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DOI: 10.21902/2525-9881/2016.v2i2.

1561
Organização Comitê Científico
Double Blind Review pelo SEER/OJS
Recebido em: 06.07.2016
Revista de Direito Sociais e Políticas Públicas Aprovado em: 17.12.2016

A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL COMO PROPORCIONADORA DA


MÁXIMA EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS: O DESENVOLVIMENTO DA
CIDADANIA POSSIBILITADO PELOS DEVERES FUNDAMENTAIS

THE ECONOMIC ORDER CONSTITUTIONAL AS THE MAXIMUM EFFICIENCY


IMPARTING SOCIAL RIGHTS: THE DEVELOPMENT OF CITIZENSHIP MADE
POSSIBLE BY FUNDAMENTAL DUTIES

Antonio José Mattos do Amaral1


Rogerio Sato Capelari2

RESUMO

O tema aborda a intrínseca e necessária relação que existe entre a ordem econômica e sua geração
de impostos e a ordem social presentes no ordenamento jurídico brasileiro. De um lado, os alicerces
constitucionais do sistema econômico brasileiro encontram-se nos artigos 170 a 192 e de outro, não
opostos, mas interdependentes, o rol de Direitos Sociais insculpidos no art. 6º da Constituição
Federal de 1988. A possibilidade de efetivação dos Direitos Sociais através e pelo Estado, somente
será possível a partir da valorização do trabalho humano e da geração da renda, quer seja do
particular, quer seja do Estado e suas consequentes gerações e pagamentos de impostos, que
garantem através do Welfare State ou de políticas públicas a efetivação dos direitos sociais.
Amparado na ideia do ser humano como destinatário final das normas e embasado em uma
hermenêutica constitucional voltada para o pleno desenvolvimento do ser, é imperiosa a
interpretação do alcance da norma de forma prospectiva, voltada para a construção dos ideais plenos
de cidadania e sua consequente sociedade justa, fraterna e solidária, conforme os ditames
constitucionais. A ordem econômica é usada para referir-se à uma parcela da ordem jurídica que
compõe um sistema de princípios e regras, compreendido por uma ordem pública, uma privada, uma
econômica e uma social. Através do dispositivo constitucional podemos inferir que a ordem
econômica constitucional brasileira tem como fundamentos a valorização do trabalho humano e da
livre iniciativa privada e que por sua vez asseguram a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social. O presente estudo objetiva demonstrar a existência e a relevância da noção de
deveres fundamentais como categoria constitucional autônoma e demonstrar que os direitos
fundamentais possuem custos para sua efetivação e que esta efetivação se consolida pela geração e

1 Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP na área de concentração “Função
Social do Direito”, linha de pesquisa “Acesso à Justiça e as Constituições”. Mestre em Direito Penal pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Professor efetivo da Universidade Estadual de Londrina (UEL) em nível de graduação e
pós-graduação; Professor convidado de pós-graduação em diversas instituições. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9128785672361403. Paraná (Brasil). E-mail: ajma.adv@gmail.com.
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Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP - na área de concentração
“Função Social do Direito”, linha de pesquisa “Acesso à Justiça e as Constituições”. Mestre em Direito pelo Centro
Universitário de Maringá (CESUMAR). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná/PR. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4726181643915483. Paraná (Brasil). E-mail: rogerio@capelari.com.br.

Revista de Direito Sociais e Políticas Públicas | e-ISSN: 2525-9881 | Curitiba | v. 2 | n. 2 | p. 109 - 134 | Jul/Dez. 2016.
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pagamento de impostos, o que, de fato, contribui para o desenvolvimento do espírito de cidadania


em todos os integrantes da sociedade.

Palavras-chave: Deveres Fundamentais; Constituição; Ordem Econômica; Cidadania; Custos


Públicos; Direitos Sociais.

ABSTRACT

The theme addresses the intrinsic and necessary link between the economic order and its generation
of taxes and social order present in the Brazilian legal system. On the one hand, the constitutional
foundations of the Brazilian economic system are in Articles 170-192 and the other, not opposites,
but interdependent, the role of Social Rights sculptured art. 6 of the Federal Constitution of 1988.
The possibility of realization of social rights through and the state will only be possible from the
value of human labor and the generation of income, whether the particular, whether the state and its
subsequent generations and payments taxes, guaranteeing through the welfare state or public policy
the realization of social rights. Supported the idea of the human being as an end standards and
grounded in a constitutional hermeneutics toward the full development of, is imperative interpreting
the scope of the standard prospectively, dedicated to building a just, fraternal and united, as the
constitutional dictates. The economic order, although it opposes legal system, is used to refer to a
portion of the legal system, which comprises a system of principles and rules, comprised of a public
order, a private, economic and social. Through the constitutional provision can be inferred that the
Brazilian constitutional economic order is founded on the value of human labor and free enterprise,
which are designed to ensure to all a respectful existence, as the dictates of social justice. This study
aims to demonstrate the existence and relevance of the notion of fundamental duties as an
autonomous constitutional status and demonstrate that fundamental rights have costs for its
effectiveness and that effective consolidates the generation and payment of taxes, which, in fact,
contributes to develop the spirit of citizenship in all members of society.

KEYWORDS: Fundamental duties; Constitution; Economic Order; Citizenship; Public costs;


Social Rights.

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A ordem econômica constitucional como proporcionadora da máxima eficácia dos direitos sociais: o
desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

INTRODUÇÃO

O Direito experimentou mudanças no decorrer do século XX. Estarrecido com as


atrocidades cometidas pelos regimes totalitários sob o manto da legalidade estatal, o mundo
ocidental viu a necessidade de se repensar o direito e sua função social na contemporaneidade.
Observou-se o surgimento de novas cartas constitucionais que passam a trazer como
corolários de seus textos normativos os direitos fundamentais. O advento de tais constituições,
consideradas agora como o centro do ordenamento jurídico positivo, deu origem a um fenômeno de
constitucionalização do Direito e a um novo paradigma teórico denominado por muitos autores de
Neoconstitucionalismo3. Como aponta Konrad Hesse (2009, p. 24), “um aspecto importante de nossa
época é a significação, cada vez maior, dos direitos fundamentais”.
É possível afirmar, com Norberto Bobbio (2004, p. 36) que vivemos atualmente “A Era dos
Direitos”. Uma perspectiva que se tornou amplamente comum e aceita pela doutrina constitucional
a fim de se compreender a evolução histórica dos direitos fundamentais é apresentá-los como tendo
sido paulatinamente desenvolvidos em “gerações” ou “dimensões” (FACHIN, 2012, p. 222-229).
Nesse sentido, a primeira dimensão corresponderia aos direitos individuais do cidadão em face do
Estado. Direitos “negativos”, pois exigiriam uma postura omissiva por parte do poder estatal. De tal
modo, essa primeira dimensão envolveria, por exemplo, o direito à vida, o direito à liberdade e o
direito à propriedade. Por outro lado, a segunda dimensão da evolução histórica dos direitos
fundamentais corresponderia aos direitos sociais. Diferentemente dos direitos individuais, os
direitos da segunda dimensão exigiriam uma postura pró-ativa, intervencionista do Estado na esfera
socioeconômica a fim de se concretizar direitos como à educação, à saúde, à alimentação, ao
trabalho, à moradia, dentre outros.
Nessa perspectiva, os direitos de primeira dimensão são apresentados como sendo direitos
autorrealizáveis enquanto os direitos sociais gerariam custos econômicos ao Estado na sua
concretização fática. De modo geral, os primeiros se encontrariam ligados a uma concepção estatal
de cariz econômico-liberal ao passo que os segundos se encontrariam ligado a um modelo estatal
intervencionista, em geral, associado ao Estado de bem-estar social.

3 Para uma compreensão da evolução do Direito na contemporaneidade, conferir as seguintes obras: SCHIOPPA,
Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea, 2014; KELLY, John. Uma
Breve História da Teoria do Direito Ocidental, 2010.

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O tema do artigo aborda a relação que há entre a ordem econômica e a ordem social
constitucional brasileira. A efetivação dos Direitos Sociais através da via jurisdicional é um caminho
possível quando existir uma melhor interpretação e entendimento de que tais direitos, somente serão
efetivamente possíveis a partir da valorização do trabalho humano e da geração da renda, quer seja
do particular, quer seja do Estado que garante, através do Welfare State de suas políticas públicas, a
efetivação dos direitos sociais. Ocorre que tal compreensão dos direitos fundamentais, que os
classifica a partir de um critério de intervenção estatal no domínio econômico, se mostra incapaz de
aprender a essência do objeto que procura compreender. O presente estudo procura analisar tal
classificação a fim de apontar que a adoção dessa perspectiva termina por esconder um conceito
essencial na compreensão dos direitos fundamentais, qual seja: a noção teórica de deveres
fundamentais como categoria autônoma e sua importância na efetivação dos direitos sociais. O
presente estudo objetiva demonstrar, por meio de uma revisão da tradicional classificação de direitos
individuais como direitos “negativos” e direitos sociais como direitos de “prestações positivas”, a
importância da categoria de deveres fundamentais como categoria constitucional autônoma.

Como Jano, a divindade grega guardiã das portas, das mudanças e tradições (BULFINCH,
2001, p. 17), é possível afirmar que os direitos fundamentais – considerados aqui lato sensu, como
gênero – possuem duas faces distintas: uma voltada para os direitos fundamentais stricto sensu e
outra para os deveres fundamentais. Ambas, porém, se complementam intimamente estando unidas
metaforicamente pelo mesmo corpo. Uma perspectiva científica que procure esclarecer os contornos
gerais de uma das “faces” desconsiderando a outra, não será capaz de apreender a real essência do
objeto que procura conhecer. Torna-se necessário, assim, investigar a outra a face, a face oculta dos
direitos fundamentais.

Embasando o resultado a que se pretende chegar, analisar-se-á, brevemente, o conceito de


ordem econômica e a construção histórica dos direitos sociais, sem olvidar dos conceitos de direitos
jusfundamentais e dignidade da pessoa humana. A presente investigação é composta de dois
momentos distintos: a primeira, partindo da compreensão da importância da ordem econômica como
mola propulsora de uma sociedade, no que tange à efetivação dos direitos sociais, possibilitado pela
geração de impostos oriundos diretamente e indiretamente das atividades empresarias. No segundo
tópico, adotando o pensamento de José Casalta Nabais como marco teórico condutor da pesquisa,
analisa-se a noção de deveres fundamentais como categoria constitucional autônoma, suas
especificidades e seu esquecimento pela doutrina constitucional contemporânea.

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

1 SOBRE A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

Para tratarmos da ordem econômica constitucional faz se necessário tecer algumas noções
sobre a ordem econômica, seus conceitos e finalidades.

Para Eros Roberto Grau, a ordem econômica, ainda que se oponha a ordem jurídica, é usada
para referir-se uma parcela da ordem jurídica, que compõe um sistema de princípios e regras,
compreendendo uma ordem pública, uma privada, uma econômica e uma social (GRAU, 2004, p.
51). André Ramos Tavares que também a concebe como uma ordem jurídica da economia,
definindo-a como sendo “a expressão de certo arranjo econômico, dentro de um específico sistema
econômico, preordenado juridicamente. É a sua estrutura ordenadora, composta por um conjunto de
elementos que confronta um sistema econômico.” (TAVARES, 2006, p. 81).

A expressão ‘ordem econômica’ adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que


as constituições dos Estados passaram a discipliná-la sistematicamente, fato este que se iniciou com
a Constituição do México em 1917 e a de Weimar de 1919. No Brasil, incorre a ordem econômica
primeiramente através da Constituição de 1934. Nesta quadra, ocorre uma transição do modelo
econômico liberal, pautado na regra do “laissez faire, laissez passer”, onde o Estado se abstém de
qualquer regulação de mercado, pois melhor do que ele, a poderosa “ mão invisível” regularia a
economia, entrando em cena o modelo econômico intervencionista estatal, inaugurando o Estado
Social, que passa a regular sistematicamente a vida econômica, dando ensejo ao surgimento das
chamadas Constituições econômicas.

Para Vital Moreira a Constituição econômica é o conjunto de preceitos e instituições


jurídicas que garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem
uma determinada forma de organização e funcionamento da economia, por isso mesmo, uma
determinada ordem econômica. (MOREIRA, 2006, p. 75). André Ramos Tavares diz que “a ordem
econômica constitucional seria o conjunto de normas que realizam uma determinada ordem
econômica no sentido concreto, dispondo acerca da forma econômica adotada”. (TAVARES, 2006,
p. 83.).

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Como se observa, os vários conceitos desenvolvidos pelos juristas desembocam em um


arcabouço de normas que sistematizam e realizam uma determinada ordem econômica de forma
concreta para o pleno desenvolvimento da economia.

1.1 A ordem econômica da constituição federal brasileira de 1988

No capítulo anterior foram delineados conceitos sobre a ordem econômica constitucional,


sua finalidade e dimensão jurídica, bem como, de forma breve, seu aparecimento nas constituições
mundiais. Passaremos agora a observar e tecer análises sobre a ordem econômica na Constituição
da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988. As bases constitucionais do atual sistema
econômico brasileiro encontram-se dispostas nos artigos 170 a 192 da Constituição Federal.

José Afonso da Silva assevera que a ordem econômica, consubstanciada na Constituição


vigente é uma forma econômica capitalista, porque ela se apóia inteiramente na apropriação privada
dos meios de produção e na iniciativa (SILVA, 2001, p. 764). Em outro sentido, Raul Machado
Horta afirma que o texto constitucional na ordem econômica está “impregnada de princípios e
soluções contraditórias, pois ora reflete um rumo do capitalismo liberal, consagrando os valores
fundamentais desse sistema ora avança no sentido de intervencionismo sistemático e do dirigismo,
com elementos socializadores”. (HORTA, 2008, p. 796).

O Art. 170 da Constituição Federal de 1988, em suave síntese, promulga que toda ordem
econômica de uma sociedade deverá ter como alicerce a valorização do trabalho humano e da livre
iniciativa para que esses alicerces componham uma sociedade permeada de justiça social, com o
intuito de promoção do desenvolvimento do homem4. Da dicção do preceito constitucional podemos

4
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:I -
soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do
consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional VI
- defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de
19.12.2003); VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995). Parágrafo único. É assegurado a

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A ordem econômica constitucional como proporcionadora da máxima eficácia dos direitos sociais: o
desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

inferir que a Ordem Econômica Constitucional Brasileira tem como fundamentos a valorização do
trabalho humano e da livre iniciativa privada.

A valorização do trabalho humano constitui também fundamento da República


Federativa do Brasil, nos termos no art. 1º, inciso IV da Constituição Federal de 19885, o que nos
leva a crer que a valorização do trabalho é um princípio e mais precisamente, segundo a lição de J.
J. Gomes Canotilho, um “principio político constitucionalmente conformador” (CANOTILHO,
2006, p. 201). Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que a valorização do trabalho é princípio
sublinhado pelo constituinte dentro da linha firmada pela doutrina social da igreja, como sendo um
valor cristão (FERREIRA FILHO, 2007, p. 361).

Eros Roberto Grau assevera que esta caracterização principiológica, denota uma
preocupação com um tratamento peculiar ao trabalho que, “em uma sociedade capitalista moderna,
peculiariza-se na medida em o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica, porém
politicamente racional”. Seguindo este raciocínio e conforme os dizeres de Nagib Slaib Filho, é
inegável que o trabalho diz respeito ao fator social da produção, “porém ele está muito além da
necessidade econômica de suprir as necessidades materiais, é uma necessidade, inerente à natureza
humana e ao instituto da auto-preservação e progresso pessoal”. (SLAIB FILHO, 2006, p. 702).

José Afonso da Silva por sua vez, alerta que nossa ordem econômica embora de natureza
capitalista, enfatiza que “dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais
valores da economia de mercado” (SILVA, 2001, p. 766).

A livre iniciativa capitulada no Art. 1º, inciso IV da Constituição Federal de 1988, como
segundo fundamento da ordem econômica, a seu turno também é fundamento da República
Federativa do Brasil. Trata-se, pois, também de “princípio político constitucionalmente
conformador”, que segundo Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior possui uma
densidade normativa, da qual se pode extrair a “faculdade de criar e explorar uma atividade

todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo
nos casos previstos em lei.

5
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania;III -
a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.Parágrafo
único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.

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econômica a título privado e a não sujeição a qualquer restrição estatal, senão em virtude de lei”.
(ARAUJO; SERRANO JUNIOR, 2006, p. 466).

José Afonso da Silva comenta que a livre iniciativa consagra uma economia de mercado,
de natureza capitalista, já que a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista e afirma
também que “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de
empresa e a liberdade de contrato”. Porém, em contrapartida, Eros Roberto Grau reconhece e insiste
que a liberdade de iniciativa não se identifica apenas com a liberdade de empresa, pois ela abrange
todas as formas de produção individuais ou coletivas. (GRAU, 2004, p. 186-187).

Importante registrar também que estes fundamentos da valorização do trabalho humano e


da livre iniciativa têm por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social. Existência digna é a finalidade ou objetivo da ordem econômica. Registre-se que o
texto constitucional em seu Art. 1º, inciso III enaltece também a dignidade da pessoa humana à
fundamento da República Federativa do Brasil. A dignidade da pessoa humana fundamenta e confere
unidade não apenas aos direitos fundamentais, mas também à ordem econômica. Nesse sentido é a
conceituação de José Afonso da Silva:

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os


direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida, concebido como referência
constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. O conceito de
dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em
conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia
apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido de dignidade humana à
defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais,
ou invoca-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual,
ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre
que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art.
170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação o
desenvolvimento da pessoa e o seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205)
etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo
normativo eficaz da dignidade da pessoa humana (SILVA, 2001, p. 109).

A ordem econômica, no tocante a ter como consequência a justiça social, Manoel


Gonçalves Ferreira Filho observa que esta expressão “justiça social” não possui um sentido único,
contudo seu uso é divulgado especialmente pela doutrina social da Igreja, podendo ser considerada
como a “virtude que ordena para o bem comum todos os atos humanos exteriores” (FERREIRA
FILHO, 2007, p. 359). Na mesma esteira de raciocínio, Eros Roberto Grau menciona que a “justiça
social, inicialmente quer significar superação das injustiças na repartição, em nível pessoal do

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

produto econômico [...] passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica


capitalista” (GRAU, 2004, p. 208).

Na mesma estrada, ressalta-se a lição de José Afonso da Silva que anuncia que a “justiça
social só se realiza mediante equitativa distribuição da riqueza” (SILVA, 2001, p. 767),
possibilitando que o capitalismo se humanize. Ocorre que, segundo Uadi Lammêgo Bulos trata-se
de “um dos instrumentos de tutela dos hipossuficientes, conforme Art. 6º da Constituição Federal
de 19886, que até hoje não saiu do papel. O espírito do neoliberalismo não conseguiu estancar as
desigualdades sociais, criadas e produzidas pela iníqua distribuição de rendas” (BULOS, 2007, p.
1238).

Por fim, para que ordem econômica, cujos fundamentos são a valorização do trabalho
humano e a livre iniciativa, que objetivam assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social deverão ser observados os princípios indicados nos incisos do art. 170 da
Constituição Federal de Outubro de 1998. Estes princípios, bem como os que já mencionamos, são
princípios gerais da atividade econômica, considerados núcleos condensadores de diretrizes ligados
à apropriação privada dos meios de produção e a livre iniciativa que consubstanciam a ordem
capitalista de nossa economia.

No capítulo seguinte será correlacionada e demonstrada a importância da ordem econômica


frente ao desenvolvimento e efetividade dos direitos sociais.

2 A ORDEM ECONÔMICA COMO MOLA PROPULSORA DOS DIREITOS SOCIAIS

Após delineação dos conceitos de ordem econômica e seu registro constitucional


preconizados no capítulo anterior, passemos a abordar a sinergia para com os direitos sociais e sua
aplicabilidade, frente aos recursos financeiros oriundos de atividades econômicas.

Nas palavras de José Afonso (1992, p. 288) os direitos sociais, também denominados de
direitos de segunda dimensão, encontram-se intrinsecamente entrelaçados à ordem econômica e

6
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)

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ambos adquiriram dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a


discipliná-las, sendo que o marco se deu com a Constituição Mexicana.

No Brasil, a Constituição Federal de 1934 trazia um capítulo sobre a ordem econômica e


social; já a Constituição de 1988 tratou de trazer um capítulo próprio dos direitos sociais. Em seu
Art. 6º estão dispostos quais são os direitos sociais e na Emenda Constitucional 64/2010 foi
acrescido a alimentação como direito social.

Fábio Nusdeo (2000, p. 53) define a economia como ciência ou arte da organização, direção
e administração, que trata das relações do homem em sociedade e que o conduzem à satisfação de
suas necessidades. É a economia com caráter social, conceito metaindividual voltado para o coletivo
e que existe porque os recursos são escassos frente às múltiplas necessidades humanas e por isso o
direito se faz presente na economia, regulando esses interesses. Francisco Carnelutti, citado por
Fabio Nusdeo (2000, p. 65), diz que “Quanto piu economia, piu direito”, ou seja, quanto mais
economia mais se faz necessário o direito para regular essas relações.

O Art. 170 da Constituição Federativa do Brasil de 1988 contêm os princípios da ordem


econômica, da livre iniciativa e seus fundamentos, e neste artigo observa-se insculpido elementos
que identificam a base da ordem econômica de cunho liberal; a valorização do trabalho humano, a
livre iniciativa e a justiça social, também determinada como um dos fundamentos da República do
Brasil.

A ordem econômica determina a ordem social. Através desta, é possível atingir os direitos
sociais presentes no Art. 6º da Constituição Federal de 1988 pois ao empregar o trabalhador, a
empresa garante a ele um retorno financeiro que advém de seu trabalho, gerando o sustento e
promoção de dignidade, e através dos tributos pagos pela livre iniciativa e demais cidadãos ao
Estado, este pode realizar suas ações afirmativas. É o próprio Welfare State ou Estado de bem estar
social. Só pode haver uma ordem social fundada na ordem econômica e neste caso destaca-se a livre
iniciativa, pois ela como fundamento da economia produz trabalho, e este sustento e dignidade ao
homem.

Ao governo cabe seguir uma sistemática de efetivação dos direitos visando cumprir e
efetivar os pilares constitucionais econômicos do Art. 170 da Constituição Federal de 1988: a
valorização do trabalho humano, a livre iniciativa e da busca da justiça social. Tais pilares que
sustentam a economia e, por consequência, a efetivação dos Direitos Sociais pelo Estado, pois

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A ordem econômica constitucional como proporcionadora da máxima eficácia dos direitos sociais: o
desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

através dos tributos arrecadados com a geração e movimentação das empresas e suas formas
indiretas de arrecadação, são de ordem imperiosa de proteção e efetivação pelo poder público que o
próprio texto normativo constitucional prevê a responsabilização do Presidente da República se
omisso for, conforme preceitua o Art. 85 da Constituição Federal. Os direitos sociais e econômicos
entrelaçam-se pois sem empresas privadas não há trabalho, e sem trabalho, não se pode falar em
valorização do trabalho humano e consequente promoção de sua dignidade humana.

Os direitos sociais como dimensão dos direitos fundamentais podem ser conceituados como
prestações positivas proporcionadas pelo Estado, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos. São direitos que tendem a realizar a
igualização de situações sociais desiguais (SILVA, 1992, p. 289). Os operadores do direito devem
interpretar os direitos sociais como cláusulas pétreas, pois tais direitos representam uma garantia
elevada, de grande valor axiológico, encontrando-se dispostos como direitos fundamentais, com
caráter absoluto e intangível, não podendo ser modificado nem por Emendas Constitucionais.

Podemos observar no capítulo em estudo que a ordem econômica movimenta e proporciona


verdadeiro canal de efetividade dos direitos sociais através de sua realização pelo Estado. No
próximo estudo, analisar-se-á a hermenêutica constitucional e seu papel na interpretação e
significação das normas constitucionais, voltadas para o pleno desenvolvimento do homem em
sociedade.

3 A MÁXIMA EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS PROPORCIONADOS PELA


ORDEM ECONÔMICA

A relação entre o mínimo existencial e a máxima eficácia dos direitos sociais pode ser
visualizada nas palavras de Ingo Sarlet (2001, p. 39), quando este diz que o mínimo existencial não
significa que os direitos sociais só são fundamentais quanto ao mínimo de suas possibilidades e a
sua relação entre exigibilidade de uma norma constitucional imperativa e a reserva do possível.

A norma constitucional que tutela os direitos sociais, oriunda da intervenção direta do poder
legislativo - um cumprimento ao princípio democrático e pluritarismo político - possui caráter
cogente tanto em sua aplicabilidade, “quanto ao dever de legislar” (CANOTILHO, 1993, p. 478).

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Pode-se entender que a reserva do possível - tanto pelo seu uso inequívoco pela doutrina
pátria em sua interpretação original de matiz alemã - é um verdadeiro entrave para possibilidade de
se extrair da norma jusfundamental posição ativa de direitos que versam sobre prestações fáticas,
como por exemplo, a efetivação dos direitos sociais. Conjugar a efetivação deste direito à reserva
do possível é muitas vezes um argumento para explicar a inércia do poder legislativo e a
incapacidade de interpretar teorias amplamente difundidas e aplicadas em países da Europa, no que
diz respeito à concretização legal de normas que efetivem esses direitos.

Como os direitos sociais demandam prestações de caráter material, estes dependem com
mais vigor de recursos financeiros (BITTENCOURT NETO, 2010, p. 146), que estão diretamente
ligados à produção e recolhimento de impostos pelos membros de uma sociedade que orbitam e
nascem na ordem econômica constitucional.

Entra em cena o Mandamento de Otimização e o Efeito Cliquet ou Princípio da Proibição


do Retrocesso Social, ambos implícitos no texto constitucional e que determinam que o operador do
direito faça com que as leis sejam usadas em sua maior efetividade, com maior eficiência, garantindo
ao indivíduo todos os direitos neles expressos e assim estes, uma vez adquiridos, não podem
retroceder. “É vedado ao estado-legislador retroceder arbitrariamente, em relação à regulação
legislativa de um direito social” (BITTENCOURT NETO, 2010, p. 163).

Para Canotilho (1993, p. 321) o Princípio da Proibição de Retrocesso Social formula-se


assim:

O núcleo essencial dos direitos sociais, já realizado e efetivado através de medidas


legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo
inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a etiação de outros
esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação,
revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial.

O órgão responsável pela jurisdição, o Poder Judiciário, também se encontra vinculado à


efetivação dos direitos fundamentais, pelo princípio constitucional da inafastabilidade do judiciário,
capitulado no art.5º XXXV da Constituição Federal. Cabe a este órgão defender os direitos do
homem quando ameaçados ou violados.

Também é função do Judiciário o controle dos atos dos demais poderes. Segundo Gilmar
Mendes (2009, p. 284) é função das cortes conferirem a tais direitos a máxima eficácia possível.
Aos juristas é autorizado na ausência de lei, a concretização dos direitos fundamentais, através da

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

interpretação e os juízes podem e devem aplicar as normas garantidoras de tais direitos mesmo que
haja lei proibindo.

Segundo José Afonso da Silva (1992, p. 79) os direitos fundamentais, mesmo que não
regulamentados pelo legislador ordinário possuem aplicabilidade imediata, não devendo os
integrantes dos poderes do Estado procrastinarem sua aplicabilidade. Isto não significa que pela
inércia do legislador tal direito não será assegurado. Cabe ao Poder Judiciário interferir fazendo
valer tal direito. Celso Bastos (1992, p. 393) sobre isso ensina que:

Quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos


indispensáveis que lhe assegurem aplicabilidade, nos casos em que a aplicação do
direito pelo juiz importar infringência à competência reservada ao legislador, ou
ainda quando a Constituição expressamente remeter a concretização do direito ao
legislador, estabelecendo que o direito apenas seja exercido na forma prevista em
lei, nessas hipóteses, o princípio do § l2 do art. 52 da CF haverá de ceder,
estabelecendo assim uma ordem de otimização.

A efetivação dos direitos constitucionais do indivíduo não podem de maneira nenhuma


serem relativizados ou não concretizados pela desculpa que não há recursos suficientes pois a própria
Constituição já determina os valores que devem ser investidos. E esses valores, gerados são pela
ordem econômica constitucional e financeira, quando autoriza e proporciona a livre iniciativa como
um dos fundamentos basilares da constituição econômica.

Peca o Poder Legislativo ao se omitir de criar leis que visem à melhor efetivação dos
direitos sociais do cidadão e peca também, muito mais o Executivo quando em sua má gestão desvia
os recursos que deveriam ir para a efetivação dos direitos sociais e são destinados para outros fins,
muitas vezes ilícitos. Para Virgílio Afonso (2005, p. 46) os princípios são como Mandamentos de
Otimização; normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes.

Como observado, trata-se de aplicar os direitos sociais, que têm para sua realização, a mola
impulsionadora e geradora de recursos financeiros pautados em uma ordem econômica e financeira
constitucionalmente organizada e incentivada a todos os homens para que seu desenvolvimento seja
linear e contínuo, sempre observando os parâmetros de um mínimo necessário para sua plena
existência.

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No próximo capítulo, a abordagem recaíra sobre a importância de se consolidar aos deveres


fundamentais uma categoria autônoma, consubstanciada no sentimento e no dever nacional de pagar
impostos, como fonte motriz da realização dos direitos sociais a todos os membros de uma
sociedade.

4 OS DEVERES FUNDAMENTAIS E O DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA

Buscou demonstrar a inconsistência do critério econômico como discrímen para a distinção


entre direitos fundamentais como “negativos” (primeira dimensão) e “positivos” (segunda
dimensão). Tal desvelamento importa na medida em que evidencia a existência de algo oculto,
esquecido em meio à margem do discurso filosófico predominante sobre os direitos fundamentais.
Na medida em que se assume que todos os direitos têm custos públicos, torna-se necessário apontar
que a todo direito fundamental contrapõe-se um dever fundamental contraposto, sob pena do próprio
direito não existir – no caso em questão, deve-se evidenciar a existência de um dever de subsidiar
os custos dos direitos fundamentais, sejam eles de primeira ou segunda dimensão.
Nesse tópico, a partir das reflexões desenvolvidas pelo professor português José Casalta
Nabais, almeja-se projetar um pouco de luz sobre essa categoria teórica olvidada, qual seja: a noção
de deveres fundamentais. Por conseguinte, tecemos inicialmente algumas considerações sobre os
possíveis motivos do esquecimento que envolve tal conceito, para então distinguir os deveres
fundamentais reflexos dos deveres fundamentais como categoria autônoma, apontar os seus
fundamentos, clarear a noção de deveres fundamentais e assinalar o seu regime jurídico. Com isto,
não se pretende colocar aqui defender a ideia de que os deveres se encontram em pé de igualdade e
menos ainda à frente dos direitos – como o faz Joseph Rovan, por exemplo7 –, mas apenas reforçar
que os direitos e os deveres se encontram colocados no mesmo plano jurídico, compartilhando o
mesmo âmbito constitucional.
Para José Casalta Nabais (2007, p. 2), esquecimento dos deveres fundamentais como
categoria doutrinária relevante é facilmente constatável quando lançamos um breve olhar para a
doutrina europeia do segundo pós-guerra, podendo-se verificar que tal conceito fora objeto de “um
pacto de silêncio, de um verdadeiro desprezo”. Tal desprezo que seria visível de modo ainda mais
claro quando confrontado com a atenção constitucional que tem sido dispensada aos direitos

7 ROVAN, Joseph. Citoyen d’Europe - Comment le devenir? Les devoirs avant les droits, 1993.

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

fundamentais – quer em termos extensivos quer em termos intensivos. Nesse sentido, Nabais destaca
que a mais célebre das declarações de direitos – a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 26 de Agosto de 1789 – é uma declaração que rejeitou integrar uma declaração de deveres
(NABAIS, 2007, p. 3).
O esquecimento dos deveres fundamentais teria causas mais próximas. Dentre estas, o
professor de Coimbra aponta como motivos relevantes a conjuntura política, social e cultural do
segundo pós-guerra, por um lado, e o regresso a uma estrita visão liberal dos direitos fundamentais,
de outro. A primeira causa refere-se à preocupação dominante nessa época, pois, era necessário
exorcizar o passado dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos8. A segunda causa,
mais próxima, consiste num regresso a uma visão liberal estrita dos direitos fundamentais que
postula a rejeição da proposta de integrar também uma declaração de deveres às declarações de
direitos, sob o argumento de que numa comunidade liberal os deveres se identificam com os direitos
(deveres reflexos)9.
José Casalta Nabais salienta que a argumentação liberal contra os deveres apenas seria
válida face aos deveres correlativos dos direitos fundamentais, ou seja, face aos deveres que
podemos designar por deveres de direitos fundamentais. Afirma o professor português que “ela não
atinge os verdadeiros deveres fundamentais, os deveres enquanto categoria ou figura jurídica
autônoma” (NABAIS, 2007, p. 4). Isto, pois, enquanto parte ou face passiva de cada um dos direitos
fundamentais, os deveres correlativos de direitos estão constitucionalmente previstos nas normas
que consagram os direitos, dispensando a sua previsão constitucional direta ou expressa (NABAIS,
2007, p. 4).
O esquecimento da problemática dos deveres teria ainda, segundo Nabais (NABAIS, 2007,
p. 4-5), um outro suporte ou apoio suplementar nos dias de hoje:
Na verdade, esse desprezo pelos deveres está presentemente ancorado também
naquilo que podemos designar por discurso quantitativo dos direitos fundamentais,
um discurso que, convém dizê-lo, é mais amplo e perturba ou domina mesmo a
nossa visão da sociedade e da vida.

8 Comentando o fenômeno da constitucionalização do Direito, ocorrido no Ocidente após a II Guerra Mundial,


afirma: “Foi isto o que aconteceu no século vinte. Mais precisamente nos finais dos anos quarenta em Itália
e na então República Federal da Alemanha, depois nos anos setenta na Grécia, Portugal e Espanha, e já
nos anos oitenta no Brasil. E isto para não referirmos outros países, como os libertados do comunismo já na
década de noventa. Particularmente significativo é, a este propósito, o que sucedeu na Alemanha. De um
lado, a Lei Fundamental de Bonn não conhece em todo o seu texto a expressão dever ou deveres
fundamentais. De outro lado, a doutrina alemã durante muito tempo, mais concretamente até aos finais dos
anos setenta do século passado, fez do tema dos deveres fundamentais um verdadeiro tabu”. (NABAIS,
José Casalta. Op. cit. p. 3).
9
Idem, p. 4.

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Diante desses motivos torna-se compreensível o esquecimento da categoria dos deveres


fundamentais que domina tanto o âmbito das constituições como a dogmática constitucional
contemporânea.
Ainda que se possa falar em deveres fundamentais como deveres correspondentes aos
direitos fundamentais, a tese sustentada por José Casalta Nabais (2007, p. 5) é de deveres
fundamentais como uma categoria autônoma, ou seja, categoria jurídica constitucional própria. Tal
concepção, saliente-se, rejeita extremistas: seja a perspectiva do liberalismo, que não conhece senão
direitos, esquecendo-se da responsabilidade comunitária dos indivíduos (concepção dominante no
século XIX); seja a perspectiva a de um comunitarismo que apenas conhece deveres, decompondo
a liberdade numa rede de deveres ou funções (regimes totalitários e autoritários que a Europa
conheceu e viu cair no século XX).
Nesse sentido, mesmo quando não o dizem de modo explícito, as constituições integram
em seu texto diversos deveres fundamentais (NABAIS, 2007, p. 6):
A este respeito, podemos mesmo considerar que historicamente se foram formando
tantas camadas de deveres fundamentais quantas as camadas de direitos. E assim
temos os deveres que vêm da época liberal, como os deveres de defesa da pátria e
de pagar impostos; temos os deveres que são o contributo da “revolução”
democrática, consubstanciada na conquista do sufrágio universal, que nos deixou
os de veres políticos como os deveres de sufrágio e de participação política; temos,
enfim, os deveres que constituem o apport do estado social, ou seja, os deveres
económicos sociais e culturais, como os deveres de subscrever um sistema de
segurança social, de proteger a saúde, de frequentar o ensino básico, etc. Deveres
estes a que, hoje em dia, tende a acrescentar-se uma quarta camada de deveres
formada pelos deveres ecológicos, de que são exemplos os deveres de defender um
ambiente humano são e ecologicamente equilibrado e o dever de cada um preservar,
defender e valorizar o património cultural.

Contudo, ainda é preciso indagar: qual é o fundamento dos deveres fundamentais? Para
Nabais existem duas espécies de fundamento: de um lado, a razão de ser lógica dos deveres
fundamentais e, de outro, o seu fundamento jurídico. A razão de ser lógica de tais deveres consiste
em ser a expressão da soberania fundada na dignidade da pessoa humana. Isto significa que o
Estado, e naturalmente a soberania do povo que suporta a sua organização política, tem por base a
dignidade da pessoa humana. Disto resulta que, “ao contrário do que se passa com os direitos, os
deveres fundamentais são, em larga medida, criação do legislador constituinte” (NABAIS, 2007, p.
6). Por seu turno, o fundamento jurídico dos deveres fundamentais "reside na constituição, ou talvez
melhor, na sua previsão constitucional” (NABAIS, 2007, p. 7).
Segundo José Casalta Nabais (2007, p. 7), isto significa que

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A ordem econômica constitucional como proporcionadora da máxima eficácia dos direitos sociais: o
desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

na ausência de uma disposição constitucional a prever os deveres obsta ao seu


reconhecimento como deveres fundamentais, como deveres no plano
constitucional. Daí que, na ausência de previsão constitucional, ainda que tais
deveres possam ser considerados deveres fundamentais de um ponto de vista
material ou substancial, isto é, ainda que congreguem em si as notas típicas de uma
noção material ou substancial de deveres fundamentais, eles não podem ser tidos
por deveres fundamentais.

Desta concepção decorre a ideia de tipicidade ou de lista fechada dos deveres fundamentais.
Isto é, “apenas podemos considerar como deveres fundamentais, entre os que o possam ser de um
ponto de vista material ou substancial, aqueles que figurem, de maneira expressa ou implícita, na
constituição” (NABAIS, 2007, p. 7)10. De tal modo, os deveres extra-constitucionais – idênticos na
sua substância aos deveres constitucionais – devem ser considerados como deveres puramente
legais, não havendo outros deveres fundamentais para além dos previstos na constituição.
Assim, tendo em mente certo paralelismo para com as características essenciais da noção
constitucional de direitos fundamentais oferecidas pela doutrina, seria possível afirmar que
(NABAIS, 2007, p. 8):
Os deveres fundamentais se configuram como posições jurídicas passivas (não
activas), autónomas (face aos direitos fundamentais), subjectivas (já que exprimem
uma categoria subjectiva e não uma categoria objectiva), individuais (pois têm por
destinatários os indivíduos e só por analogia as pessoa colectivas) e universais e
permanentes (pois têm por base a regra da universalidade ou da não discriminação).

Segundo o professor de Coimbra, seria possível distinguir os deveres fundamentais de


certas figuras próximas que, não raro aparecem confundidas com os deveres fundamentais
(NABAIS, 2007, p. 8):
Podemos, assim, separar os deveres fundamentais: a) dos deveres constitucionais
orgânicos ou organizatórios (que não passam de competências constitucionais de
exercício vinculado quanto ao an); b) dos limites (maxime restrições) legislativas
aos direitos fundamentais que, ao amputarem o conteúdo ou parte do conteúdo
constitucional não essencial de cada direito, nos fornecem o conteúdo
constitucional dos direitos fundamentais que vale na prática; c) dos deveres
correlativos dos direitos fundamentais (ou deveres de direitos fundamentais tout
court) que mais não são do que a face passiva dos direitos; d) das garantias
institucionais (como imprensa livre, a família, a propriedade, a autonomia das
autarquias locais, etc.) que são sobretudo figuras jurídicas de natureza objectiva; e)
das tarefas constitucionais stricto sensu, que têm por destinatário exclusivamente o

10
Por outro lado, Nabais acrescenta: “Uma conclusão que, naturalmente, não impede o legislador ordinário de os impor
e sancionar. Muito embora tais deveres não possam ser tidos por deveres fundamentais, mas apenas por deveres legais.
[...] Uma ideia que é válida mesmo face a constituições que, ao menos prima facie, parecem conter uma cláusula geral
de deveres fundamentais. É o que acontece com a Constituição italiana, cujo art. 2º dispõe: ‘A República reconhece e
garante os direitos invioláveis do homem seja como indivíduo seja nas formações sociais em que desenvolve a usa
personalidade, e exige o cumprimentos dos deveres imprescritíveis de solidariedade política, económica e social’”.
(NABAIS, José Casalta, Op. cit. p. 7).

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estado e visam vincular os seus órgãos à produção de certos resultados em matéria


de organização económica ou social, política ou administrativa (v., por exemplo,
os arts. 9º e 81º da Constituição portuguesa).

Por fim, no que tange ao regime jurídico dos deveres fundamentais, José Casalta Nabais
destaca dois aspectos significativos: primeiramente, a existência de um regime geral característico
e, em segundo lugar, a inaplicabilidade direta dos preceitos constitucionais que preveem os deveres
fundamentais.
Quanto ao primeiro aspecto, Nabais (2007, p. 9) destaca que, não obstante autonomia e a
relativa independência dos deveres fundamentais face à figura ou categoria jurídica dos direitos
fundamentais, os mesmos participam do regime geral destes. Isto ocorria, pois, na verdade, haveria
um regime relativo ao estatuto constitucional do indivíduo, isto é, relativo aos direitos e aos deveres,
englobando ambas as espécies em um mesmo gênero.
Assim, de acordo com o entendimento do professor de Coimbra, também se aplicam
aos deveres fundamentais, nomeadamente, os seguintes princípios:
1) da universalidade ou da aplicação categorial, 2) da igualdade enquanto proibição
do arbítrio, 3) da não discriminação em razão de critérios subjectivos ou de critérios
interditos pela constituição como os que constam da lista, aliás bastante completa
do art. 13º, nº 2, da Constituição portuguesa12, 4) da proporcionalidade nos três
aspectos conhecidos (ou seja, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade
em sentido estrito) relativamente à sua concretização pelo legislador, 5) da
aplicabilidade aos estrangeiros e apátridas, e 6) da tutela judicial (NABAIS, 2007,
p. 9)

Por sua vez, no que tange ao segundo aspecto – a inaplicabilidade direta dos deveres
fundamentais –, ao contrário do que ocorre em matéria de direitos fundamentais, as normas
constitucionais relativas aos deveres fundamentais não seriam diretamente aplicáveis aos seus
destinatários subjetivos. Isto porque os deveres fundamentais, por via de regra, “não têm o seu
conteúdo concretizado na constituição, sendo, pois, deveres de concretização legal” (NABAIS,
2007, p. 9). Todavia, “mesmo quando a sua concretização se realiza ao nível da constituição, o
legislador dispõe de uma ampla liberdade, nomeadamente para estabelecer as sanções aplicáveis no
caso da sua não observância” (NABAIS, 2007, p. 9).
Do exposto acima, é possível observar que a noção dos deveres fundamentais constitui uma
série de nuances e características demasiadamente importantes para que fique relegada às águas do
Letes – o mitológico rio do esquecimento que corria no Hades (BULFINCH, 2001, p. 325). Tal qual
o deus Jano, que possuía duas faces, o estatuto constitucional do indivíduo possui natureza dúplice
e apenas será corretamente compreendido quando, ao lado da noção de direitos fundamentais, for

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

atribuída a devida importância à complexa categoria dos deveres fundamentais enquanto categoria
constitucional autônoma, em razão de suas inequívocas especificidades normativas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo tem como tema central a relação entre a ordem econômica e a ordem
social, buscando chegar à possibilidade da efetivação dos Direitos Sociais através do subsídio
necessário aos custos dos direitos fundamentais, demonstrando que esse caminho se faz possível
quando há a valorização do trabalho humano e da geração da renda, quer seja do particular, quer
seja do Estado que garante através do Welfare State ou de suas políticas públicas, bem como na
geração e no consequente recolhimento de impostos (dever fundamental de pagar impostos).

Considerando o ser humano como destinatário final das normas e embasado em uma
hermenêutica constitucional voltada para o pleno desenvolvimento do ser, é dado ao intérprete o
direito de interpretar o alcance da norma de forma prospectiva, voltada para a construção de uma
sociedade justa, fraterna e solidária, dentro dos parâmetros de legalidade constitucional.

Através da relação entre a ordem econômica e social, busca-se elucidar a compreensão que
só é possível a obtenção de garantia de direitos que tragam dignidade ao homem se o Estado tiver
uma Ordem Econômica voltada na valorização do trabalho humana, na justiça social e na livre
iniciativa.

Ressalta-se que o fato da teoria vigente sobre o mínimo existencial determinar a existência
de algo abstrato que garanta uma vida digna e este fundamentado na dignidade humana, princípio
iluminador que deve ser levado em conta pelo legislador, sob pena de suas leis emanadas serem
consideradas inconstitucionais, entende-se não ser digno o homem viver sem ter necessariamente o
mínimo que lhe garanta sua dignidade, sua vida. Tal garantia de padrões mínimos de dignidade são
produzidos pelo Estado que prioriza e incentiva o desenvolvimento econômico, como forma de
proporcionar aos seus jurisdicionados, através de recursos financeiros – que são oriundos da geração
e pagamento de impostos - aplicados à efetivação dos direitos sociais, uma vida digna.

Garantir os direitos sociais é garantir o direito ao mínimo de existência pela via


constitucional econômica. O Direito é uma instituição social destinada a satisfazer às necessidades
sociais. É o cumprimento dos melhores resultados sociais, mediante o mínimo de sacrifício dos
interesses em conflito, por meio da ordenação da conduta humana, em uma sociedade politicamente

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organizada em sua forma de produção econômica. Quando se diz mínimos necessários de direitos
sociais efetivados para trazer dignidade a alguém, tais percentuais não podem ser mensurados, pois
versam sobre algo subjetivo do indivíduo e o que é necessário para garantir a dignidade de um não
o é de outros. Sendo assim, não se pode dizer que tendo o homem alimento, moradia e saúde, este
pode ser considerado digno, e seus direitos estarão garantidos. Também, de igual forma, reduzir o
homem aos mínimos padrões de sobrevivência e a ele atribuir dignidade, não é fruto de governo que
governa para o povo e com o povo.

Inseridos e não orbitando na sociedade: este é o dever de todos os componentes da pólis.


Fazer valer o sentimento de solidariedade, de fraternidade para assim, viver, legislar, administrar e
julgar em favor do pleno alcance de uma vida com liberdade de escolhas, de uma vida com
dignidade. Diante dessa premissa, mister se faz necessária a observação de uma estrita interpretação
pluralista, fraterna e sem preconceitos, conforme dita o preâmbulo constitucional, dos direitos
fundamentais.

Da leitura do preâmbulo da Constituição Brasileira, do Art. 1º inciso III e do Art. 3º é que


aflora o verdadeiro sentido de proteção à pessoa humana. A preocupação constitucional dos
presentes artigos expressam normas de proteção ao ser humano, base de toda uma sociedade,
devendo estas serem observadas pelos intérpretes da lei. É necessário que os membros integrantes
do Estado estejam inseridos, vivenciando e respirando os atuais e iminentes anseios de uma
sociedade, até porque o Direito não acompanha a evolução de um povo, em qualquer dos seus
aspectos.

Com relação à interpretação conforme a Constituição salienta-se o pensamento do jurista


alemão Peter Häberle, que em sua obra ‘Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da
Constituição’, obra traduzida por Gilmar Ferreira Mendes, em que o autor defende a tese de que é
preciso adotar uma hermenêutica constitucional adequada à sociedade pluralista ou à chamada
sociedade aberta, onde todo aquele que vive a Constituição é seu legítimo intérprete.

Interpretar conforme a Constituição é analisar o contexto histórico do momento, analisando


o processo como um todo, para que essa interpretação chegue o mais próximo possível dos anseios
de uma sociedade. Sociedade esta aberta, pluralista, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação. Vale dizer, interpretar a Constituição é interpretar
os anseios do homem dentro de uma sociedade, procurando o correto entendimento daquilo que é

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desenvolvimento da cidadania possibilitado pelos deveres fundamentais

necessário para que esse homem possa viver em sociedade, viver com dignidade dentro de sua
família.

É de responsabilidade dos integrantes dos poderes da União, bem como de todos os


integrantes da sociedade, legislarem, administrarem e julgarem tendo sempre os olhos voltados para
a pessoa humana. O homem, aqui referenciado como raça humana, em sua plenitude de realizações
que lhe possam conferir dignidade. Ao Legislativo cabe a tarefa de legislar sempre com normas
voltadas para o homem; ao Administrativo, administrar sempre com vistas à realização dos direitos
fundamentais do homem; ao Judiciário, julgar sempre de acordo com os direitos fundamentais e
quando de suas colisões com outros direitos fundamentais, encontrar no princípio da
proporcionalidade a efetiva concretização do direito que contenha em sua essência a carga
axiológica de maior valor. E à sociedade, dirigir aos seus pares olhares de solidariedade, com o
coração repleto de amor e sensibilidade para enxergar em seu próximo uma pessoa de idêntica
imagem.

Os direitos fundamentais passaram a desempenhar uma significativa função nos


ordenamentos jurídicos ocidentais no decorrer do século XX, em especial, após o término da II
Guerra Mundial. A necessidade de se repensar o direito e sua função social na contemporaneidade
ficaram evidenciadas quando se observou que mesmo as maiores atrocidades podem ser cometidas
e “legitimadas” pela autoridade da lei. Visando alterar a concepção do jurídico que permitiu tais
eventos desastrosos, muitos países ocidentais promulgaram novas cartas constitucionais que traziam
no bojo do seu texto, como corolários normativos, a afirmação dos direitos fundamentais. O advento
de tais constituições deu origem a um fenômeno de constitucionalização do Direito e a um novo
paradigma teórico denominado por muitos autores de Neoconstitucionalismo.
O estudo objetivou demonstrar, por meio de uma revisão da tradicional classificação de
direitos individuais como direitos “negativos” e direitos sociais como direitos de “prestações
positivas”, a importância da categoria de deveres fundamentais como categoria constitucional
autônoma bem como uma ordem econômica voltada para o pleno desenvolvimento do homem.
Verifica-se que tanto os direitos fundamentais de primeira dimensão quanto os direitos
sociais de segunda dimensão, em sua concretização, geram custos financeiros e exigem uma
intervenção positiva por parte do Estado contemporâneo. De tal modo, foi possível afirmar com
segurança que todo e qualquer direito fundamental demanda custos públicos na medida em que exige
todo um sistema jurídico organizado pelo poder estatal a fim de resguardar e dar efetividade e
concreção a tais direitos. Isto significa que, ao lado dos direitos fundamentais existem também

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deveres fundamentais reflexos ou correlatos – no caso, a necessidade de se apontar a existência de


um dever fundamental de pagar impostos a fim que todos os direitos possam ser garantidos e
efetivados por parte do Estado.
O artigo procurou ressaltar a relevância bem como os contornos essenciais que envolvem
a noção de deveres fundamentais. A partir das reflexões desenvolvidas por José Casalta Nabais,
foram tecidas considerações sobre os possíveis motivos do esquecimento que envolve tal conceito,
distinguiu-se os deveres fundamentais correlatos ou reflexos dos deveres fundamentais como
categoria autônoma, apontando os seus fundamento lógico e jurídico e, por fim, assinalou-se o seu
regime jurídico indicando também a inaplicabilidade direta dos preceitos constitucionais os
preveem.
Por fim, os direitos fundamentais possuem duas faces distintas: uma voltada para os direitos
fundamentais stricto sensu e outra para os deveres fundamentais. Ambas, porém, se complementam
intimamente estando unidas metaforicamente pelo mesmo corpo. Uma perspectiva científica que
procure esclarecer os contornos gerais de uma das “faces” desconsiderando a outra, não será capaz
de apreender a real essência do objeto que procura conhecer. Torna-se necessário, assim, voltar os
olhos para a face oculta dos direitos fundamentais: os deveres fundamentais como categoria
constitucional autônoma.
Importante é a realização de todas as necessidades do ser humano que lhe garantam uma
existência digna acompanhadas do sempre “algo mais”. Esse aumento, esse algo mais em sua
existência digna faz com que tenhamos uma sociedade sempre em direção ao alargamento do
mínimo existencial, fazendo prevalecer a teoria do não retrocesso de uma sociedade, na
aplicabilidade dos direitos fundamentais. Interpretar conforme a Constituição é concretizar a
esperança de muitas pessoas que são privadas de seus integrantes, deixando de receber o afeto e
carinho necessários para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. E esse pleno
desenvolvimento encontra um porto em uma sociedade justa, fraterna e solidária.

Imperiosa a busca por uma sociedade que contemple os ditames fundamentais de uma
Constituição voltada para a busca de uma sociedade justa, livre e solidária, pautadas no pleno
desenvolvimento da cidadania dos homens.

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