de Verão, Srinagar, a Veneza do Oriente. Inaugurara
o seu reinado com algumas tentativas de reforma, depressa dominadas pelo
seu despotismo crescente, mandando a pouco e pouco todos os adversários
para as prisões do seu Estado. Um deles fora o próprio Nehru, preso
durante uma visita ao Cachemir dos seus antepassados. Como o nizam de
Hyderabad, Hari Singh possuía um exército capaz de defender as fronteiras
do seu reino e de fazer pesar a sua reivindicação de independência.
142
Capítulo oitavo
- Good God! exclamou Lord Ismay que fora testemunha de tantas tempestades
provocadas por Churchill naquela mesma residência. Assisti a muitas
proezas na minha vida, mas a que você acaba de conseguir ultrapassa-as
todas!
145.
Um último «não» daria agora o golpe fatal a todas as esperanças de
Mountbatten. Chefe da maioria da Câmara dos lords, Churchill podia,
recorrendo a todos os artifícios do processo parlamentar, retardar
durante dois anos a lei promulgando a independência das Índias.
Churchill não acreditou nos seus ouvidos. Era possível que os inimigos
mais implacáveis do Império tivessem aceite conservarem-se nas fileiras
da comunidade britânica? Que as glórias passadas do seu querido Império
se perpetuassem nas novas estruturas da era que começava? Que podia
restar qualquer coisa dessa velha Índia onde queimara as energias da sua
juventude romântica; que continuariam, acima de tudo, os seus laços com a
Inglaterra?
146
Era só papel o que as chamas devoravam, quatro toneladas de documentos,
de relatórios, de arquivos. Acesos por ordem de Sir Conrad Corfield,
estes autos de fé reduziam a cinzas os episódios mais sinistros de alguns
capítulos pitorescos do passado das Índias: a história secreta dos
vícios, das loucuras e dos escândalos de cinco gerações dos seus
protegidos, os príncipes indianos. Corfield receava que esses arquivos,
acumulados pelo zelo meticuloso dos representantes sucessivos da coroa,
caindo intactos nas mãos dos futuros dirigentes da Índia e do Paquistão,
se tornassem armas de uma chantagem política.
Sir Conrad Corfield acendeu ele próprio a primeira fogueira debaixo das
janelas do seu escritório. Era uma pequena montanha de dossiers guardados
até então num cofre-forte de que só ele e o seu adjunto possuíam a chave.
A escrupulosa compilação de cento e cinquenta anos de escândalos
principescos desfazia-se em fumo. Considerando que esses documentos
faziam parte do património indiano, Nehru protestou energicamente.
147
O escândalo rebentou quando o verdadeiro marido da jovem, achando que não
fora suficientemente remunerado pelo empréstimo da esposa, foi revelar
tudo à polícia. No retumbante processo que se seguiu, a identidade do
infeliz marajá foi disfarçada com o pudico pseudónimo de «M. A.».
Desiludido para sempre das mulheres, Hari Singh voltou para Cachemir onde
descobriu novos horizontes sexuais na companhia de rapazes novos.
Fielmente registados pelos representantes da coroa, os relatos dessas
novas actividades voavam agora no éter do Himalaia, com a ajuda da fresca
brisa de Srinagar que acelerava a sua combustão.
149
Aconselharam-lhe o envenenamento por meio do diamante. O príncipe
escolheu no seu tesouro uma pedra do tamanho de uma avelã, que achou
apropriada à categoria do cônsul. Os astrólogos reduziram-na a pó, que
foi certa noite, misturado aos alimentos do coronel. Mas as horríveis
dores intestinais que provocou permitiram salvá-lo; foi transportado ao
hospital, onde uma lavagem ao estômago evitou o pior.
Foi vingado por um príncipe seu amigo. Quando o vice-rei que assinara a
ordem de exílio, foi visitar o seu Estado, o marajá de Patiala ordenou
aos artilheiros encarregados de disparar os trinta e um tiros de canhão
devidos ao representante do rei-imperador que usassem tão pouca pólvora
que as explosões «não fizessem mais barulho do que um petardo de
criança».
150
O vice-rei trouxera-o pessoalmente quarenta e oito horas antes de Londres
onde fora aprovada pelo gabinete de Clement Attlee.
Cada líder ocupou o seu lugar na mesa redonda presidida por Lord
Mountbatten. Jinnah, Linquat Ali Khan e Rab Nishtar em nome da Liga
muçulmana. O Congresso era representado por Nehru, Patel e o seu
presidente, Acharya Kripalani. Finalmente, Baldev Singh, porta-voz dos
seis milhões de sikhs, a comunidade que viria a ser a mais afectada pelo
que ia decidir-se.
Era a primeira vez, desde a sua chegada às Índias, que Mountbatten se via
obrigado a substituir por uma mesa redonda a sua estratégia dos diálogos
a dois. Decidira ser o único orador, não querendo sob nenhum pretexto
correr o risco de ver a reunião degenerar em assembleia onde cada um
tentasse destruir o plano que fora tão difícil de elaborar.
Declarou que não pedia aos presentes que fossem contra a sua consciência
dando o seu acordo total a um plano do qual alguns aspectos chocariam as
suas convicções profundas. Mas convidava-os a aderirem a ele num espírito
de tranquilidade geral e comprometerem-se a aplicá-lo evitando
derramamentos de sangue.
151
Uma preocupação secreta dominava Luís Mountbatten desde o seu regresso a
Nova Delhi, uma preocupação que empanava o brilho dos seus êxitos
londrinos e o seu «enorme optimismo quanto ao futuro». Iria o
«imprevisível Mahatma» tentar conseguir que falhassem os seus projectos?
Esta perspectiva aterrava-o.
Sentia verdadeiro afecto pelo seu «pobre pardalito». A ideia de que ele,
o guerreiro profissional, o vice-rei, podia ser obrigado a travar uma
luta de força com o apóstolo da não-violência, consternava-o.
A empresa fora mais fácil do que ele esperava. «Tinha-a estranha sen-çâo,
contaria mais tarde Mountbatten, de que eles estavam até certo ponto
dispostos a apoiar-se contra Gandhi, que me estimulavam quase a desafiá-
lo».
Certa manhã, durante um passeio nas ruas de Nova Delhi, um dos seus
partidários interpelou-o:
- Na hora decisiva, espantou-se ele, parece que não contais muito, como
se quisessem deixar-vos de fora, a vós e aos vossos ideais.
Alguns dias mais tarde, Gandhi acordara meia hora antes da oração da
alvorada. Ele e a sobrinha-neta Manu tinham retomado o hábito de dormirem
juntos. A jovem ouviu o velho lamentar-se no escuro da sua cabana no
bairro dos Intocáveis.
152
«Agora estou sozinho, murmurou ele. Até mesmo Nehru e Patel acham que eu
estou errado e que a Partilha trará a paz... Perguntam se eu não me
tornei um pouco caprichoso com a idade.» Seguiu-se um grande silêncio.
Depois Gandhi suspirou: «Talvez eles tenham razão e eu esteja a lutar em
vão nas trevas.» Seguiu-se outro longo silêncio, depois Manu ouviu esta
frase: «Talvez eu já não esteja neste mundo para assistir, mas se o mal
que eu receio viesse a atacar a Índia e pôr a sua independência em
perigo, que a posteridade saiba a agonia que sofreu esta velha alma ao
pensar nessas desgraças.»
Assim que Mountbatten acabou de expor o seu plano, Gandhi molhou a ponta
do lápis com a língua e redigiu a resposta, enchendo o verso de cinco
sobrescritos com a sua letra inclinada.
«Lamento não poder falar consigo, escreveu ele. Quando tomei a decisão de
observar um dia de silêncio à segunda-feira, previ a hipótese de poder
quebrar este voto em dois casos: para tratar de questões urgentes com uma
alta individualidade, e para tratar doentes. Ora, eu sei que não deseja
que eu quebre o meu silêncio. Há todavia duas coisas que devo tratar
consigo. Mas hoje não. Se tornarmos a ver-nos lhe direi.»
153
E agora o homem a quem este plano devia agradar mais do que a ninguém,
aquele cuja vontade inflexível conseguira a Partilha das Índias,
procurava retardar as coisas. Era também, até certo ponto, o dia de
silêncio de Mohammed Ali Jinnah. O objectivo de toda a sua vida estava ao
seu alcance. Mas por qualquer razão misteriosa, não se decidia a dizer a
palavra que obstinadamente se recusara a dizer toda a vida: sim.
«Nesse momento, continuou Mountbatten, volto-me para si. Não quero que os
dirigentes do Congresso o obriguem a explicar-se publicamente. Só quero
que o senhor faça uma coisa. Quero que o senhor baixe a cabeça para
indicar que está de acordo comigo.
«Se não baixar a cabeça, Senhor Jinnah, concluiu Mountbatten, então está
perdido. Já não poderei fazer nada por si. Será a derrocada. Isto não é
uma ameaça, é uma profecia. Se não baixar a cabeça nessa altura, a minha
presença aqui já não será de qualquer utilidade, e o senhor terá perdido
o seu Paquistão, e acho que pode ir para o diabo!»
Com este sinal apenas perceptível, uma nação de noventa milhões de homens
via ratificada a sua existência. Por mais difíceis que ameaçassem ser as
circunstâncias do seu nascimento, «o sonho impossível» do Paquistão
realizava-se finalmente, Mountbatten podia a partir de agora continuar a
sua tarefa. Antes que os sete interlocutores tivessem tempo de respirar,
mandou distribuir-lhes um texto de trinta e quatro páginas. Pegando no
seu exemplar, o vice-rei mostrou ostensivamente antes de o possuir com um
gesto teatral.
155
Com voz grave, anunciou o título do documento: «Consequências
Administrativas da Partilha».
Foi quando dava um banho aos pés no regresso do seu passeio da tarde que
Gandhi soube da decisão dos líderes indianos de aceitarem a Partilha.
Enquanto a sobrinha-neta Manu o massajava, longe de sentir alívio, o seu
rosto exprimia cada vez mais dor. «Que Deus os proteja e lhes dê juízo a
todos!» suspirou ele.
Alguns minutos depois das sete horas, naquela mesma tarde de 3 de Junho
de 1947, o vice-rei e os três representantes das diferentes comunidades
entraram no estúdio de radiofusão de Nova Delhi para anunciar aos seus
povos a divisão das Índias em duas nações independentes e soberanas.
Jinnah tomou então a palavra. Nada podia ilustrar melhor do que o seu
discurso a imensidade da obra realizada, e o paradoxo do seu triunfo.
Para anunciar aos noventa milhões de muçulmanos que conseguira para eles
um Estado independente, Mohammed Ali Jinnah era obrigado a exprimir-se
numa língua que eles não podiam compreender.
156
Falou em inglês (Nota 1). Um locutor traduzia depois o discurso em urdu.
Baldev Singh anunciou por fim aos sikhs a sua aceitação do plano de
partilha, lançando um apelo à paz entre as comunidades retalhadas por
esta decisão.
Gandhi chegou apenas uma hora antes da sua reunião de oração. Para tentar
impedir um desastre, o vice-rei só dispunha de cinco minutos. Assim que o
viu, compreendeu até que ponto o velho estava perturbado. Metido no
cadeirão «como um pássaro de asas cortadas», o Mahatma abanava a mão,
gemendo com voz que mal se ouvia: «É tão terrível, tão terrível.»
157
- Se, por um milagre, todas essas assembleias escolhessem pertencer ao
mesmo país, explicou Mountbatten, então a unidade da Índia estaria salva,
e o senhor teria ganho. Caso contrário, estou certo de que não espera dos
ingleses que se oponham à decisão deles pela força das armas.
158
Navegara com perícia entre os escolhos que lhe apareceram no caminho. A
sua última proeza, realizara-a entrando na própria jaula do velho leão;
convencera Winston Churchill a encolher as garras e a rosnar, também ele,
a sua aprovação.
Uma voz acabou por fazer a única pergunta deixada em suspenso. Para
completar o seu puzzle, era também a última casa que Mountbatten tinha
que preencher.
159
Esta revelação estalou como uma bomba. No parlamento britânico, junto do
Primeiro ministro, no palácio de Buckingham, a notícia causou uma
surpresa brutal. Ninguém, nem mesmo Clement Attlee, suspeitava de que
Mountbbatten estava pronto para fazer descer a cortina sobre a epopeia
indiana da Grã-Bretanha com tanta precipitação. Em Nova Delhi, os
colaboradores mais íntimos do vice-rei não tinham tido o menor
pressentimento de que ele escolhesse uma data tão próxima. Também não
passara a menor suspeita de um prazo tão curto pelo espírito dos líderes
indianos com quem ele conversara tantas horas durante os dois primeiros
meses da sua missão.
Nenhum povo estava mais sujeito do que o povo indiano à sua autoridade e
ao seu suposto conhecimento das leis que regem o universo. Cada marajá,
cada templo, cada aldeia possuía com carácter permanente um ou vários
jyotishi que reinavam como ditadores sobre a vida da comunidade hindu. A
sua intervenção abrangia todos os domínios. Milhões de indianos nunca se
tinham atrevido a fazer uma viagem, receber um amigo, concluir um
negócio, partir para a caça, estrear um traje, comprar uma jóia, cortar o
bigode, lavrar um campo, casar uma filha ou até celebrar um funeral, sem
previamente consultar um astrólogo.
160
No centro, encontrava-se um planisfério. Madananand fez girar os círculos
até coincidirem todos com o dia 15 de Agosto de 1947. Depois, partindo do
centro do continente indiano sobre o planisfério, traçou um feixe de
linhas em direcção aos diferentes círculos da carta celeste. Cada vez que
um dos traços atravessava a linha de 15 de Agosto, sentia suores frios na
espinha. Os seus cálculos faziam prever uma catástrofe.
A Índia, como aliás Nehru e Jinnah, estava nesse dia sob a influência do
Makara, Capricórnio, uma das particularidades do qual é uma hostilidade
implacável a todas as forças centrífugas, por conseguinte à Partilha
(Nota 1). Ora, mais alarmante ainda, sob a influência preponderante de
Saturno, o mais maléfico dos planetas, o dia 15 de Agosto de 1947 ia
passar sob o domínio de Rahu, o nodo lunar ascendente, chamado «cabeça
sem corpo», e do qual todas as manifestações - a começar pelos eclipses —
eram nefastas2. Desde as zero horas até à meia-noite de 15 de Agosto de
1947, as posições de Júpiter e de Vénus eram igualmente desfavoráveis,
por a sua conjunção com Saturno os colocar, durante todo aquele dia, no
pior sítio da abóbada celeste, «no inferno da nona casa do Karamsthan».
Como biliões dos seus colegas, o jovem astrólogo ergueu a cabeça,
horrorizado com a enormidade da tragédia que previa.
161
< Página em branco>
Capítulo nono
Nada comparável fora tentado antes. Não havia precedentes, nem modelos,
nenhuma jurisprudência podia ser evocada para o divórcio mais total e
mais complexo da história da humanidade, a dispersão de uma família de
quatrocentos milhões de homens, a divisão dos seus bens, acumulados no
decorrer de séculos de existência comum sobre a mesma terra.
165
O sumptuoso comboio branco e dourado dos vice-reis que trilhara as
planícies áridas do Decão e o fértil vale do Ganges, foi atribuído à
Índia. O Paquistão recebeu em compensação a limusine oficial do
comandante-chefe do Exército das Índias e a do governador do Panjab.
O jovem oficial inglês pensou um momento. Era evidente que não havia
possibilidade de divisão. Podia jogá-la também a caras ou coroas. Mas
Peter Howes teve uma ideia melhor. Mostrou o objecto aos dois camaradas
indianos e declarou: «Bem vêem que não podemos dividir est corneta. Por
isso, creio que só há uma solução razoável: fico eu com ela.»
Nota 1 - A corneta do postilhão dos coches dos vice-reis das Índias está
hoje sobre a chaminé da sua vivenda de Wiltshire para onde se retirou
Peter Howes. Almirante reformado, conta muitas vezes aos amigos a
história deste objecto e nunca perde a ocasião de soprar nela
alegremente, para recordar os bons velhos tempos.
166
Havia também as centenas de milhar de homens ligados à administração,
desde o director dos caminhos de ferro e os presidentes dos ministérios
até aos criados, aos varredores e aos babu, esses poderosos mangas-de-
alpaca que se tinham multiplicado como cogumelos em todos os serviços da
tentacular burocracia indiana. Todos estes funcionários tinham o direito
de optar quer pela Índia quer pelo Paquistão segundo a sua religião.
Feita a escolha, partiram com as famílias nos primeiros comboios da
jornada que seria o maior êxodo da História.
167
Oficiais ingleses e tropas indígenas entravam para ele como para uma
religião. Os recrutas indianos deviam depositar cinquenta libras
esterlinas para a compra do seu equipamento, quantia fabulosa para bolsas
modestas. Mas era tão prestigioso servir nesse exército que cada
regimento tinha uma lista de espera de vários anos. Dura e perigosa
durante as operações, a vida dos oficiais, no regresso às guarnições, era
cheia de conforto e de luxo. A abundância de criadagem indiana, o custo
ínfimo do necessário e do supérfluo, os privilégios de que gozavam os
militares, tudo permitia a esses jovens levar uma existência de sonho.
Lord Ismay, o director do gabinete de Mountbatten, não esqueceria nunca o
primeiro jantar na messe do seu regimento, quando voltava esgotado da
travessia de metade da Índia debaixo da poeira e do calor tórrido. Os
camaradas, vestidos com o magnífico uniforme vermelho, azul marinho e
ouro, estavam sentados à volta da mesa. Por detrás de cada um havia um
criado «de túnica de musselina branca imaculada, realçada por um cinturão
e um turbante com as cores do regimento. Ramos de rosas vermelhas e uma
profusão de pratas ornamentava uma toalha de linho branco adamascado. Por
cima da chaminé, estava o retrato do nosso coronel honorário, o príncipe
Albert Victor, irmão de Jorge V, e nas paredes alinhavam-se as cabeças
empalhadas de tigres, leopardos, «markhors» e cabras monteses». Era na
época em que os oficiais se vestiam como personagens de opereta. Usavam
fardas cor de pêssego, de hortelã, prateadas. Cada regimento organizava,
uma vez por ano, um jantar de gala. Exigia-se dos novos recrutas que
ficassem perdidos de bêbedos durante esta festa tradicional, e se
apresentassem pontualmente à chamada no dia seguinte às seis horas da
manhã. Um toque de corneta anunciava que o jantar estava na mesa. As
charlateiras reluzentes nos seus galões dourados, e as botas a brilhar
como espelhos, os oficiais seguiam o coronel até à sala de jantar. A luz
dos candelabros, saboreavam uma cozinha tão requintada como a dos
melhores restaurantes europeus de Calcutá ou de Bombaim. Após a
sobremesa, era trazida uma garrafa de Porto que passava religiosamente a
todos os convivas, no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio,
começando pelo coronel. Qualquer falta a este rito era considerada de mau
augúrio. O coronel propunha invariavelmente três saúdes: ao rei-
imperador, ao vice-rei e ao regimento. No 7.° regimento de cavalaria
ligeira do Panjab, mandava a tradição que o coronel atirasse o seu copo
para trás das costas a seguir a cada saúde. O sargento da messe, postado
atrás dele, apressava-se a esmigalhá-lo com o calcanhar da bota antes de
se pôr em sentido.
170
Pediu uma licença para ir visitar a família a Lucknow, onde o pai era
vice-chanceler da universidade e a mãe uma partidária fanática do
Paquistão, passeou pelas ruas da cidade, contemplou as moradas dos seus
antepassados, barões feudais do reino de Oudh, e deu uma volta pelas
ruínas deixadas pela grande revolta de 1857. «Os meus avós morreram por
estas pedras, pensou. Esta é a Índia com que sonhei no colégio em
Inglaterra e debaixo dos obuses alemães do deserto da Líbia. É ao meu
lar, é a esta terra que pertenço. Fico (Nota 1).»
Yacoub Khan sentiu que não havia para ele outra alternativa senão emigrar
para o Paquistão. Tentou explicar isso à mãe:
- Viveu a sua vida, disse ele. A minha está ainda no princípio. Não julgo
que haja futuro para os muçulmanos na Índia depois da Partilha.
Estou velha, concluiu. Os meus dias estão contados. Não entendo muito de
política, mas tenho os meus sentimentos de mãe, e esses são egoístas.
Receio que a tua decisão nos separe.
171
Partiu no dia seguinte de manhã, por um belo dia de Verão. A mãe vestia
um sari branco - cor do luto tanto para os muçulmanos como para os hindus
—, que recortava a sua silhueta sobre a fachada de grés cor-de-rosa da
casa familiar. Mandou o filho passar por debaixo de um exemplar do
Alcorão que levantou acima da sua cabeça. Depois entregou-lhe o livro
sagrado e pediu-lhe para o beijar. Então, recitaram juntos alguns
versículos à maneira de oração de despedida. Em seguida a mãe soprou
devagar na direcção do filho para ter a certeza de que a oração o
acompanhava.
Yacoub Khan enganava-se. Nunca mais voltaria ao lar paterno, nem tornaria
a ver a mãe. Daí a poucos meses, à frente de um esquadrão do exército
paquistanês, subiria uma das vertentes nevadas de Cachemir ao assalto a
uma posição guardada por homens que tinham sido seus companheiros no
Exército das Índias. Entre as unidades que tentariam travar o seu avanço
encontrava-se uma companhia do Garhwal Battalion indiano. Muçulmano
também, o chefe fizera em Julho de 1947 uma escolha inversa da de Yacoub
Khan e decidira ficar no país onde nascera. Também ele era natural de
Rampur, também ele se chamava Khan, Younis Khan. Era o irmão mais novo de
Yacoub.
Sobre um mapa semelhante ele iria ser obrigado a desenhar a linha que
amputaria aquele pedaço da humanidade com a segurança do escalpelo de um
cirurgião.
Antes da sua partida para Nova Delhi, Sir Cyril Radcliffe foi recebido
pelo Primeiro ministro. Clement Attlee observou com orgulho a personagem
cujas decisões iam influenciar mais a vida das Índias do que as de
qualquer outro inglês havia três séculos. No quadro sombrio da cena
indiana carregada de nuvens, sentiu pelo menos um motivo real de
satisfação: era um antigo aluno de Haileybury, como ele próprio, que
Jinnah e Nehru tinham escolhido para cortar a terra natal de oitenta e
oito milhões dos seus compatriotas.
Luís Mountbatten mal tivera tempo de saborear a sua vitória, que havia
ganho conseguindo arrancar o acordo dos líderes indianos ao seu plano de
partilha, quando lhe caiu nas mãos novo problema, mais complexo ainda. Os
seus interlocutores não seriam, desta vez, um punhado de advogados
formados no tribunal londrino, mas os 565 membros do rebanho dourado de
Sir Conrad Corfield, os marajás e nawabs das Índias.
O maior serviço que podia prestar a esses herdeiros de tempos idos era
salvá-los de si próprios dos seus fantasmas e em certos casos, do sonhos
megalómanos que o isolamento dourado dos seus Estados contribuirá para
alimentar. Uma visão obcecava Mountbatten desde a adolescência, uma cena
a que não assistira mas que imaginara muitas vezes, o espectáculo atroz
da cave de lekaterinbourg onde o seu tio, o tsar, a tia e os primos
tinham caído sob as balas dos revolucionários russos.
174
Sabia que certos marajás corriam o risco de praticar actos irreparáveis
susceptíveis de transformar os seus palácios em açougues. E o caminho que
o seu Secretário político, Sir Conrad Corfield os encorajava a tomarem
era justamente de molde a levar a semelhante tragédia.
Muitos deles julgavam todavia que Mountbatten ia ser o seu salvador, que
ia conseguir pô-los a salvo, a eles e à sua existência privilegiada.
Enganavam-se. O vice-rei queria pelo contrário, convencer os seus caros e
velhos amigos de que a única solução aceitável entrar no esquecimento sem
fazer barulho. Desejava vê-los abandonar qualquer reivindicação de
independência e proclamar a sua vontade de se associarem à Índia ou ao
Paquistão antes de 15 de Agosto. Estava pronto, pela sua parte, a usar da
sua autoridade junto de Nehru e de Jinnah para obter como compensação da
sua colaboração as melhores condições para o seu futuro pessoal.
A oferta era tentadora. Patel sabia que não existia ninguém nas fileiras
do Congresso que gozasse junto dos príncipes de influência comparável à
de Mountbatten.
175
Apesar de profundamente sensibilizado com a enorme honra que lhe era
prestada, Mountbatten pôs grande reticências. Tinha triunfado
brilhantemente durante os seus quatro meses nas Índias. Podia partir,
conforme esperava, «numa luminosa auréola de glória». Estava demasiado
consciente das dificuldades que iam surgir e receava ver manchado o seu
êxito. Para desempenhar eficientemente o papel de árbitro, era necessário
ainda que Jinnah lhe fizesse a mesma proposta.
O velho líder muçulmano não tinha pela sua parte a menor intenção de
renunciar às prorrogativas da magistratura suprema do Estado conseguido
após tantos esforços. Seria ele mesmo o primeiro governador-geral do
Paquistão. Mountbatten faz-lhe notar que ele não escolhera o lugar
apropriado: no regime de tipo britânico que escolhera para o seu Estado,
era o Primeiro ministro quem tinha todos os poderes. O papel de
governador-geral era apenas honorífico, sem verdadeira autoridade, como o
do rei de Inglaterra, explicou.
Antes de dar o seu acordo, Lord Mountbatten desejava todavia obter uma
bênção. Parecia impossível que um homem que levara a Índia à libertação
pregando a sua doutrina de não-violência conseguisse ver outro que
dedicara a vida à arte da guerra tornar-se o primeiro chefe de Estado da
sua pátria independente. Num daqueles rasgos quixotescos que lhe eram
habituais, Gandhi já dera a conhecer ao mundo a personalidade ideal que
desejava para esse posto: uma varredora intocável, «de grande coração,
incorruptível e pura como o cristal».
176
Contemplando a frágil silhueta perdida no enorme cadeirão, Mountbatten
estava profundamente comovido. «Foi preso por nós, pensou ele, humilhado,
desprezado, desdenhado, e ele ainda possui grandeza de alma suficiente
para ter este gesto.» Agradeceu a Gandhi. O velho balouçou a cabeça e
continuou a conversa.
- Deixe este palácio, suplicou ele, e vá viver para uma casa sem criados.
O seu palácio poderá servir para um hospital.
177
Coberto de musgo esverdeado, havia primeiro o charco onde as mulheres iam
lavar a roupa, e os homens os animais de carga; depois a confusão de
casas de adobe, com os pequenos pátios onde se espanejavam ao sol, cães,
cabras, búfalos, vacas, e um rancho enorme de crianças, de pés descalços
e com os olhos besuntados de Khôl; grandes búfalos faziam girar
lentamente pesadas mós de pedra que moía o trigo e o milho; as mulheres
achatavam em forma de bolacha excremento fresco misturado com palha que,
depois de seco, ia servir de combustível nos seus lares.
O coração do Panjab era a antiga capital do Império das Mil e Uma Noites,
Lahore, a preferida dos reis mogois. Tinham-na estimado e alindado com
uma profusão de monumentos e de tesouros: a mesquita imperial de
Aurangzeb, a mais vasta da Ásia, com faianças brilhantes como talismãs
sob a poeira dos séculos; o mausoléu de mármore de Jehangir, gravado com
os noventa e nove nomes de Alá; as muralhas de grés cor-de-rosa do
imponente forte de Akbar, com os Seus terraços repletos de mosaicos e
incrustações preciosas; os mausoléus de Noor Jahan, a princesa cativa que
desposou o carcereiro e se tornou imperatriz, e o de Anarkali, «Flor de
Romanzeira», jóia do harém de Akbar, enterrada viva por ter sorrido para
o filho dele; fontes transparentes dos jardins olorosos do Shalimar. Uma
cidade inteira pululando de nostalgias de um passado glorioso.
178
Hindus, muçulmanos ou sikhs, estes jovens tinham cantado lado a lado na
capela os hinos marciais de uma Inglaterra cristã, aprendido de cor as
obras dos poetas e dos romancistas britânicos, arremetido com os corpos
nos campos de desporto à conquista das virtudes viris dos senhores das
Índias a quem reclamavam hoje as chaves da sua pátria.
Mas este quadro idílico era um sonho que começava a desvanecer-se. Desde
Janeiro de 1947, agitadores da Liga muçulmana faziam reuniões secretas
nos bairros habitados principalmente por muçulmanos. Brandindo
fotografias, crânios e ossadas, mostrando por vezes um fugitivo
horrivelmente mutilado, acusavam os hindus de todas as atrocidades
perpetradas algures, atiçando o fogo do ódio racial e religioso.
As primeiras vítimas do seu ódio racial jaziam agora por debaixo das suas
janelas, vítimas absurdas, mortas ao acaso só porque usavam um turbante
sikh ou um cafetan muçulmano.
181
Em 1947, os seis milhões de sikhs, cujo templo era o santo dos santos,
praticavam com fervor uma das grandes religiões nascidas nesta terra
indiana visitada por Deus. Com as barbas e os bigodes pujantes, o cabelo
que nunca cortavam atado em carrrapito debaixo dos turbantes de todas as
cores, o seu porte altivo e a sua estatura imponente, representavam
apenas um meio por cento da população das Índias mas constituíam - como
ainda hoje — a comunidade mais forte, mais unida e guerreira.
182
A situação do Panjab era a condensação trágica daquela em que se
encontrava a Índia inteira: se os muçulmanos e os sikhs tinham podido
viver juntos sob o jugo da Inglaterra, já não o podiam fazer sob o nome
de uma ou outra das duas comunidades. As recordações que os muçulmanos
conservavam do domínio sikh estavam povoadas de profanações de mesquitas
e sepulturas, de mulheres ultrajadas, de irmãos e irmãs masssacrados
apunhalados, mortos, cortados em bocados, queimados vivos.
Os relatos dos sofrimentos que os sikhs tinham, por seu turno passado sob
a opressão dos soberanos mongóis estavam reunidos num sangrento folclore
que todas as crianças sikhs aprendiam como um evangelho assim que
atingiam a idade da razão. O Templo de Ouro de Amritsar albergava um
museu que tinha por fim manter viva a recordação de todas as atrocidades
praticadas pelos muçulmanos. Uma profusão de pinturas ensanguentadas
representavam os corpos de sikhs serrados ao meio ou esmigalhados entre
duas mós de pedra por se terem recusado a converterem-se ao islamismo.
Outras mostravam mulheres sikhs assistindo, à porta do palácio do Grão
Mogol, ao massacre dos filhos decapitados pelos soldados da sua guarda
particular.
- Hó, sikhs, gritou ele num discurso anunciador da tragédia que ia cair
sobre o Panjab, deveis estar prontos para o sacrifício supremo como os
japoneses e os nazis. As nossas terras estão a ponto de ficarem
submersas, as nossas mulheres desonradas. Erguei-vos para aniquilar uma
vez mais o invasor mogol. A nossa pátria está sedenta de sangue! Matemos-
lhe a sede com o sangue dos nossos inimigos!
183
Quando as primeiras vagas de refugiados sikhs e hindus, expulsos pelos
muçulmanos do oeste do Panjab, chegaram à sua região, os sikhs de
Amritsar resolveram vingar-se nos muçulmanos que viviam a seu lado.
Alguns homens armados com espingardas abriram fogo à entrada do bairro
muçulmano de uma aldeia, o que precipitou os habitantes aterrados numa
fuga louca para o outro extremo. Ali, dispersos pelos campos de cana de
açúcar, esperavam centenas de outros sikhs armados de forquilhas, sabres
e matracas, e começou o massacre. Uma forma especial de selvageria
caracterizou dentro de pouco tempo as matanças perpetradas pelos sikhs.
Os sexos circuncisados dos muçulmanos tornaram-se troféus. Os assassinos
cortavam-nos metendo-os depois na boca das suas vítimas ou nas das
mulheres muçulmanas assassinadas.
184
Durante trinta anos, a bandeira tricolor de algodão de khadi que ia em
breve substituir a Union Jack no céu da Índia flutuara nas reuniões,
manifestações e desfiles de um povo ávido de liberdade. Fora o próprio
Gandhi quem desenhara este emblema. No centro de três faixas horizontais
cor de açafrão, branca e verde, colocara o seu símbolo pessoal, o humilde
objecto que propunha às populações indianas para servir de instrumento à
sua redenção pacífica, a dobadora.
Gandhi soube desta decisão com profunda tristeza. «Quaisquer que sejam as
qualidades artísticas desse desenho, escreveu ele, recuso-me a saudar a
bandeira que exiba semelhante mensagem.»
Esta decisão era todavia o prelúdio de todos os desgostos que iam abalar
o coração do libertador da Índia. Não só a sua pátria bem-amada ia ser
dividida, como a Índia retalhada que estava prestes a surgir teria apenas
uma vaga semelhança com aquela por que lutara toda a vida.
O sonho de Gandhi fora sempre criar uma Índia nova capaz de dar à Ásia e
à terra inteira o exemplo vivo dos seus ideais morais e sociais. Se, para
os detractores, estes ideais eram somente manias de um velho demagogo,
representavam para os seus partidários uma tábua de salvação lançada ao
género humano por um velho sábio que permanecia lúcido num mundo que
enlouquecera.
Gandhi queria construir a sua Índia nova sobre as quinhentas mil aldeias,
facetas inumeráveis desse país que ele conhecia e amava, uma Índia
liberta da tecnologia, uma Índia voltada para Deus, medindo a passagem
das estações pelo ciclo das suas festas religiosas, os lustros pela
recordação das secas, os séculos pelo espectro das suas fomes terríveis.
Queria que cada aldeia se tornasse uma entidade autónoma capaz de
produzir a sua alimentação e vestuário, capaz de instruir os jovens e
curar os doentes. Proclamando que «muitas guerras podiam ter sido
evitadas na Ásia graças a uma tijela de arroz suplementar», procurara
constantemente novos géneros aptos a alimentar os camponeses indianos
famintos, experimentando ora a soja, os amendoins ou as nozes de manga
piladas. Insurgiu-se contra o polimento mecânico do arroz que o privava
de todos os elementos nutritivos da casca.
O seu pesadelo era uma sociedade industrial dominada pela máquina, uma
sociedade que sugaria as populações rurais para as fechar em ignóbeis
tugúrios urbanos, roubando-lhes o seu ambiente natural, destruindo os
laços familiares e religiosos, e tudo isto com o fim de produzir coisas
de que os homens não precisam. Não apregoava a pobreza, como alguns por
vezes o acusavam: sabia que ela acarreta fatalmente a degradação moral e
a violência que ele odiava. Mas a superabundância dos bens materiais
conduzia, na sua opinião, aos mesmos resultados. Frigoríficos bem
fornecidos, armários cheios em cada quarto não impediam um povo de sofrer
insegurança psicológica e corrupção espiritual.
1 Gandhi não se dava bem com os marxistas. A maior parte deles achavam as
suas teorias destituídas de qualquer valor científico. Por seu turno, ele
odiava o comunismo ateu, gerador de violência. A maioria dos socialistas
eram, na sua opinião, «socialistas de sala», incapazes de mudar o seu
estilo de vida e de sacrificar a menor das suas comodidades, esperando da
mesma forma ganhar o Nirvana.
187
Por mais ingénuas e contudo cheias de sabedoria que fossem estas
palavras, revelavam de forma angustiante o dilema inerente a todos os
ideais de Gandhi: constituíam um guia perfeito para actores imperfeitos.
Com o olhar fixo, o rosto normalmente tão vivo afivelado numa dor oculta,
Nehru ficou durante muito tempo a meditar nas terríveis consequências do
espectáculo que acabava de ver. Depois, suavemente, com ternura, como
para expiar o desgosto que lhe causara afastando-se dele, começou a
massajar os pés do velho adormecido ao serviço do qual dedicara tanto
tempo da sua vida.
191
Até mesmo Winston Churchill, dando o seu melancólico consentimento a «uma
boa leizinha», prestava uma homenagem inesperada à sabedoria de que o
rival Attlee dera provas escolhendo Mountbatten para último vice-rei.
Nenhuma declaração devia contudo resumir melhor o humor dos legisladores
britânicos que a observação do visconde Samuel: «Pode dizer-se
verdadeiramente do Império britânico o que Shakespeare dizia de Macbeth,
barão de Cawdor: «Nada na sua vida foi maior do que a sua morte».
- El-Rei o quer.
194
Era o soberano hindu hereditário de um reino cuja importância estratégica
se tornava capital, vasta encruzilhada com pouca população onde a Índia,
a China, o Tibete e o Paquistão estavam fatalmente destinados a
enfrentar-se um dia.
Não era todavia no cesto do indiano Patel que o vice-rei tencionava fazer
cair a maçã de Cachemir. O bom senso parecia ditar a integração de
Cachemir no Paquistão. Setenta e sete por cento dos seus habitantes eram
muçulmanos. Este fora um dos cinco territórios que o estudante Rahmat Ali
tinha reunido no seu «sonho impossível». O «K» de «Pakistan» vinha da
palavra inglesa Kashimir.
Eis o que o espera. Perde o trono, e talvez a vida se não tiver cuidado.
195
No dia seguinte, um ajudante de campo preveniu o vice-rei de que Sua
Alteza estava com uma cólica intestinal que o impedia de participar na
reunião prevista. Mountbatten teve a certeza de que se tratava de uma
doença diplomática. Nunca mais tornaria a ver Hari Singh. Aquela
«indigestão» marcara o início de uma tragédia que iria envenenar as
relações entre a Índia e o Paquistão.
O vice-rei teve mais sorte com os outros soberanos indianos. Para alguns,
pôr a sua assinatura no fim da Acta de Adesão foi um acto doloroso. Um
rajá do centro da Índia morreu a seguir de crise cardíaca. Com as
lágrimas nos olhos, o marajá de Dholpur declarou a Mountbatten: «Este
texto quebra uma aliança que unia os meus antepassados e os do vosso rei
desde 1765». O marajá de Baroda, cujo antepassado tentara matar o cônsul
britânico com o pó de diamante, deixou-se cair a chorar como uma criança.
O rajá de um minúsculo Estado hesitou durante vários dias, porque
continuava a acreditar na origem divina da sua soberania. Os oito
príncipes do Panjab assinaram juntos durante uma cerimónia organizada na
sala de banquetes do marajá de Patiala, onde Sir Bhupinder «O Magnífico»
oferecera as festas mais sumptuosas das Índias. Dessa vez, recorda uma
testemunha, «o ambiente era tão lúgubre que dir-se-ia uma cremação».
196
Encantado com a ideia de privar os seus rivais do Congresso indiano de
dois principados importantes, Jinnah estendeu imediatamente uma folha em
branco ao marajá de Jodhpur.
- Não têm mais do que inscrever aqui as suas condições, declarou ele, e
eu assino.
Três dias mais tarde, o marajá assinou a Acta de Adesão. Depois, ansioso
por esquecer aqueles momentos desagradáveis, resolveu enterrar o seu
passado oferecendo uma festa de que Menon foi o convidado de honra.
Durante todo o dia, encharcou o sóbrio funcionário vegetariano com whisky
e champanhe, após o que mandou servir um banquete sumptuoso com assados,
caça, orquestra e bailarinas. Foi uma noite de pesadelo para o pobre
Menon. Mas o pior ainda estava para vir.
Jinnah e o seu braço direito Liaquat Ali Khan ficaram tanto mais atentos
porquanto a organização a que pertencia o polícia britânico tinha fama de
ser o melhor serviço de informações existente nas Índias.
Ao ouvir estas palavras, Jinnah ficou branco como a cal. Liaquat Ali Khan
pediu a Mountbatten que mandasse prender imediatamente todos os
dirigentes sikhs. O vice-rei hesitava. Também essa atitude ameaçava
desencadear a guerra civil que o R. S. S. S. desejava.
- Quer então fazer com que matem o Senhor Jinnah! indignou-se ele.
199
Quando tomou conhecimento da mensagem, o homem que conhecia melhor que
ninguém o Panjab, encolheu os ombros em sinal de impotência.
O jurista britânico que até aí nunca pusera os pés nas Índias, começara o
seu trabalho de vivissecção. Fechado na vivenda de persianas verdes que o
vice-rei pusera à sua disposição no recinto do seu palácio, sufocando no
calor de Nova Delhi, Sir Cyril Radcliffe traçava sobre um mapa do estado-
maior do Royal Engineers as fronteiras que iam separar os oitenta e oito
milhões de indianos.
200
As estatísticas demográficas que deviam constituir a sua referência de
base eram inexactas e permanentemente falsificadas pelas partes em
presença para apoiarem as suas pretensões antagonistas.
Das duas províncias, foi a de Bengal que lhe deu menos trabalho.
Radcliffe hesitou apenas sobre o destino de Calcutá. A reivindicação da
cidade por Jinnah parecia-lhe justificada: a cidade permitiria o
escoamento natural da juta para as fábricas de transformação e para o
porto de exportação. Mas a forte maioria hindu da sua população
representava aos seus olhos um factor mais importante do que as
considerações económicas. Uma vez estabelecido este princípio, o resto
era relativamente simples. A sua fronteira não era todavia mais «do que
um risco de lápis traçado num mapa» com tudo o que isso acarretava de
arbitrário. No emaranhado de pântanos e planícies meio inundadas do
Bangal, não existia nenhuma barreira geológica que pudesse servir de
demarcação natural.
Aparte estas informações, ele não tinha praticamente nenhum contacto com
o exterior.
201
Quando se aventurava a ir a uma recepção ou um jantar, ficava
imediatamente cercado por uma multidão de pessoas que o assaltavam com as
suas súplicas. O seu único repouso era um curto passeio. Todas as tardes,
andava um bocado ao longo de um talude onde os ingleses tinham em 1857
reunido as suas forças para esmagar as revoltas de Delhi.
Pela meia noite, esgotado de fadiga, saía a dar alguns passos debaixo dos
eucaliptos do seu jardim. O jovem funcionário que lhe servia de
assistente acompanhava-o de vez em quando. Prisioneiro das suas
angústias, Radcliffe passeava a maior parte das vezes no jardim em
silêncio. Outras, os dois homens conversavam. Mas o sentido das
conveniências impedia Radcliffe de comunicar as suas preocupações a quem
quer que fosse, e o seu adjunto era demasiado discreto para fazer a menor
pergunta. Então, esses dois veteranos de Oxford falavam de Oxford na
quente noite indiana.
202
«Não havia tempo para sensibilidades, conta Patrick Famer, que em quinze
anos de serviço no Panjab nunca disparara um único tiro. Primeiro
aprendia-se a usar a metralhadora, depois a fazer interrogatórios.»
A própria natureza parecia unir-se contra eles. Dia após dia, fixavam o
céu à procura das nuvens anunciadoras da monção que nunca mais chegava.
Só as trombas de água torrenciais poderiam apagar os incêndios, e as
rajadas de ar fresco atenuar o calor abrasador que enlouquecia todos
aqueles homens. A monção fora sempre a arma mais eficaz para esmagar um
motim, mas era uma arma sobre a qual os polícias ingleses nunca haviam
tido o menor controle.
Em Amritsar, a situação era ainda pior. Matava-se nas vielas dos bazares
como se cuspia. Alguns hindus tinham inventado uma táctica
particularmente cruel. Vestidos como muçulmanos, aproximavam-se dos
muçulmanos autênticos e atiravam-lhes para os olhos ácido nítrico ou
sulfúrico. Incendiários lançavam tochas para dentro das casas e das
lojas.
203
Chamado «Panjab Boundary Force», este pequeno exército foi colocado sob o
comando do general inglês T. W. «Pete» Rees. Os seus efectivos
representavam o dobro dos que o governador da província julgara
necessários em caso de Partilha. Todavia, quando rebentasse a tempestade,
esta força seria desfeita como um molho de palha.
A verdade era que ninguém, nem Nehru, nem Jinnah, nem o iminente
governador do Panjab, sir Evan Jenkins, nem o próprio Mountbatten previam
então a amplitude da catástrofe que se preparava. Esta cegueira havia de
espantar os historiadores e suscitaria as maiores críticas ao último
vice-rei das Índias.
O único dirigente indiano que previu a tragédia foi Gandhi. Lidava tanto
com as massas, comungando com a sua vida diária e os seus sofrimentos,
que adquirira a faculdade quase mágica de pressentir-lhes as menores
variações de humor. Os íntimos gostavam de o comparar com o profeta de
uma velha lenda hindu sentado junto de uma fogueira, numa noite gelada de
Inverno, e que começa de repente a tremer. «Olha em redor, dizia o
profeta ao discípulo. Algures na escuridão, há um pobre homem a morrer de
frio.» O discípulo procurava na noite e descobria de facto a presença de
um desgraçado. Tal era, afirmavam os seus íntimos, o género de intuição
que o Mahatma tinha da alma indiana.
204
«Se tivessem que desencadear-se tumultos em Calcutá, diria mais tarde
Mountbatten, as torrentes de sangue que fariam correr tornariam, por
comparação, tudo o que pudesse acontecer no Panjab, num verdadeiro mar de
rosas.
Talvez, reconheceu Mountbatten. Mas nem Gandhi nem ninguém tinha sido
capaz de propor outra alternativa. Havia contudo alguma coisa que Gandhi
podia fazer agora. A sua personalidade e o ideal de não-violência podiam
fazer reinar em Calcutá a paz que as tropas eram incapazes de impor.
Gandhi, esse, seria o único reforço que ele mandaria à sua brigada
aflita.
Outra voz não tardou a levantar-se. E foi a do último homem que se podia
esperar ao lado de Gandhi. O líder muçulmano Sayyid Suhrawardy
simbolizava com efeito a antítese absoluta de todos os valores que o
Mahatma defendia.
Este homem adiposo, de quarenta e sete anos, era havia muito tempo o
chefe dos muçulmanos de Calcutá. Era o protótipo do político corrupto e
venal que Gandhi denunciava. A sua filosofia política era simples: uma
vez eleito, não há razão para um homem abandonar mais as suas funções.
Suhrawardy assegurava assim a sua presença contínua no poder, utilizando
os fundos públicos para manter uma máfia de homens de acção encarregados
de reduzir ao silêncio os adversários políticos a golpes de matraca ou de
punhal.
205
Durante as fomes que assolaram o Bengal em 1943, interceptara e vendera
no mercado negro dezenas de toneladas de auxílios alimentares destinados
aos seus compatriotas. Vestia fatos de seda talhados por medida e calçava
sapatos de crocodilo de duas cores. Os cabelos pretos, tratados todas as
manhãs pelo cabeleireiro particular, reluziam de brilhantina. Enquanto
Gandhi lutava havia quarenta anos para extinguir no seu corpo os últimos
vestígios do apetite sexual, Suhrawardy fazia gala em seduzir todas as
bailarinas de cabaret e todas as prostitutas da alta de Calcutá. Se
Gandhi se permitia às vezes os benefícios de um pouco de bicabornato de
sódio na água, o copo de Suhrawardy só se enchia geralmente de champanhe.
Enquanto as ementas do Mahatma se limitavam a algumas colheres de sopa de
lentilhas, de soja ou de iogurte, as de Suhrawardy incluíam grossas
postas de carne, toda a espécie de caril e pastelaria exótica, regime que
o envolvera de uma manta de gordura que contrastava com a magreza dos
seus concidadãos.
Mas havia pior: tinha as mãos tintas de sangue. Decretando dia feriado a
famosa jornada de acção directa organizada por Jinnah, retendo a polícia,
encorajando secretamente os seus partidários da Liga muçulmana,
Suhrawardy, então Primeiro ministro do Bengal, era responsável pelos
atrozes massacres que haviam devastado Calcutá em Agosto de 1946.
Era agora o receio das represálias hindus que o levava a pedir auxílio a
Gandhi.
Uma das grandes forças de Gandhi fora saber sempre distinguir a parte boa
do adversário. Percebeu no coração de Suhrawardy uma verdadeira angústia.
207
De um extremo ao outro das Índias, uma série ininterrupta de recepções,
de chás, de jantares, bailes, marcou a passagem do Império para a
Independência.
A Grã-Bretanha desejava, declarou Lord Ismay, que «os dois novos Estados
possam recordar com orgulho os nossos três séculos de associação com as
Índias. Talvez eles não queiram essas recordações, mas é a eles que
compete dizê-lo».
- Pode ser que estejamos a liquidar o Império, murmurou ele, mas não
vamos abandonar este tesouro aos indianos.
209
E indicava um pesado baú metálico colocado no meio do gabinete e de
que só ele possuía a chave. John Ward Orr, um dos seus dois subordinados,
abriu cerimoniosamente o baú, esperando encontrar alguma fabulosa
escultura hindu ou um Buda coberto de jóias. Com grande espanto,
verificou que só havia lá dentro livros cuidadosamente arrumados. O
«tesouro» constituía uma última homenagem às virtudes do espírito
burocrático. Era a colecção completa das obras pornográficas que as
alfândegas britânicas tinham apreendido havia cinquenta anos, achando-as
demasiado escabrosas para o país cujos templos estavam todavia
ornamentados com as esculturas mais eróticas jamais talhadas pela mão do
homem. John Ward Orr folheou uma das obras, um album intitulado Les
Trente Positions de l'Amour. Achou que as poses prosaicas ali
representadas tinham tanto que ver com os requintes do erotismo dos
deuses hindus dos templos de Khajuraho como uma matrona de café-concerto
com a graça de uma primeira bailarina da Ópera.
Como sempre, estava sozinho. Fechado no seu silêncio, Mohammed Ali Jinnah
dirigia-se para uma pedra tumular do cemitério muçulmano de Bombaim.
Viera ali cumprir um acto que milhões de outros muçulmanos iriam cumprir
também nos próximos dias. Antes de partir para a sua terra prometida do
Paquistão, Jinnah depôs um último ramo de flores na campa que deixava
para sempre atrás de si. Jinnah era um homem extraordinário, mas
provavelmente, nada na sua vida fora mais extraordinário ou em todo o
caso mais insólito, do que o amor profundo e apaixonado que dedicara à
esposa. O seu amor e o casamento tinham desafiado quase todas as regras
da sociedade indiana da sua época. Na verdade, Ruttie Jinnah não devia
ter sido enterrada naquele cemitério islâmico. A esposa do messias
muçulmano das Índias não nascera na religião de Maomé; era uma parsi,
membro da seita que descendia dos zoroastrianos adoradores do fogo da
pérsia antiga e que colocavam os corpos dos seus mortos no alto das
torres cara serem devorados pelos abutres.
210
Fora com a idade de quarenta anos, durante umas férias em Darjeeling e
quando parecia destinado ao celibato, que Jinnah se apaixonara loucamente
por Ruttie, filha de um dos seus amigos. Ela tinha menos vinte e quatro
anos do que ele, e ficou completamente fascinada (Nota 1). Furioso, o pai
da jovem conseguiu uma ordem do tribunal proibindo o seu ex-amigo de
tornar a ver a rapariga, mas no dia em que fez dezoito anos, levando como
bagagem apenas o seu cãozinho de estimação nos braços, a apaixonada
Ruttie fugiu da casa do pai milionário e desposou Jinnah.
O casamento durou dez anos. Muito bela, Ruttie Jinnah tornou-se de uma
sedução lendária na cidade de Bombaim, famosa pelo esplendor das suas
mulheres. Gostava de envolver a sua silhueta esguia com saris diáfanos ou
de se mostrar com vestidos cingidos que escandalizavam a boa sociedade.
Era ao mesmo tempo uma mundana e uma ardente nacionalista indiana.
Nota 1 - Jinnah já fora casado com uma criança que nunca tinha visto e
que um amigo dos pais escolhera para ele antes da sua partida para os
estudos em Londres. Segundo o costume, ela fora representada pelos pais
na cerimónia de casamento. Morreu antes do regresso de Jinnah de
Inglaterra.
211
O seu jovem ajudante de campo, o tenente de marinha Sayyid Ahsan — até
então ajudante de campo favorito do vice-rei que o tinha nomeado
pessoalmente, devido às suas qualidades excepcionais, para velar pelo
novo governador geral do Paquistão —, acompanhou Jinnah até à escada do
DC 3 prateado que Mountbatten lhe emprestara. Antes de entrar para o
avião, o líder muçulmano voltou-se para abarcar com os olhos a capital
onde dirigira a sua luta por um Estado islâmico. «Julgo, disse ele, que é
a última vez que contemplo Nova Delhi.»
A sua casa de Aurangzeb Roda, N.° 10 fora vendida. Durante muitos anos,
organizara ali a luta, sentado sobre um mapa gigante das Índias, feito de
prata, onde estavam marcadas as fronteiras do seu «sonho impossível». A
ironia do destino quis que o novo proprietário fosse um rico industrial
hindu chamado Seth Dalmia. Dentro de algumas horas, no sítio onde
flutuara a bandeira verde e branca da Liga muçulmana, seria hasteada «a
bandeira sagrada da vaca», emblema de uma outra liga, a favor da
proibição do abate das vacas, de que a ex-residência de Jinnah passava a
ser o quartel general.
Passou todo o tempo do voo a saciar a sua paixão pela leitura dos
jornais. Tirava-os um a um da pilha colocada à sua esquerda, lia-os,
dobrava-os cuidadosamente e punha-os na cadeira à sua direita. Nenhum
sinal de emoção lhe aflorava o rosto enquanto lia as reportagens
entusiastas dedicadas ao seu triunfo. Não pronunciou uma palavra em toda
a viagem, não traiu o menor sentimento, não deixou escapar o mais pequeno
indício do que poderia sentir no momento em que o seu sonho se tornava
realidade. Quando o avião chegou à vista de Carachi, o ajudante de campo
Sayyid Ahsan descobriu de súbito, sob as asas do aparelho, «o imenso
deserto no qual avançava um mar de gente vestida de branco». O reflexo do
Sol, acentuava a brancura dos trajes. Fátima, a irmã de Jinnah, agarrou-
lhe na mão, emocionada.
O líder muçulmano estava tão cansado da viagem que nem sequer teve forças
para se levantar do lugar à paragem do DC 3. Sayyid Ahsan ofereceu-se
para o ajudar, mas Jinnah recusou. O Quaid-i-Azam não faria a sua entrada
na capital apoiada ao braço de ninguém. Reunindo as últimas forças,
levantou-se para descer a escada e abrir caminho até ao carro através da
multidão compacta.
212
Milhares de corações soltavam vivas ininterruptos, Pakistan Zindabad! e
Jinnah Zinadabad!.
— Para onde quer que vão, gritou por sua vez Idriss, ficaremos sempre
irmãos, porque vertemos juntos o nosso sangue.
Correram ao bar para beberem juntos e contarem uma última vez as boas
velhas histórias de guarnição de pólo, dos desertos da Africa, des selvas
birmanesas, de incursões contra os seus compatriotas da fronteira af-gã,
todas aquelas anedotas que marcam uma carreira de perigos e de aventuras
vividas na camaradagem do sangue vertido.
-Estamos aqui para dizer até à vista, e apenas até à vista, porque vamos
encontrar-nos em breve no mesmo espírito fraternal que sempre nos uniu -
declarou ele. Compartilhámos tanto tempo o mesmo destino, que a nossa
história é indivisível.
Quando terminou, o general hindu pegou num pesado troféu de prata coberto
por um pano, e ofereceu-o ao general Aga Raza, o oficial muçulmano de
posto mais elevado, como presente de despedida dos oficiais hindus aos
seus companheiros de armas muçulmanos. Raza destapou o objecto e brandiu-
o no ar para o mostrar à assistência. Trabalhado por um ourives de Nova
Delhi, representava dois cipaios, um hindu e outro muçulmano, de pé lado
a lado, com as espingardas apontadas a um inimigo comum.
Tornariam a ver-se com efeito, conforme tinham prometido, mas muito mais
cedo e em circunstâncias bem diferentes do que haviam imaginado. Não
seria nos campos de polo de Lahore, que se encontrariam os veteranos do
Exército das Índias, mas nos campos de batalha de Cachemir. Ali, as
espingardas dos dois cipaios do troféu de prata já não estariam apontadas
a um inimigo comum, mas voltadas uma contra a outra.
216
Capítulo décimo primeiro
«Gandhi, és um traidor!»
O seu destino estava muito próximo. Era Calcutá, aquela metrópole de dois
milhões e meio de habitantes que fora, durante gerações, a grande capital
das Índias, o centro das letras e das artes, das ciências e da filosofia.
Mas, neste verão agitado, Calcutá era também um lugar que podia
assemelhar-se à manifestação do inferno na terra, um bairro da lata
maldito da «Cidade das noites de horror» de Rudyard Kipling.
Foi em 13 de Agosto, pouco depois das 3 horas da tarde, que num velho
Chevrolet chegou o homem que queria tentar impedir esta carnificina. O
carro percorreu uma longa sequência de fachadas leprosas e parou frente a
uma grade com o número 151 em Beliaghata Road. Aí, no meio de uma espécie
de terreno vazio transformado em charco pela monção, elevava-se uma vasta
construção ameaçando ruína, casa decrépita surgida de um cenário de
Tennessee Williams.
Eram todos hindus e muitos deles tinham tido um parente massacrado, uma
mulher ou uma filha violadas por muçulmanos durante as desordens do verão
precedente. A aproximação do carro, começaram a gritar o nome de Gandhi.
Mas, pela primeira vez na Índia, não aclamavam este nome. Conspurcavam-
no. Com os rostos deformados pela raiva e pelo ódio berravam: «Gandhi, és
um traidor! Vai salvar os nossos irmãos hindus de Noakhali! Protege os
hindus, não os muçulmanos!». Ao mesmo tempo, uma chuva de pedras caía
sobre o carro daquele que metade do mundo considerava como um santo.
- Vim aqui para defender tanto os hindus como os muçulmanos. Vou colocar-
me sob a vossa protecção. Tendes perfeitamente o direito de vos voltardes
contra mim, se quiserdes. Já quase atingi o fim da viagem da minha vida.
Já não tenho muito caminho a percorrer. Mas prefiro morrer imediatamente
que ver-vos mergulhar na loucura.
- Como poderia eu, eu que sou um Hindu pelo meu nascimento, o Hindu dos
Hindus pela minha maneira de viver, ser um inimigo dos Hindus? Perguntou
ele à multidão encolerizada.
219
O raciocínio de Gandhi, a extrema simplicidade do seu ponto de vista
pareceram embaraçar os manifestantes. Depois de ter prometido conversar
com os seus representantes, Gandhi e os discípulos foram instalar-se na
sua nova casa. O arrependimento foi de curta duração. A chegada de Sayyid
Suhrawardy, o Muçulmano mais amaldiçoado pelas massas Hindus, provocou
uma nova explosão de furor. Os amotinados bombardearam a casa com
projécteis. Uma pedra pulverizou uma das suas raras vidraças semeando com
estilhaços de vidro a divisão em que Gandhi se encontrava. Acocorado no
chão, imperturbável, o Mahatma continuava a redigir a sua
correspondência. Porém, acabava de se produzir uma viragem dramática na
sua existência. Nesta tórrida tarde de Agosto, pela primeira vez desde o
seu regresso da África em 1915, e apenas a algumas horas do fim da longa
marcha da Índia para a liberdade, uma multidão do seu país levantara-se
contra ele.
Voltando-se então para Jinnah cujo rosto não traía mais emoção que uma
máscara mortuária, Mountbatten prestou homenagem ao pai do Paquistão.
«Qual é? Pensava ele. É este a quem dirijo uma saudação? Ou este outro ao
lado?» O seu olhar demorava-se em tudo o que pudesse parecer insólito no
meio desta multidão em festa: um homem que não sorria ou que sorria
demasiado... este que estava demasiado calmo, este outro demasiado
agitado... ou talvez ainda aquele cujo fato estranho realçava entre os
que o rodeavam. Estúpidas reflexões atravessaram o seu espírito. Lembrou-
se que o secretário de um governador de Bengala interceptara um dia em
pleno voo a bomba de um assassino e a voltara a atirar, mas esta proeza
recordou-lhe que ele próprio nunca fora capaz de apanhar uma bola de
cricket. Pensava na mulher, atrás de si, e interrogava-se, se, como
estava convencido, ela obrigara o motorista a infringir as suas ordens.
Não ousava interromper a sua vigilância para se voltar e o verificar.
Incessantemente, os seus olhos continuavam a perscrutar o horizonte por
detrás da multidão, espreitando a aparição repentina de um bocado de
metal no céu.
224
«Que grande atrevimento!» pensou Mountbatten. - Trouxeste-me vivo?
Exclamou. Mas, valha-me Deus, fui eu que vos trouxe vivo!
225
Mas, se as chamas de um combate fratricida abrasarem o país, como
sobreviverá a nossa jovem liberdade?
O homem que fora o obreiro desta liberdade revelou aos seus partidários
que, pessoalmente, não participaria nos festejos da Independência da
Índia. Pediu aos seus discípulos para passarem com ele este dia histórico
«jejuando e rezando pela salvação da Índia e fiando o mais possível,
porque era esta cara roda de madeira que era o melhor para salvar o seu
país do desastre».
226
Nunca haveria paradas triunfais nas ruas de Karachi para o eterno
estudante Rahmat Ali, nenhuma multidão lhe manifestaria a sua gratidão.
Doravante o seu sonho pertencia a um outro homem, aquele que o repelira
quando ele lhe propusera tornar-se o campeão da libertação do seu povo.
Rahmat Ali ocupou este dia de glória em que o seu ambicioso projecto se
tornara realidade a redigir um panfleto condenando Jinnah por ter aceite
a partilha do Panjab. Mas jogava uma partida antecipadamente perdida.
Todo um povo reconhecido ia em breve gastar o equivalente a meio milhão
de francos para construir em Karachi um mausoléu em memória do Mohammed
Ali Jinnah. Para o visionário que inventara o Paquistão, não haveria
mais, um dia, que uma sepultura anónima num cemitério de Newmarket,
Inglaterra.
227
A pequena procissão atravessou as ruas da capital até à porta de uma
modesta vivenda, no número 17 de York Road. Era aí que os emissários de
uma Índia forjada de superstição e de magia tinham encontro com o profeta
de uma Índia nova, a Índia da ciência e do socialismo. Do mesmo modo que
os santos homens de outrora eram chamados a consagrar nos seus poderes os
antigos reis da Índia, do mesmo modo os sannyasin tinham vindo esta tarde
oferecer a consagração pelas antigas insígnias da autoridade ao homem que
ia assumir a direcção de uma moderna nação indiana.
228
O corneteiro pôs-se em sentido e levantou o seu instrumento. Com o
coração opresso baixou a bandeira ao apelo do toque. Desatou-o e dobrou-o
cuidadosamente, decidido a conduzi-la «para lugar seguro na Inglaterra,
donde viera». Depois ofereceu um grande sino de cobre que comprara num
shipchandler de Bombaim, para substituir o tantãn do posto da guarda.
Mandara-lhe gravar uma breve homenagem: «ao Khyber Rifles Regiment da
parte do capitão Kenneth Dance, 14 de Agosto de 1947». Nesta mesma tarde,
quase na outra extremidade das Índias, uma bandeira Britânica descia do
seu mastro pela primeira vez em 90 anos. A residência do governador de
Lucknow era o santuário da Índia imperial, o relicário das mais gloriosas
recordações do império, a cidadela cuja tenacidade incarnara o poderio da
Inglaterra face à adversidade. Ninguém levantara as suas ruínas,
religiosamente preservadas desde aquele dia de 1857 em que os mil
sobreviventes da sua guarnição tinham aclamado a coluna de socorro que os
libertaria do cerco de 87 dias imposto pelos rebeldes indianos.
229
Incêndios destruíam já numerosos bairros.
Nehru lamentou-se com uma voz dificilmente audível: — Como vou eu poder
falar esta noite à nação? Como vou poder pretender que o meu coração se
alegre pela independência da Índia quando sei que Lahore, a nossa bela
Lahore, está em chamas?
230
Os fiéis vinham em seguida apresentar-se perante uma jovem que tinha nas
mãos uma taça de cobre contendo pó de sinábrio. Ela mergulhava o polegar
da mão direita na taça e colocava respeitosamente na fronte de cada
ministro uma mancha vermelha, aquele «terceiro olho» que vê a realidade
para além das aparências. Finalmente prontos a cumprir a missão que os
esperava, estes homens e esta mulher do primeiro governo livre da Índia
penetraram no recinto pavimentado do Parlamento onde, dentro de alguns
instantes, iam assumir a responsabilidade de conduzir o destino de mais
de trezentos milhões de indianos.
Veio-lhe uma ideia. «Senhor Deus, exclamou alto, encontrei. Vou fazer da
Bégum (Nota 1) de Palanpur uma Alteza. «Entusiasmado por esta
perspectiva, convocou imediatamente os seus colaboradores.
- Quem ousa pretender que não posso, replicou Mountbatten rindo. Sou ou
não o vice-rei das Índias?
Desde a noite dos tempos, muito antes de o homem gravar na pedra a magia
das suas legendas, o choro dos búzios saudara o nascimento da aurora nas
costas da Índia. De pé no recinto do Parlamento, um indiano embrulhado
num pedaço de khadi preparava-se hoje para anunciar a centenas de milhões
de homens o nascimento de uma nova aurora. Trazia debaixo do braço uma
concha comprida de nácare de rosa e de púrpura. Este homem era o arauto
das massas indianas vindas à rua para reclamar a liberdade.
234
O homem que ia carregar com a esmagadora responsabilidade de saldar a
Índia do seu infortúnio levantou-se para falar. Após a sua dolorosa
conversa telefónica com Lahore, Jawaharlal Nehru não tivera nem o tempo
nem a força de preparar um discurso para celebrar a independência,
improvisou a sua alocução, deixando falar o coração.
Esta época começara num dia de verão do ano de 1492 num pequeno porto da
Espanha. Partindo pelo infinito dos oceanos em busca da Índia, Cristóvão
Colombo tinha, por engano, descoberto a América.
235
Quatro séculos e meio da história do homem tinham a marca desta
descoberta e das suas consequências: a exploração religiosa, económica e
política dos povos de cor através do globo pelo Ocidente Cristóvão,
Inkas, Swahilis Egípcios, Iraquianos, Hotentotes, Chineses, Algerianos,
Birmanos, Filipinos, Marroquinos, Vietnamianos, uma interminável onda de
povos, de nações, de civilizações que quatrocentos e cinquenta anos de
experiência colonial tinham dizimado, empobrecido, domesticado,
envelhecido, convertido, enriquecido, explorado ou economicamente
estimulado e sempre irrevogavelmente transformado.
Para além dos muros do Parlamento de Nova Deli, na imensidade dos dois
Estados que acabavam de nascer, o apelo do búzio encontrou o seu eco na
alegria delirante de milhões de homens.
236
Nova Deli celebrava esta gloriosa noite por uma orgia de iluminações. O
vasto centro comercial de Connaught Circus e as ruelas da cidade velha
rebrilhavam de lâmpadas cor de açafrão, brancas e verdes. Os templos, as
mesquitas e os guru-dwara sikhs estavam enfeitados de lanternas
multicolores, bem como o Forte vermelho dos imperadores Mongóis.
Nota 1 - Os Duggal Singh casaram alguns meses mais tarde no Tempo de Ouro
de Amritsar, o santuário sagrado dos Sikhs. Mas durante onze anos foram
considerados suspeitos e tiveram de viver como párias, sem emprego nem
casa. Tiveram três filhos e habitam hoje Nova Deli. Ele é editor, ela é
médica.
237
Nessa manhã, o mullah de uma mesquita lembrara aos seus fiéis que os
muçulmanos tinham reinado durante séculos sobre Deli e que «Inch Allah,»
com a graça de Deus, iam recomeçar». Inversamente, refugiados hindus e
sikhs do Panjab amontuados em campos de ocasião à volta da cidade
ameaçavam transformar os bairros muçulmanos da capital «numa gigantesca
fogueira para celebrar a independência».
238
Em Madras, Bangalore, Patna, em milhares de cidades e de aldeias, as
multidões entraram à meia noite nos templos para depor pétalas de rosa
aos pés das divindades e pedir as suas bênçãos para a nova nação. Em
Renares, o pasteleiro mais reputado fez um excelente negócio
confeccionando um bolo da independência com as cores nacionais à base de
polpa de laranja, de arroz doce e de pistacha.
Uma outra série de recepções que, essas, não tinham nenhum carácter de
regozijo, inaugurou igualmente o início da nova era nos palácios de
alguns representantes da velha Índia dos príncipes. Passara o tempo dos
Maharajas. Para a maior parte deles, o 15 de Agosto seria um dia de luto.
O nizam de Hyderabad ofereceu no seu palácio iluminado um banquete de
despedida aos funcionários britânicos do seu reino cuja missão terminava
esta noite, ao mesmo tempo que se rompiam os laços privilegiados que o
uniam à coroa de Inglaterra. A exuberância da numerosa progenitura do
nisam e a elegância das mulheres não impediram que a soirée se
desenrolasse numa atmosfera de velada fúnebre. No fim da refeição, mesmo
antes da meia noite, o velho monarca vestido de calças remendadas
levantou-se para propor um último brinde ao rei-imperador. John Peyton,
um dos convivas ingleses, observou o rosto fúnebre do seu hospedeiro.
«Como é triste, pensou, ver acabar duzentos anos de história neste único
e patético gesto de adeus».
Para muitos indianos, a noite com que há tantos anos sonhavam foi um
terrível pesadelo. Para o tenente coronel Jangu T. Sataravala, um Parsi
coberto de condecorações do Frontier Force Rifles, ficaria para sempre
associada à mais revoltante visão: a dos corpos horrivelmente mutilados
de toda uma família de hindus ardendo nas ruínas de um subúrbio de
Quetta, no Baluquistão. Ao lado, massacrados com igual selvajaria, jaziam
os cadáveres da corajosa família muçulmana que oferecera hospitalidade a
estes hindus. Sushila Nayar, uma jovem médica, passara dois anos na
prisão e consagrara a sua vida à causa cujo termo era esta noite.
239
Contudo, nem sentia alegria nem sentimento de vitória. Enviada por Gandhi
a um campo de refugiados do Panjab, apenas tinha consciência da miséria
dos milhares de infelizes de que estava encarregada e que incessantemente
aprendiam a obscuridade de recear ver surgir Muçulmanos vindos para os
matar.
Lahore, a cidade que deveria ter sido a mais feliz de todas, oferecia um
espectáculo de desolação. Chegado ao anoitecer com os seus Gurkhas o
capitão Robert Atkins viu acorrer à sua tenda uma multidão de hindus
aterrorizados. Agarrados aos filhos, a uma trouxa, a um colchão,
imploravam a protecção dos soldados. Cerca de cem mil hindus e sikhs
estavam cercados nas muralhas da velha Lahore, sem água, rodeados pelas
chamas dos incêndios, perseguidos por grupos de muçulmanos prontos a
saltar sobre aqueles que se aventurassem a sair. Os incendiários tinham
já deitado fogo ao mais célebre guru-dwara sikh e saudado com ovações os
gritos das suas vítimas que ardiam no interior.
240
Um pouco depois da meia noite, uma delegação do Parlamento indiano chegou
ao palácio. Na sua qualidade de presidente da nova assembleia
constitucional, o Dr. Rajendra Prasad vinha solenemente convidar o últi-
mo vice-rei das Índias a tornar-se o primeiro governador geral da Índia
independente. Com emoção e gravidade, Lord Mountbatten prometeu servir a
Índia como se ele próprio fosse indiano. Nehru entregou-lhe em seguida um
envelope contendo a lista das personalidades que, com o seu acordo,
deviam formar o primeiro governo da nova Índia.
Rule Dean, o seu colega de Amritsar que lhe enviara a fanfarra tocar
operetas à praça da cidade, contemplava com melancolia a paisagem que
desfilava, por detrás dos vidros do seu compartimento. Via as chamas
devorando as aldeias que tinha como missão proteger. No clarão
avermelhado dos braseiros, distinguia por vezes as silhuetas dos
incendiários dançando uma dança macabra.
241
A meio caminho de Nova Delhi, foi atrelado ao comboio um vagão-
restaurante. À vista da louça e das toalhas imaculadas o oficial inglês,
que em breve venderia utensílios de plástico num subúrbio de Londres,
compreendeu que o Pankjab passara para um outro mundo.
243
Depois, para lhe agradecer este prodígio, os fiéis ofereceram-lhe água de
Ganges - a que dissolve todas as formas - que deixaram correr das suas
mãos entreabertas.
Com um vaso de cobre cheio de água do Ganges e uma taça de sândalo nas
mãos, o padre atravessou o templo para se deter perante uma grande pedra
de granito. Este rochedo arredondado era a mais preciosa relíquia hindu
de Benares. Subtraindo-a à pilhagem das hordas fanáticas do imperador
Aurangzeb, os antepassados do santo homem haviam conquistado o direito de
serem os seus guardas hereditários. Que o padre viesse prosternar-se
perante ele, era o gesto mais próprio para dar graças aos deuses neste
dia da independência.
Este culto era uma das mais antigas formas do fervor religioso.
244
Alguns minutos mais tarde, quatro homens levando aos ombros uma padiola
de bambu desembocaram no cimo da escada. Diante deles caminhava uma Qumta
personagem que ritmava docemente em pequenos címbalos e mantra sagrado
que eles salmodiavam «Râmnam satya kai» - o nome de Râm é Verdade». Estas
palavras lembravam a todos os que viam passar a pequena procissão que um
dia também eles acabariam como este corpo que repousava na padiola,
embrulhado numa mortalha de algodão.
Cerca de das duas horas da manhã - uma hora antes do levantar habitual de
Gandhi -, apareceu à janela de Hydari Mansion a luz incerta de uma vela.
O dia em que o seu povo celebrava a libertação deveria ter sido uma
apoteose para o velho profeta, a coroação de uma cruzada que provocara a
admiração do mundo e mudara o curso da história. Não era nada disso. A
vitória porque aceitara tantos sacrifícios tinha um gosto a cinzas.
245
Como era hábito nos momentos de incerteza e de sofrimento, Gandhi
debruçara-se desde o despertar sobre o livro desde há tempo tornado o seu
guia, o canto celeste da Bhagavad Gítâ. Quantas vezes os seus versículos
o não tinham consolado já?
246
Ao chegar ao campo, o camponês suspendeu o seu triplo cordel de brâmane
na orelha esquerda, cobriu a cabeça com as abas do dhoti, tirou as
sandálias e agachou-se tão baixo quanto possível. Qualquer outra posição
era incorrecta. Devia então observar um silêncio absoluto e nem olhar o
sol, nem a lua, nem as estrelas, nem o fogo, nem uma figueira, nem um
outro brâmane, nem o templo da aldeia.
Quando terminou, Ranjit Lai levantou-se evitando olhar para trás e lavou
os pés e as mãos com a água, da sua jarra. Depois, tendo cuidado em
proteger, com a mão esquerda, as suas partes íntimas, dirigiu-se ao
tanque da aldeia. Para as suas abluções, utilizou um punhado de terra
cuja natureza estava rigorosamente determinada. Não devia, sob qualquer
pretexto, provir de uma pastagem, de um cemitério, do recinto de um
templo, de um formigueiro, do pé de uma árvore, de um terreiro ou de um
caminho. Nem devia ser salgada nem estéril e não devia servir para os
oleiros. Misturando a terra com água, o camponês limpou, sempre com a mão
esquerda, a parte suja do seu corpo1. Após isso, lavou as mãos cinco
vezes seguidas começando pela esquerda, igualmente cinco vezes os pés
começando pelo direito, depois lavou três vezes a boca tendo o cuidado de
cuspir bem para a esquerda a água poluída. Feito isto, estava preparado
para respeitar a vigésima terceira prescrição que acompanhava a
libertação quotidiana dos seus intestinos. Purificou o interior do seu
corpo bebendo, pela concha da mão, junto do punho, três goladas de água
em que invocara a presença do Ganges.
247
«Sede bendita, maravilhosa aurora de liberdade, que imunda de ouro e de
púrpura uma antiga capital», cantava o poeta às multidões que submergiam
a cidade. Havia caravanas de tonga, tocando alegremente todos os seus
guisos. Havia bois com os cascos e os chifres pintados de açafrão branco
e verde, que puxavam compridos carros cheios de famílias em júbilo. Havia
camions transbordando de cachos humanos, com o tejadilho e os lados de
corados com pinturas ingénuas cheias de serpentes, de águias de falcões e
de vacas sagradas sobre um fundo de montanhas cobertas de neve. As
pessoas chegavam montadas em burros, a cavalo, de bicicleta, a pé,
camponeses com turbantes de todas as cores, mulheres vestidas com saris
cintilantes e com toda uma quinquilharia de jóias que lhes brilhavam nos
braços, nos tornozelos, nos dedos e nas narinas.
Nesta barafunda fraternal, nem existia posição, nem casta, nem religião.
Brâmanes, intocáveis, hindus, sikhs, muçulmanos, parsis, anglo-indianos,
todos riam, cantavam, choravam.
Ranjit Lai alugara por quatro anos uma tonga em que se meteram a mulher e
os sete filhos. À sua volta, ouvia camponeses volúveis explicar porque
iam todos a Nova Deli. «os ingleses vão-se embora, gritavam eles. Nehru
vai içar a nossa bandeira. Somos livres!»
248
Tomando o lugar ao lado dos ministros, Mountbatten pensou com humor que
pelo menos todos tinham em comum uma experiência, a de terem sido os
hóspedes das prisões britânicas. Foi portanto perante este nobre areópago
de antigos pensionistas da administração penitenciária de Sua Magestade
que levantou a mão direita para jurar solenemente ser o humilde e fiel
servidor da Índia independente. Os ministros de que, na véspera, Nehru se
esquecera de dar a lista, prestaram por sua vez juramento perante o
inglês que dera a independência ao seu país.
Para além, a Índia esperava. Uma Índia como nenhum inglês pudera
contemplar em três séculos de colonização. A verdadeira dimensão fora
sempre o desmedido das suas multidões, mas nunca um tal oceano havia
submergido Nova Deli. O cortejo depressa foi invadido, os cavalos da
guarda obrigados a marcar passo. O protocolo de calcado sobre as
tradições de uma outra Índia foi afastado, absorvido pela Índia nova,
triunfante que afogava o ouro e a púrpura no turbilhão de milhares de
cabeças morenas.
249
Ao ver a bandeira do seu país flutuar pela primeira vez na messe dos
oficiais de Nova Deli, o major indiano Ashwini Dubey pensava: «Nesta
messe onde nós fomos bodes expiatórios, agora já apenas haverá acima de
nós camaradas indianos».
Este dia trouxe uma liberdade ainda mais tangível a uma certa categoria
de cidadãos. Uma amnistia geral abriu as portas das prisões a centenas de
presos políticos. Foram comutadas condenações à morte. Mesmo os animais
foram privilegiados, estando todos os matadouros fechados nesse dia. A
Índia mística, a Índia dos Fakirs e das lendas, tomou parte na festa. Em
Turukalikundram no sul, as duas águias brancas que todos os dias ao meio
dia descem do alto dos céus para vir comer às mãos do padre do templo,
celebraram o acontecimento batendo alegremente as asas, afirmou-se. Na
selva de Madura perto de Madras, sadhus entregaram-se a espectaculares
demonstrações. Suspensos de ganchos enterrados nas costas dedicaram o seu
sacrifício à independência da Índia - e recolheram logo uma abundante
colheita de esmolas.
250
O dia foi marcado por uma boa vontade geral para com os ingleses e _ela
dignidade com que estes últimos participaram nas cerimónias. Em Shillong,
o coronel britânico que comandava os atiradores dos Assam Rifles
esquivou-se discretamente para deixar ao seu adjunto indiano a honra Je
presidir ao desfile da independência. Peter Bullock, director da imensa
plantação de chá de Chuba, perto da fronteira Birmane, deu feriado aos
seus mil e quinhentos trabalhadores e ofereceu-lhes uma grande festa,
enquanto que a maior parte deles não conhecia a razão disso.
252
Um pormenor o impressionou. Quando o assobiar do vapor e o chiar dos
travões se calaram, o chefe da tare compreendeu que no expresso n.° 10 se
passava algo de insólito. Um silêncio petrificado abatera-se sobre o
cais. Chani Singh inspeccionou a enfiada dos oito vagons. Todos os vidros
dos compartimentos estavam baixados, mas não se via nenhum viajante. Nem
uma portinhola se abrira. Ninguém descia dos vagons. Era um comboio de
fantasmas que acabara de entrar na gare de Amritsar. O chefe da gare
desferrolhou uma portinhola e subiu ao interior para aí descobrir um
amontoado de corpos degolados, desventrados, com os crânios rebentados.
Pernas, braços, troncos juncavam os corredores. De uma pilha de cadáveres
saiu um gemido estrangulado. Chani Singh gritou imediatamente «estais em
Amritsar, aqui somos todos hindus e sikhs. A polícia está aí. Não tenhais
medo». Alguns feridos mexeram-se então levemente. O pesadelo ficaria
gravado na memória do chefe da gare. Uma mulher apanhou a cabeça do
marido num lago de sangue e apertou-a nos braços gritando. Crianças
agarravam-se às mães massacradas, homens loucos de dor retiraram duma
pilha de cadáveres os corpos mutilados dos seus filhos. Estonteado, o
chefe da gare corria de um vagon para o outro. Em cada compartimento, o
espectáculo era o mesmo. Ao último, foi acometido de náusea e começou a
vomitar. Asfixiado pelo cheiro de carneiro, fechou os olhos,
interrogando-se «como os deuses tinham podido permitir semelhante
horror». Quando levantou a cabeça, descobriu, pintada em letras grandes
no lado da última carruagem a assinatura dos assassinos. Leu: «Este
comboio é o nosso presente de independência a Nehru».
253
A um grupo de responsáveis políticos vindos procurar a sua bênção
declarou: «Desconfiai do poder, porque o poder corrompe. Não caiais nas
suas armadilhas. Não esqueceis que a vossa missão é servir os pobres das
aldeias da Índia».
Nessa tarde, trinta mil pessoas, três vezes mais que na véspera,
acorreram num concerto de búzios para assistir à oração pública de
Gandhi. Ele falou-lhes de um estrado de madeira erguido à pressa num
terreno vago vizinho, e agradeceu-lhes pela vitória de Calcutá. Desejou
que o seu exemplo inspirasse os seus compatriotas de Panjab.
Após isto, os dois chefes empreenderam uma volta pela cidade na velha
Chevrolet de Gandhi. Desta vez não foi com pedras e injúrias que foram
acolhidos. Em cada esquina, as multidões entusiastas aspergiam o seu
carro de água de rosas clamando a sua gratidão: «Gandhi, és o nosso
salvador».
255
De todas as grandiosas cerimónias que celebraram a independência em Nova
Delhi, a mais impressionante foi sem dúvida um lanche para crianças, que
viu, a família Mountbatten misturar-se sem protocolo a milhares de jovens
indianos, símbolos da Índia nova.
- Tire-os!
256
- Mas os saltos vão magoá-las!
- Se o próprio Deus nos envia tal presságio, lançou uma voz, quem poderá
atravessar-se no nosso caminho?
257
Dir-se-ia, pensou Mountbatten, «uma espécie de gigantesco piquenique de
perto de um milhão de pessoas que se divertem como nunca na sua vida».
Esta explosão de alegria espontânea e incontrolável reflectia o
verdadeiro significado desta jornada. De pé no meio da floresta de mãos
que se estendia para ele, Mountbatten procurava o limite deste oceano de
cabeças; pareceu-lhe infinito. Tão longe quanto o olhar conseguia
alcançar, encontrava sempre a multidão. Três vezes seguidas o governador
geral e a esposa debruçaram-se para levantar uma mulher quase a cair
debaixo das rodas do carro. Instalados nas almofadas de couro preto
feitas para o rei e para a rainha de Inglaterra, os três náufragos
atravessaram maravilhados a multidão ao lado do último vice-rei e da
última vice-rainha das Índias.
Mas acima de tudo, a recordação deste dia ficaria, para Luís e Edwina
Mountbatten, ligada a um grito, um grito vibrante incansavelmente
repetido. Nenhum inglês tivera, antes deles, o privilégio de suscitar uma
homenagem tão carregada de emoção e de sinceridade. Compassadas como
salvas triunfais, rebentavam incessantemente as aclamações da multidão:
Mountbatten-Ki Jai! — «viva Mountbatten!»
258
¦ppavam num gigantesco carnaval de encantadores de serpentes, de jograis,
de adivinhos, de ursos sábios, de lutadores, de músicos, de engoli-Jores
de sabres, de fakires que atravessavam o rosto com punhais. Outros
259
Em Nova Deli, chegara a hora de abrir a caixa de Pandore. Antes de as
enviar aos seus destinatários, Lord Mountbatten considerou uma vez mais
os dois envelopes amarelos. Cada um continha um jogo das novas cartas
geográficas da península, bem como uma dúzia de folhas dactilografadas.
Eram os últimos documentos oficiais que a Inglaterra legaria às Índias,
as últimas malhas de uma longa cadeia que começara pela outorga da carta
real de Isabel I à East Índia Trading Company em 1599, e acabou com esta
lei sancionada menos de um mês antes pelas palavras rituais «o Rei o
Quer». Nenhum dos textos precedentes rivera consequências comparáveis às
que estes dois últimos documentos iam trazer.
A cólera que abrasava os rostos dos dois chefes de governo após este
exame assegurou Mountbatten da perfeita imparcialidade observada pelo
autor da partilha das Índias. Tanto um como outro dos dois homens
pareciam bêbedos de raiva. Mal se sentaram, explodiram numa tempestade de
protestos. Desvanecera-se a euforia da Independência.
260
muçulmanos, e as poucas aldeias que a rodeavam, do lado da União Indiana
de Nehru, recusando-se a criar um enclave paquistanês em território
indiano. Noventa milhões de muçulmanos nunca lhe perdoariam esta decisão.
Porque, se Radclife tivesse, ao contrário, atribuído Gurdaspur ao
Paquistão, não eram algumas casas de barro amassado com palha que o
Estado de Mohammed Ali Jinnah teria ganho. A Gurdaspur viria fatalmente
juntar-se um dia ou outro o vale encantado cujo nome inspirara as últimas
palavras do imperador mongol Jehangir, no seu leito de morte: «Cachemira,
ó Cachemira». Sem a passagem que Gurdaspur permitiria, no sopé do
Himalaia, a Índia não possuiria efectivamente nenhuma via de acesso
terrestre para o Cachemira e o seu maharaja hindu, sempre indeciso não
teria outra escolha senão ligar o destino do seu Estado ao Paquistão.
Inconscientemente, o escalpelo do jurista britânico ofereceria assim à
Índia a ocasião de um dia absorver o Cachemira.
261
T
263
viam na sua zona afim de instalar no seu lugar os seus irmãos que fugiam
do território paquistanês. Era portanto inevitável que todos - hindus
sikhs e muçulmanos - se defrontasse com igual fúria exterminadora.
264
gritava: «Vou matar outros! Vou matar outros!»
265
deixaram-me como morto na poeira. Tudo acabara para mim. A vida ji não
contava: aqueles que eu amava tinham desaparecido. Já nem sequer tinha
forças para chorar. Os meus olhos estavam tão secos como um oueH do Sind
antes da monção. Perdi os sentidos».
O enviado especial do New York Times, Robert Trumbull, que cobrira bom
número de guerras no decorrer da sua carreira, telegrafou ao seu jornal:
«Nunca nada me impressionou tanto, nem mesmo os montes de cadáveres após
o desembarque de Tarawa. Hoje na Índia correm rios de sangue. Vi mortos
às centenas e, mais horrível que tudo, milhares de indianos sem olhos,
sem pés, sem mãos. Raros são os que têm a sorte de morrer com uma bala.
Homens, mulheres e crianças são as mais das vezes batidos até à morte com
matracas, lapidados, abandonados ao suplício de uma agonia que o calor e
as moscas tornam ainda mais horrorosa».
Junto dele, um brâmane pediu autorização para ir, com a mulher e os Bjrês
filhos, buscar os pratos e os talheres do seu casamento a fim de honrar
como devia ser esta grande viragem da sua existência. Lisongeados, os
seUs raptores muçulmanos aceitaram. Nem o Brâmane nem ninguém da sua
família voltou a comer a carne sacrílega. «Escondera em casa uma faca
conta Bagh Das. Quando chegou a casa, tirou-a do esconderijo. Degolou
primeiro a mulher, depois os três filhos. Finalmente espetou a faca no
coração».
Um motivo que nada tinha a ver com o fervor religioso impelia muitas
vezes os muçulmanos do Paquistão a exterminar os vizinhos sikhs e hindus
ou a provocar a sua fuga. Era a cobiça dos seus bens.
O sikh Sardar Prem praticava, numa aldeia perto de Sialkot uma profissão
que os muçulmanos desprezavam: emprestava sob caução. «Eu pertencia a uma
família muito rica, explica. Tinha uma grande casa de dois andares, com
um sólido portão de ferro forjado. Toda a gente na aldeia sabia que eu
era o mais rico. Muitos muçulmanos me pediam para hipotecar as suas
jóias. Conservava-as num cofre metálico. Quase todos os muçulmanos da
aldeia tinham, num momento ou noutro, depositado em minha casa qualquer
valor com caução.»
«Ah! eles pensavam ceifar uma bela colheita», conta Sardar Prem. Mas o
cofre encerrava também uma espingarda de dois canos e vinte e cinco
cartuchos. Sardar Prem pegou na arma e subiu ao segundo andar. Durante
uma hora, defendeu a casa correndo de uma janela à outra e atirando sobre
os desordeiros que tentavam arrombar o portão.
Chegado a baixo, deu um grito de horror. A mulher e três das suas filhas
não era mais que um monte informe de carne e de ossos carbonizados no
chão do vestíbulo. Tinham preferido perecer nas chamas que serem violadas
pelos muçulmanos.
Nem todos os sikhs e hindus que foram expulsos das suas casas eram ricos.
O jovem Guldap Singh, com catorze anos, era filho de um modesto rendeiro
pertencente a uma comunidade de uma cinquentena de sikhs e de hindus
isolados no meio de seiscentos muçulmanos de uma aldeia próxima de
Lahore. Vivia com os pais em duas divisões de barro amassado, tendo como
fortuna dois búfalos e uma vaca. Um dia, os muçulmanos cercaram o bairro
aos gritos de «deixai o Paquistão, senão matamo-vos!». Todos os
habitantes fugiram de casa e correram refugiar-se em casa do sikh mais
importante da aldeia. «Os muçulmanos chegaram com sabres, facas compridos
chuços de ferro com as pontas envolvidas por panos embebidos de gasolina,
recorda Guldap Singh. Bombardeámo-los com tijolos e pedras, mas
conseguiram pôr fogo à casa. Conseguiram agarrar um sikh e puseram fogo à
sua barba. Enquanto a barba ardia como uma tocha, vi-o lançar um tijolo à
cabeça de um muçulmano. Depois caiu nas chamas gritando o nome do Guru
Nanak. Muçulmanos conseguiram penetrar na casa e apoderar-se de alguns
homens que arrastaram para fora para os acabar com podeadas ou machadas.
Precipitei-me para o terraço onde as mulheres se tinham refugiado.
Algumas tinham bebés nos braços. Acenderam uma grande fogueira, e
chorando deram de mamar aos filhos. Depois, à última gota de leite,
depuseram-nos no braseiro antes de por sua vez se atirarem às chamas. Era
um espectáculo insuportável.»
«O odor da carne grelhada chegava até mim, recorda. Eu sabia que o meu
pai e a minha mãe nunca sairiam da casa: estavam mortos. A minha mãe
atirara-se ao fogo. Vi muçulmanos levarem duas garotas. Elas não
choravam: deviam estar desmaiadas. Pela noite adiante, quando a calma
voltou, desci da minha árvore e deslizei para o interior. Toda a gente
estava morta. Excepto as duas garotas e eu todos os sikhs e hindus tinham
perecido.
268
favorito, diante da casa de barro amassado que habitava com os pais e
seis irmãos e irmãs numa aldeia situada próximo de Amritsar, na Índia,
quando um Jattha irrompeu. Conseguiu fugir e esconder-se num campo de
cana de açúcar. «Os sikhs cortaram os seios de várias mulheres, conta.
Camponeses desorientados degolaram então as mulheres e as filhas para aue
não caíssem nas suas mãos. Vi sikhs trespassar com lanças dois dos meus
irmãos mais novos. Louco de dor, o meu pai começou a correr em todos os
sentidos. Os sikhs não conseguiam agarrá-lo. Acabaram por lançar atrás
dele os cães da aldeia. Mordido nos tornozelos, o meu pai teve de
diminuir a sua corrida e os sikhs puderam apoderar-se dele. Ataram-no.
Depois atiraram-no ao chão e cortaram-no aos bocados com sabres. A
cabeça, as mãos, os braços, as pernas foram separadas do corpo. Os sikhs
abandonaram então aos cães os restos do meu pai».
Uma paixão particular ligava o camponês sikh Sant Singh aos campos de que
fora expulso. Tinha-os, em certo sentido, pago com o seu sangue derramado
pela Inglaterra na praia de Gallipoli, durante a primeira guerra mundial.
Foram-lhe precisos 16 anos para desbravar e plantar os cinquenta hectares
da parecela n.° 105/15 que lhe fora atribuída, bem como a milhares de
outros combatentes sikhs, a sudoeste de Lahore, numa zona valorizada pela
instalação de uma rede de canais de irrigação. Instalara a esposa na
tenda onde vivera mais de dez anos, criara os filhos na sua terra,
construirá as cinco divisões da sua casa de tijolos secos que era ao
mesmo tempo o seu orgulho e o testemunho do seu êxito. Dois dias antes da
independência, um dos seus trabalhadores muçulmanos trouxe-lhe um
panfleto que circulava secretamente no sector. «Os sikhs e os hindus não
pertencem a esta terra. Devem ser expulsos», estava escrito. O ataque
ocorreu três dias depois. Sant Singh e os duzentos sikhs da sua aldeia
resolveram fugir. Com cinco outros aldeãos comandados por um venerável
ex--sargento de 80 anos, foi encarregado de escoltar as mulheres da
aldeia. Antes de se pôr a caminho, foi recolher-se em oração no guru-
dwara, o templo que ajudara a construir. «Cheguei aqui com as mãos
vazias, mur-
269
murou. Parto com as mãos vazias. Guru Nanak, apenas peço a tua
protecção».
Eram quase cem mil. Há cinco longas horas esperam-no, submergindo a praça
de Narikeldanga de Calcutá, nas beiras dos telhados, das varandas,
suspensos das sacadas, agarrados como cachos de frutos aos ramos das
árvores. A três mil quilómetros das planícies do Panjab onde se matavam
as duas comunidades, esta multidão de Hindus e de Muçulmanos misturados
espreitava a chegada do pequeno homem que conseguira, apenas pelo
magnetismo da sua presença, deter a violência da cidade que pas-
270
jgva pela mais brutal do mundo.
Mas foi no envio do que lhe pertencia do antigo Exército das Índias que o
Paquistão encontrou na Índia uma má vontade que se parecia a um acto
deliberado de sabotar a sua sobrevivência. Das cento e setenta mil
toneladas de equipamento e de material que lhe eram devidas, o Paquistão
apenas recebeu seis mil. Tinham sido previstos trezentos comboios
especiais para fazer esta gigantesca mudança de casa. Chegaram apenas
três. Os oficiais paquistaneses encontraram neles cinco mil pares de
botas, cinco mil espingardas inutilizáveis, um lote de batas de
enfermeiras e caixas cheias de tijolos e de... preservativos.
Não eram todavia as sombrias maquinações da Índia que mais pesavam sobre
o futuro do Paquistão. O novo Estado estava a pontos de ser absorvido,
como o seu vizinho indiano, pela maior migração de todos os tempos. De um
canto ao outro do Panjab, um povo aterrorizado pelo ora-gão da violência
fugiu a pé, em tanga, em charabãs, de comboio, de bicicleta, levando o
que podia, uma vaca, um chorpoi, um saco de trigo, uma trouxa, alguns
utensílios. A interminável onda ia provocar uma troca de populações de
uma amplitude inegualável. Nos fins de Setembro, quando se tornaria um
verdaeiro maremoto, mais de cinco milhões de fugitivos encontrar-se-iam
iludidos nas estradas e nos caminhos do Panjab. Mais de dez milhões de
pessoas — que formariam uma cadeia indo de Calcutá a Nova York — mudariam
de domicílio em menos de três meses.
Este êxodo sem precedentes faria dez vezes mais refugiados que a criação
do Estado de Israel no médio Oriente e quatro vezes mais «pessoas
desalojadas» que a segunda guerra mundial.
272
peli, a partida foi dada pelo guarda campestre tamborilando de uma rua à
0utra e anunciando que «para a salvaguarda da população muçulmana,
chegaram comboios para a transportar ao Paquistão». Vinte mil habitan-tes
abandonaram imediatamente as suas casas para se dirigirem à gare.
273
Rawalpindi, fechou o fruto de toda uma vida de esforços, trinta mil
rupias e quarenta «tola» de ouro numa caixa. Para ter a certeza de não a
perder atou-a ao pulso por uma cadeia. Vã precaução. Alguns dias mais
tarde um muçulmano adquiri-la-ia da maneira mais simples: cortando-lhe o
pulso.
Alia Hyder, uma rica jovem muçulmana de Lucknow, conseguiu fugir de avião
com a mãe e a irmã. Partiam para sempre mas apenas tinham direito, como
simples turistas, a 20 kg de bagagens. Nunca esqueceria a manhã que
passaram na cozinha a seleccionar pelo peso os objectos que lhes eram
mais queridos. A irmã escolheu o sari vermelho entrelaçado de fios de
ouro do seu casamento, a mãe escolheu o tapete de oração de veludo azul,
e ela decidiu-se por um exemplar do Alcirão cobertura de madeira de rosa
estava incrustada com uma guirlanda de pérolas.
Para Vickie Noon, a encantadora esposa inglesa de Sir Feroz Khan Noon, um
importante paquistanês de Lahore, o êxodo começou com a chegada de um
mensageiro à porta da sua vivenda de férias de Kulu, junto do Himalaia.
«Vão atacar a vossa casa esta tarde», anunciou-lhe. Povoada por uma
maioria de hindus, a região ficava doravante em território indiano. A
jovem possuía para se defender as duas espingardas de caça e o revólver
do marido. Confiou as espingardas a dois dos seus mais fiéis servidores e
ficou com o revólver, embora nunca se tivesse servido de uma arma de
fogo.
274
chuvada encharcou os incêndios e o fervor dos assaltantes. A linda Vickie
Woon estava salva por esta noite. No dia seguinte ao alvorecer, conseguiu
.gfugiar-se no palácio do seu velho amigo o Raja de Mandi. A sua trégua
yevia ser de curta duração. Uma aventura picaresca começava para a jovem
inglesa de pele branca e olhos azuis.
Dos trezentos mil sikhs e hindus que tinham habitado Lahore, apenas
restava um milhar. No fim do mês de Agosto, enquanto a violência
aumentava, um desconhecido realizou antes de fugir um gesto que
constituía o epitáfio do sonho perdido da cidade das Mil e Uma Noites,
uma reflexão amarga sobre o que podia significar a Independência para
tantos Panjabis. Uma mão anónima depôs no coração da cidade uma coroa de
flores ao pé da estátua da imperatriz Victória.
275
te. Cantavam slogans de unidade e de fraternidade, trocavam cigarros
bolos, bombons, molhavam-se com água de rosas. Quando Gandhi atingiu a
pequena tribuna edificada em sua intenção, um louco entusiasmo excitou a
assistência. Às 19 horas exactas, visivelmente perturbado p0r esta
fabulosa manifestação de amor, levantou-se e ofereceu à multidão a
saudação com as mãos juntas segundo a tradição indiana. Depois o velho
chefe hindu quebrou o seu voto de silêncio para se associar em urdu à
festa dos muçulmanos: «Id Mubarak!» — «Feliz Id!»
276
a gare. Gritando « Allah Akbar!» - «Deus é grande!» atiraram-se ao com-!
jj0io, massacrando à passagem todos os hindus que esperavam no cais.
Irrompendo nos vagons, os assassinos lançaram os viajantes para o cais,
onde os seus cúmplices os degolavam. Alguns hindus tentaram fugir mas
outros muçulmanos com camisas verdes perseguiram-nos e depressa os
apanharam, atirando em seguida mortos ou moribundos para o fundo de um
poço diante da gare. A esposa do professor ouviu o chefe encorajar os
assassinos ao grito de: «Quanto mais hindus matardes, maior certeza
tereis de ir para o paraíso».
«Um pouco mais tarde, muçulmanos vieram buscar o meu marido e o meu
filho, sem dúvida para precipitar os seus corpos no fundo de um poço.
Tudo acabara para eles. Então fiquei louca e comecei a gritar. Tinha a
impressão de que já nada importava, nem mesmo os dois filhos que me
restavam. Estava como morta.»
Apenas uma centena dos dois mil viajantes deste comboio deviam sobreviver
à tragédia e atingir a outra extremidade do Panjab.
O pai de Madanlal Pahwa, aquele hindu que não quisera fugir antes da data
considerada propícia pelo seu astrólogo, descobriu num destes comboios
malditos que a astrologia não era uma ciência exacta. A vinte quilómetros
da fronteira indiana, um bando de muçulmanos subiu ao estribo do seu
vagon, precipitou-se no compartimento vizinho ocupado por mulheres e
arrancou-lhes anéis e braceletes, cortando-lhes os dedos, punhos ou
tornozelos quando as jóias não caíam depressa. Alguns fizeram depois
passar as mais jovens pela janela e saltaram atrás delas. Outros
muçulmanos atiraram-se ao compartimento do pai de Madanlal Pahwa. Com um
golpe de sabre, um deles decapitou a mulher sentada em frente dele.
Durante um instante, a cabeça, ainda ligada ao pescoço por alguns
músculos, pendeu sobre o peito como a de uma boneca partida enquanto, nos
seus joelhos, o seu bebé lhe sorria chilreando. O viajante sentiu então
punhaladas a atravessá-lo. Rolou no chão e ficou quase imediatamente
coberto pelos corpos dos seus companheiros de infortúnio. Antes de
desmaiar, teve uma curiosa sensação: um larapio arrancava-lhe os sapatos.
277
T
Ashwini Dubey, o major indiano que tinha ficado louco de alegria, no dia
da Independência, por ver a bandeira do seu país flutuar na messe onde se
sentira humilhado pelos seus superiores britânicos, descobriu em Lahore o
preço desta liberdade quando um comboio entrou na gare, cheio de mortos e
de feridos. De cada portinhola escorriam rios de sangue, «como a água
transbordando do radiador de um automóvel num dia de grande calor».
Por toda a parte, neste Panjab que se teria crido maldito os sikhs
mostraram uma real loucura de exterminação, manchando a imagem de um
grande povo com ondas de sangue. Depois de terem atacado um comboio em
Amritsar, enviaram falsos socorristas percorrer os vagons e acabar com os
sobreviventes. Margaret Bourke-White, a fotógrafa americana da revista
Life, travou conhecimento com alguns destes sikhs, «veneráveis com as
suas longas barbas e turbantes azuis da seita Akali, acocorados ao longo
do cais. Com um sabre recurvado pousado nas pernas, esperavam
tranquilamente o comboio seguinte».
278
Intrigado pelo abrandamento insólito do seu comboio a uma centena de
quilómetros da fronteira do Paquistão, o ferroviário muçulmano Ahed Zahur
deslizou até à locomotiva. Surpreendeu dois sikhs que entregavam um maço
de rupias ao maquinista hindu ao fim de que parasse o comboio na gare de
Amritsar. Aterrorizado, o ferroviário correu revelar o que se conspirava
ao tenente britânico que comandava a escolta. Saltando de um vagon para o
outro pelos tejadilhos com num western, o jovem oficial correu até à
locomotiva. De revólver em punho, deu ordem para acelerar. Em vez de
obedecer, o maquinista quis accionar os travões. O Inglês deu-lhe uma
pancada com a coronha, atou-o como um salsichão e apoderou-se dos
comandos da locomotiva. Alguns minutos mais tarde, num apito estridente e
com um Inglês negro de fuligem como maquinista, no comboio de Zahur e de
três mil viajantes muçulmanos atravessou a toda a velocidade a gare de
Amritsar nas barbas dos sikhs que se preparavam para aí os massacrarem.
Chegados sãos e salvos ao Paquistão, reconhecidos, os muçulmanos, que
escaparam puseram uma guirlanda ao pescoço do seu benfeitor britânico.
Não era feita de flores de jasmim e de cravos da Índia, mas de notas de
banco.
O pesadelo existia por todo o lado. O comboio que conduzia de Simls para
Nova Deli as centenas de criados da comitiva do antigo vice-rei foi
detido ao sinal de um petardo. Sikhs lançaram-se ao assalto dos vagons.
Os criados hindus juntaram-se a eles para se lançarem sobre os camaradas
Muçulmanos com os quais tinham servido o império. No seu compartimento,
Sarah Ismay e o seu noivo, o capitão aviador Wenty Beaumont um dos
ajudantes de campo de Lord Mountbatten, pegaram cada um, um revólver.
Dissimulado sob uma pilha de malas, encontrava-se com eles o criado de
quarto muçulmano, Abdul Hamid. Dois hindus apareceram à portinhola e
pediram-lhes cortesmente autorização para levar o muçulmano que os
acompanhava.
Nesse dia, Abdul Hamid foi o único muçulmano que chegou vivo a Nova Deli.
279
I
Desta vez, eram quase um milhão. Dia após dia, durante estas duas semanas
trágicas em que o Panjab soçobrava na loucura, a grandeza das multidões
que assistiam à reunião de oração de Gandhi tinha aumentado transformando
a metrópole que mais de uma vez se mostrara selvagem num oásis de amor e
de fraternidade. As massas humanas mais pobres do globo tinham ouvido a
mensagem do profeta da reconciliação e encontrado as suas tradições
ancestrais de tolerância.
Rolavam lado a lado num carro descoberto. Trinta anos de luta comum
contra a dominação britânica deveriam ter dado aos primeiros ministros
dos dois novos Estados - O Paquistão e a Índia - o privilégio de desfilar
triunfalmente no meio das multidões vibrantes dos seus compatriotas. Era
pelo contrário num mundo de horror e de miséria que Jawa-harlal Nehru e
Liaquat Ali Khan avançavam, um mundo de rostos silenciosos exprimindo o
medo e a angústia e não a gratidão pelos benefícios que a liberdade lhes
tinha trazido. Os dois homens percorriam o Panjab pela segunda vez na
busca desesperada de uma solução susceptível de restaurar um pouco de
ordem nesta terra de clamidades.
280
seus exércitos. O Panjab era o país do medo e da anarquia.
Que inferno esta maldita partilha nos traz! indignava-se voltando-se para
Liaquat Ali Khan. Como poderíamos nós ter previsto tal catástrofe quando
a aceitamos? Então todos éramos irmãos. Porque aconteceu tudo isso?
Impressionado por este brutal confronto com a desgraça do seu povo, Nehru
enterrou-se mais no banco com uma brusca vontade de vomitar. Era o
primeiro ministro de mais de trezentos milhões de cidadãos, mas era
incapaz de socorrer este pai desesperado que contava com ele para
realizar um milagre e lhe restituir a filha. Abatido por tristeza e
impotência, Nehru ,,pôs a cabeça nas mãos e chorou.
Cerca das duas horas da manhã, Nehru foi acordar o seu ajudante de campo
e pediu-lhe para entrar em contacto com Nova Deli a fim de seguir os
últimos desenvolvimentos da situação. Após a longa ladainha das más
281
novas, apenas recebeu uma única informação tranquilizadora: o velho homem
que ele traíra para aceitar a Partilha continuava a realizar o seu
milagre. Calcutá estava calma.
282
Às dez horas dessa noite, um cortejo de jovens fanáticos hindus irrompeu
bruscamente no pátio de Hydari Mansion para exigir uma entrevista com o
Mahatma. Estendido na sua esteira entre as sobrinhas fiéis Manu e Abha,
Gandhi dormia. Exibindo uma criança com a cabeça envolvida numa ligadura,
que pretendia ter sido batida por Muçulmano, a multidão começou a gritar
e a atirar pedras à casa. Manu e Abha sairam para tentar apaziguá-la mas
sem sucessão. Empurrando os polícias,os revoltosos espa-Iharam-se pelo
interior da casa. Acordado pelo barulho, Gandhi levan-tou-se e enfrentou
os assaltantes. «Que nova loucura é esta? Perguntou. Eis-me: Matai-me!»
As suas palavras perderam-se no alarido. Dois Muçulmanos cobertos de
sangue conseguiram atravessar as filas dos manifestantes para virem
refugiar-se junto de Gandhi. Uma matraca voou na sua direcção e passou
junto da cabeça do Mahatma antes de vir espetar-se na parede por detrás
dele.
A arma que Gandhi ia brandir era a mais paradoxal que se podia empregar
neste país onde morrer de fome era, desde há séculos, a mais co-
283
mum das maldições. Esta arma era portanto tão antiga como a Índia. 0
antigo adágio dos Rishi, os primeiros sábios da Índia antiga - «Se
fizeres isso, sou eu que morro» -, não tinha deixado de inspirar um povo
desmu-nido as mais das vezes de qualquer outro meio de coação. Em 1947,
camponeses iam ainda jejuar diante da casa do seu fiador na esperança de
fazer prorrogar o prazo da sua dívida. Fiadores faziam o mesmo para
obrigar os seus devedores a respeitar os seus compromissos. Mas o génio
de Gandhi tinha sido de dar um alcance nacional ao que até então fora uma
arma individual.
Manejada por este homem, a greve da fome tornara-se a arma política mais
poderosa jamais utilizada por um povo desarmado e economicamente
subdesenvolvido. Porque «impôs ao adversário um sentido da urgência que
lhe impede de se escapar», Gandhi escolhera-a «todas as vezes que um
obstáculo se tornava insuperável! Efectivamente, afirmava ele na grande
tradição dos Rishi, apenas o jejum podia «abrir os olhos da compreensão,
sensibilizar as fibras morais daqueles contra quem é dirigida».
284
água adicionada de um pouco de bicarbonato de sódio. De tempos a tempos
juntava-lhe apenas o sumo de um limão. Uma vez, em 1924, tendo o seu
estado de saúde deteriorado bruscamente após vinte dias de jejum,
aceitara aliviar os rigores do seu sacrifício pela administração de uma
lavagem com água açucarada.
A prática do jejum era igualmente para Gandhi uma arma pessoal que se
servira regularmente para saciar a sua necessidade constante de
penitência. Como a continência, era para ele uma forma de oração, um
elemento essencial do progresso espiritual do homem. «Creio, dizia ele,
que a força da alma apenas pode crescer com o domínio da carne.
Esquecemos demasiado facilmente que a comida não é feita para agradar ao
Palato, mas cara manter o nosso corpo escravo. «Transposto para o domínio
público, o sacrifício voluntário do jejum constituía, cria ele, a arma
mais eficaz do arsenal da não-violência porque era capaz «de agitar as
consciências indolentes e de inflamar na acção os corações generosos».
- Quero tocar os corações dos que estão por detrás dos bandidos.
Nada nem ninguém pôde fazer mudá-lo de opinião. Gandhi precisou às suas
duas «muletas» Manu e Abha, que a sua greve da fome começara nesta noite
do 1.° de Setembro, com o jantar que não pudera comer depois de ter visto
as vítimas do camião diante da sua casa. Confirmou-lhes a vontade de
jejuar até ao fim das perturbações. Devia conseguir ou morrer. «Ou haverá
paz em Calcutá ou eu morrerei», confiou-lhes.
285
espalhou-se através de Calcutá e grupos de visitantes ansiosos afluíram
para Hydari Mansion. Mas a epidemia de violência que sacudia todos os
bairros não podia ser travada num só dia. Incêndios, assassinos e
pilhagens continuaram a destruir a cidade. Da sua enxerga, Gandhi podia
mesmo ouvir o eco dos tiros.
Ao alvorecer do terceiro dia, a sua voz não era mais que um murmúrio
imperceptível e o seu pulso tão fraco que se podia crer a morte iminente.
Enquanto a notícia se espalhava, a angústia e o remorso apoderaram-se de
Calcutá. Para além dos seus muros, toda a Índia procurou as informações
sobre o estado de saúde do Mahatma.
286
plicaram-lhe que renunciasse ao jejum. Algumas horas mais tarde, um dos
mais célebres chefes do bando veio oferecer um arrependimento semelhante.
O Gang de goonda, responsável pela mortandade de Beliaghata Read que
determinara Gandhi a jejuar, acorreu por sua vez. Após ter confessado 0s
seus crimes, o chefe declarou ao Mahatma: «Estamos prontos a subme-ter-
nos com alegria a qualquer castigo que escolhais desde que ponhais fim ao
vosso sacrifício: «Querendo provar a sua sinceridade, abriram todos as
abas dos seus dhoti para lançar aos pés de Gandhi uma chuva de facas, de
punhais, de sabres, de pistolas e de «dentes de tigre», alguns ainda
vermelhos de sangue. Para lhes testemunhar a sua confiança, Gandhi
murmurou: «A minha única punição será mandar-vos aos bairros dos
Muçulmanos a quem fizestes tanto mal para que lhes ofereçais a vossa
protecção».
287
pério defunto, Nova Deli. A cidade que fora o cenário de tantas pompas e
factos, o santuário de um gigantesco exército de escreventes, não devia
ser poupada pelo veneno da violência.
288
à rua os seus fiéis servidores, condenando-os aos Kirpan Sikhs ou a uma
fuga desesperada para um dos campos de refugiados improvisados.
Pela primeira vez desde que aterrara seis meses antes em Nova Deli, Luís
Mountbatten podia enfim gozar um pouco de repouso. A independência tinha
retirado dos seus ombros um fardo esmagador. Ontem um dos homens mais
poderosos do mundo, hoje apenas ocupava um posto honorífico. A violência
que sacudia o Panjab afectava-o dolorosamente, mas a sua qualidade de
governador geral não lhe dava nenhuma autoridade para tentar intervir.
Esta tarefa esmagadora incumbia agora aos dirigentes indianos. Para lhes
mostrar bem que não desejava imiscuir-se na conduta dos seus assuntos,
eclipsara-se discretamente da capital.para se retirar para o Olimpo
paradisíaco do império defunto, Simla.
289
lógica da sua família através da Alemanha, dos condados de Hesse, da
Prússia e de Saxe-Cobourg, o seu passatempo favorito. Era V. P. Menon que
o chamava. Não havia ninguém na Índia cujas opiniões e conselhos
contassem mais para Mountbatten que os do indiano que remodelara o plano
de partilha neste mesmo cenário de Simla.
- Não posso acreditar que seja isso que eles querem, admirou-se
Mountbatten. Acabam precisamente de obter a sua independência e, pelo
contrário, estou certo de que a última coisa que desejam é que o seu
chefe de Estado simbólico volte a meter o nariz nos seus assuntos. Não há
razão para eu regressar.
290
ehru. Não temos nenhuma experiência. Passámos os nossos melhores
Nehru formulou então uma súplica quase incrível. Que este altivo indiano
que consagrara a sua vida ao combate pela independência tenha podido
mesmo resolver-se a isso, revelava ao mesmo tempo a nobreza dos seus
sentimentos e a gravidade da situação. Admirara sempre em Mount-batten o
seu sentido da organização e das decisões rápidas. Sentia que a Índia
tinha hoje necessidade destas qualidades e ele era demasiado generoso
para a privar disso por orgulho ou vaidade.
- Justos céus, mal acabo de vos entregar o vosso país e pedis-me agora
para o retomar!
291
velocidade a que Mountbatten punha as coisas em andamento.
293
porto. E não saireis de lá, não comereis nem dormireis até terdes
assistido pessoalmente à descolagem do aparelho e me terdes informado
disso.
294
lotos voltavam a localizar a interminável onda abandonada na véspera,
marcando nos seus mapas o curto trajecto percorrido na obscuridade
cúmplice das primeiras horas do dia. O capitão aviador recordaria sempre
estas «filas de seres humanos que atravessavam o campo como imensos
rebanhos de Westers». Um outro recorda-se de ter sobrevoado uma coluna
durante quinze minutos a mais de trezentos quilómetros à hora sem lhe ver
o fim. Por vezes, estrangulada num caminho mais estreito a torrente
inchava numa inextricável confusão de pessoas, de animais e de veículos
que então se estreitavam numa delgada tira antes de se amontoarem de novo
à entrada da próxima garganta.
Levantado pelos cascos dos bovinos, pelo pisar desordenado do mar humano
um véu de poeira traçava no horizonte um gigantesco rasto acinzentado que
revelava o avanço dos fugitivos. Ao cair da noite, as colunas paravam e
os refugiados esgotados acendiam pequenas fogueiras onde preparavam a
única comida do dia, uma delgada chapati. Vistos do céu, centenas de
milhares de lares pareciam cobrir a terra, avermelhada pelos últimos
raios do crepúsculo, por uma nuvem de fogos fátuos.
Mas era ao nível do solo, no meio da desgraça dos homens, que o drama do
êxodo aparecia em todo o seu horror. Com os olhos e a garganta queimados
pela poeira, a planta dos pés queimada pelo calor das pedras e do
asfalto, torturados pela fome e pela sede, envolvidos num sufocante odor
de urina, de excrementos, de suor, os condenados do Panjab arrasta-vam-se
como autómatos nos seus dhoti despedaçados e nos seus saris em farrapos.
Velhas mulheres agarravam-se aos ombros dos filhos, outras quase a dar à
luz aos dos maridos. Os inais jovens levavam os velhos às costas, os
inválidos ou os moribundos avançavam sobre liteiras de bambu improvisadas
que parentes ou amigos levavam. Mães apertavam os bebés contra o peito
durante centenas de quilómetros. Atados às costas ou em equilíbrio à
cabeça iam os magros bens que tinham podido trazer: alguns utensílios de
cozinha, um embrulho de roupa de uso, imagens de Civa ou de guru Nanack,
um exemplar do Alcorão. Homens curvavam-se ao peso de compridas trancas
em cuja extremidade estava fixado o que tinham podido salvar do desastre.
Uma criança acocorada numa prancha fazia por vezes contrapeso a tudo o
que restava a uma família para começar uma nova vida: uma pá, uma
enchada, uma roda de fiar, uma lata contendo um pouco de água, um pequeno
saco de sal.
295
ro não terminasse por um zero, sendo este algarismo altamente nefasto. Os
camelos e os cavalos arquejavam entre os varais das carroças, das ton-ga
de cortinas corridas que as mulheres Muçulmanas utilizavam, e de tudo o
que tinha rodas.
Não era uma viagem até à próxima aldeia que estes indianos e estes
paquistaneses empreendiam. Partiam para o mundo desconhecido, efectuavam
um trajecto sem regresso de trezentos, quatrocentos e mesmo quinhentos
quilómetros que duraria semanas, sob a perpétua ameaça do esgotamento, da
fome, da cólera, e, uma boa metade do percurso, dos selvagens ataques
contra os quais quase nunca tinham defesa. Hindus, Muçulmanos, ou Sikhs,
as vítimas inocentes desta agitação eram camponeses iletrados que toda a
sua vida tinham penado nos campos, ignorando na sua maioria que as Índias
tinham sido conquistadas pelos Ingleses, indiferentes às lutas políticas
do partido do Congresso e da Liga muçulmana, e que nunca se tinham
preocupado com acontecimentos como a partilha, o traçado das fronteiras,
ou mesmo a independência em nome da qual se encontravam mergulhados na
desgraça. E para consumar a miséria dos milhões de seres que atravessavam
as planícies do Panjab, havia o sol, um sol cruel que os obrigava a
voltar os rotos desvairados ao céu incandescente para suplicar Ala, Civa
ou o guru Nanck que lhes enviasse o socorro da monção cujas chuvas se
obstinavam em não cair.
296
ça abandonada na borda da estrada, puxando o braço da mãe morta, incapaz
de compreender porque não a agarrava, ficará para sempre gravada na
memória da fotógrafa Margaret Bourke-White.
297
refugiados ávidos de vingança safassem das fileiras e se atirassem sobre
os que marchavam em sentido inverso, breve explosão sanguinária que
aumentava o número dos mortos. Por vezes, pelo contrário, camponeses
hindus e Muçulmanos indicavam uns aos outros a localização das quintas e
dos campos que acabavam de abandonar a fim de que fossem lá insta-lar-se.
298
para se distinguir das multidões que o cercavam. Pouco tempo após o seu
nascimento, os astrólogos que a Índia venerava tinham predito que o seu
nome seria conhecido através de toda a Índia».
O seu pai recorda: «Eu não notara o boletineiro que estava ao meu lado
naquele dia de Dezembro de 1928 até que ele me agarrou a mão para tne
entregar um telegrama. Nascera-me um filho na noite precedente. Tornara-
me pai aos dezanove anos. Dei algumas moedas ao boletineiro porque me
trouxera uma boa nova e fui comprar ladus, guloseimas para os meus
colegas de escritório. Depois, pus-me a caminho de casa.
Quando cheguei a casa, saudei primeiro o meu pai, tocando ao de leve nos
seus pés em sinal de respeito. Ele pôs-me um bocado de açúcar na boca
para celebrar o nosso alegre reencontro. Pus o bebé nos joelhos e pensei:
vou oferecer-lhe a melhor instrução possível. É preciso que se torne
engenheiro ou médico a fim de assegurar uma boa reputação ao nome da
nossa família. Convoquei os Pandits mais letrados da aldeia e os
astrólogos para me ajudarem a encontrar-lhe um nome. Disseram que devia
começar por um «M». Escolhi Madanlal. Os astrólogos estudaram as suas
cartas do céu e profetizaram que Madanlal se desenvolveria bem.
Anunciaram-me que um dia o seu nome seria célebre em toda a Índia.
Pouco após a sua entrada em território indiano, Mandalal Pahwa soube que
o pai fora gravemente atingido no comboio que o evacuava do Paquistão.
Encontrou-o no hospital militar de Ferozpore. Aí, no meio dos gemidos da
enfermaria, no odor do sangue, do éter e da podridão os sofrimentos dos
seus irmãos Hindus tomara para Mandalal o rosto do seu pai «pálido e
trémulo sob os seus pensos».
299
nova vida e entra num bom serviço do governo».
Mandanlal pegou a carta, mas não tinha nenhum desejo de se integrar num
«bom serviço do governo». Os astrólogos tinham razão. O seu destino não
seria tornar-se qualquer obscuro polícia no comissariado de uma longínqua
cidade de província. Ao sair do hospital, com os olhos ainda cheios da
dolorosa visão do seu pai ferido apoderou-se de si um sentimento novo, um
sentimento que então partilhavam centenas de milhares de indianos e de
paquistaneses. Não tinha nada a ver com um alistamento na polícia. «Vou
vingar-me», jurou.
Alguns quilómetros depois, Vickie pediu ao seu amigo para lhe permitir
satisfazer uma necessidade natural. Caía água a rodos e a jovem deu um
passo em falso na obscuridade. O barulho que fez um objecto ao cair no
chão, ela teve um tremor de pânico. Acabava de deixar cair a pequena
caixa de graxa, perdendo assi o único garante do seu anonimato — e
portanto da sua salvação. Sob as cataratas da monção, retomara
efectivamente a sua pele branca de Europeia. Palpando de gatas no meio
das pedras e dos buracos, lançou-se em busca da pequena caixa salvadora.
Escapou-lhe um grito de alegria quando por fim a encontrou. Apertando-a
nas mãos como um tesouro, voltou ao carro onde o seu companheiro se
apressou a untar--lhe a cara com uma nova camada de graxa.
300
tou o homem, e todos os Sikhs da região a procuram.
Não tinham tido muito mais tempo para preparar a sua partida que os
Panjabis aterrorizados das planícies. Quando a situação se agravara
bruscamente, tinham-lhe sido enviados autocarros para os conduzir a Nova
Deli. Tinham-lhes dado uma hora para pôr algumas coisas numa mala e
fechar as portas das suas casas.
301
batten fez a viagem com eles. Vários destes Ingleses eram bastante idosos
e sofriam de uma deficiência da bexiga. Assim os autocarros tinham de pg.
rar todas as duas horas. Olhando estes antigos senhores do prestigioso
império das Índias urinar na berma da estrada sob o olhar impassível dos
seus guardas Gurkhas, a jovem pensou em todas as belas frases de Kipling.
— Meu Deus, pensou, desta vez o homem branco desceu realmente do seu
pedestal.
Aparentemente nada mudara nesta cidade que fora a porta do império das
Índias. Apesar da próxima e turbulenta presença dos Pathans, Tesha-war
não conhecera nenhuma agitação.
Este dia seria todavia bastante diferente do que Edward Behr imaginara.
Mal tinha engolido a sua papaia quando o telefone tocou.
Mas Peshawar não ia livrar-se disso tão pouco, o rumor de que os Síkhs
massacravam os camaradas Muçulmanos espalhara-se entre as tribos da
região. Como para a visita de Mountbatten quatro meses antes, os
guerreiros pathans afluíram à cidade em camions, em autocarros, em ton-
ga, a cavalo. Porém, desta vez não vinham só manifestar. Vinham matar. E
mataram.
303
antigos discípulos e um dos mais generosos apoios financeiros do partido
do Congresso.
304
/
direitos. Os Muçulmanos recusavam-se a despejar as suas fossas. No ponto
mais forte dos massacres que ensanguentavam a cidade, o Comité de
urgência teve de enviar ao Velho Forte cem Intocáveis Hindus, sob escolta
armada, para assegurar este trabalho aborrecido1.
- Estou extenuado, confessou Nehru. Durmo apenas cinco horas por noite.
Se pudesse repousar ao menos mais uma hora! E vós, quantas horas de sono
tendes?
- Nos momentos como aqueles que vivemos, diz ele, seis horas são um
mínimo, sete um luxo, oito vício.
305
Décima primeira estação do caminho de cruz de Gandhi «Devemos deixar-nos
degolar como carneiros?»
Nunca Gandhi foi tão fiel aos ideais que tinham guiado a sua existência
como nas horas trágicas do crepúsculo da sua vida. Confrontado ao
desastre que persentira, agarrava-se aos princípios que o tinham
inspirado desde a África do Sul: o amor, a não-violência, a verdade, uma
crença inquebrantável num Deus universal. Mas o seu povo tornava-se surdo
à sua mística.
O que outrora aconselhava aos Etíopes, aos Judeus, aos Checos e aos
Ingleses, Gandhi suplicava hoje aos seus compatriotas para o porem em
prática.
Estai prontos a morrer, se for preciso, com o nome de Deus nos lábios,
suplicou, não perdeis a confiança.
A sua convicção era tão forte que acalmava o auditório.
306
I
Explicou que aos seus olhos não existia «nenhuma diferença entre os
Hindus, os Muçulmanos, os Cristãos, os Sikhs. Para mim são todos um.» Mas
a sua mensagem de amor apenas suscitou uma indignação geral.
- Gandhi Murdabad!