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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Educação

Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Rio de Janeiro
2014
Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Dissertação apresentada, como


requisito parcial para obtenção do título
de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas e
Formação Humana, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.a Dra. Denise Barata

Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

N244 Nascimento, Marcelo Fernandes do.


Elégùn: Ritual e Formação Humana / Marcelo Fernandes do
Nascimento. – 2014.
142 f.

Orientador: Denise Barata.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Educação.

1. Estudos interculturais – Teses. 2. Identidade social – Teses. 3.


Religião – Aspectos Socais – Teses. I. Barata, Denise. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. III. Título.

es CDU 390:2

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total


ou parcial desta dissertação.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Dissertação apresentada, como


requisito parcial para obtenção do título
de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas e
Formação Humana, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 29 de setembro de 2014.

Banca Examinadora:

_______________________________
Profa Dra Denise Barata (Orientadora)
Faculdade de Educação – UERJ/FFP

_______________________________
Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva
Centro Universitário Fundação Santo André

_______________________________
Profa Dra Azoilda Loretto da Trindade
Universidade Estácio de Sá

_______________________________
Irenilza Oliveira e Oliveira
Universidade do Estado da Bahia

Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA

Aos meus ancestrais divinizados.


Aos meus mais velhos.
Aos que ainda renascerão.
AGRADECIMENTOS

A Oludumarê, pela vida.


À Oyá, pelo renascimento.
À minha mãe genética, pelos ensinamentos e exemplos de toda a vida.
Às minhas irmãs, pelo companheirismo.
À professora Denise Barata, por acreditar.
Aos professores do PPFH, por sua dedicação.
Aos professores Salomão Jovino da Silva e Azoilda Loretto Trindade,
pela paciência e respeito em minha qualificação.
A todos os elégùn que contribuíram grandiosamente para a realização
deste estudo.
A Jô Cruz, Fátima Aparecida e Sônia Marques, pela amizade e incentivo.
À minha equipe da Gerência de Educação da 8 a Coordenadoria
Regional de Educação, pela parceria.
À amiga-irmã Ana d’Oxum, pelo seu colo.
À amiga Sandrinha, por seu otimismo e força.
À amiga Kátia Geni, por ter-me feito acreditar.
Às amigas Diala, Katia Beserra e Magali, pelas preciosas contribuições.
À querida amiga, Selma Maria, por sua disponibilidade e generosidade.
Aos colegas de jornada, Alexandre, Carla, Roberto, Lindinalvo, Giseuda
e Felipe.
E a todos aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para a
construção deste trabalho.
(...) O raio de Iansã sou eu
Cegando o aço das armas de quem guerreia
E o vento de Iansã também sou eu
E Santa Bárbara é a santa quem me clareia (...)
Eu não conheço rajada de vento mais poderosa que a minha paixão
Quando o amor relampeia aqui dentro, vira um corisco esse meu coração
Eu sou a casa do raio e do vento
Por onde eu passo é zunido, é clarão
Porque Iansã desde o meu nascimento, tornou-se a dona do meu coração
O raio de Iansã sou eu...
Dorival Caymmi
RESUMO

NASCIMENTO, M. F. Elégùn: Ritual e Formação Humana. 2014. 142 f.


Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana). –
Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2014.

Este estudo tem como objetivo central investigar o processo de


constituição de identidades ritualístico-culturais dos adeptos dos cultos negros
brasileiros a partir dos rituais de iniciação propostos pelas comunidades de
cultos. A partir de sua consagração ritualística, os iniciados são denominados
elégùn e passam a conviver entre o sagrado, por intermédio da concepção da
ancestralidade divinizada, e as relações estabelecidas no devir de sua história.
Foi fulcral para este estudo a correlação feita pelos adeptos entre suas práticas
ritualísticas e sua formação histórica, social, política e, sobretudo, cultural.
Permeado pelas histórias e pelas memórias individuais e, em alguns
momentos, coletivas, o estudo entremeia-se aos aportes teóricos de, propondo
constante diálogo entre eles. A concepção de que as culturas que se efetivam
e se estabelecem mediante relações construídas e vivenciadas no cotidiano
são ações profícuas e intensas de identidades próprias cunhou grande parte do
referido estudo. Observou-se que a ancestralidade transita pelas diversas
esferas vividas pelo elégùn, interagindo, integrando e reelaborando rituais e
sujeitos.

Palavras-chave: Identidades. Culturas. Ancestralidade Divinizada. Elégùn.


ABSTRACT

NASCIMENTO, M. F. Elégùn: ritual and human formation. 2014. 142 f.


Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana). –
Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2014.

This study is mainly aimed to investigate the process of formation of ritual


and cultural identities of supporters of black Brazilian cults, from initiation rituals
proposed by communities of worship. From its ritual consecration they are
called elégùn and start to live between the sacred, through the design of the
deified ancestry, and established relationships in the transformation of its
history. Was central to this study the correlation between his supporters made
by ritual practices and their historical, social, political and especially cultural
training. Permeated by stories and individual memories and moments, the
collective, the study intertwines itself to theoretical studies proposing constant
dialogue between them. The conception that the cultures that take place and
settle through the built and lived in everyday relationships are intense and
fruitful actions own identities, coined much of the study. It was observed that the
ancestry transit in various spheres exibit elégùn, interacting, integrating and
reworking rituals and subjects.

Keywords: Identities. Cultures. Divinized ancestry. Elégùn.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Escravos de ganho no Brasil................................................ 22


Figura 2 - Escravos de ganho no Brasil................................................ 22
Figura 3 - Mercado de Escravos........................................................... 25
Figura 4 - Babalorixá Ricardo d’Oxum.................................................. 54
Figura 5 - Babalorixá Ricardo d’Oxum.................................................. 55
Figura 6 - Fiéis na Igreja de Santa Bárbara.......................................... 57
Figura 7 - Gruta dedicada à Oyá........................................................ 57
Figura 8 - Ekedi Vitória de Oyá............................................................. 65
Figura 9 - Ekedi Vitória de Oyá............................................................. 66
Figura 10 - Apresentação de elégùn à comunidade do Ilê Ase Ogun
Iemanjá a ti Oyà.................................................................... 71
Figura 11 - Elégùn de Oxum e Elégùn de Logun Edé............................. 72
Figura 12 - Elégùn de Oxum................................................................... 72
Figura 13 - Roda de Oxum...................................................................... 78
Figura 14 - Elégùn no Ipeté d’Oxum....................................................... 78
Figura 15 - Ialorixá Nilza d’Ogum............................................................ 102
Figura 16 - Oyá da Ialorixá Denise.......................................................... 112
Figura 17 - Oyá nas oferendas da Ekedi Carla de Xangô....................... 113
Figura 18 - Oyá com a Ialorixá Nilza d’Ogum......................................... 113
Figura 19 - Oyá na fogueira de Xangô.................................................... 114
Figura 20 - Oyá e a Ekedi Carla de Xangô............................................. 115
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................. 10
1 DE ONDE ESTAMOS FALANDO.................................................... 17
1.1 Os africanos chegam ao Brasil e com eles os ancestrais
divinizados..................................................................................... 19
1.2 As “Áfricas” no Brasil.................................................................... 27
1.3 As etnias Iorubás............................................................................ 33
1.3.1 A constituição da suposta supremacia Iorubá (nagô) no Brasil....... 35
1.4 Sincretismo ou interações, trocas, acrescentamentos e
possibilidades? ............................................................................. 45
1.4.1 Olhares – lugar de interpretações.................................................... 50
1.4.2 Um legado.................................................................................... 55
2 OS FUNDAMENTOS QUE SUSTENTAM A INICIAÇÃO
SOCIORRITUALÍSTICA................................................................... 61
2.1 As linguagens na constituição das identidades ritualística...... 61
2.1.1 Oruko oriki – o nome que identifica o elégùn................................. 79
2.2 Memória – a mola mestra da iniciaçã........................................... 84
2.3 Identidades – elaborações e movências...................................... 94
3 ELÉGÙN – (RE)INVENÇÕES SOCIORRITUALÍSTICAS................ 105
3.1 O ancestral divinizado e o indivíduo – faces côncava e
convexa em um mesmo ser – o elégùn........................................ 105
3.1.1 Ancestre e descendente – atores sociorritulísticos que se
completam................................................................................ 110
3.2 Êpa hey, Oyá – o ancestral da transformação............................ 115
3.3 Axé – forças necessárias para o elégùn...................................... 121
3.4 Elégùn – devir ritual, social, cultural............................................ 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................. 131
REFERÊNCIAS................................................................................. 134
10

INTRODUÇÃO

“Você tem outras vivências que podem ser trazidas para o campo de
pesquisa.” Estas foram as palavras ouvidas por mim da minha orientadora,
professora Doutora Denise Barata, quando da minha aprovação, mas não seleção,
no ano de 2010, para cursar o mestrado nesta mesma instituição. Naquele
momento, eu propunha investigar a utilização ou não de materiais pedagógicos,
destinados às Unidades Escolares da 8 a Coordenadoria Regional de Educação
(CRE), que tratavam da história da África e dos afro-descendentes, conforme
orientação da Lei no 10.639/2003.
Ao procurar a professora, ela me disse a afirmativa acima. Confesso que
demorei a me situar em suas palavras. Havia um misto de decepção, comigo
mesmo, e um não entendimento do “aprovado/não selecionado”. O que valia de fato,
naquele instante, era que eu não cursaria o mestrado e, consequentemente, adiaria
a consolidação de uma realização muito importante na minha vida. Recordo que a
professora Denise me explicou que o fato de minha aprovação significava que eu
tinha condições de seguir no campo de pesquisa acadêmica. Suas explicações me
incentivaram a não desistir de meu desejo até então.
No processo seletivo seguinte, lá estava eu propondo pesquisar sobre
“minhas outras vivências”, conforme sugerido pela referida professora: o ritual de
iniciação das comunidades negras brasileiras 1 como um processo constitutivo de
identidades próprias. A concretude de tal projeto transportou-me ao ano de 1987
(ano de meu nascimento ritualístico) e a todos os que se seguiram até aquele
momento. Era como se eu estivesse fora de mim, assistindo como espectador a
todas as cenas que passaram diante dos meus olhos.
Debruçar-me sobre minhas vivências significava para mim, naquele instante,
minha atividade profissional – a educação – ou minha escolha religiosa/ritualística. A
primeira se encontrava (e ainda se encontra) em um campo intenso e disputado de

1
Escolho, neste estudo, a terminologia comunidades de cultos negros brasileiros (ou brasileiras), por
acreditar que esta é a que melhor se adequa ao objetivo proposto e que, ainda, encontra maior
sustentação no/do referencial teórico. Esclareço que essas comunidades também são
denominadas: candomblé, casas de santo, terreiro, casa de axé, terreiro de candomblé, dentre
outros. Em alguns trechos aparecerão essas terminologias por serem ressignificações negras no
Brasil de práticas que aqui chegaram e que aqui se constituíram com a diáspora africana e, ainda,
por terem sido citadas pelos iniciados que contribuíram para a efetivação deste estudo.
11

hipóteses, e a segunda era trazer para o meu lado acadêmico, ou melhor, para as
minhas identidades acadêmicas uma parte de minha vida que eu acreditava, até
então, que não necessitava de maiores aprofundamentos (e talvez não precisasse
mesmo). Tinha a ilusória percepção de que já estava pronta, estruturada.
Após a euforia da aprovação, delineei o que de fato eu queria abordar sobre
os iniciados nos cultos negros brasileiros. Quais perguntas fazer, o que ler, o que
não deixar de sinalizar; enfim, o que faria parte de minha pesquisa. Aí me deparei
com uma questão muito mais ampla: falar de iniciados seria falar de mim; pesquisar
a iniciação como locus de constituição de sujeitos, significava incluir-me nesse
processo. A angústia que se apresentava pautava-se no tênue limite do iniciado-
pesquisador-iniciado. Como separar os dois? (Se é que isso seria possível!) Não
queria trazer somente as minhas percepções, e deixo claro, aqui, que o “somente”
não significa que elas não sejam de uma importância ímpar, mas precisava assumir,
também, minhas identidades de pesquisador e precisaria, em alguns momentos,
ocupar exclusivamente esse lugar para poder perceber se minhas hipóteses faziam
sentido ou não.
Diante desse impasse, estava ali eu – iniciado e pesquisador – trilhando
minhas escolhas e revisitando minhas histórias enquanto iniciado há 27 anos: os
caminhos percorridos, as vivências e as experiências, os encontros e os
desencontros dos quais tenho feito parte, memórias de anos de rodas de conversa
com meus pares, de discussões e embates após rituais, conversas que vararam
madrugadas a fio após as rodas ritualísticas, leituras realizadas e, principalmente, as
transformações ocorridas em mim, após ter-me consagrado em elégùn2. Essas eram
algumas pistas que se apresentaram naquele momento para que eu desse início à
minha pesquisa. Esclareço que, em grande parte da pesquisa, situo-me no lugar do
pesquisador, no entanto há momentos que, seduzido pelo assunto, ocupo o lugar
posto em minha vida, ou seja, o de iniciado. Vale destacar, ainda, que, na própria
escrita existam ambos (elégùn e pesquisador), pois, na maior parte deste estudo, há

2
Verger (2002) cita que elégùn é aquele que pode ser “montado” (gùn) pelo ancestral
divinizado/orixá; possuído por ele. Para as comunidades de cultos negros brasileiros, elégùn é
aquele que é iniciado nos rituais, iniciado em orixá. Ele é o veículo que permite a volta, o retorno, a
vinda do ancestre à terra para ser ritualizado nos cultos negros. Vale esclarecer que, em muitas
comunidades de cultos, o elégùn também é conhecido pelo nome de iaô. O mais importante, para
este estudo, é o entendimento da relação constituída entre o indivíduo e o(s) seu(s) ancestral(is)
divinizado(s) como constante ritual e formação humana.
12

a delimitação da primeira pessoa do plural (nós), mas há, também, a primeira


pessoa do singular (eu).
Bem, acredito que dadas as explicações iniciais de como nasce o objeto de
estudo proposto desta pesquisa, faz-se necessário apresentar minhas escolhas
teórico-metodológicas para que possa, assim, enquanto pesquisador de minhas
práticas ritualísticas e, também, das práticas ritualísticas de meus pares, situá-lo
epistemologicamente.
Inicialmente, a construção do referencial teórico se deu a partir de algumas
discussões com o grupo de pesquisa liderado por minha orientadora – “Laboratório
de Oralidade e Memória Africana e da Diáspora” – e, ainda, de obras voltadas para
as questões dos cultos de matrizes africanas no Brasil. A partir daí, percebi que
precisaria delimitar com precisão os aportes teóricos que me auxiliariam a sustentar
e, principalmente, garantir a validade das hipóteses estabelecidas em meu projeto
de pesquisa.
Esclareço que não tinha (e continuo a não ter) a preocupação com os
aspectos quantitativos sobre meu objeto e, sim, com os qualitativos. A priori minha
intenção pautava-se no fato de como as influências ritualísticas, constituídas a partir
do processo iniciático interferiam nas práticas cotidianas dos indivíduos/elégùn, e,
ainda, se os seus saberes e fazeres ritualísticos e ritualizados, encontravam terreno
fértil também em suas ações diárias. Esta era a grande questão que se colocou para
mim.
Deixo claro que, para trilhar este caminho, escolhi a ancestral divinizada Oyá,
e nesta opção há um sentido fundamental e próprio: sou seu descendente, sou seu
elégùn. Como já citei, há 27 anos me iniciei nos cultos negros brasileiros. Oyá, sem
a menor cerimônia, apresentou-se rapidamente como minha ancestral e, através dos
movimentos propostos pelos rituais, apossou-se de mim; através do renascimento
simbólico apregoado nas comunidades de cultos, ela renasceu em mim. Dessa
maneira, tê-la nessa caminhada significa vivenciar/experimentar novas
possibilidades, novas configurações ritualísticas.
Nessa perspectiva, buscamos 3 ter claro o que seria a abordagem qualitativa
que se colocava em questão. Encontramos em Minayo (1996, p. 21-22) que a
pesquisa qualitativa é aquela que possibilita a valorização do “[...] universo de

3
A partir de agora retomaremos os verbos e os pronomes na primeira pessoa do plural.
13

significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a


um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Nas palavras da referida
autora, percebemos o suporte para prosseguir com a abordagem pretendida.
Com o objeto e a abordagem definidos, retomamos a elaboração (e, muitas
vezes, reelaboração) dos referenciais teóricos para dialogarem com histórias,
memórias, observações, entrevistas, registros fotográficos, entre outros. Nesse
âmbito é fundamental perceber que:

[...] o pesquisador deve estar sempre atento à acuidade e veracidade das


informações que vai obtendo, ou melhor, construindo. Que ele coloque
nessa construção toda a sua inteligência, habilidade técnica e uma dose de
paixão para temperar (e manter a têmpera!). Mas que cerque o seu trabalho
com o maior cuidado e exigência, para merecer a confiança dos que
necessitam dos seus resultados (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 90).

Com base nessa compreensão é que diversos procedimentos


utilizados/construídos durante a investigação foram confrontados no decorrer de
todo o processo de modo a garantir a validade de uma pesquisa de cunho
qualitativo. Enfatizamos que a preocupação com o processo foi constante, pois, era
ele que nos propiciaria ou não a validade deste estudo.
O elégún, ator principal desta investigação, constitui-se, conforme
mencionado, a partir dos rituais iniciáticos das comunidades de cultos negros
brasileiras. Ele é agente ritualístico e o principal canal que vincula os ancestrais
divinizados/orixá4 ao aiê5. No entanto, concomitantemente aos espaços das
comunidades de cultos, o mundo com suas diversidades também é locus de suas
interferências enquanto agente social e cultural. Entre os contextos dos rituais
iniciáticos e os contextos sociais, históricos, políticos e culturais que abarcam elégùn
e indivíduo, a pergunta que se apresentava era: o ritual de iniciação constitui
identidades exclusivas ao âmbito ritualístico? A partir dessa principal, outras se
apresentavam: como é que o elégùn, agente cultural a partir do ritual de iniciação,

4
Este estudo pauta-se na concepção do orixá enquanto ancestral divinizado, conforme apresentado
por Santos (1986), Salami (1997) e Verger (2000). Desse modo, apregoamos a ideia de que eles
têm suas descendências nas terras por onde as etnias africanas fixaram-se a partir do século XVI.
Assim, a escolha de utilização será do conceito de ancestral divinizado desenvolvido pelos referidos
autores.
5
Aiê na língua iorubá significa o espaço visível, ou seja, a Terra. Orum significa o espaço invisível. De
acordo com Sodré, são planos distintos mas interpenetrados (SODRÉ, 2005, p. 91).
14

incorpora as identidades do seu ancestral divinizado? As interferências do elégùn


(enquanto sujeito social) no mundo perpassam por suas concepções ritualísticas?
As características/traços que vinculam ancestre divinizado e indivíduo ultrapassam
os limites das comunidades de cultos?
O caminho construído na busca de respostas para esses questionamentos
apresenta algumas características de uma pesquisa etnográfica por concentrar seu
foco nas histórias de vida (e vividas) e nas ações dos elégùn/indivíduos. Logo, a
interação e a dinâmica, propostas por este estudo, acarretam o reconhecimento de
que ele (o elégùn) constitui-se, principalmente, nas comunidades de cultos.
Assim, este estudo estrutura-se em três capítulos que buscam manter a
harmonia necessária para a sua compreensão e efetivação. Contudo, vale salientar
que o primeiro capítulo – De onde estamos falando – aprofundou-se nas questões
que esclarecem ou, até mesmo poderíamos dizer, justificam a genealogia dos cultos
negros em territórios brasileiros para o referido estudo. Dessa maneira, a “grande
diáspora negra”6 com a sua diversidade de etnias aparece como o ponto de partida
para a reelaboração e reinvenção dos processos culturais que se desenvolveram
nos territórios do Brasil e do Novo Mundo.
Diante desse panorama, as questões relacionadas com os bantos e os
iorubás serão as mais aprofundadas no referido capítulo. Enfatizamos que parte de
referenciais teóricos que dialogam nele destoam de autores estudados e
referendados por minha orientadora em seu Laboratório de Pesquisas (Prandi,
Bastide, Rodrigues), no entanto insistimos na utilização desses referenciais por
acreditarmos que, no que diz respeito aos estudos das religiões de matrizes
africanas, a produção desses autores é significativa.
Cabe ressaltar que, em contrapartida, esse mesmo capítulo intercruza-se com
as abordagens de Karasch (2000), Sodré (2002, 2005), Slenes (2007), Capone
(2009), Heywood (2010), Vansina (2010) e Barata (2012), corroborando, assim, com
os autores que permeiam as discussões lideradas pela referida orientadora7. Desse
modo, o seu desfecho estrutura-se nas concepções sobre cultura apresentados por

6
Esta é uma categoria apresentada e discutida por Gilroy (2001) e por Muniz Sodré (2005), um dos
principais referenciais teóricos do estudo que se apresenta. Esclarecemos que sua utilização
ocorrerá por toda a pesquisa.
7
Salientamos que o primeiro capítulo apresenta uma abordagem diferenciada dos capítulos que o
sucedem. Há nele uma preocupação em situar as culturas e as dinâmicas negras que migraram
para o Novo Mundo a partir do século XVI.
15

Sodré (2005) e Barata (2012), o que possibilita a interação com o objetivo central
apresentado.
Nesse contexto, o segundo capítulo – Os fundamentos que sustentam a
iniciação ritualística – apresenta os aportes utilizados nos rituais iniciáticos: as
linguagens (verbais e não verbais) com sua gama de possibilidades, as memórias e
as identidades. Por intermédio desses aportes, os diálogos que se desenvolvem, em
sua grande maioria, contam com as contribuições de Zumthor (1993, 1997), Hall
(1997), Ong (1998), Verger (2000, 2002), Foucault (1969, 1995), Hampate Bâ (1982,
2010), Sodré (2005), Gondar (2005), Barata (2012) e, ainda, com as contribuições
dos elégùn8 que participaram direta e indiretamente deste estudo.
É nesse capítulo que o desenvolvimento da pesquisa direciona-se para o seu
objeto central. A iniciação é abordada como um grande processo que abarca
individualidades, individuações e coletividades. Por intermédio dela comunicam-se
ancestral divinizado/orixá e seu descendente, que, a partir dos rituais, torna-se seu
elégùn. Nessa perspectiva, nossa dinâmica9 com os iniciados seguiu um roteiro de
perguntas no qual eles puderam colocar seus referenciais pessoais (enquanto
elégùn), impressões e visões sobre os rituais iniciáticos, ancestral divinizado e suas
atuações sociorritualísticas. Vale reforçar que, concomitantemente às entrevistas,
revisitamos conversas e debates que aconteceram em algumas das comunidades
de cultos dos Babalorixás e Ialorixás que compõem este estudo.
O terceiro capítulo, intitulado Elégùn – devir ritual, social, cultural, prossegue
com os diálogos com os referenciais teóricos e os elégùn, com o objetivo de ampliar
e, em alguns momentos, reforçar os fundamentos constitutivos das identidades que
se coadunam, ou seja, indivíduo, ancestral divinizado e comunidade de cultos.

8
Apresentamos, por ordem de iniciação nos cultos negros brasileiros, os elégùn que contribuíram
nesta pesquisa: Babalaô Ifafunké, Babalorixá Fernando d’Oxossi (in memorian), Ogã Claudio
d’Omulu, Ialorixá Nilza d’Ogum, Ialorixá Leila d’Oyá, Ialorixá Neusa d’Oyá, Ekedi Valníria d’Oyá,
Ialorixá Ana d’Oxum, Ialorixá Denise d’Oyá, Ialorixá Ana de Xangô, Ialorixá Daniele d’Oyá, Ekedi
Daniele d’Iemanjá, Ialorixá Claudia d’Obatalá, Ialorixá Amanda d’Oxum, Ekedi Deise d’Ossanhe,
Ekedi Carla de Xangô, Ogã Ulisses d’Omulu, Ialorixá Sandra d’Oyá (in memorian), Babalorixá
Claudio d’Iemanjá, Ialorixá Marcia d’Omulu, Ialorixá Iva d’Oxum, Babalorixá Ricardo d’Oxum, Ogã
Preto d’Omulu, Ekedi Luzia d’Ogum, Ialorixá Paula d’Oyá, Ekedi Juliana d’Oyá, Ogã Joelson de
Logun Edé, Ekedi Rita d’Oxum, Ialorixá Dolores d’Oyá, Ekedi Vitória de Oyá, Karen d’Oxum, Marcia
d’Oyá, Camila d’Oyá, Vera d’Oyá, Patrícia d’Oyá, Carmem d’Oyá e Pedro d’Oyá.
9
Esclarecemos que a dinâmica da pesquisa de campo se configurou por entrevistas, conversas,
discussões, debates, que transcorreram no período proposto pelo curso de mestrado, mas há,
ainda, as contribuições de anos de rodas conversas e investigações informais com os elégùn que
participaram deste estudo.
16

Desse modo, retrata, mediante histórias, lembranças e memórias – contadas,


recontadas, cantadas, dançadas –, os sentidos ritualizados dos iniciados.
Cabe salientar que, de acordo com Sodré (2005), os sentidos construídos
pelos indivíduos por meio de suas vivências, das relações estabelecidas, são
elementos repletos de culturas próprias e, desse modo, cheios de significados.
Percebemos, assim, que o elégùn é arraigado de sentidos/significados que se
presentificam por intermédio dos rituais.
Nesse viés, a ancestral Oyá assume o protagonismo neste estudo e
estabelece, através de seus descendentes e das relações que se intercruzam, as
17

1 DE ONDE ESTAMOS FALANDO

Falar da África que existe em mim não tem sido tarefa fácil. A cada dia que
passa ela parece aumentar, dilatar, ampliar... transformar-se. Nos meus primeiros
anos de escolaridade, ela era a África dos livros, dos mapas e do globo terrestre. A
abordagem dada pelos meus professores fazia com que ela se tornasse um lugar
comum ou fascinante. Tudo dependia, de fato, dos seus próprios conhecimentos
sobre esse continente tão plural. Das suas intervenções e intenções pedagógicas.
Infelizmente, em sua maioria, tais conhecimentos pautavam-se e intensificavam-se
na escravidão, como se esta fosse o pilar de sustentação da história africana; ou,
ainda, alicerçavam seus discursos em um folclore exacerbado e descontextualizado.
Enfim, inicialmente a África me foi apresentada de maneira equivocada. Esclareço
que não desconsidero que a escravidão sublinhou uma parte da história africana:
sangrou, feriu, sequestrou, dilacerou; mas, por ironia, também expandiu saberes
milenares e uma cultura que não tem espaço para o singular.
A África, que transversa esse estudo, foi reconstruída em solos brasileiros.
Reconstruída pelas mãos de cada ancestral que para cá migrou. Acredito que era
como se ela tivesse sido transplantada em suas memórias e corpos, e, a partir
deles, se fazia presente em cada canto exaltado; em cada comunidade de cultos;
em cada sabor; em cada ritual; em cada cheiro; em cada cor; em cada trançado de
cabelos; em cada movimento; enfim, em cada relacionamento tecido dia a dia por
eles.

Mas de qual África as pessoas negras descendem? E eu? Mesmo depois


que cresci, não descobri. Mas aprendi que para o Brasil vieram povos
principalmente de alguns pontos africanos. Ou melhor, de portos africanos.
Isso há muito tempo. E, se é de lá que vieram muitas pessoas negras, o
meu passado deve ter vindo junto (...). Cavalos foram cercando o lugar, com
ladrões armados até os dentes. Caçado, ele foi amarrado junto a outros
homens também capturados por outros caminhos. Foi levado embora.
Depois disso, pensou em muitos jeitos de fugir daquela situação. Teve que
lutar muito. Conseguiu escapar muitas vezes, até que um dia... Acordou na
Bahia. Mas eram centenas de etnias, e bem diferentes entre si. Esse ntus,
quer dizer seres humanos. Antes de virem para cá construíram suas casas,
brincavam, estudavam, aprendiam, nadavam nos seus rios, dançavam ao
som de seus instrumentos musicais, faziam suas panelas e suas comidas,
seus penteados, seus enfeites, seus filhos e suas famílias. (LIMA, 2005, p.
30-31).
18

Nesse sentido, penso que para abordar o tema central desse estudo seja
oportuno reportar-nos ao contexto histórico-cultural em que os cultos negros
praticados pelos africanos aportam nessas terras e no devir se reconstituem,
ressignificam-se, reelaboram-se e passam a ser, também, cultos negros brasileiros,
constituindo descendentes e expandindo-se pouco a pouco. É, na perspectiva de
negociações, de possibilidades e acordos culturais que a “grande diáspora negra” 10
para o Novo Mundo, incluindo o Brasil, será abordada. É no entendimento de que
essa migração forçada, que perdurou quase quatro séculos, disseminou uma
variedade de práticas culturais contidas nos milhões de corpos que transitaram pelo
Atlântico que focaremos o presente estudo. Todavia, é importante salientar que tais
práticas constituíram-se culturais por serem, indiscutivelmente, humanas. Logo, são
arraigadas de traços afetivos e repletas de sentimentos de pertença.
Acreditamos, assim, que os cultos à ancestralidade divinizada estão inseridos
nas ações socioculturais dos diferentes povos africanos que atuaram ativamente na
formação cultural brasileira. Mais que práticas ritualísticas, eles significavam práticas
sociais que possibilitavam o engendramento de seus fazeres, seu sentir e existir. É
na concepção de vínculo hereditário que o ancestral divinizado se insere na trama
ritualístico-social dos africanos (SANTOS, 1986) e, por conseguinte, de seus
descendentes em terras brasileiras. Desse modo, a ancestralidade propõe uma
identificação própria pautada na tradição, estabelecendo uma continuidade entre os
ancestrais divinizados e seus herdeiros; continuidade essa que que se manifesta
nos ritos que compõem os cultos negros, sempre reiterados, mas com lugar para
variações (como no eterno retorno tratado por Nietzsche). A ancestralidade assenta-
se na terra-mãe, ou seja, em solos africanos. No caso dos negros da diáspora, ela
encontrou terreno fértil nos espaços de cultos (como as irmandades, as
comunidades de terreiro, casas de candomblé, nas escolas de samba, nas folias de
reis etc.), que se tornaram depositários das memórias e das simbologias míticas.
Vale pontuar que a ancestralidade foi a possibilidade de pertença identitária
para os negros africanos após a desterritorialização forçosa. Ela foi fundamental
para que os descendentes da diáspora negra recriassem uma linhagem para a
transmissão de histórias míticas e, também, as vividas pelos que lhes antecederam.
É Bâ (2010, p. 211) quem nos diz que “assim, todo africano tem um pouco de

10
Cf. Gilroy, 2001 e Sodré, 2005.
19

genealogista e é capaz de remontar a um passado distante em sua própria


linhagem”. Foi na perspectiva de continuidade simbólica que eles desenvolveram,
aqui, possibilidades de preservação de suas práticas e histórias. Tal linhagem, após
a reelaboração forçosa, foi providenciada, sobretudo, pelas comunidades de cultos
enquanto espaço ritualístico.
É no contexto da ancestralidade divinizada que Oyá11 assume papel de
destaque no referido estudo. Segundo os Babalorixás e Ialorixás (o mesmo que pais
e mães de santo), ela é um dos elos da corrente simbólica que une a África e o
Brasil e é, também, um agente ritualístico-social constitutivo de identidades. Está
inserida nos saberes e na dinâmica das culturas de arkhé, fazendo parte das suas
ressignificações e reelaborações. Oyá permeia as histórias vividas por seus
descendentes nas adversidades impostas pela diáspora. Cabe destacar que é no
reconhecimento/identificação da sua presença e atuação em seus elégùn12, ou seja,
nas suas práticas culturais (ritualísticas, religiosas, sociais, políticas) que se dão no
dia a dia, que há a continuidade símbólica apregoada nos cultos negros e, nesse
contexto, o vínculo com a ancestralidade negra.

1.1 Os africanos chegam ao Brasil e com eles os ancestrais divinizados

Ao longo de quase quatro séculos a nação brasileira se formou com a


contribuição dos negros trazidos forçosamente das mais diferentes partes do
continente africano (CONRAD, 1985, p. 34-43). Não se tratava de um só povo,
mas de uma pluralidade de etnias, nações, línguas, deuses, visões de mundo,
rituais, culturas. Povos arraigados de práticas próprias e tradições; povos que
atravessaram o Atlântico diante do esfacelamento dos laços familiares,
comunitários, sociais, porém amparados por seus ancestrais. Sodré (2002) utiliza

11
Ancestral divinizada; deusa do rio Níger para os nagôs; na cultura ritualística banto é conhecida
como Matamba. Seus elementos de força vital são o ar e o fogo; senhora dos raios, tempestades e
ventanias; é responsável pelas transformações, segundo os Babalorixás e Ialorixás dos cultos
negros brasileiros. Segundo Verger (2002), é o único ancestral capaz de enfrentar os egúngún
(ancestrais não divinizados; antepassados não divinizados).
12
Denominação utilizada para representar aquele/a que passou pela iniciação ritualística; que
incorpora o ancestral divinizado; para os seguidores dos cultos negros “feito em orixá”.
20

o termo grego arkhé para caracterizar as culturas que, tais como as negras,
fundam-se na vivência e no reconhecimento da ancestralidade. Segundo esse
autor, as culturas de arkhé cultuam a origem, mas não com a preocupação
genealógica da história, e sim como o “eterno impulso inaugural da força de
continuidade do grupo. A arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como
destino” (SODRÉ, 2002, p. 153). Nessa perspectiva, os africanos escravizados
que embarcaram nos portos das nações africanas em uma migração forçosa para
o Novo Mundo trouxeram com eles o ir e vir de suas arkhés, de suas tradições.
Durante o período em que a escravidão vigorou, os negros provinham de
onde fosse mais fácil capturá-los e mais rentoso embarcá-los. O nefasto comércio
dependia, na África, das próprias condições locais das populações nativas,
regulado por suas guerras, rivalidades intertribais e domínios imperiais
(JOHNSON, 1921 apud PRANDI, 2000). De acordo com a historiografia, as
rivalidades tribais e étnicas existentes no continente africano propiciaram e
facilitaram a comercialização de africanos para o trabalho escravo nos países
europeus e em suas respectivas colônias. No entanto, cabe-nos esclarecer que,
somente tal ação não justificaria a quantidade de africanos que tiveram a
escravidão imposta por quase quatro séculos.
No Brasil, os africanos foram introduzidos nas diferentes capitanias e
províncias, em um fluxo que correspondeu, ponto por ponto, à própria história da
economia brasileira. A prosperidade da economia estava atrelada a uma intensa e
constante demanda de mão de obra escrava. Entretanto, quanto mais utilização
da força de trabalho dos homens, das mulheres e das crianças africanas, mais se
impregnava nos cantos desse país suas marcas e seus traços e,
consequentemente, as diferenças inatas desses milhões de seres humanos.
Nesse contexto, nota-se que o esforço negro africano sustentou as estruturas
propostas pelas políticas colonialistas. Contudo, concomitantemente às
imposições europeias, de igual modo, suas culturas também alicerçaram e
interferiram na constituição da população brasileira. Suas mãos, calejadas pela
labuta diária, construíram, mesmo tão distante de suas origens geográficas e
afetivas, a possibilidade de existência e permanência de suas vivências. Para
esses homens e mulheres, as vivências não se apartavam de seus ancestrais,
assim como não se desarticulavam de seus ensinamentos.
21

Segundo Oliveira (1996), a origem dos africanos trazidos para cá durante o


regime escravocrata dependia também, e especialmente, de acordos e tratados
realizados entre Portugal, Brasil e potências europeias, sobretudo a Inglaterra. A
África Subsaariana, também como celeiro de mão de obra, era evidentemente
loteada entre os países coloniais escravistas, e a origem do tráfico mudou muito,
nos quase quatro séculos, em função de cambiantes interesses das potências
envolvidas, suas disputas, guerras e tratados. Logo, o tráfico foi se reestruturando
conforme as mudanças das rotas de negociação e das potências envolvidas.
Ao chegar ao Brasil, o destino dos negros africanos que sobreviviam à
travessia do Atlântico era, na maioria das vezes, negociado no próprio porto, em
leilões. Os traficantes sempre traziam alguns escravos a mais, em número
superior às encomendas para serem vendidos nas feiras ou ainda nos leilões. Os
negros desembarcavam quase sem roupas, com apenas uma faixa de tecido
cobrindo uma parte do corpo. Os cabelos e a barba eram cortados, determinava-
se que tomassem um banho, recebiam algumas toscas roupas de tecido grosseiro
para que melhorassem a aparência e pudessem alcançar um maior preço no
mercado (MACEDO, 1974). Os escravizados que apresentassem um quadro de
debilidade em virtude dos maus-tratos da viagem e das doenças adquiridas na
travessia do Atlântico eram isolados e recebiam alguns cuidados, para mais tarde,
serem oferecidos aos compradores (MACEDO, 1974, p.32). Pouco tempo depois,
já estavam trabalhando para seus “donos” nos engenhos de açúcar, nas
plantações de algodão, nas plantações de café, na mineração ou nos serviços
domésticos. Alguns deles trabalhavam nas cidades como “escravos de ganho”,
realizando trabalhos temporários em troca de pagamento, que era revertido,
parcial ou totalmente, para o proprietário do escravizado. Durante o período em
que a escravidão vigorou, as funções exercidas pelo escravizado no ganho
sofreram transformações, principalmente a partir do século XIX. Nesse período,
juntaram-se a eles negros libertos em ocupações de carregadores, pequenos
mercadores, barqueiros de cabotagem, produtores de víveres, artesãos de todas
as artes, amas e empregados domésticos, além de serviços de enfermagem,
encarregados de serviços públicos etc.13.

13
Cf. Soares, 2007, p. 121.
22

Figura 1 – Escravos no Mercado do Valongo.

Fonte: Escravos de ganho no Brasil14

Figura 2 - Escravos de ganho no Brasil15

Fonte: Negros de ganho, negras de tabuleiro e amas de leite: as múltiplas facetas do


trabalho escravo no Brasil (séculos XVI – XIX).

Esses cativos desenvolviam as mais diversas modalidades de comércio


ambulante; transportavam, sozinhos ou em grupos, os mais variados tipos de
carga; transportavam mercadorias dos comerciantes que não tinham seu próprio
transporte; carregavam o transporte de pessoas em seus ombros pelas ruas da

14
Disponível no site: http://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil/os-diferentes-tipos-escravo-
no-brasil.htm
15
Disponível no site: http://www.brasilescola.com/historiab/formas-trabalho-escravo-no-brasil.htm
23

cidade; transportavam a carne de bois abatidos nos matadouros em suas cabeças


até aos açougues; carregavam em suas cabeças barris com dejetos das
residências, que, à noite, eram jogados ao mar (esta considerada a mais
degradante atividade em que os escravizados de ganho eram utilizados 16); além
de fazerem serviços de barbeiro, cirurgiões e pescadores (SOARES, 2007).
Devido às maiores possibilidades de circulação e de ganho, a vida nas
cidades era preferível para os escravizados. O comércio ambulante apresentava
uma grande variedade e quase todas as mercadorias eram vendidas por
escravizados de ganho, existindo ainda aqueles cativos que ficavam com seus
cestos, tabuleiros ou em pequenas barracas improvisadas pelas praças, praias e
portas de igreja (SOARES, 2007p. 125). Diante desse cenário, eles podiam juntar
algum dinheiro com as tarefas que realizavam e, raramente, conseguiam comprar
sua liberdade. Como assinalou Soares (2007, p. 282), “pode-se dizer que os
escravos de ganho [...], que desenvolviam atividades com remuneração monetária,
eram praticamente os únicos que tinham condições de comprar a sua alforria,
indenizando monetariamente aos senhores”. No entanto, o autor alega que não
devemos exagerar sobre a compra de alforrias, pois, obrigados a pagar as
elevadas quantias fixadas por seus senhores, a grande maioria dos africanos não
conseguia nem mesmo o dinheiro suficiente para uma alimentação adequada
(SOARES, 2007). No anseio da tão sonhada liberdade, várias foram as estratégias
utilizadas pelos escravizados para conquistar a carta de alforria. Ainda segundo
Soares (2007), alguns escravizados, não possuindo todo o dinheiro exigido pelos
senhores para libertá-los, chegaram a recorrer a empréstimos concedidos por
amigos livres ou libertos, e assim completavam as quantias necessárias para o
resgate da sua liberdade. Por outro lado, não foram raros os negros que, tendo
acumulado o dinheiro suficiente para a compra da alforria, viram suas ofertas
serem terminantemente recusadas por seus senhores (SOARES, 2007). De
acordo com Rugendas (apud SOARES 2007, p. 283), “os escravos que tinham
suas ofertas de compra de alforria rejeitadas pelos senhores acabavam por se
tornar escravos rebeldes e aproveitavam a primeira oportunidade para fugir,
quando não recorriam à alternativa última do suicídio”. O autor destaca, ainda, que

16
Os escravos encarregados de despejar os barris com dejetos, eram denominados de “tigres” pela
população, numa alusão à necessidade de se evitá-los, tal como as feras homônimas, quando
alguém os encontrava pelo caminho (cf. Soares, 2007, p. 136)
24

alguns escravizados de ganho mais afortunados não só conseguiram pagar as


quantias fixadas pelos seus senhores e garantir a sua sobrevivência, como
também chegaram a ganhar dinheiro extra que procuraram guardar e empregar na
formação de um pecúlio para a compra de alforrias (SOARES, 2007). Vale
ressaltar que, nessas negociações, as irmandades e associações tiveram papel
fundamental.
No Rio de Janeiro, a comercialização de escravizados era realizada no
mercado localizado no Valongo, próximo da atual Praça Mauá. Karasch (2000, p.
79) aponta o referido mercado como uma das áreas mais frequentadas da cidade.
De acordo com a autora, além de escravos, comerciantes, vendedores e
compradores, passavam por ali muitos viajantes estrangeiros, que faziam dele
parte do circuito turístico do século XIX. À porta do mercado, traficantes e
negociadores colocavam um cartaz no qual se anunciava “Negros fortes, bons e
moços, chegados na última nau” (MACEDO, 1974). A chegada dos compradores,
segundo Macedo, fazia parte de um “ritual” considerado inconcebível nos dias de
hoje; os músculos dos negros eram apalpados, tinham os lábios levantados para o
exame dos dentes e eram obrigados a saltar, dançar, para que fosse examinado
seu vigor físico. Todo esse “ritual” exigia experiência do comprador. Havia, ainda,
nesses exames “a prova do suor”: o comprador passava o dedo pelo corpo do
escravo exposto e lambia para sentir se era suor verdadeiro ou efeito de algum
óleo para tornar a pele brilhante, uma vez que o suor na pele do escravo
representava bom estado de saúde. Sua barriga era apertada para detectar dor
caso manifestasse alguma doença, seu peito era escutado, completando, assim, a
“bateria de exames”. O autor nos fala que

quando se tratava de mulheres, os seios eram bem examinados, pois


poderia vir a servir como ama de leite e bem assim as nádegas. Os
compradores tinham interesse em negras do ‘traseiro grande’, bem servido
de carnes, porque isso era – diziam – indício de força, saúde e qualidade
de boa parideira, capaz de dar novos escravos ao senhor (MACEDO,
1974, p. 80).
25

Figura 3 - Mercado Dos Escravos.

Na pintura Mercado na Rua do Valongo, o pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) dá a
sua versão de como era o local, no Rio de Janeiro, onde africanos recém- chegados de seu
continente eram colocados à venda como escravos17

Cabe ressaltar que o mercado do Valongo era constituído de “residências”. A


família do negociante de africanos morava nos andares superiores e o térreo
abrigava os negros. Nos períodos de intensa importação, a realidade imposta aos
africanos ultrapassava as fronteiras da desumanidade – o confinamento deles era
em ambientes fechados (em muitos deles as janelas chegaram a ser “recobertas”
com tijolos, o que impossibilitava a entrada da luz e alguma ventilação). Karasch
(2000) relata, em sua obra, a descrição do viajante C. Brand, que visitara o Valongo
no início do século XIX. Segundo ela, assim descrevera o turista:

a primeira loja de carnes em que entramos continha cerca de trezentas


crianças, de ambos os sexos; o mais velho poderia ter doze ou treze anos
e o mais novo, não mais de seis ou sete anos. Os coitadinhos estavam
todos agachados em um imenso armazém, meninas de um lado, meninos

17
Disponível no site: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-2/africanos-foram-escravizados-
brasil-646493.shtml
26

do outro, para melhor inspeção dos compradores; tudo o que vestiam era
um avental xadrez azul e branco amarrado na cintura; [...] O cheiro e o
calor da sala eram muito opressivos e repugnantes. Tendo meu
termômetro de bolso comigo, observei que atingia 33°C. Era então inverno
(junho); como eles passam a noite no verão, quando ficam fechados , não
sei, pois nessa sala vivem e dormem, no chão, como gado em todos os
aspectos (KARASCH, 2000, p. 76).

A autora reforça, ainda, que “quer mantivessem os escravos em pátios


abertos, quer em armazéns fechados, os comerciantes do Valongo não
proporcionavam abrigo confortável para a recuperação dos africanos recém-
chegados” (KARASCH, 2000, p. 77).
Nesse contexto, a negociação (venda/compra) dos africanos era definida
pelo sexo, pela idade e pela especialização, mas dependia, sobretudo, de sua
condição física. O destino dessas “peças” estava nas mãos dos senhores, que
podiam alugar, vender, hipotecar, segurar ou penhorar suas novas propriedades.
O preço dos africanos variou muito durante os quase quatro séculos de sua
comercialização. Após o final do tráfico, em 1850, o valor dobrou, dificultando sua
utilização. Um africano homem e adulto podia valer mais do que uma casa ou três
toneladas de café (MOURA, 1996). A abolição do tráfico de escravos para o Brasil,
em 1850, foi consequência das pressões exercidas pela Inglaterra, que decretara
a proibição do tráfico em 25 de março de 1807. O Congresso de Viena de 1815
havia ratificado essa decisão, assinada pelo Rei de Portugal, proibindo o tráfico de
escravos provenientes de todos os portos da costa africana situados ao norte do
Equador. Todavia, ao contrário da indústria inglesa nascente, que buscava criar
novos mercados para os seus produtos, a economia brasileira, que dependia
diretamente do trabalho escravo, tinha todo o interesse em prosseguir com o
tráfico negreiro com a África (CAPONE, 2009, p. 218-219).
Destaca-se, ainda, que segundo Soares (2007, p. 124), nesse período, a
venda maciça dos africanos do Rio de Janeiro para as áreas cafeeiras reduziu o
contingente de escravizados de ganho da cidade. O autor cita que não existem
números exatos para avaliarmos a dimensão dessa redução, no entanto muitos
pesquisadores afirmam que ela foi muito grande, porém não impediu a circulação
e a atuação destes nas ruas do Rio de Janeiro até as vésperas da abolição da
escravatura.
Até aqui abordamos a atmosfera que envolvia os africanos que migraram
para o Brasil no período da diáspora. Lutas e adaptações históricas, políticas,
27

sociais, econômicas e culturais forçosas foram constantes durante os séculos em


que vigorou o comércio de milhares de homens e mulheres africanos. Foram as
adaptações das suas práticas desterritorializadas que não permitiram a tentativa
de apagamento das suas vivências e de seus sentidos, que não permitiram o
extermínio de suas memórias. Foi por meio de analogias possíveis 18, que a
distância da terra-mãe parecia menor, menos sofrida; foram as constantes
negociações culturais que possibilitaram a sobrevivência de ritos, cultos e
contornos dos povos africanos e seus descendentes. As reelaborações de
algumas práticas salientavam que eles foram retirados da África, mas a África
nunca fora retirada deles. E isso foi o divisor de águas para que suas
organizações culturais se reestruturassem no devir histórico presente aqui e,
mediante o que Sodré (2005, p. 92) denominou “jogo duplo”, negociassem com as
ambiguidades.

1.2 As “Áfricas” no Brasil

No dia a dia proposto pelo movimento da colonização, várias Áfricas


esbarravam-se e, em alguns casos, confrontavam-se. A grande diáspora negra
trouxe para o Novo Mundo a diversidade dos povos do continente africano. Foram
milhões de homens e mulheres que não possuíam as mesmas crenças, os
mesmos hábitos, as mesmas tradições, os mesmos ancestrais; que não possuíam
nem a mesma língua19. Bantos, iorubás (ou nagôs), jejes são, grosso modo,
algumas das etnias que vieram, forçosamente, atuar no trabalho escravo no Brasil.
São, também, as que se mantiveram mais ativas no imaginário dos cultos negros
brasileiros. De certo modo, esses solos foram uma arena na qual as forças dessas
nações não propuseram somente o confronto, mas a possibilidade de um “jogar”,

18
Sodré (2005, p. 92), esclarece que a formação social brasileira se deu alicerçada por duas ordens
culturais: a branca e a negra. Segundo o autor, houve um “jogar” com as ambiguidades por parte
dos negros africanos e seus descendentes que objetivava a permanência de suas práticas. É
importante frisar que, as mesmas sofreram constantes adaptações e reelaborações e, ainda, que
essa era uma das características marcantes desses povos, ou seja, o jogar entre as suas culturas
desde os solos africanos.
19
De acordo com Prandi (2000), a África Negra é dividida linguisticamente, de uma maneira geral,
entre bantos e sudaneses.
28

“negociar” e, dessa maneira, “(re)criar sentidos” (SODRÉ, 2005) na convivência do


dia a dia. E, assim, é fundamental perceber que o sentido de nação despe-se da
sua conotação política para vestir-se de um conceito quase que exclusivamente
teológico. Lima (2003, p. 29) afirma que “nação passou a ser, desse modo, o
padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé [...] angolas, congos, jejes,
nagôs”.
Os bantos foram os primeiros a chegar aqui. Verger (1987) afirma que eles
possuem entre 700 e 2 mil línguas e dialetos aparentados. Lopes (1998, p. 97) cita
que pesquisas no campo da linguística demonstraram a sobrevivência no Brasil de
elementos originários principalmente do quicongo, quinbundo e umbundo, o que
nos dá, segundo o autor, uma boa pista da superioridade demográfica, entre os
bantos no Brasil, dos africanos provenientes de Angola e do Congo, onde essas
línguas são faladas20. Para Pessoa de Castro (2001), a contribuição dos povos de
origem banto na formação da cultura e do falar brasileiros foi, sem dúvida, capital.
Segundo ela, mesmo trabalhando no eito, no engenho, na mina ou na cidade, os
homens e as mulheres bantos foram deixando sua marca, suas características,
suas culturas no comportamento, no fazer, no falar e no ser brasileiro21. Isso
somente foi possível porque a maioria dos centro-africanos compartilhava uma
cultura abrangente antes de chegar às Américas, ao contrário dos africanos
ocidentais, divididos em vários grupos de culturas diferentes (cf. Heywood, 2010).
Vansina (2010) acentua que a “cultura abrangente” é uma forte característica dos
povos banto. O autor justifica sua afirmativa no fato de a maioria dos centro-
africanos terem partido de portos nas costas de Loango e Angola, lugares que,
segundo o autor, pertenciam a somente três culturas regionais: Congo, Umbundo
e Ovimbundo. Essas culturas não somente se interrelacionavam, mas interagiam
continuamente. Vansina (2010, p. 8) sinaliza, ainda, que isso não significa que
todos os imigrantes vieram dessas regiões centro-africanas, mas que todos eles
falavam línguas muito próximas às do Banto Ocidental, o que quer dizer que
podiam comunicar-se uns com os outros desde o começo. Segundo o autor,

20
Atualmente, os povos de origem banto, são conhecidos no Brasil pelo termo genérico de angola,
sobretudo quando se trata da designação de religião afro-brasileira de origem banto ou de outra
modalidade cultural, como a capoeira (PRANDI, 2000).
21
Yeda Pessoa de Castro, Falares Africanos na Bahia: Um vocabulário Afro-Brasileiro. Rio de
Janeiro: ABL: Topbooks, 2001, p.25
29

dados existentes mostram que entre o tempo de sua captura e o


momento do embarque, ou melhor, até sua chegada, a maioria dos
imigrantes provenientes do interior aprendeu Congo, Quimbundo ou
Umbundo, e com a aquisição da língua veio também alguma familiaridade
com a cultura litorânea: uma única, na medida em que ao longo desses
anos Congo e Quimbundo influenciaram fortemente um ao outro, assim
como o Quimbundo e Umbundo (VANSINA, 2010, p. 8).

O resultado foi que, de acordo com o autor, ao chegar às Américas, os


imigrantes compartilhavam uma linguagem comum (VANSINA, 2010). Karasch
(2000) endossa a afirmativa de Vansina. Segundo a autora,

durante séculos os povos da África Central tinham lidado com a diversidade


étnica, desenvolvido tradições religiosas comuns e compartilhado formas
culturais; essas habilidades, eles a transmitiram para o Brasil, onde
utilizaram indiscultivelmente técnicas similares para lidar com a diversidade
cultural. A “africanidade central” da população escrava é, portanto,
fundamental para a compreensão de todo o processo de mudança cultural
na cidade” (KARASCH, 2000, p. 36).

Desse modo, podemos presumir que existiu uma identificação dos escravos
centro-africanos com a pluralidade existente nessas terras. A presença dos bantos
em nossa cultura é tão profunda que hoje nem é reconhecida de modo distinto,
pois é vista e sentida como parte constitutiva do que somos e do que é cada vez
mais a nossa língua. Hábitos como “cafuné”22, festejos que atravessam gerações,
como as congadas, e palavras como cachaça, samba e muitas outras mostram a
forte relação dos elementos culturais bantos incorporados pela cultura brasileira.
Castro (2001) alega que, de fato, há uma matriz africana banto na língua
portuguesa falada no Brasil e que essa matriz é uma das razões de nossa unidade
linguística. Em sua configuração, as línguas dos povos de origem banto “foram as
mais importantes (...) devido à antiguidade e superioridade numérica de seus
falantes e à grandeza da dimensão alcançada pela sua distribuição humana no
Brasil colonial”23. De acordo com Heywood (2010), pesquisas sobre a demografia
do comércio demonstraram que os centro-africanos, ou seja, os povos banto,
estavam em todas as regiões da América. A autora sinaliza, ainda, “que algumas
regiões tiveram maior peso do que outras em relação ao número de centro-

22
É um gesto de carinho; coçar carinhosamente a cabeça de uma pessoa ou de uma criança de colo
para acalmá-la ou fazer dormir.
23
Pessoa de Castro, op. cit., p. 74.
30

africanos que receberam” (HEYWOOD, 2010, p. 19). Ela destaca em seus estudos
que o Brasil foi o principal importador de escravizados africanos oriundos da África
Central (HEYWOOD, 2010, p. 19).
Logo após os povos bantos, chegaram os sudaneses que aqui ficaram
conhecidos genericamente como iorubás ou nagôs, mas que compreendem uma
variedade de povos. Destacamos, então, as etnias de oyó, ijexá, ketu, ijebu, egbá,
ifé, oxogbô, os fon-jejes (que agregam os fon-jejes-daomeanos e os mahi), os
haussás. Destacamos que, para muitos autores os termos “bantos” e “sudaneses”
são referências muito abrangentes, englobando cada uma dessas classificações
dezenas de diferentes etnias ou nações africanas. Durante todo o tráfico negreiro,
por interesse comercial, preservou-se alguma informação sobre a origem étnica
dos negros africanos. O escravo recebia, frequentemente, não a designação de
sua verdadeira etnia, mas a do porto de embarque. Por exemplo, chamava-se
indistintamente mina a todos aqueles que passavam pelo forte da Mina, fossem
achântis, jejes ou iorubás.
De acordo com Gomes (2005, p.35),

certamente africanos se conheciam e identificavam-se (misturando-se)


muito mais e para além das expectativas e significados de autoridades e
senhores. E faziam isto nos termos de suas próprias lógicas. Marcas de
“nação”, da sua “terra” e até nomes próprios surgem destacados em vários
anúncios. Se nem todos assim se reconheciam, ao menos eram conhecidos
desse modo.

Os portos concentravam preferencialmente as “presas” das vizinhanças.


Com a ilegalidade do tráfico de escravos, os portos de embarque passaram para
lugares mais afastados, com a intenção de driblar a vigilância. Para embarcar
nesses portos, já no período da proibição do tráfico, os negros africanos
percorriam longos trajetos a pé. Isso complicava a identificação do escravo, pois
sua origem através do porto de embarque podia não mais corresponder à sua
origem verdadeira. Quando desembarcavam em portos brasileiros, a própria
política vigente à época, não estimulava, com o receio de sublevação, o
agrupamento de escravos de mesma origem, embora em outras épocas buscasse
agregá-los para melhor controlar.
No que se refere ao Rio de Janeiro, ainda conforme Gomes (2005, p. 23),
era uma das maiores cidades atlânticas africanas entre o final do século XVIII e a
31

primeira metade do século XIX. Segundo o autor, desde o final dos seiscentos a
cidade começaria a se destacar como um dos principais portos de desembarque
de africanos. No entanto, após 1831, com o desenvolvimento do tráfico ilegal pelo
Atlântico, os desembarques foram deslocados para as áreas litorâneas do norte e
sul fluminense. De acordo com Silveira (2006, p. 68-69), tais áreas passaram a ser
palco de sucessivos desembarques ilegais. O autor nos diz que nesse período
houve uma entrada massiva de escravos provenientes da zona congo-angolana,
ou seja, Costa Centro-Ocidental, de origem banto, com 81% de todos os cativos
desembarcados no porto do Rio de Janeiro oriundos dessa região. Karasch (2000,
p. 50), em seus estudos, ratifica a abordagem do autor citando que “a primeira e
mais óbvia conclusão é que a maioria dos escravos do Rio era importada do
Centro-Oeste Africano”.
Diante do apresentado, verifica-se que os centro-africanos participaram, de
modo impactante, da constituição da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo
em que não houve quase nenhuma tribo, etnia ou nação africana que não tenha
fornecido seu contingente ao Novo Mundo e, por conseguinte, que também não
tenha introduzido de modo significativo suas marcas em sua formação cultural.
Ainda que de acordo com vários pesquisadores elas também tenham sofrido além
da escravidão a tentativa de apagamento 24 de suas origens e culturas por parte da
política vigente à época. Para esses pesquisadores, isto se comprova quando de
sua chegada a essas terras eram separados dos seus, evitando-se assim a
possibilidade de sublevação. Sodré (2005, p. 93) esclarece que, desde o início, os
senhores (proprietários) evitavam reunir grande número de escravos da mesma
etnia, estimulavam as rivalidades étnicas e desfavoreciam a constituição das
famílias. De acordo com o autor, “a brincadeira negra” era permitida (batuques,
folguedos, danças) não somente como válvulas de escape, mas, principalmente,
por ratificarem as diferenças e as diversidades entre as nações que conviviam em
um mesmo espaço. Bastide (1974, p. 12) nos fala da política do “dividir para
reinar”, que, segundo ele, mostrou-se muito útil para os governantes e os
senhores de engenho, pois os próprios escravos de etnias rivais, a princípio,
denunciavam as conspirações para seus donos.
24
Segundo Slenes (1992, p. 49), a ideia de “apagamento” das origens culturais dos africanos é
percebida, em parte, pelo fato de os escravos (principalmente os de cultura banto), para
defenderem-se dos seus senhores, terem sido mestres da dissimulação, o que não aponta para o
“apagamento” real de suas culturas, e sim estratégias de sobrevivência.
32

Percebe-se, nesse caso, a concordância no fato de que a separação dos


escravos, para os senhores, propiciaria o “extermínio” de suas origens, suas
culturas, desconsiderando-se, dessa maneira, o caráter vivo existente nelas. A
separação, vivida pelos cativos nessas terras não atingiu suas memórias, suas
lembranças, seus pensamentos. Não “apagou” sua ancestralidade. A escravidão
ofereceu-lhes a dor da separação de suas terras, de seus entes; a dor no corpo.
Por mais que tentasse, ela não conseguiu sequestrar-lhes a alma. Se mesmo no
tormento do cativeiro, mesmo com as tentativas de “apagamento” de suas
culturas, se as “Áfricas” resistiram, isso se deve a reelaborações, a estratégias, a
acrescentamentos e, ainda, a uma cultura comum existente em suas terras.
Vansina (2010, p. 9) nos fala que em relação

aos centro africanos não somente foram para todos os lugares nas
Américas, como levaram com eles para todos os lugares uma cultura
litorânea homogênea, que já existia na África com elementos emprestados
principalmente das práticas e pensamentos da Europa Mediterrânea.

Para ele, “essa cultura comum facilitou sua incorporação cultural, em


especial na parte latina das Américas; facilidade maior, provavelmente, do que
tiveram vários grupos que vieram da África Ocidental” (VANSINA, 2010, p. 9). O
autor reafirma nesse contexto o aspecto “abrangente” acentuado na cultura banto.
Durante muito tempo criou-se uma ideia equivocada de unidade
(desconsiderando-se, até mesmo, a África do Magreb): tudo era africano (mesmo
com todas as diferenças culturais existentes entre eles). Propagava-se uma
singularidade inexistente nesse continente desde sempre: “a religião africana”, “o
negro africano”, “a cultura africana”. Com o avançar dos estudos no campo
antropológico conhecemos uma África plural, que contém várias outras “Áfricas”.
Não menores, e sim diversificadas, coletivas, tradicionais, atuais, ritualísticas. A
“unidade” foi uma falsa ideia constituída culturalmente dessa região tão vasta.
Tudo era “simplesmente” África, perdidas as diferenças e as especificidades.
33

1.3 As etnias Iorubás

Os Iorubás chegaram ao Brasil após os bantos, no século XVIII. Até esse


período, ainda em continente africano, cada grupo iorubá era identificado pela sua
cidade, não havendo um nome para designá-los em conjunto (PRANDI, 1991).
Cada cidade era politicamente autônoma, cada uma governada por seu obá (rei),
tendo um poder central localizado em uma delas, formando uma sociedade mais
ampla, defendida pelo poder imperial da cidade dominante. Embora a economia
fosse baseada na agricultura, caça e pesca, a população habitava as cidades, das
quais Ifé, a cidade sagrada, era considerada o berço dos iorubás e da humanidade
(PRANDI, 1991, p. 125).
Apesar da autonomia política das cidades, a língua era o elo cultural que
possibilitava uma identificação desses povos. Para Biobaku (apud VERGER, 2002,
p. 11) “a língua iorubá acabou assumindo significação de um povo, de uma nação
ou a um território”, repassando, assim, “a ilusória ideia de unidade política”.
Entre os iorubás, o último império foi a cidade de Oyó, à qual estavam
submetidas a maioria das cidades. A queda do império de Oyó se deu pelo ataque
dos fons do Daomé, que logo depois foram dominados pelos haussás (PRANDI,
2000). Sem a proteção militar, as diferentes populações iorubás passaram a ser
presas fáceis do mercado local de escravos mantido por vizinhos de outras etnias.
Foi diante desse contexto político-econômico que as diferentes etnias
iorubás entraram no circuito do tráfico de escravos no século XVIII. No Brasil, a
princípio, grande parte da população negra iorubá foi destinada aos engenhos de
açúcar em Pernambuco e na Bahia25. Com a descoberta do ouro em Minas
Gerais, no mesmo século, houve um deslocamento do tráfico para lá,
intensificando, assim, o “Ciclo do Ouro”. Percebe-se, nesse momento, uma nova
forma de uso da mão de obra africana. Nos oitocentos, a maneira de viver do
escravizado ganha nova forma; a escravidão se urbaniza e o escravizado adquire
maior liberdade de movimento. Dessa maneira, os negros iorubás são utilizados
também nas atividades urbanas. Cabe destacar que a vinda dos negros iorubás
não substitui a importação de mão de obra escrava banto. No Rio de Janeiro, por
25
Na Bahia, principalmente no porto em Salvador, houve a utilização do escravo como moeda de
troca para a aquisição do fumo produzido no Recôncavo baiano (VERGER, 1987).
34

exemplo, a predominância demográfica de escravos bantos se manteve durante


todo o período em que o comércio de africanos para o trabalho compulsório
vigorou.
No final do século XIX, as etnias sudanesas que chegavam à Bahia,
passaram a viver nas cidades, o que possibilitou que velhos africanos ainda
fossem reconhecidos por sua etnia ou nação (PRANDI, 2000). Nesse mesmo
período, na cidade do Rio de Janeiro, as etnias bantos, diluíam-se no conjunto da
imensa população africana, tornando-se somente benguelas, angolas e congos,
as célebres “nações” africanas do cativeiro (SOARES, 2005, p. 9). Diante desse
contexto, é possível conjecturar que, assim como as etnias sudanesas mantinham
o seu fluxo pelas ruas baianas, de igual maneira as etnias bantos presentificavam-
se nas ruas cariocas e fluminenses26.
Nina Rodrigues, durante a primeira metade do século XX, embasou grande
parte dos seus estudos nas etnias sudanesas. Em suas obras cita que ele próprio
conheceu, pessoalmente, remanescentes das nações iorubás, que reuniam as
etnias de Ilorin, Ijexá, Abeokutá, Lagos, Ketu, Ibadan e Ifé. O autor nos conta
ainda que os negros africanos provenientes da região central da iorubalândia
(Oyó, Ilorin e Ijexá) que para cá vieram no final do referido século eram, em sua
maioria, malês ou mulçumanos (RODRIGUES, 1976). Ele também menciona os
jejes27, trazidos tanto do Daomé como de cidades do litoral do país, e do reino de
mahis, localizados ao norte do país dos jejes daomeanos, além dos haussás, dos
tapas, dos grúncis e outros. Cabe destacar que, apesar de quase não serem
citados nas obras do referido autor, os povos bantos circulavam e fixavam-se da
mesma maneira que os demais povos africanos e seus descendentes nas áreas
urbanas. Tal situação não era privilégio dos africanos estudados por Rodrigues.
É Slenes (2009, p. 196) quem nos esclarece que a grande maioria dos
africanos que desembarcaram nas províncias ou capitanias do Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, era da África
Central. Segundo o autor, o quantitativo de africanos que vieram para o Brasil no
referido século aponta para uma supremacia centro-africana, principalmente nas
capitanias citadas. Nessa perspectiva, podemos presumir que, mesmo com quase
26
Ver Heywood (2000), Slenes (1992), Karsch (2000), Gomes (2005), Barata (2012).
27
Os jejes, também conhecidos como ewês, de língua fon, foram a última etnia do tráfico negreiro,
trazida para o Brasil.
35

três séculos de comércio de africanos para o trabalho escravo, os pioneiros da


travessia do Atlântico engrossavam o volume da migração.
Nesse mesmo período, Capone (2009, p. 28) sublinha que acabava de ser
descoberta a organização social e religiosa dos iorubas. Nesse contexto, das
culturas iorubás recriadas no Brasil pelo tráfico negreiro, duas ocuparam (e ainda
ocupam) papel especial na memória da cultura religiosa que se reproduziu no
Brasil: Oyó, a cidade de culto a Xangô28, e Ketu, a cidade de culto a Oxóssi 29.
Certamente em função da sua vinda mais recente, foram favorecidos pela
concentração na Bahia. A autora acentua em sua obra o destaque dado às
culturas sudanesas por seus antecessores, que, como citado, desconsideravam as
contribuições culturais dos povos bantos. Segundo suas referências, os iorubás
firmaram uma espécie de hegemonia cultural em relação aos que precederam.
Trouxeram para o Brasil todo o complexo cultural, assim como os daomeanos
(cultura jeje), desenvolvido especialmente no plano religioso que os envolvia
desde a África. Em decorrência das circunstâncias da escravidão, as trocas
culturais entre esses grupos, recém-chegados, intensificaram-se e constituíram
aqui o complexo cultural jeje-nagô30

1.3.1 A constituição da suposta supremacia Iorubá (nagô) no Brasil

De onde nasce, no imaginário negro brasileiro, a supremacia iorubá existente


nas comunidades de terreiro (candomblés)? É comum ouvir de seguidores dos
cultos negros brasileiros as seguintes expressões: “na minha casa31 é igual na
África, seguimos o ‘iorubá’”, ou “lá em casa não é candomblé Brasil”, ou, ainda, “lá
só viramos no santo (orixá), não se cultuam as entidades do Brasil”. Bastam
poucos minutos de conversa com os adeptos para que expressões iguais a essas

28
Ancestral divinizado (orixá) que na natureza, é simbolizado pelos raios e trovões. Nos cultos
negros brasileiros é o orixá da justiça. Seu elemento de força vital é o fogo.
29
Ancestral divinizado (orixá) simbolizado pelos caçadores. Seu elemento de força vital é terra.
30
É importante frisar que, todos os africanos que cruzaram forçosamente o Atlântico, contribuíram
para a formação cultural brasileira.
31
Referem-se ao espaço de culto: barracão, casa de santo, ilê axé, roça, dentre outras designações.
36

venham à tona; para se perceber uma exaltação à “África”, um “empoderamento”


nessas falas e a ideia de “pureza nos rituais”.
Assumo, aqui, que talvez essa seja a parte mais difícil da referida pesquisa
para mim. Provavelmente por ser a que se entremeia em minha história pessoal,
ou melhor, por ser daqui o ponto de partida da ampliação dos conhecimentos das
“Áfricas” que existem (ou será existiam?) em mim. Na adolescência eu me iniciei
em orixá em uma comunidade de cultos negros brasileiros vinculada ao culto Ketu.
Durante um grande período eu vivi e exaltei “essa suposta supremacia nagô”.
Mantinha um comportamento que desconsiderava as várias facetas das nações
africanas. Jamais imaginaria, naquele momento, que muito do que propagava
como as “práticas de Ketu”32 poderia ser reinvenções, recriações e ações forjadas
na perspectiva de legitimação de poder. Acreditava, sem questionar, na
superioridade dos rituais da comunidade de cultos de que participava e a que
pertencia. Nesse viés, automaticamente, reproduzia um preconceito contra as
outras comunidades de cultos vinculadas a outras nações. Hoje compreendo que
tal preconceito era infundado, imaturo e constituído sob um paradigma construído
em uma época histórica dos iniciados dos cultos negros brasileiros. Nos idos dos
anos 1980, houve quase uma proliferação das comunidades de cultos negros com
origem nas práticas ketu. Levar o candomblé como bandeira ritualística/religiosa,
para muitos, significava ser adepto da “nação ketu”. Lembro-me de que os
iniciados no axé de Angola recorriam à mudança de águas33 para Ketu. Era um
modismo. Acreditava-se que, ser Ketu, era assumir uma pureza identitária com a
África, era ser do legítimo candomblé. O preconceito contra as outras “nações”
surgia a partir das mínimas coisas. Uma expressão, uma cantiga, uma reza ou um
simples gesto denotava em que águas o indivíduo mantinha suas práticas
ritualísticas.
Reforço que no momento em que vivi e exaltei tais práticas reproduzia e
repetia o ouvido e o visto sem questionamentos; simplesmente assumia a postura
de que, se meus mais velhos falaram, é porque é isso. Não havia outra

32
Era a expressão utilizada pelos que participavam da minha comunidade de cultos.
33
Mudar às águas significa a troca de vínculo com a raiz da nação africana que sustenta o axé do
espaço de cultos. Os axés estão respaldados nas principais nações africanas que participaram da
colonização brasileira. Destacam-se: Angola, Congo, Ketu, Jeje, Ijexá e Efon. Dessa maneira, o
indivíduo trocava essas “nações”.
37

possibilidade de pensamento ou de postura naquela época. O mistério que


envolvia (e em alguns casos ainda envolve) essa suposta supremacia fazia parte
das histórias vividas por muitos antepassados e pensar em questioná-las
significaria um desrespeito, ou, pior, uma afronta à memória do egbé 34.
Muitas dessas crenças têm raízes no século XVIII, em plena escravidão,
desde a chegada dos negros sudaneses a essas terras. Várias foram as
justificativas utilizadas por muitos autores para “legitimar” uma superioridade
iorubá em relação aos seus antecessores: os povos bantos. Dentre elas,
destacamos as mais citadas: os traços fisionômicos e comportamentais. Essas
foram as características que embasaram uma crença na “superioridade racial
iorubá”35. A partir das leituras dessas obras, muitos Babalorixás e Ialorixás das
comunidades de cultos negros brasileiros passaram a ecoar suas interpretações
do lido e engrossaram o coro da suposta supremacia iorubá.
Salientamos que a ideia de superioridade nagô encontra respaldo nos
escritos de muitos intelectuais. Nina Rodrigues (1976), no início do século XX,
endossou tal crença em seus estudos inspirados na ideologia racista que atribuía
à miscigenação os males e os entraves ao desenvolvimento do país, porque a
“civilização” estava associada a uma população branca e de hábitos europeus 36. O
autor ressaltava a circulação da língua iorubá entre os africanos e seus
descendentes, na Bahia. Segundo Capone (2009, p. 296), ele criticava o fato de,
no Brasil, as línguas bantas serem consideradas as únicas a merecer a atenção
dos linguistas, e acrescentava que, se o quimbundo predominava no Norte e no

34
Denominação utilizada para representar a composição do espaço de culto e seus componentes
(iniciados e não iniciados); membros da comunidade de terreiro.
35
Rodrigues (1932) traçou amplo quadro da presença africana no Brasil ao discutir suas regiões de
procedência conforme a distribuição do tráfico de escravos, ao inventariar línguas e grupos étnicos
africanos existentes no Brasil e ao reconhecer a complexidade de suas manifestações artísticas e
religiosas. Cabe ressaltar, que a pesquisa se deu com africanos remanescentes na Bahia no fim do
século XIX, e que a mesma só foi publicada, postumamente, em 1932, intitulada Os Africanos no
Brasil.
36
As origens e argumentos de ideologia racista no Brasil são discutidos em detalhe por Lília
Schwartz; Scharcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial
no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Cf. também sua didática
apresentação da “questão racial no Brasil: Schwarcz, Lilia Moritz. Questão Racial no Brasil In:
Negras Imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil, eds. Lilia Moritz Schwarcz e Letícia
Vidor de Sousa Reis. São Paulo: EDUSP/Estação Ciência, 1996, 153-177.
38

Sul do país, era o nagô (iorubá) que prevalecia na Bahia37. A autora sublinha que
as contribuições linguísticas do iorubá, no entanto, nem sempre são claramente
identificáveis, e, segundo ela, o próprio Nina Rodrigues reconheceu que confiar
totalmente na memória dos descendentes de escravos podia, às vezes, induzir a
erros nos planos cultural e linguístico. Capone cita, ainda, que o médico também
abordou a presença de mulçumanos entre os escravos baianos e seu
engajamento na resistência à escravidão nas célebres revoltas que culminaram
em 1835 com o levante dos malês em Salvador. Rodrigues atribuía aos africanos
da Costa Ocidental – iorubás, jejes, tapas, haussás – superioridade cultural em
relação aos povos bantos, provenientes da África Centro Ocidental, que eram
maioria no centro-sul do Brasil. Em relação aos haussás, a “superioridade” era
destacada, pelo autor, pelo fato de serem letrados. Capone (2009, p. 16) afirma
que, no intuito de criticar a predominância linguística banto, Rodrigues baseou seu
método na observação de fatos religiosos, comparando-os com os dados de que
dispunham sobre os povos africanos. De acordo com a autora,

em seu estudo sobre os africanos no Brasil, no início do século XX, Nina


Rodrigues afirmou de maneira clara a supremacia dos iorubás (os nagôs
da Bahia), que ele considerava a verdadeira “aristocracia” entre os negros
trazidos para o Brasil, baseando-se nas pesquisas do coronel Ellis e do
missionário Bowen, ambas realizadas no fim do século XIX. Desta forma,
declarava ter inutilmente buscado, junto aos negros da Bahia, ideias
religiosas pertencentes aos bantos (CAPONE, 2009, p.16).

Verifica-se, assim, que o protagonismo assumido pelos povos bantos no que


se refere aos traços culturais e à língua, incorporados pelo povo brasileiro, era
desconsiderado pelo pesquisador. Heywood (2010, p. 19) salienta que, apesar da
presença extraordinária dos centro-africanos no Brasil colonial e de a cultura inicial
negro-brasileira ter sido, em grande parte, proveniente da África Central, poucos
estudos detalharam esse processo em profundidade.
Seguindo a mesma perspectiva, Bastide (apud CAPONE, 2009) afirma de
modo claro, em suas obras, a oposição entre a religiosidade nagô e a banto. Para
o autor, o povo iorubá representa os “guardiões da tradição”, porque encarna um

37
Cabe-nos pontuar que, o predomínio da língua nagô, na Bahia, exaltado pelo estudioso, era em
sua grande maioria nos espaços ritualísticos e nos momentos dos cultos religiosos, e não como
uma “língua pátria” falada cotidianamente por todos.
39

mundo ideal em que não existem conflitos e os valores africanos “originais” são
fielmente conservados. Para ele,

o candomblé é mais que uma seita mística, é um verdadeiro pedaço da


África transplantado. Em meio às bananeiras, às buganvílias, às árvores
frutíferas, às figueiras gigantes que trazem em seus ramos os véus
esvoaçantes dos orixás, ou à beira das praias de coqueiros, entre a areia
dourada, com suas cabanas de deuses, suas habitações, o lugar coberto
onde à noite os atabaques com seus toques chamam as divindades
ancestrais, com sua confusão de mulheres, de moças, de homens que
trabalham, que cozinham, que oferecem às mãos sábias dos velhos sua
cabeleiras encarapinhadas para cortar, com galopadas de crianças
seminuas sob o olhar atento das mães enfeitadas com seus colares
litúrgicos, o candomblé evoca bem essa África reproduzida no solo
brasileiro, de novo florescendo. Comportamento sexual, econômico e
religioso formam aqui uma unidade religiosa (BASTIDE, 1960, p. 312-313,
apud CAPONE, 2009).

Em relação aos bantos, ao contrário, o autor acreditava que eles


acarretariam a “degradação” das crenças africanas (CAPONE, 2009). O
romantismo toma posse do autor quando se refere ao povo iorubá, ao mesmo
tempo em que um tom pernóstico se mantém quando se dirige ao povo banto.
Para ele, o culto banto era responsável por engendrar a “macumba” (cf. CAPONE,
2009). Cabe ressaltar que não há registros do autor referente ao tema. De acordo
com Capone (2009), assim como Bastide, outros autores38 contribuíram para a
construção de um modelo ideal de ortodoxia, “identificado com o culto nagô, que
encontra seu público no meio tanto dos pesquisadores quanto dos praticantes dos
cultos” (CAPONE, 2009, p. 19). A pesquisadora sinaliza, ainda, que “a maioria dos
antropólogos que estudaram o candomblé se engajou, de uma forma ou de outra,
nesse culto, contraindo uma espécie de aliança com o seu objeto” (CAPONE,
2009). Por isso, segundo ela, o discurso hegemônico dos chefes de terreiros ditos
tradicionais da Bahia é legitimado pelo discurso dos pesquisadores que, há quase
um século, vêm limitando seus estudos, com raras exceções, aos três mesmos
terreiros nagôs: Engenho Velho ou Casa Branca (considerado o primeiro terreiro
de candomblé do país), o Gantois e o Axé Opô Afonjá (ambos oriundos do
Engenho Velho), embora existam milhares de outros. A autora nos esclarece que

38
A autora cita Arthur Ramos, Édison Carneiro, Juana Elbein dos Santos, Pierre Verger, Raimundo
Nina Rodrigues, Roger Bastide e Vivaldo da Costa Lima (cf. Capone, 2009, p. 20).
40

Nina Rodrigues e Arthur Ramos, nos anos 1930, fizeram suas pesquisas
no Gantois; Édison Carneiro no Engenho Velho; Roger Bastide, Pierre
Verger, Vivaldo da Costa Silva e Juana E. dos Santos, entre outros, no Axé
Opô Afonjá. [...] Assim Nina Rodrigues e Ramos se tornaram ogãs do
Gantois. Damesma forma Édison Carneiro era ogã no Axé Opô Afonjá [...]
Roger Bastide e Pierre Verger, que havia recebido o títuli de Oju Oba [...] A
aliança entre cientistas e iniciados se tornou ainda mais efetiva quando, a
partir dos anos 1950, o vaivém para e da África, que nunca se interrompeu
completamente após a Abolição da Escravidão, ganhou novo impulso
graças às viagens de Pierre Verger entre o Brasil e o país iorubá (Nigéria e
Benin). O papel de mensageiro que desempenhou dos dois lados do
oceano, como ele mesmo definiu, e sobretudo o prestígio que decorria dos
títulos e marcas de reconhecimento outorgados pelos os iorubás aos
chefes de terreiros “tradicionais” representaram um importante elemento
na construção de um modelo de tradição, válido para os demais cultos. [...]
Foi Juana Santos, discípula de Bastide, quem encarnou, no fim dos anos
1970, o exemplo mais acabado da “aliança” entre antropólogos e membros
do culto. Essa antropóloga argentina, iniciada no terreiro de Axé Opô
Afonjá de Salvador e casada com Deoscóredes M. dos Santos, alto
designatário do culto nagô, foi a primeira a teorizar a necessidade
metodológica de analisar o candomblé “desde dentro”, isto é, como
participante ativo e iniciado, a fim de evitar qualquer deriva etnocêntrica [...]
(CAPONE, 2009, p. 179).

É possível perceber, pelas pesquisas de Capone (2009) como os três


terreiros “mais tradicionais” de Salvador passaram a ser o locus empírico para aos
acadêmicos citados e como eles contribuíram para a “construção imaginária” de
“pureza” e “tradição” africana nesses terreiros. Heywood (2010, p. 19) acentua que
as pesquisas que lidaram especificamente com a cultura negra enfatizaram a
contribuição dos africanos ocidentais no intuito de dar conta da sua habilidade em
preservar os elementos africanos na cultura “crioula do Brasil”. Para a autora,
muitos dos estudos antropológicos focalizam quase que exclusivamente os
praticantes da religiões afro-brasileiras, sobretudo os que “praticavam a religião
dos Orixás, de cultura yoruba na Bahia” (HEYWOOD, 2010).
De acordo com Augras, existe uma tradição, já solidamente estabelecida,
que afirma a hegemonia da Bahia na criação e na manutenção das religiões
brasileiras de origem africana, mais especificamente, diz, do complexo religioso
que recebeu o nome de candomblé. Apesar disso, para essa autora, é preciso
reconhecer que, no decorrer da história, os negros africanos e seus descendentes
disseminaram comunidades de cultos ao longo das costas do Brasil.

O Rio de Janeiro, desde o momento em que se tornou capital do país,


passou a representar grande pólo de atração. No século XIX, o centro da
cidade e, particularmente, toda a zona portuária, congregava importante
contingente de população negra a que, no final do século, se viriam
acrescentar os egressos do decadente Vale da Paraíba e os migrantes
41

nordestinos. Há indícios de que genuínas casas-de-santo já estivessem


funcionando naquela época. No início deste século, as reportagens de
João do Rio (1951) proporcionam um bom retrato – ainda que carregado
de tintas – da amplitude e da vitalidade de cultos de origem africana na
capital da República (AUGRAS, 1983, p. 123).

A autora deixa evidente que os cultos negros não eram um privilégio dos
baianos e que eles se expandiram pela costa brasileira por onde atuaram os
negros africanos e seus descendentes. No entanto, uma vasta produção
acadêmica insiste em legitimar a Bahia e, consequentemente, os traços culturais
iorubá como locus da tradição. Será que toda exaltação e visibilidade dada ao
culto iorubá, por esses estudiosos está atrelada às suas práticas ritualísticas
enquanto seguidores? E, mais ainda, como ocupantes de altos cargos nos
referidos terreiros? Será que toda a pesquisa acadêmica sobre esses terreiros, e
consequentemente sobre o culto nagô, incentivou a busca dessa “tradição” por
outros terreiros seguidores? É possível questionar se “o poder e a força”
vinculados à tradição africana iorubá por esses pesquisadores iniciados, desde o
século passado, contribuíram para a “formatação” de comportamentos ritualísticos
ditos “tradicionais” e tendenciaram a discriminação aos seguidores dos rituais
banto? As respostas para esses e muitos outros questionamentos ficarão também
no imaginário de todos nós, o que não quer dizer que elas não existam. A
produção acadêmica voltada para o culto iorubá referenciou uma ideia de tradição
e, em contrapartida, buscou sublinhar a ausência de tradição nos demais cultos,
os bantos em particular39.
No entanto, Reis (1989) revela a presença na cidade de Salvador, no início
do século XIX, de outros terreiros de diferentes tradições religiosas. Essa
afirmação se baseia na análise dos processos criminais relativos às perseguições
religiosas desse período. Em 1944, Luís Viana Filho (apud CAPONE, 2009, p. 17),
retrata a existência de vários candomblés bantos, cuja fundação era anterior às
pesquisas de Nina Rodrigues. Escreveu, ainda, que “era de admirar que tivessem
passado despercebidos a um estudioso da inteligência do ilustre mestre”.
Percebe-se, então, que a constituição da suposta supremacia iorubá/nagô,
nos cultos religiosos, dependeu do olhar dos intelectuais sobre os cultos,

39
Cabe ressaltar que, segundo Dantas (1998), a “hegemonia nagô” possui uma “pureza” nascida do
encontro do discurso de certos praticantes com o discurso dos pesquisadores, eles próprios
fortemente ligados a esse segmento religioso.
42

principalmente no que se refere à Bahia, para eles representação “viva” da


tradição. A oposição existente está condicionada por esse “olhar” e em grande
parte é propagada por ele. Assim, apesar da existência do modelo jeje nagô no
início do século XX no Rio de Janeiro, como mostram as obras de João do Rio
(1904) e Roberto Moura (1983, p. 172-173), esse modelo nunca foi levado em
consideração pelos autores, que, desde Rodrigues e Ramos, preferiram ver nos
terreiros de Salvador o modelo etnográfico do candomblé “tradicional” e nos
terreiros do Rio o modelo etnográfico dos cultos “degenerados” ou “degradados”.
Para os que seguiram os rastros de Rodrigues (1976), ser adepto dos cultos nagô
(principalmente na Bahia) significa manter a “pureza” nos rituais, acreditar e
propagar a “supremacia (imaginária) iorubá” e, por conseguinte, manter a oposição
aos cultos bantos.
Dessa maneira, a característica que acentua a crença na superioridade
iorubá está na herança deixada pelos estudiosos dos cultos de matrizes nagô 40.
Mesmo na atualidade muitos autores buscam justificativas para respaldar suas
hipóteses em relação à iorubacracia. Segundo Prandi (1991), por terem sido os
últimos povos negros africanos a serem traficados para o Novo Mundo, os
africanos iorubás encontraram uma estrutura urbana diferenciada dos negros
bantos. Para o autor, isso se justifica na mão de obra do negro banto, seu
antecessor, que ativa e arduamente já havia construído e transformado a
realidade encontrada. De certo modo, sua chegada “tardia” fora beneficiada. Para
Luz (1995, p. 34), os iorubás e fon, ou seja, nagôs e jejes, formam um grande
complexo religioso no Brasil41. O autor nos fala que os princípios e os valores de
suas tradições culturais expressam-se pela linguagem religiosa. Essa linguagem
estabeleceu, para os iorubás, uma relação de constante tensão entre suas
crenças e os valores brancos europeus.
A partir de meados do século XX, a conquista por essa “supremacia” toma
outros rumos. Busca-se cada vez mais uma legitimação ritualística na Bahia, como
nos outros estados em que se verifica a presença dos cultos de matrizes iorubá.
Ser nagô é mais do que nunca sinônimo de “africano” (mesmo sendo brasileiro),

40
Cf. Bastide, 1974; Luz, 1995; Prandi, 1991; Santos 1976; e Verger 2002.
41
Cabe ressaltar que, a Bahia, principalmente a cidade de Salvador, é o locus das referências de
muitos autores que afirmam a supremacia religiosa iorubá, desconsiderando, na maioria das vezes,
às contribuições bantos, também nesse aspecto.
43

bem como o qualificativo obrigatório do que está ligado à reafirmação das raízes
africanas da identidade negra africana. A própria utilização dos termos iorubás nos
escritos e na oralidade nos cultos religiosos busca ressaltar essa “supremacia
construída”. Dessa maneira, a própria língua mãe torna-se “menor”, constituindo-
se como um empecilho para a “pureza tradicional” que deve legitimar os cultos
nagôs. Na busca de oficializar cada vez mais a ligação imaginária com a África,
vários iniciados e chefes de terreiros, também conhecidos como Babalorixás (os
homens) e Ialorixás (as mulheres) no culto nagô, recorreram a viagens a Nigéria e
Benin, acreditando que desse modo teriam um contato “mais puro com as
tradições”, retornariam às origens e voltariam a ser “nagôs”42. Ir à África significava
entrar em contato com as fontes do conhecimento religioso, denotava um ganho
de tradicionalidade. Segundo Capone (2009, p. 265),

essa busca à África, desde sempre presente no candomblé, é uma


reativação mais simbólica que real, de uma tradição “pura” que deve ser
reconstruída em solo brasileiro. A necessidade se faz sentir de modo mais
urgente, à medida que os efeitos nefastos do turismo e da participação de
brancos e mulatos no candomblé cavam um fosso cada vez mais nítido
entre os terreiros “tradicionais” e aqueles que buscam tanto a estética
quanto a religião.

As viagens à África e as modificações que elas acarretam no ritual são,


portanto, um poderoso instrumento de prestígio para os indivíduos dos terreiros
em questão. Para a autora, essas viagens seriam motivadas por uma perda da
tradição no lugar de partida (o Brasil) que forçaria os membros mais preocupados
com a pureza perdida a buscá-la na terra de origem (a África). Ratifica-se que
essa busca à África ganha cada vez mais importância nesse processo de reforço
das raízes, até conduzir uma reafricanização a qualquer preço, por meio de cursos
de língua e civilização iorubás ou dos cursos sobre a prática adivinhatória43 (idid,
2009, p. 266).

42
As pessoas que recorreram (e ainda recorrem) às viagens à África, o fazem acreditando que
reafirmam sua fidelidade à tradição.
43
A figura mais emblemática desse movimento que buscou estabelecer vínculos entre Brasil e África
foi sem dúvida Pierre Verger. Ele procurou, pela comparação entre o país e o continente, fazer
sobressair a fidelidade dos negros baianos à África. Filho espiritual (Filho de Santo) da Ialorixá do
Axé Opô Afonjá, Senhora de Oxum, o pesquisador fez valer seu papel de “mensageiro” e poder,
assim, “contar a África” aos amigos baianos (VERGER, 2002).
44

Desse modo, tanto os pesquisadores que se iniciaram e passaram a fazer


dos “seus”44 próprios terreiros de candomblé seu objeto de estudo, assim como os
viajantes que foram (e ainda vão) à África contribuíram para a crença na
constituição da “tradição africana pura” nos terreiros nagô e jeje nagô 45. Essa
constituição ultrapassa a fronteira mítico-religiosa e alcança a esfera política.
Assim, dá-se em uma arena conflituosa e tensa na qual escolhas são feitas,
decisões são tomadas. As estratégias políticas no universo das comunidades de
terreiro (candomblé) durante muito tempo foram ocultadas, principalmente, como
citado, pelas relações existentes entre antropólogos e os “seus” terreiros. Capone
comenta que,

com efeito, os antropólogos, na maior parte do tempo ligados ao terreiro


que estão estudando por vínculos religiosos, têm à disposição informações
que lhe são necessárias, mas que não podem usar se quiserem manter
boas relações com seus informantes. Devem respeitar um código de
comportamento que os obriga a ocultar todos os acontecimentos que
possam desmitificar a visão romântica de um candomblé tradicional em
que reina a harmonia (...) na realidade, e qualquer pesquisador que se
interesse pelos cultos afro brasileiros sabe bem disso, o poder e prestígio
estão no centro do universo do candomblé. Tal prestígio depende do status
social, econômico e político do indivíduo, da posição herdada ou adquirida
que ele ocupa na hierarquia do culto. A acumulação de prestígio (que
resulta, por exemplo, de uma legitimação pelos antropólogos) faz com que
uma família de santo “tradicional” reforce seu poder, ou até funde nova
tradição (CAPONE, 2009, p. 289).

Percebe-se, então, que a “tradição construída” nos terreiros nagôs,


principalmente os citados nessa pesquisa, acarreta às relações existentes neles
poder, prestígio e, por conseguinte, uma crença na “superioridade” destes.
Entretanto, para se dizer superior, é preciso demonstrar a inferioridade do outro;
como nos diz Foucault (1969), não há poder sem dessimetria nas relações sociais.
A construção de uma “tradição africana pura”, encarnada por esses terreiros,
torna-se assim a marca de uma diferença – um ganho de tradicionalidade e,
portanto, de prestígio – diante dos demais terreiros.

44
O termo “seus” é utilizado, neste contexto, como pertencimento, participação e não como
propriedade.
45
A importância dessa aliança entre terreiros e pesquisadores pode ser bem percebida no meio dos
cultos negros brasileiros. Segundo Capone (2009, p. 289), durante um encontro das nações de
candomblé em 1981, um participante de um terreiro angola lançou um apelo aos pesquisadores
para que estudassem o ritual de sua nação, pois “não há livros sobre angola”. E tem mais terreiros
de angola na Bahia do que de Ketu, de jeje, de qualquer outra nação.
45

1.4 Sincretismo ou interações, trocas, acrescentamentos e possibilidades?

Durante muitos anos ouvi de vários iniciados e simpatizantes dos cultos


negros brasileiros que “Santa Bárbara é Oyá/Iansã no sincretismo”. Tais palavras
deixavam-me intrigado e me faziam questionar, a mim mesmo, como uma santa
branca, cristã, ocidental, podia ser ao mesmo tempo orixá, negra, e, em vez de
missas e promessas, receber sacrifícios, oferendas e incorporar em seus
descendentes? Como perceber em santa Bárbara algum laço, mesmo que
mínimo, com Oyá? Onde estaria o ponto de interseção que possibilitaria que elas
fossem a mesma (santa/ancestral)? Bem, naquele momento eu não encontrei
respostas para essas perguntas e nem para tantas outras. Hoje percebo que,
existem, entre traços judaico-cristãos e dos cultos aos ancestrais divinizados,
ações que criaram sentidos e significados no devir humano, no afeto constituído e
justificado nas relações cotidianas. Nessa perspectiva, pude notar que o sentido
era o mais importante para aqueles adeptos que praticavam suas crenças entre
Santa Bárbara e Oyá. As diferenças entre elas já estavam postas em suas
próprias histórias e referências, mas, para alguns adeptos, as similaridades
(criadas) justificam-se na sua fé, ou seja, no sentido e no sentimento dedicados
por eles.
Ao nos referirmos às culturas africanas que foram desterritorializadas na
grande diáspora, referimo-nos a práticas seculares, a tradições que significavam
em um determinado território, que sobreviveram entre os descendentes de várias
gerações e que, principalmente, retratam os sujeitos pertencentes a essas
culturas. O existir, para esses indivíduos, ou seja, para o homem e mulher da
tradição africana, segundo Sodré, “não significava simplesmente ‘viver’, mas
pertencer a uma totalidade – o grupo. Cada ser singular perfaz a sua individuação
a partir dessa pluralidade instituída, onde se assenta as bases de sustentação da
vida psíquica individual” (SODRÉ, 1995, p. 9). Dessa maneira, entende-se que a
interação cultural está na formação do africano e que ele, enquanto indivíduo, não
está dicotomizado do seu grupo (família, clã, aldeia etc.). Sodré cita ainda que “o
indivíduo pertence ao grupo tanto quanto a si próprio, pode ser indivíduo ou ser
grupo equivale de fato a uma função no trabalho de limites ou de determinação de
46

identidade em face de vasta diferenciação do fenômeno humano” (SODRÉ, 1995,


p. 9). Na individualidade ou na coletividade, para os negros africanos, a essência
da escravidão consistia em serem desnudados da percepção que tinham de si
próprios, consequentemente lutando nas terras para onde migraram forçosamente
para restaurar (ou criar) um sentido comum de identidade, de pertencimento às
suas tradições, de vínculos com seus pares.
Conforme sinalizado, a separação compulsória dos africanos de suas terras
ocorrida entre os séculos XVI e XIX não os separou de suas vivências. Suas
práticas culturais, as lembranças de suas terras, seus rios, suas árvores, suas
montanhas; permaneceram vivas em suas memórias. As dificuldades enfrentadas
na rota transatlântica não “apagaram” seus vínculos, seus sentimentos de
pertença nem suas emoções. A elas acrescentaram dor e sofrimento. Foi nesse
contexto que os africanos desembarcaram no Novo Mundo, convivendo com
diferentes etnias, com os nativos e com o branco europeu, símbolo da amargura
da escravidão. Sodré destaca que

a formação da sociedade brasileira, iniciada no século XVI, foi um


processo de agrupamento, num vasto território a se conquistar, de
elementos americanos (indígenas), europeus (os colonizadores
portugueses) e africanos [...] No mesmo campo ideológico cristão do
colonizador, fixaram-se as organizações hierárquicas, formas religiosas,
concepções estéticas, relações míticas, música, costumes, ritos,
características de diversos grupos negros (SODRÉ, 2005, p. 89-90).

É possível observar, então, que a formação sociocultural brasileira se deu


em uma arena na qual europeus, ameríndios e africanos buscaram manter ativas
suas práticas culturais. Essas práticas conflitaram-se entre lutas, negociações,
acordos, jogos e mantiveram-se arraigadas de estruturas simbólicas que se
sustentavam por meio de suas memórias.
O autor esclarece ainda que

em plena vigência da escravatura – com seus desmoralizantes castigos


corporais, suas sangrentas intervenções armadas, suas táticas de
assimilação e cooptação ideológicas (concessões de pequenos privilégios,
oportunidades de ascensão social para os mestiços etc.) – os negros
desenvolviam formas paralelas de organização social. Exemplos de ordem
econômica – caixas de poupança para compra de alforrias de escravos
urbanos; de ordem “política”- conselhos deliberativos próprios para dirimir
disputas internas de uma nação ou etnia, ou para a preparação de ações
coletivas (fugas, revoltas), ou então confrarias de assistência mútua sob a
capa da atividades religiosas (cristãs); de ordem mítica – elaboração de
47

uma síntese representativa do vasto panteão de deuses ou entidades


cósmicas africanas (os orixás), assim como a preservação do culto aos
ancestrais (os eguns) e a continuidade de modos originais de
relacionamento de parentesco; de ordem linguística, a manutenção do
iorubá como língua ritualística (SODRÉ, 2005, p. 89-90).

Vale destacar que existiram (e ainda existem) muitas outras formas de


organizações sociais (re)elaboradas pelos africanos oriundas da grande diáspora.
Na visão do autor, as “formas paralelas de organização social” possibilitaram aos
africanos escravizados adaptações que levaram a uma (re)organização simbólica
das relações vividas em seus territórios de origem (África). Com a possibilidade de
(re)organização das e nas estruturas encontradas, os africanos propuseram trocas
simbólicas, reposições, jogos nas relações constituídas. Barata (2012, p. 29)
destaca que “após a diáspora, quando escravizados em território brasileiro, os
africanos tiveram todas suas organizações desestruturadas”. Mediante estudos
dos referidos autores, verificamos a importância dada ao termo “organização”, o
que nos dá a noção de que as etnias africanas mantinham-se organizadas em seu
continente e, ainda, que a prática de se organizarem facilitou sua (re)estruturação
nas terras do Novo Mundo. Cabe reforçar que os povos africanos, ainda no seu
continente, já adaptavam, entre si, suas práticas culturais, ou seja, já conviviam
com outras culturas; fosse por migrações eventuais (quando deixavam impressas
marcas das suas culturas por onde passavam) ou por rivalidades intertribais ou
interétnicas (como a dos jejes que dominaram os iorubás e ashantis).
Independentemente do motivo, tais fatos possibilitaram a aproximação de pessoas
de culturas diferentes e também possibilitaram, a partir daí, uma permuta de
informações de vários aspectos das mesmas. Pontua-se, ainda, segundo Sodré,
que

para cá vieram dispositivos culturais correspondentes às várias nações ou


etnias dos escravos arrebatados da África entre os séculos XVI e XIX. Tais
culturas já conheciam mudanças no próprio continente africano em função
das reorganizações territoriais e das transformações civilizatórias
(substituições de antigos reinos e impérios por novos dispositivos políticos
de natureza estatal), precipitadas pelas estruturas de tráfico de escravo
montadas pelos europeus (SODRÉ, 2005, p. 92).

Nesse sentido, entende-se que as negociações/interações não foram uma


estratégia utilizada pelos africanos no Novo Mundo; essas negociações já faziam
parte das suas culturas originárias. As trocas, as adaptações, os
48

acrescentamentos, as reorganizações já dialogavam, em diferentes contextos,


ainda em solo africano. Desmistificando a ideia de “pureza cultural”, exaltada por
muitos autores.
No Brasil, a postura dos africanos no que diz respeito à realidade conflituosa
encontrada manteve-se em uma mesma perspectiva, ou seja, a de jogar com as
realidades, com as situações impostas e vividas. Conforme apresentado, desde o
início, os proprietários dos escravizados evitavam reunir grande número de
africanos da mesma etnia. Eles acreditavam que, desse modo, dificultariam a
comunicação e o contato entre os negros por apresentarem hábitos e línguas
diferentes.

nesse espaço permitido, porque inofensivo na perspectiva branca, os


negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e retomavam
a linha do relacionamento comunitário. Já se evidenciava aí a estratégia
africana de jogar com as ambiguidades do sistema, de agir nos interstícios
da coerência ideológica. A cultura negro-brasileira emergia tanto de formas
originárias quanto dos vazios suscitados pelos limites da ordem ideológica
vigente (SODRÉ, 2005, p. 93).

Em relação às estratégias utilizadas pelos africanos para se (re)constituírem


em terras tão distantes das suas, Barata (2012, p.29) alega que

a música, a dança e as festas foram as formas encontradas por eles para


se reconstituírem e se reterritorializarem como sujeitos e comunidade; foi
por meio dessas práticas que conseguiram reatar seus fragmentos
simbólicos, reconstruindo e transmitindo suas memórias. Para isso, os
escravos e seus descendentes precisaram estabelecer relações de troca
com outros elementos culturais pertencentes às diversas etnias africanas,
com europeus e indígenas.

Até aqui percebe-se que a perspectiva de trocas, reelaborações,


contextualizações, de jogar em algumas circunstâncias está presente nas
estruturas socioculturais dos escravos. Diferentemente do que fora repassado pela
“verdade ocidental”, um pensamento “elaborado” permaneceu nas relações
tecidas pelos cativos. Para a autora,

as relações simbólicas dos escravos africanos e seus descendentes com a


cultura ibérica e indígena foram constituídas por meio de uma sedução
pelas diferenças, graças às suas formas de conhecimento com base em
analogias de símbolos e funções. Mas essas trocas não eliminaram as
querelas, nem construíram nova síntese histórica cultural. Assim, participar
de festas em louvor a São Benedito aparentaria uma conversão à cultura
49

do outro, enquanto poderia ser apenas uma relação analógica, comum às


suas formas de pensar (BARATA, 2012, p. 29).

É importante salientar que as trocas realizadas pelos escravizados africanos


buscam uma comunicação entre si. Segundo Sodré (2005, p. 95), “na cultura
negra, a troca não é dominada pela acumulação linear de um resto (o resto de
uma diferença), porque é sempre simbólica e, portanto, reversível: a obrigação (de
dar) e a reciprocidade (receber e restituir) são as regras básicas”. Assim, verifica-
se que a ideia imputada pela cultura ocidental de troca como um meio comercial
(material) não é assumida pelo africano. A troca, para ele, é permeada por
sentidos, por significados e, principalmente, por regras. Negociá-las está na sua
natureza, nas suas ações. Jogar com essas trocas faz parte de suas práticas. O
jogar dos africanos, no Novo Mundo, foi uma grande tática de sobrevivência e de
permanências culturais. Suas danças, músicas, comidas, celebrações,
performances, instrumentos, apetrechos, roupas etc. sobreviveram (e sobrevivem
até hoje) graças à sua habilidade “nata” de jogar com a realidade que se
apresenta. Eles (os africanos) não aceitaram a condição escravizada que lhe
impuseram. Por intermédio de seus rituais, que sintetizam, em grande parte, suas
práticas e vivências, eles eram livres e alimentados com a crença nessa
“liberdade” que mantiveram vivas suas raízes. De acordo com Barata (2012, p.
45),

no Brasil, as práticas simbólicas africanas eram coletivas e, quase sempre,


revestidas de uma intenção de celebrar e fazer pedidos para o grupo. Era
por meio delas que se conversava com os deuses e com os ancestrais,
sendo, por isso, desenvolvido por esses povos um complexo ritual de vida,
que exigia, para a prática da cada ação realizada, uma invocação especial,
por meio de cantos, danças, sabores, indumentária, desenhos etc. Essas
práticas simbólicas faziam parte do cotidiano e eram concebidas de forma
integral em que várias linguagens (música, pintura, dança, culinária,
performance etc.) estavam reunidas. Cada momento importante para o
indivíduo dentro da sua comunidade era festejado. Realizavam-se
cerimônias para o nascimento, para a morte, para o casamento, os quais
eram inseparáveis da vida por sua associação com o sagrado.

No contexto apresentado, as estratégias de jogar com as ambiguidades, de


acrescentamentos culturais, de se negociar com as realidades serviram como um
amálgama das diversas práticas étnicas do período escravocrata. Ele contribuiu
para o desenvolvimento do processo de interação cultural existente nos espaços
50

onde conviveram escravos oriundos das mais diversas nações africanas, nativos
e os imigrantes europeus.

1.4.1 Olhares – lugar de interpretações

[...] A expansão dos cultos ditos “afro-


brasileiros” em todo território nacional
(apesar da diversidade dos ritos ou das
práticas litúrgicas) deve-se à persistência
das formas essenciais em pólos de
irradiação, que são as comunidades-
terreiros (egbé). É isso que faz com que
um santo da Igreja Católica (como São
Jorge) possa ser cultuado num centro de
umbanda, em São Paulo, como Ogum,
orixá nagô. Ou seja, o conteúdo é
católico, ocidental, religioso, mas a forma
litúrgica é negra, africana, mítica. Em vez
da salvação (finalidade religiosa ou
católica), o culto a São Jorge se
articulará em torno do engendramento de
axé. [...]46

As palavras de Sodré (2005) chamam a atenção para o sentido sóciocultural


que abarcam os cultos negros brasileiros, ou seja, cultos que compreendem uma
“forma litúrgica (que) é negra, africana, mítica”. Uma forma, como apresentada,
baseada em negociações, em possibilidades, em jogos, mas principalmente, que
constrói muitos sentidos. Forma esta que está distante da hegemonia ocidental,
distante de conceituações, denominações, de “verdades únicas”, mas que está no
celeiro das práticas negro-africanas que se alastraram por todo o território,
tornando-se, assim, negro-brasileiras. Também não buscaram reafirmações de
“essências”, porque, de fato, não as perderam, simplesmente, ressignificaram-as.
É diante da perspectiva de permanências culturais, que Barata (2012) destaca que
em uma dura luta por continuidade simbólica, os negros buscaram novas
formas de comunicação, realizando vários acordos e negociações, os

46
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida – Por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A.
2005. 3. ed. p. 100.
51

quais levaram, muitas vezes, a descaracterizações e expropriações dessa


cultura, mas não à perda de seu fundamento (BARATA, 2012, p.31).

Ainda hoje, em pleno século XXI, percebe-se uma interpretação distante, por
parte de alguns estudiosos, sobre o percurso feito pelos escravizados africanos
nos seus “acordos culturais”47 para a continuidade de seus fundamentos. Muitos
deles descontextualizam um processo sócio, histórico, político e cultural em que os
cativos estavam inseridos. Os acordos, as negociações, o “jogar”, que marcam as
vivências dos escravizados, estavam atrelados a uma teia de significados, ao
mesmo tempo em que representavam, aqui, confrontos vividos, imputados por
uma legitimação de poder. Reviver, em terras distantes das suas, as negociações
e as elaborações que já estavam habituados a realizar no dia a dia manteve, de
certa maneira, ativa suas culturas; e isso, para eles, foi maior que rótulos e
preconceitos enfrentados.
As marcas culturais herdadas por nós dos africanos que foram escravizados
em nosso país representam de certa maneira as trocas, encontros, desencontros,
disputas, tecidas na diversidade das suas estruturas culturais, na convivência (ou
não) nas lavouras, nas senzalas, nas cidades, nos festejos e celebrações. Tais
marcas fortaleceram a permanência de suas culturas como um “todo” de modo
abrangente. Cabe esclarecer que esse “todo” não é unificado de informações, mas
diversificado; e é aí que está o perfil dinâmico dessas práticas ou seja, na
perspectiva das trocas, dos acrescentamentos, dos preenchimentos, dos
movimentos e encontros étnicos que constituíram nossa história cultural. É na
pluralidade que estão nossas bases culturais – uma grande estrutura construída a
várias mãos –, que trocamos, negociamos, jogamos, acrescentamos informações
a todo momento. Não é isto ou aquilo, como buscado pelas interpretações
pautadas em um paradigma ocidental, mas é isto e aquilo, em uma perspectiva de
interação e intercruzamento de sentidos.
No Brasil, o legado cultural negro africano foi consubstanciado de modo
plural e mítico: cultos aos ancestrais, músicas, danças, culinária, vocabulários,
indumentárias etc, que foram incorporados nas práticas dessa terra por nós. Ao
terem sido incorporados, também sofreram, nas diferentes regiões,
acrescentamentos. Segundo Barata (2012, p. 24), “enquanto em Salvador a
47
Muitos pesquisadores exaltam a relação que foi estabelecida entre os santos católicos e os orixás,
como se apenas por esse viés houvesse ocorrido as negociações culturais.
52

manutenção das práticas africanas se deu pelas conversas com os orixás do


candomblé, no Rio de Janeiro as formas analógicas fizeram essa ancestralidade
se manifestar nos territórios sagrados do samba”. A autora continua, afirmando
que “por isso considero o samba e partido-alto as curimbas do Rio de Janeiro”
(BARATA, 2012, p. 24). A pesquisadora segue a ideia de uma cultura afro-carioca
desenvolvida por Karasch (2000). Para ambas intelectuais, as práticas culturais
dos africanos e seus descendentes, delinearam uma cultura ímpar no Rio de
Janeiro. De acordo com Karasch (2000, p.292), os escravos empreenderam, no
pouco tempo que tinham para eles mesmos, costumes que foram sendo
incorporados por essa cidade. Ela afirma que

graças à diversidade étnica da cidade, criaram uma cultura afro-carioca


nova que combinava muitas tradições africanas e luso-brasileiras.
Forjaram “um bando” (umbanda) a partir de muitos grupos, e o que
desenvolveram não era mais unicamente africano ou mesmo luso
brasileiro, mas uma mistura de costumes que aliviava o fardo da
escravidão, transmitia tradições religiosas e contribuía para o desfrute de
uma vida social. Os escravos também abriram sua cultura para homens e
mulheres livres, que se juntavam a eles em comemorações populares
(KARASCH, 2000, p. 292).

Segundo a autora, muitos africanos recorreram à cultura de seus senhores,


ou seja, luso-brasileira, enquanto outros tantos voltassem para as tradições
africanas. De qualquer modo, “os africanos não viviam na cidade sem sofrer
influências dos que estavam a sua volta, mas por outro lado, seus donos não
ditavam todos os aspectos de sua vida cotidiana” (KARASCH, 2000). Nesse
sentido, Karasch (2000, p. 292-293) afirma que,

mesmo dentro dos constrangimentos da vida urbana e apesar de seu labor


constante, os escravos eram participantes ativos da evolução de uma nova
cultura, com linguagem, etiqueta, comidas, roupas, artes, recreação, vida
comum e estrutura familiar próprias. É essa cultura afro-carioca, forjada a
partir das muitas tradições culturais da primeira metade do século XIX, que
continua a dar forma cultural ao Rio contemporâneo, onde o samba ainda
é dançado, instrumentos da África Central ainda são tocados e espíritos
africanos ainda são reverenciados.

Influências constantes marcaram a cultura que se criava pouco a pouco nos


festejos, nos rituais, nos intervalos “forjados” na labuta, enfim, na busca de
encontrar aqui uma prática que fora vivida. Muitas dessas influências, nascidas no
berço da escravidão, sobreviveram (e sobrevivem) até os dias atuais, de forma tão
53

“nossa”, tão familiar, que é difícil senti-las como se fossem de “outros”. Elas estão
em nós. Comunicam-se por intermédio de nossos corpos, de nossos gestos, de
nossos gostos, de nossas vozes e, principalmente, do que somos. Fazemos parte
de uma cultura que abarca a diversidade, que se constitui no dia a dia, no aqui e
agora. Bebemos na fonte da pluralidade cultural, mesmo que muitas vezes não
reconheçamos isso. É por essa razão que as negociações culturais vividas pelos
negros africanos e seus descendentes nos influenciam de modo tão natural. Elas
representam relações/elaborações constituídas por eles nas suas práticas
cotidianas.
Logo, rituais e manifestações das diferentes etnias africanas, muito
provavelmente, intercruzaram-se nos encontros propostos pela grande diáspora
negra e, mantiveram contatos nas irmandades, nas escolas de samba, nas folias,
nas congadas, nos cucumbis e nas comunidades de cultos constituídos nessas
terras. Dessa maneira, por analogias possíveis, traziam à realidade seus ritmos,
seus movimentos, suas práticas, enfim, suas memórias, colocando-as o mais
próximo possível de seus sentimentos e fazeres. Lutando cotidianamente contra a
tentativa de apagamento dos seus traços e atitudes.
Diante dessa perspectiva e embasados pela reflexão de Sodré (2005), sobre
as práticas negro-africanas de engendramento de axé desenvolvidas aqui, é que
São Jorge48 é o santo guerreiro da Capadócia reverenciado nas tradições
católicas, ao mesmo tempo em que pode ser Ogum, o orixá responsável pelas
lavouras, vinculado ao ferro, desbravador, nos cultos de matrizes africanas e,
ainda, ser o vencedor de demandas da umbanda. Do mesmo modo, Oyá é a
deusa do rio Níger, senhora dos ventos, das tempestades, das transformações e,
ainda, é saudada em uma abordagem da cultura branca, ou seja, vinculada a
santa Bárbara.

Moça rica com sua espada luminosa


Sua coroa é cravejada de brilhantes
Umbanda êêê
Umbanda ááá

48
O destaque dado a São Jorge, nessa parte da pesquisa, justifica-se no fato de ser um dos santos
mais festejados no Rio de Janeiro pelas comunidades de cultos negros. Sua expressividade nos
mesmos perpassa pelas festividades/celebrações católicas.
54

É Santa Bárbara rainha do Jacutá49

O dia 4 de dezembro é dedicado a Santa Bárbara nos festejos católicos, mas


também é ritualizado nas comunidades de cultos negros brasileiros à Oyá. É
comum se celebrar, neste dia, nos referidos espaços, o acarajé50 de Oyá. O
terreiro é preparado para que a ancestral venha saudar seus adeptos ofertando-
lhes sua iguaria predileta: o acarajé. Após servi-los um a um a seus fiéis, a
ancestral tem o seu run, que é o momento em que ela dança as cantigas que lhe
são cantadas pelos ogãs51.

Figura 4 – Babalorixá Ricardo de Oxum fazendo seus rituais em frente a Igreja de Santa Bárbara –
Rocha Miranda, Rio de Janeiro – em 04 de dezembro de 2013.

49
Cantiga dedicada à Oyá nos rituais de Umbanda.
50
O acarajé é a comida preferida de Oyá. É preparado com feijão fradinho descascado e pilado,
pimenta, cebola (que devem constituir uma massa homogênea) e frito no azeite de dênde.
51
Homens iniciados em orixá que tem as funções de sacrificar, cantar e tocar para os ancestrais
divinizados. Cada uma dessas funções recebe uma designação específica: axogun é o ogã que faz
os sacrifícios dos animais; alabê é o que canta e toca os atabaques e tem ainda o pedigã que
auxilia o zelador/a na administração da comunidade de culto; aquele que zela para que os rituais
transcorram tranquilamente.
55

Figura 5 - Babalorixá Ricardo de Oxum fazendo seus rituais em frente a Igreja de Santa Bárbara
– Rocha Miranda, Rio de Janeiro – em 04 de dezembro de 2013.

Essa circulação “intercultural” (santo católico–orixá–entidade) nas diversas


práticas da cultura brasileira, na qual se interpenetram novenas e missas, em uma
leitura católica, sacrifícios de animais nos cultos negros brasileiros, velas das
cores que representam as entidades e bebidas nos rituais de umbanda é um dos
exemplos de que cada “interpretação cultural” não é melhor ou mais verdadeira,
mas é um canal de comunicação e interação criado pelo homem, enquanto sujeito
sócio, histórico, político e cultural. Tais interpretações não representam “trocas
culturais”, e sim um jogo com a ordem ideológica (SODRÉ, 2005) de um período
histórico para as permanências culturais. Jogo esse que não se desvincula dos
sentidos, dos afetos e das analogias possíveis.

1.4.2 Um legado

O dia a dia dos escravizados era pautado sobre o poder de seus “donos”. A
imposição por parte dos senhores buscava a desestruturação sócio cultural dos
cativos, uma “tentativa de apagamento” de suas raízes. Um exemplo destas
imposições era o batismo católico aos escravos recém-chegados. Os senhores
acreditavam que, com essa atitude, eles incorporariam os traços cristãos,
tornando-se dóceis e subservientes, abandonando, assim, antigos costumes e
rituais que, na visão ocidental, eram demoníacos. Desde sua chegada a essas
56

terras, os rituais negro-africanos tornaram-se o alvo de “extermínio” por parte dos


senhores. A todo custo eram impostas, aos imigrantes, forçadas atitudes e regras
condizentes com a fé cristã e que estivessem de acordo com “prática da
salvação”. Destacamos, nesse contexto, que a imposição da fé não estava
apartada das relações de poder. Era ele (o poder) que buscava impregnar os
cativos de traços e costumes que não lhe faziam o menor sentido,
desconsiderando suas memórias e histórias e, dessa maneira, enfatizava a política
senhorial. É importante destacar que os escravos “aparentemente” aceitaram o
catolicismo, ou seja, existiu a dissimulação de uma aceitação para poderem
manter, de certa maneira, o culto a seus ancestrais. Pontua-se, também, que a
dissimulação do escravo não passou pelo acaso, mas buscou uma “interlocução”
entre os atores mítico-religiosos: santos católicos e ancestrais divinizados e, ainda,
jogou com o poder posto.
Cabe pontuar que, segundo Foucault (1995, p. 142), “o exercício do poder
cria perpetuamente saber, e inversamente, o saber acarreta efeitos de poder”.
Assim, os africanos faziam parte deste “jogo de poder” que se acreditava estar
somente nas mãos dos senhores que impunham seus novos saberes (a fé cristã)
por intermédio de seus poderes. No entanto, como já afirmamos, os africanos,
mesmo sofrendo essa “tentativa de apagamento” de seus costumes, eram
arraigados de saberes próprios, possíveis e reais; saberes que, como nos afirma
Foucault, eram entrelaçados de poderes que não foram “expulsos” de suas
práticas.
O convívio com a fé cristã não representou o fim de suas práticas
ritualísticas. Não impossibilitou o diálogo/contato com os seus ancestrais. Manter
contato com as práticas religiosas dos senhores possibilitou a sua movimentação
e, consequentemente, suas articulações. Foi na possível aceitação das
imposições senhoriais que relações foram estabelecidas e aproximadas; que
novas possibilidades vieram à tona; que” jogos culturais” tornaram-se possíveis.
Vale destacar que, em muitas circunstâncias, as práticas católicas convivem
nas comunidades de cultos negros brasileiras até os dias atuais. Vários são os
momentos em que há a presença de água benta, missas, rituais e simpatias com
santos católicos. De certo, o transitar dessas práticas se deu no momento das
imposições que citamos anteriormente. Tais ações penetraram os espaços do
57

ritual, e mesmo os que se intitulam “tradicionais e puros” muito provavelmente já


participaram do acarajé de Oyá, na Igreja de Santa Bárbara, no dia 4 de
dezembro, dia que também é dedicado a Santa Bárbara, como já abordamos.

Figura 6 - Fiéis na Igreja de Santa Bárbara no bairro de Rocha Miranda, Rio de Janeiro. Em 4 de
dezembro de 2013. Dia dedicado a Santa Bárbara

Figura 7 - Gruta dedicada à Oyá na loja O Mundo dos Orixás – Rocha Miranda, Rio de Janeiro
58

Outra forte presença das culturas cristãs nas comunidades de cultos negros
brasileiros é a missa do elégùn52. De acordo com zeladores, ela era obrigatória em
muitos candomblés, finalizando os rituais de iniciação. Após o dia da cerimônia de
apresentação do noviço à comunidade religiosa, este se dirigia à igreja para
assistir a missa e, em seguida, encaminhava-se à casa de zeladores da
redondeza para pedir bênçãos. A cerimônia católica fazia parte dos rituais
iniciáticos de tal modo que os noviços eram incorporados por seus ancestrais 53.
Durante os anos que venho pesquisando e dialogando com iniciados em
orixá, notei o quanto é importante para muitos deles a separação dos traços
judaico-cristãos de suas práticas negras. Em alguns casos não admitem sequer
rituais que aproximem ou se justifiquem entre ancestral divinizado e santo católico.
Falam com veemência que “santo não é orixá” e que prosseguir, na atualidade,
com essas práticas significa continuar aceitando as imposições das culturas
brancas54.
Contudo, independentemente de posicionamentos político-religiosos, é
imprescindível perceber que o negro africano procurou analogias entre as diversas
formas míticas (inkisse, orixá e vodun) e os santos católicos; não se tratou de
identificá-las nem de misturá-los, o que seria, de fato, um sincretismo, mas
encontrou, segundo a visão de mundo deles, equivalências mítico-religiosas.
Manter contato com os santos católicos era o contorno possível na realidade posta
em um período histórico e, principalmente, político. A lógica utilizada era pautada
em uma racionalidade própria (já faziam isso no continente africano) e,
consequentemente, diferente da visão ocidental.
Reiteramos que as reelaborações vividas e praticadas pelos escravos
possuíram várias analogias que se respaldavam nas suas mentalidades, nas suas
interconexões e, principalmente, nas condições sociais, culturais, políticas e
religiosas encontradas aqui. Não se pode desconsiderar que elas significaram a
possibilidade do “existir cultural” de vários povos. Mesmo sem exatidão, as

52
Essa prática perdurou até o final do século XX, de acordo com os participantes deste estudo.
53
Vale pontuar que, segundo algumas declarações, nem sempre a presença do iniciado era vista
positivamente por líderes e adeptos católicos.
54
No ano de 1983, líderes de cultos negros brasileiros, mais precisamente algumas Ialorixás do
candomblé baiano, assinaram um documento conhecido por “Manifesto Antissincretismo”, propondo
um rompimento entre a religião negro-brasileira e o catolicismo, bem como uma “reafricanização”
dos terreiros de matriz africana no Brasil.
59

reelaborações possibilitaram a implantação de rituais que aproximavam os cativos


de suas origens, de suas práticas, de seus ancestrais, de sua África. O jogar com
as ambiguidades foi o percurso utilizado pelo negro para migrar as suas
celebrações, seus ritos, suas festividades, mesmo que com outras “roupagens”,
para o cativeiro. As analogias praticadas pelos africanos foram a grande
responsável pelas negociações culturais que implantaram os cultos de matrizes
africanas no Novo Mundo. Banto, nagô e fon – legados sócio, mítico e cultural que
conviveram e comungaram aqui suas práticas.
Em relação ao povo nagô, Sodré (2005, p. 99) afirma que

a cosmogonia e os rituais nagôs não se implantaram no Brasil exatamente


como existiram na África. Houve aqui uma síntese operada sobre o vasto
panteão dos orixás africanos, assim como modificações de que só o
trabalho etnológico poderá dar conta. Em outras palavras, a forma original
(africana) foi reposta, sofrendo alterações em função das relações entre
negros e brancos, entre mito e religião, mas também entre negros e
mulatos, e entre negros de etnias distintas.

Partindo dessa afirmação, é possível elocubrar que as outras etnias


passaram por essa mesma realidade, ou seja, a transposição de seus rituais para
essas terras. Implantaram, também, aqui, instituições paralelas que objetivavam
manter vivas suas culturas. O autor revela que “a originalidade negra consiste em
ter vivido uma estrutura dupla, em ter jogado com as ambiguidades do poder e,
assim, podido implantar instituições paralelas” (SODRÉ, 2005, p. 99). O autor
esclarece, ainda, que a existência paralela de instituições por parte dos escravos
se deu pelo fato de eles estarem submetidos ao poder da cultura dominante
(ocidental), convivendo com as pressões vigentes da sociedade, cujos modelos
estavam pautados na religião católica (SODRÉ, 2005). É diante dessas pressões e
na perspectiva de manterem-se, de certo modo, resistentes e unidos que surgem
as confrarias e as irmandades religiosas. De acordo com Heywood (2010, p. 9),
essas irmandades serviram de incubadoras de diversas religiões e outras
tradições culturais que vieram a ser associadas aos brasileiros.
No Brasil, os cultos de matrizes africanas se difundiram e propiciaram o
surgimento de novos cultos negro-brasileiros, onde o candomblé55 assumiu o

55
O candomblé é dividido, geralmente, identificado pelas representações das nações africanas: nagô,
ketu, efon, ijexá, jeje, angola e congo. Há, ainda, os que se denominaram com terminologias daqui:
caboclo, xangô etc.
60

legado sócio cultural e a identidade afro-brasileira56. A identificação com as


nações africanas da diáspora possibilitou uma (re)inserção na esfera dos cultos
aos ancestrais que para cá vieram com os escravizados. Os descendentes dos
cativos (e na ideia de um continuum) e também seus descendentes, propagaram
seus rituais e suas práticas mítico religiosas por todo o território. Inkisses, orixás,
voduns, mesclaram-se e, por intermédio de seus “filhos”, (re)criaram aqui novos
cultos que procuraram manter vivas às tradições das suas “nações”, acreditando,
assim, na proximidade da sua África mítica.
Cabe destacar que muitas dessas misturas étnicas efetivaram-se nas
irmandades religiosas. Nelas os africanos mantinham vivas práticas rituais,
diálogos com seus ancestrais e reelaboravam, em parte, seu mundo, sobretudo
durante a organização e a realização de suas festas devocionais, momentos em
que conseguiam transcender, mesmo que temporariamente, sua condição de
excluídos sociais. A proximidade e a convivência dos cativos e ex-cativos nas
irmandades, nas escolas de samba, nas folias, nas congadas, nos cucumbis, nas
comunidades de cultos, possibilitou a preservação das suas tradições. Com suas
danças, batuques, ritmos, culinária, que nos festejos e celebrações reassumiam
seus sentidos, eles comungavam e partilhavam suas histórias, ao mesmo tempo
em que veneravam o santo padroeiro da irmandade.
Foi nesse cenário que os cultos negros brasileiros surgiram; nos encontros,
nas adições, nos conflitos, nas disputas, nas intercessões, ratificando, assim, a
importância da coletividade para eles. Desse modo, o candomblé brasileiro
representa uma dessas formas coletivas de se representar as memórias, os
símbolos, os rituais, o vínculo aos ancestrais, enfim, de “reinventar sentidos”.

56
Para Capone (2009), o termo afrobrasileiro apresenta problemas epistemológicos, pois
encontramos, no conjunto do campo religioso afrobrasileiro, cultos como o kardecismo e a
umbanda “branca”, que não se reconhecem como cultos de origem africana, mas que estão
intimamente ligados às modalidades de culto (omolocô, candomblé, umbanda branca etc.) que
reivindicam uma herança africana. Segundo ela, com efeito, veremos que os médiuns circulam de
uma modalidade a outra, em um continuum religioso que vai do polo considerado menos africano
(kardecismo) àquele considerado mais africano (candomblé nagô).
61

2 OS FUNDAMENTOS QUE SUSTENTAM A INICIAÇÃO SOCIORRITUALÍSTICA

A iniciação nos cultos negros brasileiros sustenta as relações que se


estabelecem entre adepto e ancestral divinizado. Ela é a parte fundamental dos
ritos. Para os iniciados que participam desse estudo ela é o alicerce onde se constrói
o elégùn; onde há a fusão entre os atores ritualísticos (iniciado e ancestre); onde
eles se unem. A iniciação é, ainda, o ritual mais complexo e intenso, pois pressupõe
o renascimento.
Esclarecemos que para a construção deste estudo realizamos entrevistas
semiestruturadas com trinta elégùn dos diversos orixás que são cultuados em solo
brasileiro57, ao longo do período proposto para a realização do curso (2012 – 2014).
Entretanto, acentuamo-nos nas participações dos iniciados da ancestral Oyá por ser
ela, um dos pilares de sustentação dessa investigação. Intensificamos que, parte
considerável desse trabalho enfoca as histórias e memórias iniciáticas ritualísticas
deles (elégùn de Oyá) e, ainda, das histórias e memórias dos elégùn dos diversos
ancestrais sobre Oyá.
Nesse sentido, elucidamos que, há, também, as contribuições das conversas,
discussões, debates acerca do assunto e experiências individuais desses vinte e
sete anos de renascimento.

2.1 As linguagens na constituição das identidades ritualísticas

No capítulo anterior dissertamos sobre a origem dos cultos negros no Brasil e


no Novo Mundo e como eles se utilizaram de permanências, trocas e jogos culturais,
além de preenchimento de vazios, para a preservação de suas práticas (BARATA,
2012). A partir do reconhecimento desses cultos, ou seja, da compreensão de que
eles estão presentes nessas terras desde nossa colonização, no período da Grande
Diáspora Africana, faz-se necessário debruçar-nos nas interferências e/ou

57
Reforçamos que os ancestrais divinizados migraram para o Novo Mundo através das memórias de
milhares de homens e mulheres africanos. Seus cultos foram reelaborados, reestruturados,
recriados e, até mesmo, reinventados, por analogias possíveis.
62

participações que eles têm na formação da população brasileira, enquanto um fazer


social, e na constituição das identidades dos seus seguidores/iniciados, enquanto
um universo de ações ritualístico-religiosas. Seus traços, suas características, suas
nuanças, suas práticas, enfim, todos os elementos que de uma maneira ou de outra
se inserem na pluralidade cultural brasileira também compõem o corpus religioso
propagado nos referidos cultos. Nesse sentido, abordar essas interferências no
processo de iniciação dos adeptos dos cultos negros brasileiros é fulcral, pois a
iniciação é a porta de entrada para que o seguidor seja considerado um iniciado em
orixá: um elégùn.
Esses cultos, em sua maioria, pautam-se na oralidade. Fazem parte da
imensa herança deixada pelos africanos para todos nós; heranças trazidas em suas
memórias e nos seus corpos; e, também, de hábitos e costumes que a necessidade
fez com que eles (re) construíssem em território brasileiro. Heranças de suas vidas,
de suas vivências, da continuidade da sua formação humana nessas terras.
Heranças de suas práticas culturais realizadas em suas terras, em suas tribos, em
suas nações. Heranças reelaboradas aqui na labuta nos engenhos, nas senzalas, no
movimento da colonização. A sobrevivência delas por tantos séculos (até os dias
atuais) é alimentada pela linguagem oral. Ela é um dos grandes veículos das
culturas negro-africanas e negro-brasileiras. É pela linguagem oral, da língua falada
e cantada, que a comunicação se torna mais um espaço de aprendizagem. Nessa
perspectiva, o falar e o cantar constituem-se no verbo. Nos cultos de descendência
africana as palavras têm um grande poder e, consequentemente, saber
(FOUCAULT, 1995). Elas interagem com os seres e as coisas. As palavras são
mantidas e envolvidas por um poder relacionado com a magia do já vivido, o mítico,
o ritual, o ancestral e, principalmente, a consciência e o pensamento. O pensamento
também é apresentado pelas palavras, ou seja, pela linguagem oral. Para Ong
(1998, p. 123), as pessoas pensam de acordo com a maneira que possuem para
expressar suas vivências, seus modos, seus agires, de acordo com sua cultura. A
linguagem oral, segundo o autor, é um dos caminhos (assim como os sons, os
gestos, as danças) que leva a construção do pensamento. Logo é a
linguagem/pensamento que também se torna a responsável por reviver, reativar,
renascer: histórias vividas, histórias contadas, histórias cantadas, histórias
63

encantadas, histórias saboreadas, histórias que exalam seus cheiros pelo ar,
histórias sagradas... histórias.
Nesse contexto, elencamos a palavra falada (oralidade) como um dos
caminhos de interação e identificação dos seguidores às suas práticas, às suas
casas de santo, às suas “nações”58, às suas comunidades de terreiro; às suas
comunidades de cultos negros, ao candomblé etc. É por intermédio das linguagens
oral e não oral que se inicia a relação com novos termos, novos nomes, novos
gestos, novas representações, novos contatos com os deuses e ancestrais, com
verdades antes desconhecidas ou desconsideradas, com os espaços e os
costumes59.
De acordo com Salami (1997, p. 44), nos cultos de origem africana, “a
linguagem oral alcança a dimensão de elemento vital, componente da
personalidade, da cultura e da história, constituindo-se em processo que se
desdobra de instâncias muito abstratas às práticas sociais”. Cabe esclarecer que a
oralidade, a palavra, a voz, os sons, a performance, os gestos, os cheiros,
representam uma parcela das linguagens que permeiam os ritos iniciáticos. Assim,
observamos que, segundo o pesquisador, a palavra oral ocupa um lugar de
destaque: o de “elemento vital”. O verbo60 participa ativamente mediante cânticos,
rezas, contação de histórias dos mais velhos, dos antepassados e da comunidade.
Logo, ela se constitui no iniciado; no seu ser, agir, produzir, pensar, falar, contar,
cantar, recontar, transmitir, e principalmente, realizar. Ela apresenta o mundo mítico
e sagrado ao iniciado; “esculpe a sua alma” (HAMPATE BÂ, 2010, p. 174).

58
No Brasil, os cultos negros brasileiros, em sua grande maioria, são vinculados às nações dos
africanos que disseminaram aqui os seus cultos e práticas rituais, quando vieram forçosamente para
o trabalho escravo. Desse modo, Ketu, Angola, Jeje, Efon, são algumas “nações” que se
presentificam nos espaços de cultos negros brasileiros.
59
Vale, mais uma vez ressaltar que, os africanos que para essas terras vieram entre os séculos XVI e
XIX, em sua grande maioria, utilizavam-se da palavra oral para se situar no Novo Mundo. Nessa
perspectiva, pautarmos a discussão sobre a constituição das identidades dos iniciados nos cultos
negros brasileiros, primeiro, na palavra oral, é fundamental, sendo ela a grande responsável pela
transmissão de conhecimentos milenares. Esclarecemos, ainda, que, o fato de priorizarmos a
palavra oral como fonte de conhecimento para atingirmos a finalidade proposta, não significa total
ausência de escrita nos referidos cultos e, muito menos, analfabetismo.
60
VERBO (de acordo com Michaelis) sm (lat verbu) 1 Palavra, expressão, elocução. 2 Gram A
palavra que exprime, por reflexões diversas, o modo de atividade ou estado que apresentam as
pessoas, animais ou coisas de que se fala. 3 Palavra que significa alguma ideia extraordinária e de
grande importância. 4 Tom de voz. 5 A parte principal de uma coisa.
64

A linguagem oral se presentifica nas ações do iniciado enquanto sujeito, ao


mesmo tempo em que o constitui enquanto iniciado/sujeito. Ela envolve todas as
relações travadas pelo iniciado; ela é um bem. Está nas suas práticas ritualísticas,
sociais, políticas; está em suas culturas. Quando citamos a linguagem oral,
remetemo-nos, também, à voz e ao papel fundamental que ela assume no “embalar
das palavras”. Linguagem oral e voz estão nos cultos negros brasileiros de modo
intenso e constante. São as vozes entoadas nos cânticos, nas rezas, nas ladainhas,
na entrega das oferendas que ativam as histórias e as memórias, que ativam o
corpo, assumindo, assim, a sua “carnalidade” (ZUMTHOR, 1997, p. 43-44).
A voz integrada ao corpo se constitui em movimento, em interação, em
representação, em diálogo com o ancestral e vida. É a concretude da voz, segundo
Zumthor (1993, p. 21), que afeta os participantes dos cultos negros e auxilia a sua
interação com o contexto proposto. Para o autor, a voz é concreta, enquanto a
oralidade é abstrata (ZUMTHOR, 1997). Nesse sentido, ele prefere a palavra
vocalidade, como representação concreta da voz, à oralidade (ZUMTHOR, 1997).
Hampate Bâ (1979, p. 48), em seus estudos, enfatizou a importância da
linguagem oral, da palavra falada nas culturas africanas. Para ele, a palavra é a
“grande escola da vida”. Nela o material e o espiritual comungam, assim como nas
linguagens não orais. É no celeiro das linguagens que se encontram religião,
ciência, cultos, história, consagrações, festejos, ritos, rodas, nações, relações,
origem. As linguagens trazem em si pensamentos, mensagens, ideias, movimentos,
gingados, formas, representações, identidades, identificações e, principalmente, as
histórias vividas que habitavam as memórias e os corpos de milhões de homens e
mulheres africanos. Elas acompanham o homem pelos tempos.
É Hampate Bâ quem cita que “na África, cada velho que morre é como se
uma biblioteca inteira fosse incendiada”. Percebemos nesse pensamento o quanto
as linguagens agregam conhecimentos e saberes por toda uma existência.
Conhecimentos que são elaborados e reelaborados na prática, no agir e no realizar.
Nesse contexto, percebemos o quanto a sabedoria apreendida no exercício dos
conhecimentos se remete à tradição, ao respeito aos saberes dos mais velhos, à
valorização da sabedoria constituída por toda uma vida. É dessa maneira que, nos
espaços de cultos, os mais velhos são tratados como os sábios que ensinam suas
aprendizagens aos noviços; e por terem seus conhecimentos e sabedoria
65

reconhecidos, recebem, além do respeito que é fundamental nas relações que se


travam, homenagens e reverências nos momentos de cultos e de festejos. São
destacados por suas vivências. Cabe esclarecer que nas comunidades de terreiro
nem sempre esse “mais velho” significa, necessariamente, o tempo de vida do
adepto – o tempo cronológico – mas sim seu tempo de iniciação em orixá, o seu
tempo de convivência e partilhamento com seus pares no espaço de culto. Assim,
além de se valorizarem e reconhecerem as experiências vividas pelos mais velhos,
legitima-se, também, o tempo de iniciação e de prática ritual do seguidor. É por esse
motivo que nas comunidades de cultos negros encontram-se crianças e
adolescentes que, na estrutura ritualística, estão à frente de adultos e, em alguns
casos, até mesmo de idosos.

Figura 8 - Ekedi Vitória d’Oyá – de 4 anos de idade e o mesmo tempo de iniciada – no Ilê Ase Orisa
Ogum Iemanjá a ti Oyá.
66

Figura 9 - Ekedi Vitória d’Oyá – de 4 anos de idade e o mesmo tempo de iniciada – no Ilê Ase Orisa
Ogum Iemanjá a ti Oyá.

O tempo de iniciação é extremamente valorizado, pois acredita-se que a vida


no santo, ou seja, a vida pautada sob a ótica dos cultos negros brasileiros, é uma
fase do renascimento, ou melhor, o nascimento simbólico para uma nova vida.
Renasce-se no ancestral divinizado, logo, essa nova vida é a que faz sentido dentro
dos espaços de culto, e não a vida mundana. Dessa maneira, acredita-se também
que o lidar do iniciado nos ritos e suas práticas diárias o constitui enquanto um
sujeito ritualístico e interligado ao seu ancestral divinizado. Seu tempo de iniciação
determina a sua participação, ou não, em determinados rituais. Desse modo, seus
conhecimentos se ampliam conforme sua atuação no protocolo das comunidades de
cultos. Assim como uma criança aumenta o seu vocabulário nas relações que trava
no seu real, apreendendo novas palavras e, consequentemente, novos saberes, o
iniciado também amplia seu vocabulário e seus conhecimentos nos ritos, e
consequentemente com seus pares.
Enfatizamos em alguns momentos deste estudo o destaque à palavra oral
sem que tenhamos a intenção de um confronto entre a linguagem oral e a linguagem
escrita nos cultos negros afro-brasileiros.
67

[...]A escrita é uma coisa e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber,


mas ela não é o próprio saber. O saber é uma luz que está no homem. É a
herança de tudo o que os ancestrais puderam conhecer e nos transmitiram
em germe, assim como o baobá está potencialmente contido em sua
semente (...) Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e
escutar com tanta atenção que todo acontecimento se inscrevia em nossa
memória como cera virgem” (HAMPATE BÂ, 1993).

Tal destaque é por acreditarmos que a oralidade está indissociavelmente


ligada ao homem e à natureza, à vida e ao mito, ao movimento dos corpos, ao
sagrado e ao profano. Assim, acentua-se de maneira significativa nas práticas
socioculturais dos iniciados, enquanto seres ritualísticos, seres que convivem entre o
homem e o ancestral divinizado (Orixá). Ressaltamos, também, que a tradição oral
foi, durante um longo período, a característica que mais acentuou as discussões
sobre a História Africana. Segundo Bonvini (2010 apud BARATA, 2012, p. 36)),

[...] Não há dúvida de que existiu e existe ainda hoje no Brasil uma tradição
oral bastante viva, de origens francamente africanas e que constitui uma
verdadeira herança de conhecimentos de todas as ordens, transmitidos de
boca em boca através dos séculos, apesar de um contexto particularmente
hostil e de um desenraizamento brutal devido à escravidão. Essa herança
de conhecimento de todas as ordens é transmitida por inúmeras ‘palavras
organizadas’: fórmulas rituais; rezas; cantos; contos; provérbios; e
adivinhações, algumas em línguas africanas, outras, as mais numerosas,
em português. Por meio dessas ‘palavras’, uma ‘alma’ africana sobreviveu
e vive ainda no Brasil

Essa oralidade tão forte, tão alicerçada está presente e viva nos espaços de
cultos negros brasileiros. Ela permeia os rituais, seja na orientação de uma dança,
seja no ensinar o tempero da comida ou, simplesmente, nos diálogos entre os pares.
A linguagem oral, segundo Zumthor (1993, p. 18), não traz a obrigatoriedade de um
contato com a escrita, ou seja, ela pode ser “primária e imediata”. Nas comunidades
de cultos, a oralidade assume o lugar de trânsito por onde circulam as práticas, os
ritos, os costumes, por onde se celebra a vida. Ela é locus das aprendizagens da
nova vida. É também na oralidade, no verbo, que o elégùn se constitui, faz-se
homem, forma-se e se informa. Ela é ventre, colo, berço e escola (HAMPATE BÂ,
1979) por onde a formação humana do iniciado se dá. Na mesma forma, Barata
(2002), ao se referir a permanências e deslocamentos das matrizes africanas no
samba carioca, afirma:

os saberes de um infinito número de sambistas são orais, baseados na


narrativa e apreendidos sem qualquer registro escrito, passados de
68

geração a geração. É um saber apreendido com a prática, através do


diálogo, onde a capacidade de memória independe da escrita (que é algo
externo ao sujeito) (BARATA, 2012, p. 4).

Através das palavras da autora, é possível inferir que, assim como os saberes
dos sambistas cariocas circulam e se legitimam sem a menor necessidade do
registro escrito, pois são transmitidos na sua própria dinâmica, da mesma forma os
saberes dos adeptos dos cultos negros brasileiros se pautam. Tais saberes criam
sentido no encontro das práticas dos sujeitos com os seus sentidos. Barata (2012, p.
14) alega, ainda, que

[...] o saber proveniente das sensações, dos sentidos e do fazer é


desvalorizado ou, pior, não é considerado saber. Todo o conhecimento que
se tem por outros meios que não a lógica, não é considerado válido,
pertence ao nível da opinião, do senso comum, do sentido, das emoções.
O saber considerado provém de uma concatenação lógica do pensamento,
de uma capacidade de racionalização onde são encontrados os critérios da
verdade e da falsidade.

Ao que se refere aos cultos negros brasileiros, a palavra oral é locus de


constituição de saberes/aprendizagens, é elemento de origem divina, força
fundamental emanada do próprio Ser Supremo 61, é, ela própria, instrumento de
criação (SALAMI, 1997, p. 48). Está impregnada de axé, de força ativa, de poder de
atração, de conhecimentos. É nesse contexto que a palavra “vive” nos cultos até os
dias atuais. Ela está presente em todos os momentos ritualísticos: na consagração
das folhas, dos animais, dos alimentos; nas evocações dos ancestrais, na exaltação
dos feitos dos antepassados, nas ladainhas, nos cânticos, nos orikis – poemas de
louvação (Cf. SANTOS, 1986) que geralmente retratam os feitos dos ancestrais
divinizados em sua existência humana; nas aduras – rezas específicas destinadas
aos ancestrais divinizados; nos ibas – formas de saudações aos ancestrais
divinizados; nos orins – cânticos sagrados de louvor aos ancestrais divinizados; nos
itans – histórias ou mitos dos ancestrais divinizados; nos ofós – palavras proferidas
pelos iniciados nos cultos (SANTOS, 1986); nas rodas, nas reformulações das
práticas diárias, como no simples ato de se alimentar, banhar-se, acordar e dormir
etc. Não há ritual sem linguagens, sem expressões orais e do corpo. Não há

61
Salami reporta-se a Olodumarê, sempre como Ser Supremo (chamando-nos a atenção com as
iniciais maiúsculas).
69

iniciação sem a representação do verbo e do gesto, sem a voz e sem a ginga dos
corpos, sem afetar os sentidos.
Dessa maneira, o ritmo dá vida às palavras; por intermédio dele elas criam
forma. Não basta proferi-las simplesmente, é preciso senti-las, vivê-las, incorporá-
las. Hampate Bâ (1979, p. 57) nos diz que “a fala deve reproduzir o vaivém que é a
essência do ritmo”. Ong (1998) apresenta os sons como suporte que embala as
palavras. Ambos os autores reconhecem a importância do som e do ritmo como
elementos que tornam vivas as palavras. A palavra falada/cantada é movimento.
Esse movimento se dá na comunicação, no contato, no diálogo. Ele é estruturado
em todo o processo ritualístico.
Desde o amanhecer até a chegada da madrugada o noviço é envolto pelos
ritmos das vozes de todos que participam da sua iniciação, pelos ritmos dos
movimentos de seus corpos, pelo ritmo de suas reverências nos rituais e no lidar da
rotina. O iniciado é “gerado” através dos movimentos dos ritmos: seja nas rezas, seja
nos cânticos, seja nas danças, seja no alimento sagrado, seja no conhecer e se
apropriar das “ciências” das ervas. Quanto mais movimento mais possibilidade de
aprendizado, maior manutenção de memória e de interação com o novo universo
mítico, mais o seu corpo falará e, consequentemente, estará como parte da
dinâmica do ritual. Entendemos que é na reprodução do que se ouve e do que se
observa que se exercita as novas palavras, os novos sons, os novos ritmos, as
novas entonações; que se apreende um vocabulário antes desconhecido, que se
apropria de histórias e verdades seculares, que o corpo se envolve e se embala nas
danças, nas rodas.
Zumthor (1993, p. 78) afirma que “nossos sentidos, na significação mais
corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as ferramentas de registro,
são órgãos de conhecimento”. Embasados pelo o autor, reafirmamos que, para o
elégùn manter-se como parte integrante e ativa dos/nos rituais, é necessário ter
seus sentidos interagindo a todo o momento com esses rituais. Repetir, reproduzir,
refazer, exercitar são algumas ações que estão na dinâmica dos rituais e que
buscam a melhor execução do proposto no momento por parte do adepto. A
repetição do “já-dito” pelo ouvinte\falante, segundo Ong (1998), busca garantir a
transmissão das culturas ritualísticas às futuras gerações. O autor continua,
70

afirmando que “o conhecimento tem que ser continuamente repetido para que as
novas gerações possam, ‘arduosamente’, aprender” (ONG, 1998).
Na rotina das comunidades de cultos, a repetição e o exercício do ouvir são
possibilidades para que o iniciado constitua o seu conhecimento. Os mais velhos no
culto repassam dia a dia os conhecimentos primordiais para que o iniciado se intere
e integre no contexto posto, além de objetivar que ele se aproxime do seu ancestre
divinizado. Aos poucos, os ebômis62 vão aumentando o repasse de informações.
Tais conhecimentos, em sua maioria, são repassados no devir, na prática, na
realização dos ritos. Em outros momentos, faz-se necessário uma ação quase que
didática. Alguns adeptos ficam com a responsabilidade de estruturar parte dos
conhecimentos/aprendizagens como em uma aula, havendo, até mesmo, a
necessidade de registros escritos em determinados momentos. No entanto,
ressaltamos que é na capacidade de memorização, aqui entendida como registrar
na mente, que os mais velhos fixam os conhecimentos nos adeptos. Além desses
momentos em que há quase uma aula formal, é também nos rituais que são
organizados no decorrer de todos os dias de reclusão e que acontecem ainda de
madrugada, antes do clarear do dia, que o iniciado tem seu aprendizado 63. É
possível conjecturar que, seja talvez, acreditando que a mente terá maior
predisposição para reter as informações repassadas nas histórias contadas e
cantadas, por estar mais descansada após o seu sono64. Ainda de acordo com Ong
(1998), as culturas orais não gastam energias com novas especulações: a mente é
utilizada predominantemente para conservar, para manter a proximidade com o
“mundo vital”.
Para os praticantes dos cultos, a cabeça é denominada “ori” e é assim que os
iniciados referem-se às suas cabeças: “meu ori”. A importância de ori está presente
nos cultos negros brasileiros, independentemente das “nações africanas” as quais
eles estejam interligados; seja nagô, jeje, efon, angola etc, o ori é o primeiro a ser
cultuado. Ele é considerado um orixá. É o primeiro a ser louvado nos cultos negros

62
Iniciados que possuem mais de sete anos de iniciação, com suas devidas obrigações/oferendas
rituais, em dia, ou seja, o indivíduo pode ter quinze anos de iniciado, mas se suas oferendas rituais
encontram-se atrasadas ele não é, ainda, um ebômi.
63
A utilização da madrugada para os rituais, na grande maioria das vezes, é para se evitar a quentura
do sol. Como a utilização da simbologia está arraigada nos referidos cultos, mesmo nos dias
nublados ou chuvosos, respeita-se os horários do sol.
64
Deixo claro que essa é uma percepção desse estudo.
71

brasileiros; ori é o portador de axé, é quem direciona o destino do seguidor, “é quem


nos permite à vida; é quem veio conosco para o mundo”, segundo os relatos dos
entrevistados. Percebemos neles a crença em ori/cabeça como um elemento
supremo do corpo, envolto pelo sagrado. Sua supremacia está posta nos cultos.
Tanto que, ele, ori, é reverenciado antes mesmo que o ancestral divinizado, na
cerimônia do Bori, que significa louvar a cabeça, dar oferendas à cabeça. O Bori tem
a função de preparar o ori para que o ancestral possa receber satisfatoriamente as
oferendas que lhe serão dadas. É nessa cerimônia que o ori é louvado, estando,
assim, apto para consentir que o ancestre receba as oferendas que lhe serão
destinadas.

Figura 10 - Apresentação de elégùn à comunidade do Ilê Ase Ogun Iemanjá a ti Oyà


72

Figura 11 - Elégùn de Oxum e Elégùn de Logun Edé

Figura 12 - Elégùn de Oxum

Assim, o ori/a cabeça, como materialização/representação física da mente, é


extremamente valorizado(a), cultuado(a), reverenciado(a) nos cultos negros
brasileiros. É onde habitarão as aprendizagens para a nova vida, onde as novas
73

palavras circulam e se encaixam, formando o quebra-cabeça dos seus novos


conhecimentos, onde os pensamentos se estruturam, onde as sensações são
elaboradas. É também nele(a) onde as memórias fazem morada, onde se tornam
força vital e “depósito do sagrado”. Desse modo, a cabeça é exaltada como parte
principal do ritual. É ela quem permite que o homem/mulher se constitua em um
elégùn. Grande parte dos rituais iniciáticos é realizada nela (raspagem dos cabelos,
incursões, lavagem com ervas específicas, sacríficos de animais e de frutos
sagrados, a introdução do hálito do iniciador etc.). Cabe esclarecer que essa relação
de importância assumida pela cabeça não passa pelo viés de verdade/racionalidade
repassada pelas culturas ocidentais. Nos cultos negros brasileiros o seu destaque se
dá por outro viés. Ela é a comandante do corpo, é mítica, é um presente do criador a
cada um de nós seres humanos, independentemente de praticarmos os cultos/ritos;
é o locus onde o ancestral divinizado se vincula; ela é vital. A cabeça/ori é única.
Não há, na concepção ritual dos cultos, ninguém que possua cabeça igual à de
ninguém, independentemente do ancestral divinizado/orixá. Encontramos no
universo da comunidade de cultos vários elégùn de Oyá, assim como dos outros
ancestrais, mas nenhum com o mesmo ori/cabeça.
O Babalawo Ifafunké nos contou um itan que retrata a importância de ori para
o homem/a mulher. Nele Orumilá questionaria “quem entre as divindades poderia
acompanhar seu devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar”. De
acordo com o itan retratado pelo Babalawo, ocorre um diálogo entre Orumilá e as
divindades. Vejamos o trecho destinado à Oyá:

... Ifá, a questão é: quem entre as divindades pode acompanhar seu


devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar.
Oyá respondeu que ela poderia acompanhar seu devoto em uma longa
viagem sobre os mares sem retornar.
Ifá perguntou: – O que você fará se depois de uma longa caminhada
andando, andando e você retornar para Ira, casa de seus pais, e eles lhe
matarem um gordo animal e lhe derem um pote de pudim de milho?
Oyá disse: – Depois de comer até estar satisfeita, eu retornarei para minha
casa.
Oyá disse que não poderia acompanhar seu devoto em uma longa viagem
sobre os mares sem retornar.

Esse diálogo segue com as outras divindades do panteão africano: Exú,


Ogum, Oxossi, Xangô, Omulú, Oxalá, dentre outras. Segundo o itan, todos se
renderiam às oferendas apresentadas e não prosseguiriam a viagem com o seu
74

devoto. De acordo com o itan, Ifá diz que “só ori é quem pode acompanhar seu
devoto em uma longa viagem pelos mares sem retornar [...] todas as coisas boas
que eu tenho na Terra são para ori que eu louvarei”. Entre os relatos apresentados e
a exposição desse itan, é possível perceber que, para os adeptos dos cultos negros
brasileiros, a cabeça é fundamental no ritual iniciático. Ela é a matriz de todo
processo. Sem a sua autorização, nenhuma oferenda e nenhum sacrifício é
realizado ou até mesmo aceito pelo ancestral. Ainda, segundo o Babalawo Ifafunké,
“nenhum Orixá abençoa o homem sem o consentimento de seu ori”.
Nas histórias contadas pelos participantes deste estudo é possível perceber
de modo muito claro o quanto o ori é quem determina os encaminhamentos das
oferendas que são destinadas aos ancestrais. O sim ou o não, o afirmativo ou
negativo dependem de seu consentimento, de sua aprovação. Na fala do Babalawo
sobre o “consentimento de ori” repousam muitas histórias reais vividas pelos
seguidores dos cultos negros brasileiros. Repousa, também, a minha história. Em
minhas oferendas65 de 14 anos de iniciação, dada no ano de 2010, quando eu já
estava com 23 anos de iniciado, senti na pele a negativa do meu ori. Como sempre
faço em minhas oferendas, todos os ancestrais de meu carrego 66 receberam
oferendas, no entanto, no dia planejado para as oferendas do ancestral Oxum,
alguns imprevistos aconteceram e um grande atraso ocorreu. O ritual não foi
realizado no momento previsto, mesmo com todas as comidas feitas e com todos os
materiais à disposição para a sua concretização, incluindo os animais para o
sacrifício. Meu Babalorixá iniciou as oferendas como de costume: com o ibá e o jogo
de obi67. Para a minha surpresa e de todos os presentes, meu ori não autorizou o
prosseguimento do ritual, ou seja, não alafiou68. Diante da recusa, o meu Babalorixá
iniciou o diálogo com meu ori para entender o porquê da negativa e, a partir das
respostas dadas no jogo do obi, iniciou as negociações/os acordos. Após horas
entre elaborações de perguntas e respostas negativas, meu ori determinou que as
65
Oferendas é expressão utilizada para representar o período de renovação de obrigações iniciáticas.
Algumas pessoas utilizam também o próprio termo “obrigação”.
66
Expressão utilizada para representar o conjunto dos ancestrais divinizados que estão assentados
para o elégùn. Alguns iniciados referem-se como carrego de santo.
67
Fruto africano utilizado para a comunicação com os ancestrais. É importantíssimo nos rituais de ori
e dos ancestrais; serve de alimento ao iniciado no momento de reclusão e, também é partilhado por
todos participantes das oferendas/rituais.
68
Aláfia expressão africana que significa: “tudo positivo”, “favorável”, “caminhos abertos”, “sim”.
75

oferendas acontecessem no raiar do dia seguinte. Cabe ressaltar que meu relato,
assim como os de outros elégùn, não se respalda na racionalidade científica, no
crivo das verdades universais, mas nos mistérios, nos segredos, nas seduções
culturais (SODRÉ, 2005). Origina-se em práticas milenares que cruzaram os
oceanos e aportaram nessas terras, abrigando-se em várias comunidades de
terreiro que, também, constituem esse Brasil.
O itan retratado anteriormente nos aponta para a importância de ori; a
importância de se cuidar de ori para os seguidores desses cultos. De acordo com o
itan, ori acompanha o homem de seu nascimento até a sua morte. Ele jamais os
abandona. Ele foi o primeiro a ser criado. Para Verger (2002, p. 208), “ori é, pois, um
princípio vital que institui a imortalidade do homem”. Ori/cabeça é a parte principal
do corpo humano nos cultos negros brasileiros. Nele/a encontram-se as funções
vitais. É encarregado, ainda, de sediar a percepção, através dos cinco sentidos,
além de ser a morada da razão e da emoção. Por seu grau de importância, nas
esculturas africanas, a cabeça é desproporcionalmente maior que o corpo.
Vale pontuar, novamente, que a visão apresentada não se sustenta nos
pilares das culturas ocidentais, em que um único tipo de razão é o caminho da
cientificidade, da verdade única, da centralização dos conhecimentos, das
inteligências intelectualizadas. No entanto, ori é o pilar das razões das várias nações
africanas, ele é quem comanda o corpo em uma intensa comunicação; é quem
imprime no corpo as possibilidades de aprendizagens; desperta as memórias para
os registros da vida; é quem permite a constituição de sujeitos ritualísticos. As
aprendizagens são registradas no ori. Logo, a iniciação é permitida por ori, assim
como é sustentada por ele. Nesse contexto, o falar um novo dialeto, o dançar novas
danças, os novos gestos, os novos sabores e apreender novos conhecimentos
passam pelo ori. As linguagens, desse modo, constituem-se em ação. Através de ori
elas são registradas por todo o corpo e nas memórias. No encontro de pares (de
iniciados) as linguagens se ampliam e identificam-se. Eu tenho as linguagens dos
meus “mais velhos” em mim, assim como os meus “mais novos” têm minhas
linguagens neles. No encontro elas se complementam e movimentam
conhecimentos de geração a geração. Nesse sentido, as linguagens têm a
perspectiva de socializar o ori no contexto cultural da comunidade de terreiro/cultos,
além de propiciar constantes aprendizagens.
76

Nessa concepção, as linguagens então se revestem de um poder


indispensável na elaboração do iniciado no ser-sujeito. A partir dos rituais iniciáticos
elas se fazem intensas e verdade para o elégùn, engendrando o ancestral e o social
e estruturando, desse modo, os conhecimentos necessários para a nova vida.
Percebemos, em grande parte dos rituais nos cultos negros brasileiros, o destaque à
linguagem oral. A palavra que é proferida precisa ser pensada, elaborada, pois ela é
revestida de poder de atração. Lidar com o poder das palavras é um grande desafio
que se apresenta para o noviço, pois, ao mesmo tempo ela pode “criar a paz quanto
pode destruí-la” (HAMPATE BÂ, 2010, p. 173). Por ser viva, a palavra é constituída
de energias, positivas e negativas, de poder ativo, e ao ser proferida é preciso
prudência e sabedoria. Assim como pode criar e conservar, da mesma maneira tem
o poder da destruir, e com esse antagonismo a cautela é a melhor companhia nos
cultos negros brasileiros. Bâ (2010, p. 173) reafirma essa ideia quando nos diz que
“a tradição, pois, confere a palavra, não só um poder criador, mas também a dupla
função de conservar ou destruir. Por essa razão, por excelência, é o grande agente
ativo da magia africana”.
Cabe ressaltar que as linguagens, orais e não orais, nos cultos negros
brasileiros são a mola mestra que dinamiza toda a sua estrutura. Elas não se
reduzem à transmissão de mitos e lendas, como fora afirmado por longas décadas
pelas culturas ocidentais. Contraditoriamente ao repassado por anos a fio, as
linguagens são o próprio ser nos cultos que se pautam nas tradições negro
africanas. Elas são portadoras da verdade; não a verdade apresentada pelos
colonizadores europeus a essas terras: única, excludente, hierarquizada. Mas a
verdade do vivido, do feito, do encantado e seduzido (SODRÉ, 2005), do realizado
por homens e mulheres que se mantiveram com e nas linguagens; e esta foi a
herança deixada aos seus descendentes.
Nesse contexto, os elementos que compõem o mundo da oralidade negra
brasileira sustentam as tradições religiosas, assim como alicerçam muitos costumes
e hábitos do povo brasileiro. A pluralidade vivida e sentida nas culturas originadas
em solos africanos encharcam cotidianamente os cantos desse país de sons,
sabores/temperos, ritmos, gingados, cheiros. Seja em um jogo de capoeira, seja em
um desafio de repentistas, no maculelê, nos afoxés, nas barracas de acarajé, nas
rodas de samba, nas rodas de candomblé, na consulta aos búzios, no trançado dos
77

cabelos, nas estampas coloridas, enfim, nas ações constituídas dia a dia por milhões
de homens nesse imenso Brasil. Como citado no capítulo anterior, as interferências
linguísticas dos povos africanos na formação do nosso povo em seu falar, contar,
cantar, brincar, rezar, são significativas (CASTRO, 2001, p. 74). No que tange às
práticas nos cultos negros brasileiros, a oralidade é um grande alimento que viabiliza
sua permanência ao longo de séculos até os dias atuais, sendo permeada por
acordos culturais, por reelaborações, por descontinuidades, por adaptações e por
jogos de poder (BARATA, 2012) que ratificam a sua característica de circulação
(ONG, 1998).
Destacamos ainda que é na roda das cerimônias das comunidades de cultos
negros que as linguagens tornam-se mais intensas e vivas. Ela é um agente
facilitador de aprendizagens para o noviço, pois, junto aos seus pares ele se utiliza
de todas as linguagens apreendidas por ele. A comunhão favorece o culto aos
ancestrais. O encontro das energias de todos que compõem a roda e a cerimônia,
torna-se um imã que atrai a presença dos ancestres divinizados em seus elégùn.
Cantar, dançar, reverenciar, aclamar, gesticular, dentre tantas outras ações,
constituem a atmosfera das linguagens ritualísticas no momento da roda. Ela é um
espaço vivo de aprendizagens constantes para os seus seguidores. É na roda que
os iniciados têm a oportunidade de expor suas aprendizagens. É na execução das
suas práticas ritualísticas no momento da roda – dançar, cantar, saudar, reverenciar
– que ele legitima os seus saberes e, consequentemente, busca ocupar o seu
espaço de poder. Relembramos que, segundo Foucault (1995), não há dicotomia
entre saber e poder. Ambos, de acordo com o autor, vivem em constante tensão.
Assim, a roda, além de ser um espaço em que os saberes ritualístico do elégùn são
expostos aos seus mais velhos, aos seus pares e a todos que assistem à cerimônia,
ela também é uma arena tensa nas disputas de poderes.
78

Figura 13 - Roda de Oxum no Ilê Ase Orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá em maio de 2014

Figura 14 - Elégùn interagindo com a ancestral divinizada Oxum no seu Ipeté no Ilê Ase Orisa
Ogum Iemanjá a ti Oyá em maio de 2014.

Até aqui buscamos apresentar as linguagens e sua constante interação com o


ori/cabeça, como o chão onde se edificam as aprendizagens e os novos saberes do
79

iniciado. Acreditamos, desse modo, na importância delas nas tradições repassadas


e, constantemente reelaboradas, nos cultos negros africanos e negros brasileiros
como locus ativo de apropriação de conhecimentos e de constituição de identidades.
Por mais enfadonha que seja, em alguns casos, a discussão acerca da legitimidade
e autoridade das tradições oral e não oral como fontes reais de saber é fulcral para o
estudo que se apresenta. Assim, reafirmar sua importância nos espaços de cultos
negros brasileiros, significa assumi-la como alicerce na formação cultural do Brasil e,
ainda, como espaço coletivo, de práticas totalizantes e totalizadoras (BARATA,
2012) das culturas negro-africanas e negro-brasileiras.

2.1.1 Oruko oriki – o nome que identifica o elégùn

Para se entender a importância do nome nos cultos negros de origem


africana/iorubá em sua reposição brasileira, é preciso não se desvincular da sua
concepção de homem enquanto um ser natural e social. O nome é a palavra que,
em todo momento, o indivíduo escuta e internaliza. Ele é o chamamento da sua
identificação. E é o primeiro elemento de sua identidade. Para os praticantes desses
cultos o nome é sagrado. Ele tem seu significado constituído no processo iniciático
e, a partir daí, acompanha o elégùn até mesmo após a morte 69. Segundo Leite
(2008, p. 72), em relação às culturas negro-iorubá, “o nome é, assim, mais um
elemento vital configurador da personalidade e a sua natureza social contribui
decisivamente para acrescentar uma dimensão histórica fundamental no indivíduo”.
Pois, através do nome, o africano se insere no mundo – real, mítico, sagrado –,
assim como nos cultos aqui desenvolvidos o nome é o reconhecimento do indivíduo
como pertencente àquele grupo ou àquela comunidade. Para Pordeus Jr. (1999, p.
166),

“‘se fazer’ um nome a si mesmo – da parte de um herói ou da parte de um


povo – é reivindicar seu direito à existência, afirmar a eternidade de uma
presença entre as comunidades humanas e ao olhar dos deuses, é o que
designa entrar na história”.

69
Nos cultos negros, o nome iniciático, o oruko oriki, é um bem. Ele se presentifica nos rituais,
mesmo após a morte do elégùn, nas rezas e cânticos, os oruko oriki dos antepassados são
mencionados, ou seja, ficam na posteridade.
80

Nesse sentido, “fazer um nome” é abrangente, é macro, ao mesmo tempo em


que é um processo constitutivo. Esse “fazer” transita nos tempos: recorre ao
passado, delimita o presente e auspicia o futuro. O autor acredita que “o nome
confere poder [...] é um apelo à vida” (PORDEUS JR., 1999, p. 166). Ele atua no
presente, mediante ações identificadas do indivíduo, ao mesmo tempo em que é
preservado na memória dos que conviveu e/ou nos seus feitos na comunidade. O
nome não se desvincula do indivíduo, nem mesmo após sua morte; permanece em
sua história; veste suas ações, suas práticas, suas linguagens... veste a si próprio.
Desse modo, o aspecto social contido no nome de cada indivíduo está em sua
existência, no seu devir. O nome não é um elemento constitutivo isolado, mas o é
nas marcas da vida humana, na perspectiva ritualística.
Verger (2002) nos fala que entre os iorubas existem diferentes categorias de
nomes: oruko amuntorunwa – ligado à forma de nascer –, oruko abiso – ligado à
situação da família, por ocasião do nascimento –, oruko orile – ligado à posição do
sujeito no conjunto genealógico familiar –, e o oruko oriki – ligado à personalidade –
ao ori da pessoa. O autor esclarece que, esse último geralmente muda nas
iniciações, por se acreditar que eles alteram a personalidade. Os nomes também
estão interligados à iniciação do indivíduo e a sua inserção na sociedade. Cabe
esclarecer que, de acordo com Leite (2008), a iniciação é a constituição do “sujeito
sócio-histórico-cultural”. O pesquisador elucida que, em solos africanos, todos eram
“iniciados” em seus ofícios (ferreiros, agricultores, feiticeiros etc.).
Vale pontuar que a iniciação abordada neste estudo é a ritualística/religiosa,
e, desse modo, o nome iniciático é um elo importantíssimo que aproxima o adepto
do seu ancestral divinizado. Ele é “a cartilha” pela qual se dá a alfabetização em
uma língua desconhecida até então. É por intermédio dele que o recitar orikis, ofos,
ingorossis70, etc. se torna mais familiar. Respeitar o seu nome iniciático (oruko ou
djina, dependendo da nação) é dever de todo iniciado, pois ele o sacraliza no culto 71.
O nome iniciático se sobrepõe ao nome civil nos espaços de culto. Ele interliga

70
Rezas recitadas nas comunidades de cultos negros vinculadas à “nação de angola”.
71
De acordo com os Babalorixás e as Ialorixás que participaram deste estudo, o nome (oruko/djina) é
a representação do ancestre no iniciado. Ele deve ser sagrado para o adepto, pois, é o primeiro
sinal de que ele passou a ser um elégùn, sacralizando-o no espaço de culto e, também, fora dele. O
nome é “a presença do orixá” no iniciado.
81

seguidor e ancestral divinizado em um único espaço, ou seja, em um único corpo.


Conforme é apregoado no processo iniciático (vamos ver quando tratarmos
especificamente da iniciação) o nome “batiza”72 o adepto.
Segundo Pordeus Jr. (1999, p. 166),

a importância do nome no Candomblé é ressaltada por Roger Bastide no


Candomblé da Bahia. Podem existir no mesmo terreiro várias filhas de
santo com um mesmo Orixá, mas cada divindade possui a sua identidade.
Essa especificidade é dada por um triplo nome, sendo o primeiro o do Orixá,
o segundo a sua especificidade e o terceiro relativo ao local africano de
origem. Esses três nomes são pronunciáveis uma única vez na festa de
apresentação do novo Orixá à comunidade.

Vale lembrar que o autor pauta sua referência bibliográfica para abordar a
questão do nome iniciático, nos estudos de Roger Bastide, renomado pesquisador,
mas que exaltou uma “supremacia baiana” no que se refere aos cultos negros
brasileiros, conforme citado no capítulo anterior. E pontuar, ainda, que a
“apresentação do nome” do ancestral divinizado (orixá) acontece na maioria das
comunidades de cultos negros brasileiros, e não somente nos “Candomblés da
Bahia”. A preocupação com o nome, com o seu significado, é constante nas
comunidades de cultos negros. Como sinalizado, ele será a principal identificação do
noviço, e, dessa maneira, precisa ser constituído de palavras que lhe tragam boas
energias e vibrações. Retornamos a importância de saber se utilizar as palavras, de
se saber contextualizá-las. O nome é um enunciado e, como tal, precisa
“acrescentar e/ou despertar” qualidades ao iniciado.
No decorrer deste estudo muitos Babalorixás e Ialorixás trouxeram suas
experiências e vivências em relação à cerimônia do nome e, ao mesmo tempo, na
sua relação com “o seu nome iniciático” ou “nome do seu orixá”. A grande maioria
demonstrou certa nostalgia ao tratar sobre essa parte da pesquisa. Isso se tornou
perceptível nas expressões: “no meu tempo”, “antigamente era assim”, “quando me
iniciei”, “no meu axé”, dentre tantas outras. Os que têm mais de 20 anos de iniciação
comungaram da ideia de um grande respeito ao “nome de orixá”73, a ideia do
“sagrado” e, de certa maneira, “divinizado”. Alegaram que só de ouvir o nome
72
Cabe esclarecer que, o termo “batiza” foi referido por alguns entrevistados. Acentuamos, nesse
sentido que, mesmo se tratando de cultos negros brasileiros percebemos a presença católica em
suas falas. Ressaltamos que tal presença não compromete as práticas ritualísticas.
73
Expressão utilizada pela grande maioria dos entrevistados que possuíam mais de 20 anos de
iniciado.
82

iniciático de um adepto mais velho em iniciação ou ocupante de um cargo dentro da


comunidade de culto tomava-se “a benção” como sinal de respeito,
independentemente desse estar presente no local. Para muitos deles a “coisa se
modernizou muito”74, “hoje em dia iaô escuta o nome de santo do Pai ou da Mãe de
Santo e fica acordado”75.
As experiências vividas no decorrer dos meus 27 anos de iniciação
corroboram com as vozes que entoam uma perspectiva muito arraigada na
hierarquia. Cito isso devido às lembranças que em mim foram despertadas ao
entrevistá-los. Suas vozes se concretizaram em mim (ZUMTHOR, 1993). Ao ouvi-las
era como se uma transposição nos tempos tivesse ocorrido, e me vi na comunidade
de cultos nos quais me iniciei. Era exatamente o que eles descreviam em suas falas:
eu, recém-iniciado, sendo “tomado” por meu ancestral divinizado cada vez que nas
rezas era citado o oruko de meu Babalorixá e de todos os mais velhos que
participaram do ritual de minha iniciação. O meu ancestral reverenciava os
ancestrais daqueles que participaram do seu nascimento em mim. Essa era a
dinâmica das relações que se constituíam ali. Deixo claro que essa compreensão
não me ocorria naquele momento, ou seja, recém-iniciado mas com a maturidade e
participação nos rituais. Ainda nas recordações trazidas pelas vozes dos
entrevistados, recordo de uma passagem em que uma “irmã de santo” 76 não foi
incorporada por seu ancestre no momento da reza. No mesmo momento, meu
Babalorixá chamou o seu ancestral em sua cabeça e deu-lhe uma “baixa”77 na frente
de todos que estavam presentes, perguntando “se ele não estava presente na vida
de sua filha” e ainda, “se não tinha ouvido o seu oruko na reza”. Todos os outros
irmãos que possuíam o mesmo tempo de iniciação que ela e os mais novos,
também foram incorporados por seus ancestres. Era uma doutrina daqueles tempos.
Somente os mais velhos de iniciação não eram incorporados nesses momentos.
Diante do apresentado percebemos que, o oruko/nome era poder, ou melhor,
74
Fala dos entrevistados nesta pesquisa.
75
Segundo os participantes deste estudo, antigamente, se um recém-iniciado ouvisse o nome de
santo de quem lhe iniciou no culto, o seu ancestral divinizado entraria em transe – incorporaria- por
isso o termo “ficar acordado”.
76
Expressão utilizada nas comunidades de terreiro para os laços afetivos entre os iniciados pelo
mesmo Babalorixá/Ialorixá.
77
Nas comunidades de terreiro, antigamente, o termo “baixa” significava brigou, ralhou, chamou a
atenção.
83

representava relações de poder (FOUCAULT, 1995) nas tramas cotidianas de uma


época sócio-histórico-cultural vivida pelos entrevistados e por mim, sujeitos que
compunham às comunidades de cultos até então. Ressaltamos, ainda, que tais
relações ultrapassavam as fronteiras do espaço geográfico da comunidade de culto.
Entre discursos do passado e do presente, entre nostalgias e modernidades
encontramos relações ativas, vivas, reais. Relações embaladas por ações humanas,
ou seja, ações culturais que denotam o relacionamento humano através dos tempos
(SODRÉ, 2005). Esses discursos, segundo Foucault (1995, p. 37), “não podem ser
dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao
mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos”. Nos discursos
apresentados pelos Babalorixás e Ialorixás entrevistados podemos observar o lugar
de onde eles falam e de como esse lugar é embutido em suas vozes. O lidar com o
nome iniciático nos diferentes espaços de culto aponta para as relações que se
constituem entre o mítico e o real. Elas não se dicotomizam nem se confrontam; elas
integram-se no contexto sócio-histórico-político, enfim, cultural, vigente nas relações,
sem a preocupação de ser melhor ou suprema, mas real no seu tempo.
Logo, o nome, assim como representa um ritual importantíssimo nos cultos
negros brasileiros, inserindo o adepto nas práticas ritualísticas e nas relações que se
estabelecem através delas, também representa um processo de constituição de
identidades, legitimando os seus discursos e, ainda, buscando atrelar as
características do ancestre ao adepto. É o oruko oriki apregoado por Verger (2002),
e já citado, que vincula iniciado e ancestral divinizado. Todo iniciado traz em seu
oruko, em seu nome iniciático, as características do seu ancestre e as qualidades
que o qualifica. O nome é único (assim como o ori), o ancestre não; ou seja, em um
mesmo espaço de culto podem existir vários elégùn de Oyá, mas cada um tem um
nome que o identifica e o individualiza. É importante frisar que nas comunidades de
cultos negros brasileiros o nome iniciático está nas ações do adepto enquanto um
ser social. É comum eles levarem o seu oruko para suas práticas diárias ou, até
mesmo, utilizarem como parte do seu nome civil. Entretanto, frisamos da mesma
maneira que o nome civil não interfere em suas ações culturais/religiosas enquanto
um ser ritualístico. Posto isso, averiguamos que o nome iniciático tem a perspectiva
do surgimento do ser ritualizado e ritualístico. Ele é, também, emblemático, pois
acentua a presença do ancestral divinizado no indivíduo.
84

2.2 Memória – a mola mestra da iniciação

A memória se constitui como um dos aparatos significativos nos cultos negros


brasileiros, assim com as linguagens. Ela é o celeiro da tradição oral. O
conhecimento sobre as histórias africanas, sobre as vidas dos africanos, chegou até
a essas terras graças à memória. Segundo Nora (1993), a memória nas sociedades
tradicionais estava incorporada ao cotidiano de indivíduos e grupos sociais pelas
vivências da tradição e dos costumes, regulando e informando o futuro de indivíduos
e coletividades. Ela foi o percurso possível para que tanta sabedoria e tradição
chegassem até nós. Foi por intermédio da memória que as histórias do vivido pelos
africanos em suas terras, em suas tribos, em suas nações chegaram até aqui e em
um devir contribuíram para a formação da história e da cultura brasileira. Foram (e
ainda são) as histórias da terra, das águas, dos vegetais, dos animais, dos
ancestrais e dos grandes feitos de seus povos que os africanos trouxeram em suas
memórias e em seus corpos. Suas bagagens foram suas lembranças, suas
vivências, suas vozes, seus gestos, seus sonhos, seus afetos, suas referências,
suas esperanças.
Foram essas memórias que chegaram até a mim, 27 anos atrás, de uma
maneira diferente da contada e retratada pelos livros didáticos e pelas aulas de
história. Memórias que trouxeram “uma” África muito mais próxima que a descrita
nos mapas geográficos ou no globo terrestre exposto na biblioteca escolar. Era
como se “Ela” sempre estivesse ali, dentro de mim, aguardando para ser
despertada. Memórias trazidas e embaladas por outras memórias, contadas e
recontadas, transmitidas por pelos “meus mais velhos”, pelos meus ebômis, pelos
que me antecederam. Memórias tocadas nos atabaques, embaladas nos corpos,
temperadas com pimentas e regadas no azeite de dendê, perfumadas pelas
essências das ervas. Memórias que me possibilitaram a entrada iniciática nas
nações africanas existentes nas Casas de Santo78, que me apresentaram
perspectivas ritualizadas e míticas. Memórias que me apresentaram ao
desconhecido (até aquele momento), que me apresentaram ao novo, que me

78
A expressão Casa de Santo era como nós, os iniciados, reportávamo-nos aos espaços religiosos
aos quais pertencíamos na década de 1980.
85

apresentaram, também, novos lugares, que me afetaram dia a dia na relação que foi
se constituindo aos poucos. E, nesse contexto, foram as memórias do vivido, do
praticado, do realizado por todos aqueles que já se encontravam na comunidade de
cultos anterior à minha chegada, que foram me orientando e fazendo com que eu
construísse as minhas próprias memórias. Foi no compartilhamento que eu vivi o
vaivém das memórias. Desse modo, foi na relação intensa e processual das
memórias (minhas e dos já iniciados que compunham aquele lugar) que os
significados se presentificaram.
Constatamos, que

de todas as experiências que nós vivemos no aqui e agora, selecionamos,


como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo de
relações. Todavia o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que
vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos afeta
é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular
(GONDAR, 2005, p. 25).

Nesse contexto, as novas experiências me tocaram e foram impregnando


meu corpo e mente, criando nas minhas memórias um terreno fértil para que o ritual
de iniciação se concretizasse e, a partir dele, eu me tornasse um elégùn e passasse
a compor a “nação africana” existente na minha79 Casa de Santo. Foi no encontro
com o novo, com o desconhecido (até a minha entrada para os cultos) que minhas
sensibilidades foram despertadas, e, assim, todos os sentidos necessários
passaram a ativar minha memória para o encontro com meu ancestral divinizado.
Ainda de acordo com Gondar (2005, p. 25).,

se viajamos para uma cidade desconhecida, a arquitetura, as cores, e os


encontros nos marcam bem mais do que nossa vida habitual e cotidiana.
Mas podemos pensar que nossa própria cidade já foi um dia, para nós,
desconhecida, e que as formas, cores e encontros que nela
experimentamos como novidade deixaram impressões e se constituíram em
lembranças.
O espaço de culto, para o iniciado, é a “cidade desconhecida”. Sua
arquitetura, seus cantos sagrados são a personificação do novo, do não habitual. É
por intermédio das relações que se constituem nesse espaço e das histórias que ali
chegaram e as que ali foram elaboradas que os ensinamentos e as aprendizagens
passam a fazer parte da história do noviço, passam a residir em suas memórias.
Cabe esclarecer que, em relação ao espaço de cultos, o indivíduo poderia tê-lo
79
O termo “minha” a que me refiro retrata a ideia de pertencimento, fazer parte, compor.
86

conhecido como visitante, ou seja, sem participar da atmosfera ritualística, no


entanto, a partir do momento em que ele se inicia em elégùn nesse mesmo espaço,
a apresentação da “cidade desconhecida” se dá por outro prisma, por outra
perspectiva. A atmosfera em que ele se insere passa a fazer parte dos seus lugares,
passa a fazer parte das “cidades conhecidas” pelo pertencimento. Cada canto, cada
espaço ritual é incorporado pelo encantamento, pelo mítico, pela sedução (SODRÉ,
2005). O espaço de culto passa a ser um local onde “as trocas de aprendizagem,
experiências e informações, situam os sujeitos como históricos e produtores de
significados e sentidos” (BARATA, 2012, p. 92). Ele torna-se um “espaço
alfabetizador” (BARATA, 2012, p. 92) para o elégùn, situando-o no mundo ao seu
redor. É importante enfatizar que as relações sociais que haviam sido constituídas
anteriormente pelo adepto, também passam por uma reelaboração
A comunidade de cultos ao qual me inseri era frequentado por mim como
indivíduo, como alguém que gostava de assistir às festas religiosas. Eu fazia parte
da assistência80 do ritual. Poderia dizer que, naquele momento, conhecia aquele
espaço geográfico e, ainda, que sabia que muitos dos quartos mantidos com as
portas fechadas eram de acesso proibido para as pessoas comuns. Entretanto, a
partir da minha iniciação nesse mesmo espaço, foi como se eu nunca estivesse
estado ali antes. Todos os espaços me foram apresentados de modo ímpar. Minha
iniciação foi a entrada na “cidade desconhecida”.
Foi na convivência e na atuação no espaço de cultos que passei a conhecer a
“nova cidade”. Nesse contexto, é na mediação dos mais velhos nos cultos, na
prática dos ritos, nas celebrações, que os diferentes saberes são colocados em
contato com o elégùn. Assim, a memória é a grande companheira para a viagem
que se apresenta ao iniciado. É nas relações travadas no campo das memórias que
ancestral e adepto se sentem, conhecem-se, comunicam-se. É a partir dessas
relações que o iniciado reelabora seus modos de ver, sentir, fazer e saber. Desse
modo, é por intermédio da memória do seu ancestral divinizado, do seu Orixá, é por
intermédio de todos rituais que compõem a iniciação nos cultos negros brasileiros,
que as histórias/memórias do ancestre passam a viver em sua vida 81, passam a ser
contadas, cantadas, dançadas, passam a ser apreendidas por ele. Elas prosseguem

80
Designação dada às pessoas que assistem às cerimônias abertas ao público, às festas
comemorativas, às rodas de candomblé.
81
Pela concepção da vida no/do santo; orixá.
87

em seus atos ritualísticos, são tecidas por suas mãos; como se, em um continuum, a
história do ancestre passasse a ser a história do iniciado. Os seus símbolos, signos,
suas representações os afetam, tocam-nos (GONDAR, 2005, p. 12), dando-lhes o
alicerce para uma (re)construção, “não do passado” (GONDAR, 2005, p. 18), mas do
presente através do momento real. A apropriação por parte do adepto dos feitos de
seu ancestre, suas predileções, suas interdições contribui para incorporar os novos
saberes e, nesse contexto, as memórias repassadas a ele (iniciados) são revestidas
pelo tempo vivido, por histórias sagradas (GONDAR, 2005, P. 18), no tempo
presente.

Admite-se hoje que a memória é uma construção. Ela não nos conduz a
reconstituir o passado, mas sim a reconstruí-lo com base nas questões
que nos fazemos, que fazemos a ele, questões que dizem mais de nós
mesmos, de nossa perspectiva presente, que do frescor dos
acontecimentos passados.

Logo, minhas memórias, como as histórias dos iniciados que compõem este
estudo, foram construídas no campo visível (humano) e invisível (ancestrais),
transitando entre os tempos (passado e presente). Os novos costumes e os hábitos
apresentados ao adepto objetivam a constituição de um novo ser; um ser renascido
(VERGER, 2002), além da tentativa de apagamento das lembranças da vida
profana, ou seja, da vida anterior e fora do espaço de culto. A partir daí, é como se a
memória do iniciado fosse tomada por outras memórias. Ao consagrar-se à vida
no/do santo, ao iniciar-se em orixá, o iniciado não é mais somente ele, passa a
trazer em si as histórias e as memórias do seu ancestre divinizado, as histórias e as
memórias do seu espaço de culto, além de partilhar suas histórias e memórias com
toda a comunidade ali existente. O coletivo, com suas representações, é o que
permite a existência do culto. Barata (2012, p. 100) nos auxilia a pensar sobre os
conhecimentos reelaborados nos cultos negros. Segundo a pesquisadora,
os conhecimentos negros são materializados durante rituais e festas
coletivas, quando os membros da comunidade se reúnem e relembram sua
história. Dessa forma, concretiza-se outro tipo de memória, que não se
ocupa dos eventos excepcionais, mas serve para manter a ordem
estabelecida, confirmando a tradição, mantendo a unidade e a expansão
da comunidade. De forma ritualizada, essas práticas referenciam e recriam
o sentido originário do grupo quando colocam em tempo real a tradição
que precisa ser atualizada para se manter. Para tanto, realizam analogias,
servindo-se de objetos (símbolos) que estão acessíveis e que respeitam os
“fundamentos” (BARATA, 2012, p. 100).
88

Diante do exposto, notamos que as vivências (as práticas) são o que


permeiam as relações que se estabelecem para a efetivação dos rituais e, assim,
realizar a conexão com o sagrado, com os ancestrais divinizados. É no contato com
seus “fundamentos”, é na força das palavras proferidas pelas vozes de todos nas
exaltações, nas rezas, nos cânticos, nas consagrações que a atmosfera do espaço
de culto se torna propícia para que os elégùn sejam a presentificação do seu
ancestre, no encontro entre o homem e o orixá. Nessa perspectiva, os iniciados
alegam que a coletividade é vivida no “eu e ele”, “eu e o Orixá”, “eu e meus mais
velhos”, “eu e minha Casa de Santo”, “eu e ‘minha nação africana’”, e, dessa
maneira, deixam de ser indivíduo para ser coletivo, ser grupo, passam a pertencer, a
partilhar, a cultuar.

Pelo pertencimento, o grupo faz-se imanente ao indivíduo, enquanto este


se reencontre no grupo. O indivíduo pertence ao grupo tanto quanto a si
próprio, pode ser indivíduo ou ser grupo equivale de fato a uma função no
trabalho de limites ou de determinação de identidade em face de vasta
diferenciação do fenômeno humano (SODRÉ, 1995, p. 9).

Assim, é no grupo que as histórias se intercruzam, que os encontros


acontecem, que as relações se deflagram, que as memórias se processam e que os
adeptos tornam-se semelhantes. Entre histórias e memórias, individuais e coletivas,
é que se dá a iniciação nos cultos negros disseminados no Brasil pelos povos
africanos. Halbwachs (1997, p. 53), em suas pesquisas, acentua a relação intrínseca
que há entre memória individual e memória coletiva. Segundo ele, nossas
lembranças são coletivas, recordamos em função do outro. O pesquisador afirma
que, mesmo quando se trata de eventos que presenciamos sozinhos e objetos que
vemos sem testemunhas, ainda assim são lembranças coletivas. De acordo com ele,
isso ocorre porque nunca estamos sós; trazemos conosco muitas pessoas que não
se misturam. Logo, as pessoas que constituem o coletivo das comunidades de
cultos negros brasileiros, trazem, em si, histórias e memórias que remetem à África
mítica; trazem em suas lembranças cultos reelaborados nessas terras, práticas
sociais e, principalmente, trazem ações culturais plurais e reais. É a partir das
lembranças diaspóricas dos milhares de africanos que para essas terras migraram
forçosamente que os rituais puderam ser realizados (mesmo com a necessidade de
reelaborações por inúmeros motivos). Foi com os seus esforços coletivos e com
suas práticas, que eles não permitiram a tentativa de apagamento das suas
89

lembranças pelas adversidades. Foi em meio a constantes confrontos que o vínculo


à sua terra, à sua tribo, à sua aldeia, aos seus entes permaneceu ativo, latente, vivo.
Assim, foram suas lembranças que viabilizaram a sobrevivência e a permanência de
suas práticas culturais.

O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele próprio


teceu. Essas teias seriam a cultura, tal como um sistema entrelaçado de
signos interpretáveis, um contexto no qual esses signos podem ser
descritos de forma inteligível, com densidade (GEERTZ, 1978, p. 75).

As “teias” são tecidas pelo homem no aqui e agora, no devir, nas suas
práticas e relações reais (SODRÉ, 2005). É no momento em que se realiza que a
iniciação nos cultos negros brasileiros apregoa uma nova vida: uma vida marcada
em rituais. Reforçamos que a vida, a partir da iniciação, é pautada na
ancestralidade, no respeito aos mais velhos, na preservação das histórias, no
contato com o mítico, na comunhão com as forças da natureza (mineral, animal e
vegetal). Uma vida que se constitui na tradição, que se faz existente no orun82 e no
aiê83 e, principalmente, na constante interação com o contexto do orixá: suas rezas,
histórias, feitos, cantigas, danças, sons, comidas, cores, paramentos, saudações;
com os seus símbolos. Nessa concepção, podemos dizer que uma vida atrelada a
tudo que permita a circulação de axé, de força ativa e constituinte de energia é
capaz de afetar o iniciado. Para o elégùn, manter-se em contato com as
representações do seu ancestral significa estar em contato com o sagrado. Desde o
amanhecer até o momento em que se deita para dormir, cada instante vivido é de
construção de conhecimentos, de práticas que o constituem na sua relação com o
real (SODRÉ, 2005). Não há elégùn sem práticas ritualísticas, sem reelaborações
culturais, sem ativação de memórias individuais e coletivas, sem o contato entre
orun e aiê.
Para Verger, a iniciação modifica o real do iniciado. Segundo ele,

a iniciação consiste em suscitar, ou melhor, em ressuscitar no noviço, em


certas circunstâncias, aspectos dessa personalidade escondida; aqueles
correspondentes à personalidade do ancestral divinizado, presente nele
(mesmo sendo só em razão dos genes herdados), inibidos e alienados
pelas circunstâncias da existência levada por ele até essa data (SODRÉ,
2005, p. 44).

82
Concepção espiritual do mundo, espaço onde estão os ancestrais (cf. Santos, 1986).
83
Concepção material do mundo, plano material (cf. Santos, 1986).
90

A iniciação é a entrada do indivíduo para a vida ritualística, “a vida no


santo”84. É a partir dela que ele se torna “feito de santo” 85, torna-se elégùn, um omó
orisa86, vinculando-se a seu ancestral divinizado, constituindo-se como seu
descendente, e assim, mantendo viva suas histórias e memórias. Todo o processo
iniciático é submerso no encantamento, “na sedução” (SODRÉ, 2005, p. 44), na
comunicação entre o presente e o passado, entre o mítico e o real, na criação de um
novo ser: o elégùn. É nele que o orixá assume novamente características humanas,
“retorna à Terra”, paramenta-se, recebe oferendas, comunica-se com seus adeptos,
revive seus feitos por intermédio de suas danças, cântico, rezas, saudações,
histórias, comidas, ervas, sacrifícios.
Desse modo, é no ori e, consequentemente, no corpo do iniciado que as
energias vitais atuam. É através destes, ou seja, do ori e do corpo que se dão a
interação entre indivíduo e o ancestre. O ori/cabeça é quem dá a permissão para
que essa interação se efetive. Conforme citamos, tudo que se passa na iniciação
depende de sua autorização. É como se a comunicação entre eles (iniciado e
ancestre) estivesse adormecida por um longo período e ao consagrar-se através do
ritual de elégùn – o ritual de iniciação – o corpo ativasse as memórias, que são
investidas, nesse contexto, de transformações socioculturais entre o passado e o
presente. O corpo, nos cultos negros é templo, é locus de comunicação, é força
ativa. Recorremos mais uma vez às palavras de Barata (2012, p. 94):
o corpo, para os africanos, é expressão que transmite um saber que vai
além da representação, que não se reduz a palavra escritas ou
mimetismos. Ele compreende ações e códigos que se repetem sem
descrever ou transmitir significados; que estão além do conceito,
propiciando experiências. Trata-se de um saber relacionado com a
repetição de uma memória ancestral (BARATA, 2012).

Observamos nas palavras da referida autora a relação de saberes,


experiências e memórias, que se intercomunicam em um campo plural: o corpo. É
nesse território, ou melhor, nesse corpo-território, como nos fala Sodré (2005), que a

84
Expressão comum entre os iniciados; utilizada para a diferenciação do profano e do sagrado;
ainda, para marcar “a nova vida” pós-iniciação.
85
No Brasil, a expressão comum entre os iniciados para saber se a pessoa é iniciada é “feito no
santo”; significa que a pessoa passou pelos rituais iniciáticos nos cultos negros afro-
brasileiros/candomblé.
86
Filho do orixá; também conhecido no Brasil como filho de santo.
91

efervescência das memórias atua no ritual iniciático. Para Gondar (2005, p. 12), a
memória comporta uma característica polissêmica, ou seja, comporta diversas
significações que se abrem a uma variedade de sistemas e signos: simbólicos,
icônicos e indiciais. É essa polissemia encontrada em diferentes elementos e
práticas ritualísticas que aproxima o ancestre do seu iniciado nos cultos. Os textos
orais e escritos, as estatuetas esculpidas em madeiras e/ou osso (marfim), as
curas/beres87 são representações/suportes para a construção de uma memória
(GONDAR, 2005, p. 12) que cria forma nos rituais. Esses signos são reelaborados
no momento presente, ressignificam-se em cada rito, em cada ancestral, em cada
iniciado ao mesmo tempo em que intensificam a relação mítica e simbólica entre o
ancestre e o adepto.
Os artefatos necessários à presentificação do orixá em seu iniciado (ervas,
comidas, ferramentas, animais, roupas, fios de conta) tornam-se o imã que atrai a
energia vital para o seu ori e corpo, além das falas do Babalorixá ou da Ialorixá. Vale
pontuar que estes zelam para que todo o processo iniciático transcorra bem. Por
esse motivo, também são denominados Zeladores do Orixá e do elégùn (e ainda
conhecidos em muitos espaços de culto como Pai ou Mãe de Santo). As vozes dos
mais velhos assumem, também, grande importância no coro de rezas, cantigas,
orikis, orins, itans, ofós, aduras e de toda a liturgia que remeta aos feitos do
ancestral. A exaltação destes é fundamental para que a atmosfera esteja propícia à
sua chegada, além de ser por meio das exaltações que a força ativa dos seus
ancestres se conectam com o ancestre recém-iniciado. A feitura do orixá88 é
contextualizada no tempo e espaço presentes, no real (SODRÉ, 2005). A
constituição do orixá se dá no elégùn. É ritualizada no ori e no corpo dele, que se faz
de canal. Ele passa a ser o templo do ancestral divinizado/orixá. A partir da
consagração do orixá no corpo de seu iniciado é que as aprendizagens da nova vida
iniciam (VERGER, 2002).
Sodré (2005, p. 68) nos elucida sobre o corpo-território:

todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de um


campo que lhe é próprio e que se resume em última instância, a seu corpo.

87
Cortes feitos à navalha em algumas partes do corpo do elégùn. Geralmente, eles são feitos nos
braços, no alto da cabeça, nos pés, na língua. É importante sinalizar que tais cortes (quantidade,
formato etc.) dependem da nação africana à qual a comunidade de cultos esteja vinculada.
88
Expressão utilizada para a cerimônia de iniciação do elégùn; também conhecida como yaô.
92

O corpo é o lugar zero do campo perceptivo, é um limite a partir do que se


define um outro, seja coisa ou pessoa.

As palavras do autor nos levam a perceber como a relação com o corpo é


fulcral no processo iniciático. O corpo é o território em que coabitam as percepções
do iniciado e do indivíduo enquanto ser social e ritualístico. As visões do mundo
profano e do mundo sagrado, após a iniciação, passam a conviver em um mesmo
corpo. Assim como o indivíduo em sua formação/evolução passa por várias
aprendizagens, como o simples ato de engatinhar, andar, dentre outros, também o
iniciado passa por novas aprendizagens em sua nova vida. Essas aprendizagens
estão sempre vinculadas ao seu ancestral divinizado, a seu orixá. Elas encontram
terreno fértil na memória do iniciado, que, diante do contexto em que está inserido,
“parece momentaneamente lavada das lembranças da vida anterior” (VERGER,
2002, p. 76), e nas memórias de todos que partilham do ritual.
Reafirmamos que a memória é um elemento significativo no processo
iniciático, sendo ativada por intermédio do corpo pelos sentidos. O ver, o falar, o
gosto, o cheiro, o ouvir, o tocar misturam-se nas danças, no sabor e no cheiro das
comidas, nos cânticos e nas rezas, nas oferendas, nos banhos de ervas, no gestual,
no novo dialeto. Nesse caso, a memória é mantida por saberes divinizados, saberes
ressignificados. E, assim, no ritual, ela é recriada com os elementos do presente
(BARATA, 2012).
Diante do exposto, a memória, além de afetar, tocar, manter viva a
comunicação através da mente e do corpo, será utilizada, também, como ato de
memorizar. E, nesse contexto, memorizar é concebido no sentido do não esquecer,
do gravar, do guardar, que é fundamental para que as novas práticas do iniciado
sejam realizadas a contento dos seus “mais velhos” e de seu/sua Zelador/a de
Orixá. Nessa arena propõe-se a luta constante de memorizar os rituais e esquecer
as ações da vida anterior. Logo, o esquecimento não é descartado. Ele faz parte dos
conflitos. Há, por parte dos responsáveis pelos rituais nos cultos, uma forte
preocupação com as aprendizagens retidas nas cabeças/ori dos iniciados. O não
esquecer é, constantemente, trazido ao momento em que se processam os ritos
sagrados, ao mesmo tempo em que é apregoado a necessidade de se esquecer as
ações da vida desvinculada do ritual. Seja em uma cantiga, em um gesto, em uma
dança, na hora de se realizar determinada reverência, de se trocar bênçãos, de
93

determinado tempero, enfim, reafirmamos que ação de memorizar no sentido de


gravar, de reter a informação, de decorar as linguagens utilizadas se faz presente
nos cultos. Há, ainda, ritos para facilitar a memorização por parte do adepto: banhos
de ervas específicas, ingestão de alimentos que propiciem à memória, práticas
diárias de atividades repetitivas etc. Nessa perspectiva, a memória não está
apartada de novos saberes, de novos conhecimentos e, consequentemente, de
novos poderes. A relação saber e poder é intrínseca (FOUCAULT, 1995) às relações
constituídas pelo elégùn em sua iniciação e passam, também, pelo campo da
memória. Logo, “(...) a memória social é um vigoroso, complexo, e tenso campo de
disputa de sentidos em que a mobilização e a circulação dos discursos e
representações são utilizadas com intensidade e possibilidades diferentes”
(MORAES, 2005, p. 92).
O autor fala, ainda, que “a memória se constitui como estratégia e negociação
de sentidos” (MORAES, 2005, p. 92). Sendo assim, aprender e, consequentemente,
esforçar-se a apreender os saberes em suas memórias permitem a maior interação
e integração com seu ancestre, além de denotar a constituição de poder no espaço
de culto. A formação do indivíduo/iniciado, enquanto sujeito e objeto de
conhecimento, é constante por todo o tempo em que ele estiver recluso no espaço
de culto. Ela se constitui em seus novos costumes, em suas novas práticas. Assim,
os saberes que revestem essas práticas atribuem ao iniciado sentidos e significados
que assumem vida no seu cotidiano e também permanecem nas relações
socioculturais vividas por ele, dentro e fora do ritual. Essa dinâmica desdobra-se em
uma rede de saberes divinizados e sociais que são tecidos na contemporaneidade
das comunidades de cultos negros.
Nesse prisma, a iniciação, com seus ritos, sabores, cheiros, cores, sons,
ritmos, mitos, significados e simbologias, reinventa as identidades ritualísticas, ao
mesmo tempo em que suas características sociais, políticas, históricas, enfim,
culturais, são legitimadas (elas não são desconsideradas nesse processo, ou
melhor, não são apagadas). O ritual permite ao indivíduo a inserção em novas
culturas. É por meio dele, do ritual de iniciação, que se experimentam novas
maneiras de representar o mundo, de interagir com o ayê e o orun, de se assumirem
práticas que permitam a sua comunicação com seu ancestre divinizado – seu orixá e
com todas as energias vitais que se (re)significam no contexto ritualístico.
94

Integrar homem e orixá é a função das cerimônias iniciáticas. Moldar sua


formação humana no contexto mítico, suas identidades e memórias para a chegada
do orixá, para assumir a vida no/do santo, para interagir com as energias vitais, ou
seja, com o axé, está na raiz do ritual, está em seu alicerce, em sua estrutura.
Assim, significar as identidades e as memórias do iniciado nos contextos ritualísticos
e na interação com o seu ancestral divinizado é inerente às práticas religiosas dos
referidos cultos. Identidades e memórias são construídas a todo o momento nos
rituais, apoiam-se no coletivo – seja em uma dança, seja na elaboração dos
discursos, seja na incorporação do ancestre – e, dessa maneira, ratificam a sua
característica de processo social constituído no dia a dia. Cabe ressaltar, ainda, que
na execução das práticas ritualísticas pelo iniciado suas identidades e suas
memórias são colocadas à prova, são expostas nos rituais. Assim, as identidades
não são percebidas como essência no iniciado, mas como subjetividades
construídas nos contextos histórico, social, político e culturais existentes no espaço
de culto, nas ações plurais do ritual.

2.3 Identidades – elaborações e movências

Observemos o que Hall (1997, p. 8) nos diz em relação às identidades:

É o que significa dizer que devemos pensar as identidades sociais como


construídas no interior da representação, através da cultura, não fora
delas. Elas são o resultado de um processo de identificação que permite
que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais
(exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas
chamadas subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo
discursivo e dialógico.

Mais uma vez a cultura89 entrelaça-se às questões apresentadas neste


estudo. Segundo o autor, “devemos pensar identidades [...] através da cultura”
(HALL, 1997, p. 8). Ora, isto significa que o indivíduo constitui suas identidades nas
suas práticas e relações com seus pares, com seus grupos, com suas comunidades.
Não há constituição de identidades sem a convivência com o outro, sem a relação

89
Ver Geertz, 1989; Hall, 1990; Sodré, 2005.
95

de saberes e poderes, sem reciprocidade, sem trocas, sem jogos de força e lutas
constantes (FOUCAULT, 1995), sem negociações e mobilidades culturais (BARATA,
2012), sem pertencimento (HALL,1997). Constituir-se é processo, investimento,
conhecimento, continuidade e rupturas, transformação constante, interação,
encontro, diálogo.
O autor prossegue afirmando que

a identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...] É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “
narrativa do eu” (HALL, 1997, p. 13).

Assim, as identidades do elégùn são sustentadas por valores das culturas


negras brasileiras que se manifestam e identificam no ritual de iniciação. As
representações identitárias presentes no âmbito do (re)nascimento simbólico do
iniciado, constroem subjetividades acerca de si próprio e da comunidade,
embasados nas histórias que compõem o ritual; contextualizando-se no momento
presente. A “transição de indivíduo para elégùn é intensa e real”90; ela não é
automática, mas processual e transformadora. Mediante várias cerimônias seu
comportamento é disciplinado (FOUCAULT, 1995), tendenciando uma docilidade
que favorece a constituição das suas identidades para a incorporação do seu
ancestre divinizado – orixá –, adquirindo, assim, uma afinidade de temperamentos,
e, em alguns casos, até o reconhecimento de características de personalidade.
Destacamos que a disciplina91 é extremamente significativa nas ações das
comunidades de terreiro. É preciso um intenso vigiar para que não ocorram erros e,
consequentemente, punições. O comportamento é formatado no ser elégùn: o
andar, que cores vestir, que alimentos não ingerir, que utensílios não tocar, que
ações não praticar, em que momento rezar, como cumprimentar seu ancestral,

90
Fala da Ialorixá Ana d’Oxum na entrevista ( pesquisa de campo).
91
Acreditamos que o conceito de disciplina, abordado por Foucault (1995), analogicamente, sustenta
a perspectiva abordada neste estudo, no sentido de formatação de comportamentos e de controle
dos iniciados nos cultos negros.
96

dentre muitas outras situações. Molda-se o comportamento nas relações postas,


tanto com o ancestral divinizado quanto com os outros seguidores. Tais
ações/práticas no contexto ritualístico pressupõem quase que uma reinvenção do
sujeito existente no adepto.
Desse modo, a iniciação formata o elégùn, disciplinando para a vida sob a
égide ritualística e, ainda, de constante interação com a ancestralidade. Ela age nos
detalhes, como informou a Ialorixá Ana’Oxum . Um iniciado “compreendido” 92
apresenta sempre bons modos e está atento a tudo que acontece nos rituais,
segundo a Ialorixá Ana d’Oxum. É possível elocubrar na fala da referida Ialorixá que
“compreendido” está para disciplinado, comportado, dentro dos padrões, nos moldes
que se espera no ritual. Nessa perspectiva, manter-se atento às suas obrigações e
aos seus deveres se faz latente no iniciado. Referenciados no paradigma
foucaultiano, observamos que a disciplina controla o sujeito, buscando impor
comportamentos. Logo, a comunidade de cultos, torna-se, ainda embasados nas
concepções de Foucault (1995, p. 217), uma instituição disciplinar, pois age sob
seus adeptos nas mais importantes e, também atenuadas, incumbências cotidianas.

A disciplina produz para a modelagem e controle dos corpos, ferramentas


que vão nortear todo o processo de construção de poder, e normatização
das condutas, adotando características para a sua aquisição: quadros,
preescreve manobras, impõem exercícios, enfim para realizar a combinação
de forças, organiza táticas” (FOUCAULT, 1995, p. 217).

Diante do exposto, ter iniciados “compreendidos” representa, neste caso, que


o espaço de cultos atingiu seu objetivo, que suas táticas foram utilizadas e
administradas, enquanto instituição disciplinar. Entretanto, onde há disciplina, há
resistência (FOUCAULT, 1995, p. 217) e, dessa maneira, punições. Nas relações
que se constituem nas comunidades de cultos negros brasileiros não se apartam os
enfrentamentos e as disputas, ou seja, há confrontos como em qualquer relação
social. Reconhecer o local de cultos como local social, independentemente de ser
ritualístico/sagrado, é fundamental para entender que o iniciado é sujeito de sua
própria história e, portanto, interfere nas relações à sua volta. O sujeito é
apresentado por Foucault (1995), que nos diz que

92
Forma como os mais velhos nos cultos negros brasileiros se referem ao noviço que apresenta bom
comportamento nos rituais, que não “envergonha” a sua comunidade de terreiro.
97

[...] a questão é determinar o que é sujeito, a que condições ele está


submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no
imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de
conhecimento, trata-se de determinar seu modo de subjetivação [...] Mas a
questão é também e ao mesmo tempo determinar em que condições
alguma coisa pôde se tornar objeto de conhecimento, [...] trata-se, portanto,
de determinar seu modo de objetivação. (FOUCAULT, 1995, p. 235).

Em outras palavras, trata-se de compreender como o sujeito se constitui ao


mesmo tempo como objeto e sujeito de conhecimento. Reconhecer e respeitar o
lugar de onde falam é condição sine qua non para a constituição do sujeito e de
suas identidades. É importante, ainda, perceber que essa constituição se dá nas e
pelas relações de poder e, por conseguinte, sociais. Destacando-se, também, a
transitoriedade, a flexibilidade, a fluidez, a interferência como elementos
constitutivos de ações, interações e mediações do sujeito. Diante do exposto,
verificamos no elégùn a presentificação do ser sujeito citado por Foucault. Ele se
constitui sujeito em suas ações e práticas ritualísticas, nas relações travadas no
cotidiano da comunidade de cultos.
As relações sociais e de confronto passam, em alguns momentos, pelo
ancestral divinizado. Dependendo das transgressões realizadas pelo adepto, as
consequências podem ser desagradáveis e/ou inesperadas. Recordo-me de um
momento quando pude assistir meu Babalorixá muito alterado porque uma irmã de
santo se confrontava com suas determinações. Lembro-me do embate que se deu
entre eles. Em determinado momento, Oyá, seu ancestral divinizado, incorporou
nela. Meu Babalorixá perguntou a Oyá se ela concordava com tamanho desrespeito.
Continuou dizendo que se sentia entristecido com toda aquela situação, mas que
tinha certeza de que ela não permitiria que sua filha o desrespeitasse daquela
maneira. Disse, ainda, que Oyá poderia aplicar-lhe um corretivo “se quisesse” na
frente dos presentes que ali estavam. Oyá, então, mandou que pegassem as
colheres de pau que se encontravam em seu ajubo93 e pediu aos ogãs que
entoassem as suas cantigas. Assim foi feito. No entanto, em um determinado
momento Oyá começou a bater nela mesma, ou seja, no corpo de seu elégún.
Quebrou todas as colheres de pau em si, no corpo que lhe recebia. Quando todas as
colheres de pau foram quebradas, Oyá sinalizou que iria embora. Antes de desvirá-

93
Nome dado ao assentamento do ancestral.
98

la94, meu Babalorixá finalizou dizendo que “servisse de lição” para todos os
presentes e orientou ainda que “contássemos aos ausentes”. Ao “acordar”, minha
irmã de santo estava toda marcada e dolorida, pois Oyá deixara as dores das
pancadas das colheres de pau em seu corpo. Ao se dirigir ao Babalorixá para tomar-
lhe a benção, foi aconselhada pelos mais velhos a “se comportar como uma iniciada”
e a “obedecer ao seu orixá”. Observamos, assim, a ideia de comportamento/conduta
e a obediência atrelada à disciplina.
Retomando a questão do processo iniciático, segundo Verger (2002), há um
estado de vacuidade e de disponibilidade que se instaura no elégùn, no processo
iniciático, possibilitando que o comportamento e a identidade do orixá possam
instalar-se livremente, sem obstáculos, e tornarem-se familiar ao iniciado. O
pesquisador defende a ideia de uma relação intrínseca entre o homem e o orixá que
se formata no elégùn, em seu corpo.
Vejamos esse itan retrato pelo referido autor em sua obra Lendas Africanas
dos Orixás (2001):

Um babalaô me contou
‘Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tornaram orixás por causa da sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa de sua força.
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que esses homens tornaram-se orixás.
Os homens eram numerosos na Terra.
Antigamente, como hoje,
Muitos deles não eram valentes e nem sábios.
A memória desses não perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tornaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração
Para render-lhes homenagem’.
É importante destacar que, desde as mais antigas sociedades africanas, a
memória se apoiava na transmissão contínua de histórias, contendo conhecimentos
e valores que preservaram, entre outros, a visão de mundo da época, suas crenças
e o repasse dos ensinamentos às gerações. Repassavam, ainda, o sentido
agregador da família e vinculação à terra (PADILHA, 2007, p. 58) e, ainda, ao seu
cultivo (BOSI, 1992, p. 47), reconhecendo que “a sociedade que lavrou a terra e

94
Ato de encaminhar o ancestral para o orun; acordar o elégún na linguagem dos cultos.
99

produziu seu alimento tem memória” (BOSI, 1992, p. 47). Portanto, o ato de lembrar
está na manutenção das tradições que sustentam a organização comunitária e as
formas de pensar e ser nessas sociedades. A tradição é fundamental para as
culturas negras como transmissão da matriz simbólica do grupo, da comunidade,
porém não se trata de uma tradição concebida de modo estático, e sim como um elo
de permanência dentro do movimento do tempo e dos lugares. Barata (2012, p. 72)
esclarece que

a manutenção da tradição de um grupo, que busca construir comportamento


mais ou menos codificados, objetiva manter a continuidade de determinada
concepção de vida e de uma experiência coletiva sem as quais o indivíduo
estaria abandonado à sua solidão. No entanto, quando falamos em tradição,
não queremos afirmar que se transmite algo do passado, cristalizado, como
conteúdos que são passados de forma inalterada através de gerações. A
tradição implica transformação, que não é percebida como rejeição cega ao
passado, mas como um movimento em que se percebe o que é necessário
manter e o que é relativo e pode ser negociado dentro de um limite, por
meio de analogias.

Percebemos, assim, que as identidades comportam uma gama de


interferências pautadas no movimento das tradições, sejam elas sociais, políticas,
históricas, religiosas, culturais, e, ainda, que estas não estejam fixadas, ou seja, elas
transitam e mudam constantemente. As identidades não se constituem no
isolamento, mas nas parcerias, nas participações e nas convivências. Esclarecemos
que a identidade que interessa a este estudo é a religiosa/ritualística e, ainda,
vinculada aos elégùn do ancestral divinizado/orixá Oyá. Interessa-nos perceber os
traços e a formação humana deles enquanto agentes socioculturais. Diante dessa
perspectiva, o argumento utilizado é o de que essas identidades são “formadas e
transformadas no interior da representação” (HALL, 1997, p. 48). O exemplo
utilizado por Hall é pautado no conceito de identidade nacional (HALL, 1997, p. 48).
Segundo ele, o homem não nasce com uma identidade nacional pronta, mas ela é
constituída por “representações”. Elucida em sua obra que
as culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e
a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais
tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram
transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional.
(HALL, 1997, p. 49).

Assim, amparados nos estudos do referido autor, percebemos que, assim


como a identidade nacional é constituída nas ações do indivíduo como parte da
100

nação, também a identidade ritualístico/religiosa é formatada na interação do


iniciado com o universo do culto; ela é formada e transformada no interior das
representações ali apresentadas. É a partir da apropriação e, consequentemente, da
produção dos sentidos (SODRÉ, 2005) que o noviço se identifica e constrói as suas
identidades e, assim, interfere e sofre interferências no/do contexto
ritualístico/religioso.
A discussão que se apresenta é de que as identidades que se constituem a
partir do ritual de iniciação permanecem ativas e latentes no iniciado mesmo quando
não está no momento de rito e, ainda, fora do espaço de culto. Elas não são
momentâneas nem estáticas. Elas se impregnam nele, atuam em sua formação,
marcam as suas ações. Estão nele fazendo com que o ancestral divinizado também
seja identificado em seus traços, em seu comportamento. Segundo os entrevistados,
várias podem ser as características a ser identificadas em um elégùn que denotam a
força e as “identificações” (HALL, 1997, p. 12) do seu ancestre: impulsividade,
elegância, tranquilidade, serenidade, agitação, imponência, timidez, sensualidade,
dentre muitas outras. De acordo com eles, são perceptíveis nas suas atitudes, em
seus trejeitos, no que eles são as características de seus ancestrais divinizados.
Cabe destacar que tais características foram despertadas na mente e no corpo do
iniciado pelas memórias que lhe foram repassadas e, também, no ritual de iniciação,
em que, a partir deste, passam a compor o renascido sob a égide ritualístico-
religiosa.
Vale pontuar que, entre os iniciados, é comum a “interpretação” de traços e
características das pessoas de sua convivência para, a partir dessa possível
interpretação, desvendarem o ancestre divinizado que rege a sua cabeça 95. O
referencial utilizado por eles são as suas próprias características e as dos outros
iniciados com quem se relacionam. Na perspectiva apresentada por eles, é como se
exercitassem os conhecimentos adquiridos nos rituais e, ainda, perceberem a
presentificação/identificação do ancestre divinizado nas pessoas não iniciadas com
as quais convivem e, assim, saberem de que ancestre elas são filhas 96 pela
observação da sua maneira de ser e de agir. Nota-se, nessas práticas, uma

95
É claro que para se saber o ancestral divinizado de um indivíduo, é necessário recorrer ao oráculo
divinatório – jogo de búzios –, além de algumas vezes ser preciso recorrer a rituais específicos. No
entanto, essa “possível leitura interpretativa” do outro se dá pela correlação entre as características
humanas com as do ancestre divinizado.
96
Filho do ancestral divinizado, do orixá, filho de santo.
101

interpretação do outro e do mundo a partir das visões reelaboradas no processo


iniciático. Merece destaque, também, nesse contexto a distinção feita na
interpretação do ancestral em homens e em mulheres. Segundo os iniciados, há
diferenças significativas e marcantes que acentuam o ancestral dependendo da
“cabeça” onde ele se assente e ainda do gênero. Mais uma vez, percebemos a
individualidade de ori. Nas comunidades de cultos negros brasileiros, essa leitura de
ancestral se dá no cotidiano dos iniciados nas relações de aprendizagem que ali se
constituem, e eles acabam levando a prática dessa leitura para as suas relações
além cultos. É comum para eles perceberem ou até mesmo enxergarem o ancestral
divinizado que rege o ori das pessoas com as quais se relacionem fora do contexto
ritualístico.
Para a Ialorixá Nilza d’Ogum, o ancestral se apresenta de modo distinto
quando se trata de homens e mulheres. Segundo ela, seu próprio ancestral
divinizado, Ogum, traz traços marcantes, mas que se diferenciam dependendo da
cabeça em que se apresente, ou seja, na cabeça de homens, ou em cabeças de
mulheres. Ela cita que

em cabeças de homens há um perfil de indivíduos preguiçosos, boêmios,


galanteadores, nem sempre lidam com a verdade e que, geralmente,
tornam-se agressivos e violentos após a ingestão de bebidas alcóolicas.
Ressalta, ainda, que apesar de ser uma interdição para a grande maioria de
elégùn de Ogum, é raro encontrar aquele que não tenha a predileção por
bebidas alcóolicas. No entanto, quando Ogum se apresenta em cabeças de
mulheres, as características mudam completamente. Geralmente são
mulheres guerreiras, batalhadoras, vibrantes, sinceras, que admiram a
verdade, corretas em seus compromissos, amantes leais, mas que também
cedem, em sua grande maioria, aos encantos das bebidas alcóolicas
(IALORIXÁ NILZA D’OGUM, 2013).

No que se refere ao ancestral divinizado Oyá, objeto central deste estudo, as


características também se diferenciam, assim como todos os outros ancestrais,
porém a grande maioria delas é comum a ambos, homens e mulheres. O “não ter
papas na língua” é a principal delas. Os elégún de Oyá possuem temperamento
esquentado, segundo a Ialorixá Nilza d’Ogum; são atrevidos, audaciosos, de
personalidade forte, sinceros e leais. Ela diz que o não pensar, em determinadas
ocasiões, talvez seja a sua característica mais negativa, ou desfavorável. Devido ao
perfil mais intenso, os iniciados de Oyá “partem para o confronto sem pensar duas
vezes”. A Ialorixá cita várias histórias trazidas em suas memórias em seus 36 anos
102

de iniciada. Para ela, falar de Oyá “é muito fácil”, pois convive com sua filha carnal,
Ialorixá Denise d’Oyá, iniciada há 25 anos. Continua dizendo que “conhece bem os
altos e baixos desse ancestral”.

Figura 15 - Ialorixá Nilza d’Ogum em seu Ilê Asé. Maio de 2014.

Diante desse contexto, e com as bênçãos de todos os meus mais velhos e a


benção das sábias palavras da Ialorixá Nilza d’Ogum, percebo Oyá como o ancestral
da transformação. Como a brisa que acalenta e refresca, mas que pode tornar-se
um vendaval, destelhando casas e arrastando tudo o que estiver no seu caminho. O
vento não se pega, sente-se. E é dessa maneira que sinto o ancestral em minha
vida nesses 27 de iniciação. É claro que não tenho aqui a intenção das
comprovações genéticas de filiação. No entanto, sei que sou seu filho. Sou herdeiro
de suas memórias e histórias. Seus feitos milenares marcam meu comportamento.
Minha cabeça e meu corpo são o seu principal ojubo. Muitas das características
pesquisadas por todos os intelectuais97 e aquelas citadas por todos os que me

97
Cf. Santos, 1986; Verger, 2002.
103

antecederam habitam em mim. Cabe esclarecer que é importantíssimo para o


iniciado conhecer o seu ancestral.
Como citado neste estudo, a iniciação é espaço de conhecimento, de
aprendizagens para a vida ritualística, mas não se dicotomiza as aprendizagens com
a vida social. Assim, é por meio do conhecer, do apropriar-se das histórias contadas
e cantadas, dos banhos e das rezas, do ajeum98 e das danças, das cores e amuletos
que o iniciado deve aprender a lidar com seu ancestral. Esse processo identitário se
dá no dia a dia, ou seja, o ritual iniciático é o ponto de partida, e não a linha de
chegada. Independentemente do tempo de iniciado que o elégùn tenha, ele
aprenderá sempre, como em qualquer espaço cultural.
Retomamos, nesse contexto, o conceito de cultura estruturado por Sodré
(2005): relacionamento intenso e ativo com o real que se dá no aqui e agora das
relações, nas trocas constantes, nos jogos culturais e nas negociações.
Salientamos, ainda, que é papel das relações iniciáticas/míticas neutralizar as
características desfavoráveis do ancestral nas ações do adepto, assim como deve
intensificar as favoráveis. O que estamos dizendo aqui é que há vários itans que
trazem passagens dos feitos dos ancestrais que apresentam atitudes respaldadas
por um contexto sócio-histórico-político-cultural; contextos milenares. Contextos que
se respaldaram em uma concepção de homem, e que não se respaldariam na
concepção contemporânea de homem. Vejamos: há um itan que retrata que Oyá foi
esposa de quase todos os ancestrais masculinos. Em um período de guerras e
posses de terras, ela fugia para terras distantes e relacionava-se amorosamente
com o ancestral, rei das terras que a abrigava. No entanto, há algumas
interpretações, a partir deste itan, que generaliza, nos dias atuais, que os elégùn de
Oyá são infiéis, volúveis, promíscuos e/ou vulgares. Argumentamos que, não se
pode desconsiderar o momento retratado no itan, e, ainda, que a constituição das
identidades não são apartadas do livre-arbítrio de cada um.
Desse modo, as comunidades de cultos negros constituíram-se como um
espaço que propicia a reinvenção das identidades por ser genealogicamente um
espaço de trocas, de reelaborações, de acordos culturais, de diálogo, de
preenchimento de vazios (BARATA, 2012). O indivíduo, ao ritualizar, constitui-se
ritualístico em sua vida, em suas práticas diárias, nas suas relações, nas suas

98
O mesmo que comida na linguagem dos cultos negros brasileiros.
104

escolhas, em suas identidades. A iniciação, nesses espaços, propõe identidades


que se misturam, fluem, circulam, emergem, movimentam-se, transitam entre o real
e o mítico. Não se é elégùn somente no espaço de cultos ou em contato com os
seus pares. É no espaço de cultos que se torna um elégùn. Entretanto, a partir da
efetivação de sua iniciação, ou seja, da concretude do ser elégùn, o adepto assume
essa identidade em todos os momentos e espaços da vida cotidiana (e não somente
nos momentos e espaços de cultos).
De acordo com a Ialorixá Ana d’Oxum, “ser elégún, ser iniciado de orixá é ser
um canal de constante comunicação entre o visível (o indivíduo) e o invisível (o
ancestral)”. Segundo ela, uma vez iniciado o indivíduo, o ancestral o intui, “fala ao
ouvido”, orienta-o/aconselha-o para as decisões da vida. Desta maneira, é possível
perceber que, todos os conhecimentos apreendidos fazem parte das identidades dos
adeptos e direcionam seus olhares, visão de mundo e os seus modos de integrar e
interagir com o mesmo. As identidades, nesse caso, são formadas na interação
entre o eu e a comunidade de culto e, ainda, nas relações com o mundo exterior à
comunidade religiosa.
105

3 ELÉGÙN – (RE)INVENÇÕES SOCIORRITUALÍSTICAS

3.1 O ancestral divinizado e o indivíduo – o côncavo e convexo em um mesmo


ser – o elégùn

Até aqui propusemos, mediante as histórias dos feitos dos cultos negros que
se reelaboraram no Brasil e as vivências dos iniciados que compõem esse estudo,
perceber as comunidades de cultos negros brasileiros como espaços intensos,
plurais, reais e, principalmente, constitutivos de identidades. Propusemos, ainda, o
entendimento de que esses espaços são repletos de movimentos próprios que
articulam os rituais e as simbologias que os reinventam em um devir mediante seus
cultos. Reafirmamos que tais cultos foram disseminados pelo vasto patrimônio negro
africano que para cá migrou no movimento da grande diáspora negra.
Segundo Sodré (2002), os cultos desenvolvidos nas comunidades de terreiro
representam uma associação litúrgica, sendo que foi por meio das organizações
pautadas nesses espaços que o patrimônio das culturas negro-africanas foi
reelaborado, possibilitando a prática dos seus rituais nesse lado do Atlântico. Esse
autor utiliza a palavra patrimônio no sentido de lugar próprio. Ele nos diz que

ela tem em sua etimologia o significado de herança: é um bem ou conjunto


de bens que se recebe do pai (pater, patri). Mas é também uma metáfora
para o legado de uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a
um grupo (SODRÉ, 2002, p. 50).

Nessa concepção, o ancestral divinizado está no legado do patrimônio dos


cultos negros africanos que migraram para o Brasil. Eles são, para os seguidores
dos cultos, o vínculo com as “nações africanas”, com o sagrado, o veículo de
energias. Para eles, os ancestres divinizados regem as energias encontradas nos
ventos, nas águas (dos rios, mares, cachoeiras, dos encontros das águas), nos
trovões, nos raios, nas matas, nas pedreiras, nas ervas, nas encruzilhadas, nas
estradas, dentre outros. As energias são as moradas do sagrado para os iniciados
nos cultos negros brasileiros. É como se elas fossem o seu hábitat natural. Vale
pontuar que, nos cultos negros brasileiros, essas energias têm o domínio dos
106

ancestres; são governadas por eles. Nas histórias contadas pelos “mais velhos” nas
comunidades de cultos são comuns os esclarecimentos de que “Olorun deu à
regência das energias da natureza aos ancestrais”. São vários os itans que
representam os ancestres como os responsáveis pelas energias emanadas da
natureza99.
Cabe ressaltar que muitos autores referem-se aos orixás como deuses, outros
os tratam como a personificação das forças da natureza; no entanto, amparados em
Santos (1986), Salami (1997) e Verger (2002, 2007, 2011), defendemos que os
mesmos são ancestrais divinizados. De qualquer forma, essa discussão é antiga nos
espaços de cultos e a relação que neles se estabelecem passa pelo crivo da fé, do
sentir as energias, do simbólico, das práticas ritualísticas e, principalmente, das
interpretações dos elégùn.
De acordo com as pesquisas feitas por Santos (1986), muitos autores
sustentam que os orixás são ancestrais divinizados que durante suas vidas foram
chefes de linhagens ou de clãs que, por seus feitos excepcionais, transcenderam os
limites de suas famílias ou de sua dinastia. Nesse contexto, eles passaram a ser
cultuados por seus descendentes que ampliaram tais cultos por outros clãs,
alcançando, assim, uma abrangência maior. A pesquisadora ressalta, no entanto,
que não é seu propósito discutir uma possível hipótese de uma longínqua gênese
humana dos orixás (SANTOS, 1986, p. 103). No entanto, ela faz questão de frisar
que os ancestres divinizados/orixás estão associados à origem da criação e sua
própria formação e seu axé foram emanações diretas de Olorun100. Seguindo a
mesma abordagem da antropóloga, Verger também lida com o orixá como conceito

99
Ver Salami (1997); Verger (2002, 2007, 2011).
100
Vale esclarecer que, nos cultos negros brasileiros, há também uma forte influência dos ancestres
que não são considerados divinizados. É o caso dos egúngún. De acordo com os Babalorixás e as
Ialorixás que participaram deste estudo, os egúngún foram ancestres ligados à rotina sociocultural
das comunidades de cultos e/ou vinculados às relações constituídas pelos iniciados (familiares,
amigos etc.). Eles ressaltam, ainda, que, apesar de não serem orixás, os egùn são fundamentais
para a dinâmica das comunidades, zelando e cuidando, inclusive, para o bem estar de todos que
compõem à comunidade. Assim, explicam que há rituais específicos para se louvar e cultuar os
egún, no entanto, não são todos os iniciados que podem participar desses rituais. Os zeladores
afirmam que os egún são energias muito “quiziladas”, ou seja, enfurecidas, coléricas etc.
Esclarecem, ainda, que em sua grande maioria, não há a participação de mulheres nesses cultos, a
não ser daquelas que possuem cargo elevado na comunidade ritualística. Segundo Santos (1986, p.
102), “os orixás estão especialmente associados à estrutura da natureza, do cosmo; os ancestrais,
à estrutura da sociedade”.
107

de ancestral divinizado. Para ele, os orixás, ainda em vida terrena, estabeleceram


vínculos que lhes garantiram um controle sobre determinadas forças da natureza.
Verger, abordando a questão do orixá como ancestral divinizado, traz a
existência histórica deles para as comunidades de cultos, remetendo-nos, assim, à
chegada de seus cultos e ritos a essas terras pelo fluxo compulsório do período das
grandes navegações. Ao destacar sua existência histórica, Verger acentua aos
orixás as características existentes nas relações sociais. Cabe pontuar que essas
relações não se descontextualizam do seu tempo. Contudo, em muitos dos seus
escritos, esse autor também se refere ao orixá como força pura, axé imaterial101.
Segundo ele, esse axé só se torna perceptível aos seres humanos quando há a
incorporação em um deles. Em ambas as hipóteses, ancestral divinizado ou força
pura, a incorporação é o canal que permite o contato dos seres humanos com os
orixás. É importante destacar que a passagem da vida terrestre à condição de orixá
desses seres excepcionais, possuidores de um axé poderoso, produz-se, em geral,
em um momento de paixão, de intensidade de sentimentos, de grandes lutas, que se
conservaram nas lembranças de seus descendentes. Essas lembranças
reelaboraram-se por gerações e são revividas nos cultos negros brasileiros, onde
sofreram (e ainda sofrem reelaborações/reinvenções). Ao consagrar-se a vida
ritualística, o elégùn está apto para a incorporação, tornando-se o veículo que
permite ao orixá voltar a terra para saudar e receber as provas de respeito de seus
descendentes que o evocaram (VERGER, 2002, p. 19) e simbolicamente relembrar
os seus feitos.
Independentemente do ato de incorporar em seus descendentes, ou seja, em
seus elégùn, os orixás também se tornam perceptíveis em suas ações,
características, trejeitos, comportamentos humanos. Para Verger (VERGER, 2002,
p. 19), existem tendências inatas e um comportamento geral, nos iniciados, que os
vinculam aos seus orixás:

como a virilidade devastadora e vigorosa de Xangô, a feminilidade elegante


e coquete de Oxum, a sensualidade desenfreada de Oiá Iansã, a calma
benevolente de Nanã Buruku, a vivacidade e a independência de Oxossi, o
masoquismo e o desejo de expiação de Omulu, etc. (VERGER, 2002, p. 33-
34).

101
Muitos dos participantes desta pesquisa demonstraram perceber o orixá como força imaterial, ou
seja, axé emanado pelo criador (Olodumarê/Deus), não acreditando em uma existência
histórica/humana.
108

Na perspectiva apresentada pelo pesquisador, percebemos que o elégùn é


“escolhido pelo orixá [...] é um dos seus descendentes” (VERGER, 2002, p. 19). A
partir do ritual de iniciação, o comportamento dele é estruturado para que o ancestral
divinizado possa “encarnar” suas características em sua mente e corpo. Verger
assinala que essas características são denominadas tendências de arquétipos da
personalidade escondida das pessoas. O autor lida com o termo “escondida” por
acreditar que certas tendências inatas não podem desenvolver-se livremente dentro
de cada um no devir de sua existência sem que elas entrem em conflito com as
regras de conduta, admitidas nos meios em que vivem (VERGER, 2002, p. 33-34).
Esses traços arquetípicos unem orixá ao seu escolhido.
De acordo com a Ialorixá Nilza d’Ogum, as características do ancestral
divinizado se mostram no indivíduo antes mesmo da sua iniciação nos cultos.
Segundo ela, há indivíduos que demonstram claramente o orixá dono de seu ori em
seus modos e trejeitos, mesmo sem serem iniciados em orixá. Entretanto, a Ialorixá
esclarece que a iniciação também tem a função de presentificar/acentuar as
características do orixá em seu filho. Notamos que o discurso de Nilza d’Ogum
segue os estudos de Verger, que afirma que o orixá escolhe o indivíduo que será
seu filho por essas tendências escondidas. O pesquisador alega que “no momento
do transe, ele comporta-se, inconscientemente, como o orixá, seu arquétipo e é
exatamente a isso que aspiram as suas tendências secretas e reprimidas”
(VERGER, 2002).
Nesse contexto, sinalizamos que os rituais que compõem a iniciação são o
alicerce para a instalação do ancestral divinizado/orixá no elégùn. Conforme citado
no segundo capítulo deste estudo, a atmosfera precisa ser elaborada no contexto do
ancestral, ou seja, suas ervas, oferendas, sacrifícios, comidas, cantigas, rezas, ofós,
itans, orikis, paramentos, os sons dos atabaques, as cores, os gestos remetem a
ele. Destacamos, também, que é importantíssima a participação e interação dos
“mais velhos” nos cultos, pois seus saberes coadunam com a atmosfera citada,
propiciando, assim, a rememoração dos comportamentos/feitos do ancestral
divinizado em seu renascimento simbólico no seu escolhido, seu elégùn.
Relembramos que, para a grande maioria dos Babalorixás e Ialorixás, a
iniciação propõe o nascimento do orixá na vida do seu iniciado. Todo o processo que
é vivido pelo adepto para tornar um iniciado em orixá, um elégùn, pressupõe o
109

surgimento de um novo sujeito, com novas práticas, novas concepções, novos


saberes, nova visão de mundo.
Leite (2008) nos esclarece que, socialmente, a iniciação se dá, basicamente
através de três momentos: separação – recolhimento – apresentação/
reintegração102. Através desses momentos, que geralmente chegam a um mês de
afastamento do convívio social103, o noviço se insere no contexto proposto por sua
comunidade de cultos. Nesse período inicia-se a relação entre ele e o seu ancestral
divinizado. A separação é o momento em que o noviço precisa se afastar das
atividades cotidianas e das relações que possui: familiares, escolares, conjugais e
profissionais. Há a necessidade do afastamento do seu mundo social; as emoções
deste não devem acompanhar/participar dos ritos iniciáticos. O recolhimento é
comparado ao período da gestão de um ser. Nesse momento o noviço é tratado
como se fosse um feto na placenta, recebendo cuidados específicos propostos pelo
ritual. Reforçamos que não pode existir contato dele com pessoas exteriores à
comunidade de cultos. Existem casos que nem mesmo sendo da comunidade de
cultos é permitido o contato com o noviço. No entanto, presentes ou não nos
momentos ritualísticos, todos os esforços e as energias dos componentes do
egbé104 devem estar voltados para o recolhido (SANTOS, 1986).
É no período do recolhimento que se dão as etapas para a concretude do
elégùn. São dias intensos e tensos. É preciso que tudo transcorra bem para que o
noviço obtenha êxito em sua vida ritualística. As aprendizagens se dão tanto para o
noviço quanto para o ancestral divinizado. Acredita-se que, nesta fase, exista uma
fundição entre eles como se fossem um único ser. Tanto o iniciado adapta-se ao seu
orixá como o orixá adapta-se ao iniciado: “é o ajuste dos corpos”, segundo a Ialorixá
Denise d’Oya. Ao final da fase do recolhimento, geralmente, ocorre uma grande
cerimônia para que seja apresentado o novo membro da comunidade de cultos à
sociedade. O ancestral divinizado é trazido ao público presente em alguns
momentos até que chega hora do seu nome ser dito por ele à comunidade. Esse

102
No que se concerne a essa estrutura tripartide dos processos iniciáticos, acreditamos que seja de
fundamental importância a consulta ao livro Os ritos de passagem, de Arnold Van Gennep (Editora
Vozes, 1997).
103
A quantidade de dias que serão utilizados no processo iniciático muda de comunidade para
comunidade, no entanto, em sua maioria, prevalece o quantitativo de 21 dias.
104
Termo que designa o sentido de comunidade de cultos; pessoas que constituem a comunidade de
cultos.
110

talvez seja o momento mais tenso de todo o processo iniciático. O oruko é a etapa
em que o ancestral divinizado identifica-se como único, através daquele elégùn em
que está encarnado no momento.
Após a grande cerimônia de apresentação vários rituais são realizados na
perspectiva de o noviço ser reintegrado ao contexto social ao qual ele sempre
esteve inserido. Ele precisa retomar suas atividades cotidianas: trabalhar, estudar
(se for o caso), voltar ao convívio de sua família, enfim, prosseguir... O grande
desafio estará em agregar o sagrado, que o vincula ao seu ancestral, as suas ações
sociais. Segundo os iniciados, uma vez elégùn sempre elégùn.
Logo, é a iniciação a grande responsável por encaixar as partes côncava e
convexa que participam do ritual iniciático, ou seja, ancestral divinizado e indivíduo.
De acordo com os iniciados, esse encaixe segue por toda a vida. Há uma
reformulação do eu a partir dele; há mudanças de comportamentos; há um
simbolismo que passa integrar às práticas cotidianas. O ancestre divinizado passa a
“viver” em suas ações.
Nessa perspectiva, a iniciação ultrapassa as fronteiras do ritual, do mítico, do
simbólico e passa a interferir no dia a dia do iniciado, saindo, assim, da
exclusividade da seara dos cultos e participando da realidade do indivíduo.
Embasados nos estudos de Sodré (2005) sobre cultura como relacionamento
intenso do indivíduo com o seu real e dos iniciados que contribuíram para esta
pesquisa, acreditamos que o elégùn é sócio-histórico-cultural, ao mesmo tempo em
que faz ritualístico nas relações que estabelece nessas esferas.

3.1.1 Ancestre e descendente – atores sociorritualísticos que se completam

O rito da iniciação constitui a genealogia da relação entre o ancestral


divinizado e seu descendente, ou seja, o elégùn. É a partir dele que a integração
entre esses dois universos torna-se constante. Nesse sentido, é no contato com os
(e dos) rituais que ambos ampliam seus conhecimentos, um sobre o outro. Pois,
segundo os Babalorixás e as Ialorixás que contribuíram para este estudo, assim
como o iniciado aprende a conhecer o seu orixá, de igual maneira o ancestral
111

divinizado conhece o seu descendente nos momentos ritualísticos. É importante


enfatizar aqui que, de acordo com os elégùn, os conhecimentos não se encerram
nos momentos de ritos vividos nas comunidades de cultos. Eles prosseguem na
relação estabelecida a partir dos rituais de iniciação.
Há uma identificação muito forte que chega a se assemelhar ao laço
sanguíneo entre pais e filhos. A partir do (re)nascimento simbólico, proposto pelos
rituais de iniciação, o adepto assume a sua hereditariedade em relação a seu
ancestre. Assim, ele passa a fazer parte da sua família ritualística. É pelo
pertencimento que as identificações emergem no noviço. Elas o unem a seu orixá.
Quanto mais contato com as representações do ancestral (ervas, cores, cantigas,
danças, performances, ferramentas, assentamentos, comidas, enfim, as suas
predileções), mais ele encarna suas identificações, incorporando-as em suas
identidades, como citado anteriormente.
As identificações, segundo os adeptos e participantes dos cultos, tornam-se
referências do ancestral no seu elégún. É comum nas comunidades de cultos negros
brasileiros seus componentes (egbé) e participantes (assistência) se referirem aos
ancestrais personificando-os em seus descendentes: “a Oyá de Denise”, “a Oyá de
Marcelo”, “o Ogum de Nilza”, “a Oxum de Ana”. Dessa maneira, acentuam ainda
mais as identificações e deixam explícito que não é “qualquer ancestre”, mas o do
iniciado citado. Nesse contexto, há individuação e individualização do ancestre em
relação a seu elégùn. Os pedidos, os clamores, as oferendas, as promessas, enfim,
a fé, são dedicadas, especificamente, àquele ancestre. Assim, o orixá referencia-se
em seu elégùn.
Do mesmo modo, há, em alguns casos, uma identificação do ancestral
divinizado, específico, ou seja, de determinado iniciado, com o egbé que ele chega a
se personificar socialmente na práxis das comunidades de cultos. O ancestre, então,
participa ativamente da rotina dos ritos, interage com os elègún, norteia ações
ritualísticas e, pode, às vezes, interferir na dinâmica proposta, ultrapassando, em
alguns momentos, a fronteira do ritual, integrando-se, de fato, com os iniciados.
Percebe-se, assim, um processo de socialização latente entre ancestre e
comunidade de cultos.
No Ilê ase orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá, que tem a liderança da Ialorixá Nilza
d’Ogum (Yá Onijádêlêwua), pude observar quase que a personificação
112

sociorritulística do ancestral divinizado Oyá, da Ialorixá Denise (sua filha genética,


conforme citado anteriormente). É comum, em vários momentos de rituais, o orixá
intervir na dinâmica da organização da comunidade. Oyá orienta na confecção das
comidas sagradas, determina funções para que os adeptos realizem, direciona as
obrigações, arruma os iniciados nos rituais, interfere na disposição dos utensílios e
dos objetos etc. O ancestral demonstra uma grande liderança que chega, em vários
momentos, a orientar a Ialorixá Nilza d’Ogum nos rituais.
Para os elégùn do Ilê ase orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá, a ancestre da Ialorixá
Denise assume o papel da grande mãe que conforta, acalenta, aconselha, briga,
educa e encaminha suas condutas e seus comportamentos. É a Ialorixá Nilza
d’Ogum quem nos diz que “a Oyá de sua filha é responsável, assim como os seus
ancestres (Ogum e Iemanjá), por sua comunidade de cultos”.
Nesse sentido, o experimentado e vivido nos rituais e nas celebrações no
referido espaço de cultos aponta para o fato de que o ancestre é latente e
participativo em várias instâncias da vida do seu elégùn, ou melhor, em todas as
instâncias. A interação demonstrada por Oyá de Denise com o egbé nos revela que
ela transcende os mitos e as histórias milenares e contextualiza-se no aqui e agora,
ou seja, na contemporaneidade em que seu iniciada atua.

Figura 16 - Oyá da Ialorixá Denise participando e orientando nos/dos cultos ritualísticos. Junho de
2014.
113

105
Figura 17 - Oyá da Ialorixá Denise nas oferendas da Ekedi Carla de Xangô. Junho de 2014.

Figura 18 - Oyá da Ialorixá Denise cumprimentando a Ialorixá Nilza d’Ogum. Junho de 2014.

105
Ekedi é cargo sacerdotal destinado às mulheres que não incorporam os ancestrais. Nos cultos
negros brasileiros elas são conhecidas como “mães” dos elégùn.
114

Figura 19 - Oyá da Ialorixá Denise dançando na fogueira destinada a Xangô. Junho de 2014.
115

Figura 20- Oyá da Ialorixá Denise orientando e interagindo nas funções sociais da comunidade de
culto. Junho de 2014.

3.2 Êpa hey, Oyá – o ancestral da transformação

Não é o acaso que traz o ancestral divinizado Oyá para este estudo, mas uma
identificação e um amor muito grandes. Mais do que uma escolha para participar
desta pesquisa acadêmica, ela é uma escolha de vida. Como já citei, há 27 anos me
iniciei em orixá, tornei-me um elégùn. Oyá é meu ancestre divinizado. Sou seu
descendente. Comprovar minhas hipóteses por intermédio desse orixá é um imenso
desafio, ao mesmo tempo em que é uma grande responsabilidade, pois é mais uma
vez compromissar-me com a ancestralidade.
Êpa hey, Oyá! Essa é a saudação dedicada à Oyá. Ela é exaltada por seus
descendentes e por seus fiéis para aclamar o ancestral divinizado nos cultos e
rituais. Êpa hey, para o egbé, é a aclamação ao sagrado. Para seus iniciados são
palavras envoltas de axé, de força ativa e vibrante, de sentidos, de significados
próprios, de vida. Com esse chamamento o adepto busca o contato com o orixá. É
como se nós disséssemos: estou aqui! É como se chamássemos a atenção e a
proteção do ancestre.
116

Oyá é o orixá que rege os ventos, as tempestades, os raios; tem o domínio


sob os ancestres não divinizados; é considerada responsável pelas transformações,
e, em solos africanos, é o orixá do rio Níger106 (VERGER, 2002, p. 168). Cabe
destacar que o rio que nomeia o ancestral é um dos mais importantes da Nigéria,
além de ser sua morada para os nagôs.
Oyá foi uma das mulheres de Xangô, e, de acordo com a historiografia, ela
era a preferida do orixá do trovão e guerreiro das grandes batalhas. Seu principal
elemento da natureza é o ar, mas também se vincula à água e ao fogo.
Observemos este oriki dirigido a Oyá, apresentado por Verger (2002, p.
169):

Oyá, mulher corajosa que, ao acordar, empunhou um sabre.


Oyá, mulher de Xangô.
Oyá, cujo o marido é vermelho.
Oyá, que embeleza seus pés com pó vermelho.
Oyá, que morre corajosamente com o seu marido.
Oyá, vento da morte.
Oyá, ventania que balança as folhas das árvores por toda parte.
Oyá, a única que pode segurar os chifres de um búfalo.

Verger (2002) nos diz que destaca em sua obra este oriki por acreditar que
ele descreve bem o ancestral. Nesse contexto, é possível notar vários os títulos
dedicados a Oyá: “mulher corajosa, mulher de Xangô, vento da morte, ventania”
(VERGER, 2002, p. 169). Esses títulos também a acompanharam na migração e
reelaboração dos cultos negros no Novo Mundo. Entre títulos, orikis, itans e outras
formas de ritos, verbais ou não, Oyá chega a essas terras impregnada nas
memórias e nos corpos de seus descendentes africanos. Em cada ofó, em cada
gesto, em cada cantiga, em cada dança, no cheiro do dendê, no gosto de sua
iguaria predileta, nas cores que a identificam, enfim, nas suas representações e
identificações, o ancestral se instalou nas comunidades de cultos negros brasileiros.
Nesses espaços, Oyá também ficou conhecida como Iansã. Há um itan muito
contado e relembrado pelos adeptos dos cultos negros que esclarece o porquê
dessa denominação. Esse mesmo itan é retratado nas obras de Verger (2002, P.
169).

106
Níger em ioruba é conhecido como Odò Oya e, segundo Verger (2002, p. 168), é a principal
explicação do nome desse orixá.
117

Oyá lamentava-se de não ter filhos. Esta triste situação era consequência
da ignorância a respeito das suas proibições alimentares. Embora a carne
de cabra lhe fosse recomendada, ela comia carneiro. Oyá consultou um
babalaô, que lhe revelou o seu erro, aconselhando-a a fazer oferendas,
entre as quais deveria haver um tecido vermelho. Este pano, mais tarde,
haveria de servir para confeccionar as vestimentas dos Egúngún. Tendo
cumprido essa obrigação, Oyá tornou-se mãe de nove crianças, o que se
exprime em ioruba pela frase: “Iyá omo mésàn”, origem de seu nome Iansã

A referida obra, ao abordar o itan, expressa uma passagem significativa vivida


pelo ancestral: a impossibilidade de gerar filhos. No contexto sociocultural em que
ela se inseria, Oyá busca a solução do problema que lhe aflige. Entretanto, esse
mesmo itan, rememorado até hoje nas comunidades de cultos, retrata, também, o
vínculo de Oyá a egúngún, ou seja, aos ancestrais não divinizados, o que
consequentemente explica o porquê de sua relação com a morte para os seguidores
desses cultos. Explica, ainda, o porquê de algumas interdições imputadas aos seus
descendentes/iniciados, como é o caso de não se comer a carne de carneiro e, em
outros, o uso da cor vermelha. Tais atitudes não são recomendadas para os elégùn
de Oyá. Na iniciação ritualística é apregoado a eles que o que era interdição para o
seu ancestral divinizado também é interdição para o iniciado.
Há, também, a interdição à abóbora. Segundo os mais velhos nos cultos, Oyá
comia abundantemente abóbora, e assim como a carne de carneiro (conforme
citado), a sua ingestão também trazia infertilidade à ancestre. Cabe esclarecer que
na reelaboração dos cultos nas comunidades brasileiras o conceito de (in)fertilidade
não se pauta exclusivamente em gerar filhos, mas amplia-se à prosperidade, ou
seja, ao infringir as regras das interdições, o iniciado pode acarretar dificuldades
para a sua vida material107.
É comum nos espaços de cultos serem contadas histórias sobre os ancestrais
divinizados e sobre os iniciados mais velhos na comunidade para os noviços. Para
eles, é mais uma oportunidade de conhecer sobre o seu orixá e, ainda, de aprender
com as experiências vividas pelos ebômis. Tais histórias são encantadas e
fascinantes: são elos entre o humano e o sagrado. Por intermédio delas há
comunicação e apropriação de saberes. A Ialorixá Denise d’Oyá alega que os itans

107
Na grande maioria das comunidades de cultos as interdições prevalecem até o iniciado conquistar
a maior idade ritualística, ou seja, tornar-se um ebômi (aquele que tem mais de sete anos de
iniciado com obrigações/oferendas pagas/dadas). No entanto, há adeptos que, mesmo após os sete
anos de iniciação, optam pela não ingestão dos alimentos que foram interdições para o seu
ancestral pelo conceito imputado à fertilidade como prosperidade. Vale ressaltar que os ritos nos
cultos são arraigados de simbologias e simbolismos.
118

que reproduzem as vivências da ancestral são envolvidos por paixões, rompantes e


conflitos. Para ela, isso ocorre porque o orixá apresenta características marcantes e
temperamento “mais esquentado”. A Ialorixá relembrou o itan que identifica Oyá com
um búfalo. Ela esclareceu que essa é a história da ancestral que mais a toca, que
mais lhe mostra o seu temperamento.
Encontramos o itan, citado pela Ialorixá, retratado na obra de Verger (2002, P.
169):

Ogum foi caçar na floresta. Colocando-se à espreita, percebeu um búfalo


que vinha em sua direção. Preparava-se para mata-lo quando o animal,
parando subitamente, retirou a sua pele. Uma linda mulher apareceu diante
de seus olhos. Era Oiá. Ela escondeu a pele num formigueiro e dirigiu-se ao
mercado da cidade vizinha. Ogum apossou-se do despojo, escondendo-o
no fundo de um depósito de milho, ao lado de sua casa, indo, em seguida,
ao mercado fazer a corte à mulher-búfalo. Ele chegou a pedi-la em
casamento, mas Oiá recusou inicialmente. Entretanto, ela acabou
aceitando, quando, de volta à floresta, não mais achou a sua pele. Oiá
recomendou ao caçador não contar a ninguém que, na realidade, ela era
um animal. Viveram bem durante alguns anos. Ela teve nove crianças, o
que provocou ciúme das outras esposas de Ogum. Estas, porém,
conseguiram descobrir o segredo da aparição da nova mulher. Logo que o
marido se ausentou, elas começaram a cantar: ‘Máa je, máa um, àwò re
nbe nínú àká, ‘Você pode beber e comer (e exibir sua beleza), mas a sua
pele está no depósito (você é um animal)’. [...] Oiá compreendeu a alusão,
encontrando a sua pele, vestiu-a e, voltando à forma de búfalo, matou as
mulheres ciumentas. Em seguida, deixou os seus chifres com os filhos,
dizendo-lhes: ‘Em caso de necessidade, batam um contra o outro, e eu virei
imediatamente em vosso socorro’.

Esse itan reafirma Oyá como uma mulher destemida, enfurecida (quando
contrariada e/ou desafiada) e leal. Deixar “seus chifres”, como representação de um
búfalo, com seus filhos para que, em caso de necessidade, eles pudessem clamar o
seu socorro é uma simbologia dessa lealdade e da paixão sentida por eles. “Seus
chifres” representam o elo entre o orixá e seus descendentes. Por essa razão a
ancestral é caracterizada em muitas comunidades de cultos como um búfalo e,
ainda, haver chifres desse animal colocados nos locais consagrados a Oyá. Para
nós, seus seguidores, eles simbolizam a proteção da ancestre. Nos rituais dedicados
a Oyá é comum ter um iniciado seu batendo chifres de búfalos. Segundo a Ialorixá
Leila d’Oyá, essa representação, geralmente, objetiva clamar a vinda do orixá para
receber suas honrarias e oferendas e, consequentemente, agraciar a todos com a
sua proteção.
119

Ainda pautados no referido itan, percebemos sua união com Ogum, orixá
vinculado à caça e ao ferro. No entanto, a historiografia voltada para os cultos
negros africanos e negros brasileiros chama a atenção pela paixão intensa da
ancestral por Xangô. Há relatos ainda de seu envolvimento amoroso com Oxóssi e
com Omulú (como citado no capítulo anterior).

O arquétipo de Oiá-Iansã é o das mulheres audaciosas, poderosas e


autoritárias. Mulheres que podem ser fiéis e de lealdade absoluta em certas
circunstâncias, mas que, em outros momentos, quando contrariadas em
seus projetos e empreendimentos, deixam-se levar da mais extrema cólera
[...] (VERGER, 2002, p. 170).

No perfil retratado pelo pesquisador sobre a ancestral divinizada, é possível


vermos Oyá como uma mulher à frente do seu tempo quando comparada com
outras ancestrais divinizadas femininas. É fundamental situarmos o contexto
temporal e cultural em que as características da ancestre são postas, ou seja, uma
época em que as mulheres serviam os seus maridos como seus donos e senhores.
No entanto, as histórias nos cultos negros expressam Oyá como a guerreira ao lado
de Xangô, a destemida e desbravadora e com relacionamentos amorosos diversos.
A Ialorixá Nilza d’Ogum levanta a seguinte questão: como romper com os conceitos
de moral e ”bons costumes” determinados pela sociedade vigente sem se arranhar?
Segundo ela, não se pode desvincular as dificuldades enfrentadas pela ancestral, e
nesse contexto, ela cita o preconceito.
Segundo a Ialorixá e, ainda, segundo os relatos de vários ebômis, houve um
período que os iniciados de Oyá eram discriminados em muitas rodas de candomblé
devido ao arquétipo do seu orixá. De acordo com eles, havia uma interpretação
errônea por parte dos iniciados dos outros orixás que levavam “ao pé da letra” as
histórias que retratavam os feitos da “Senhora das Ventanias”. O preconceito atingia
os iniciados, principalmente no que tangia às relações amorosas da ancestral, e,
assim, imputavam-nos adjetivos de volúveis, infiéis, voluptuosos, indecentes,
insaciáveis, dentre outros. Durante um longo tempo os iniciados de Oyá eram
atrelados a um comportamento promíscuo e, às vezes, até mesmo vulgar 108.
Percebemos nesses relatos uma interpretação equivocada que marcou uma época

108
Vale acentuar, aqui, que os iniciados que compartilham dessas ideias possuem mais de 25 anos
de iniciação nos cultos, o que contextualiza um comportamento social que não está apartado das
concepções culturais de uma determinado momento histórico.
120

na história vivida pelos iniciados mencionados. Embora a perspectiva da


ancestralidade, cultuada nas comunidades ritualísticas, apresente uma forte
influência dos ancestres divinizados nas ações e comportamentos dos elégùn,
chegando, em alguns casos, a assumir o viés de hereditariedade, não se deve
apartar o envolvimento do real, do local, da práxis e referências do sujeito nesse
contexto. É um risco abandonar, nesse processo, a bagagem cultural trazida pelo
indivíduo como sujeito social. Suas vivências, suas relações, suas aprendizagens
não são efetivamente apagadas de suas memórias.
Vale sinalizar que é função do processo iniciático atenuar os infortúnios e as
interdições vividas pelo ancestral divinizado para que não se repitam ou ainda que
sejam reproduzidos nas ações/feitos dos iniciados. Aquilo que não foi favorável para
o ancestre deve ser evitado pelo elégùn. Logo, é mediante interação e conhecimento
constante dos atropelos/negativos enfrentados por ele que o descendente poderá
evitar e/ou amenizar problemas no presente. Nesse contexto, recorremos ao próprio
exemplo do orixá Oyá: seu temperamento impulsivo e explosivo acarretou, segundo
os relatos dos mais velhos nos cultos, consequências desfavoráveis retratadas em
itan e em outros registros litúrgicos. Assim, é orientado nas comunidades de cultos
que, de posse dessas passagens vividas pela ancestral, o elégùn precisa evitar essa
reprodução em suas atitudes para se precaver das referidas consequências em sua
existência. No entanto, de acordo com os iniciados de Oyá, não é nada fácil esse
processo. É luta constante consigo mesmo; é um vigiar-se constantemente; é
confronto interno e, na grande maioria das vezes, não é controlável. Por maior que
seja a atenção e o cuidado de si, a explosão de temperamento é uma constante no
perfil desses iniciados. Destacamos, nessa abordagem, que o livre-arbítrio não é
desconsiderado nessa arena; contudo, segundo as Ialorixás Leila e Denise, em
alguns momentos, o enfrentamento para os filhos de Oyá é vital.
Nesse contexto, corroboro com as observações das Ialorixás no que se refere
a controlar impulsividades e, em alguns momentos, até mesmo aos rompantes
emocionais. Não é tarefa fácil, para nós, elégùn desse ancestral, contornar situações
de conflito. Quando nos damos conta, já estamos no meio dele, enfrentando,
desafiando, lutando. As sensações e emoções parecem ser incontroláveis nos
momentos de desafios. É algo que sentimos; simplesmente sentimos, mas não
sabemos explicar. Como bem disseram as Ialorixás: é vital.
121

Nas comunidades de cultos negros, em razão dos itans reelaborados aqui,


pelas histórias criadas nas memórias dos iniciados mais velhos, é comum atrelar o
ancestre à representação de um búfalo (como citado anteriormente) e de uma
borboleta. A primeira representação encontra respaldo na liturgia negra ritualística e
a segunda, na simbologia com a transformação ocorrida para que a lagarta
transforme-se em borboleta. Para muitos iniciados de Oyá, ambas
representações/simbologias são sagradas.

3.3 Axé – forças necessárias para o elégùn

De acordo com os ebômis, as comunidades de cultos negros brasileiros, em


sua maioria, propõem, em suas estruturas, um protocolo sistemático para que o
iniciado possa organizar-se para cultuar o seu ancestral divinizado e, assim,
aproximar-se mais dos ritos e das práticas constitutivas de axé. Assim como as
aprendizagens pedagógicas se constituem em um protocolo de rotinas que buscam
simbolizar os conhecimentos, dando-lhes sentido, as atividades ritualísticas também
se pautam em práticas rotineiras que objetivam a apropriação dos conhecimentos
específicos por parte do adepto para lidar com as estruturas dos ritos do seu
ancestre.
A Ialorixá Denise d’Oyá nos conta que se iniciou muito nova para o ancestral
Oyá. Relembra que tudo era muito novo para ela. Ela nos esclarece que, mesmo
tendo sua mãe genética iniciada em orixá, a iniciação foi uma “nova apresentação
do mundo a sua volta”. Afastar-se dos seus familiares e amigos e passar a conviver
com pessoas que, em parte, não sabem de você, das suas histórias, de seus medos
e angústias, de suas fraquezas, de seus defeitos e qualidades foi muito difícil
segundo ela. A Ialorixá lembra que havia várias etapas de uma rotina que
prosseguia de acordo com a evolução do processo iniciático. Dessa maneira, a
dinâmica do protocolo mudava de tempos em tempos conforme o proposto pelos
rituais e a maturidade/responsabilidade do noviço.
Segundo ela, após os rituais de reintegração que propõem o retorno às
atividades socioculturais desenvolvidas pelos elégùn, na perspectiva de uma
122

reaprendizagem dessas atividades, ocorre uma rotina semanal que pretende manter
ativo o contato do noviço com seu orixá; “manter aceso o axé”. Cabe ressaltar que
as elaborações de condutas, as formulações dos movimentos ritualísticos e a
conexão com a ancestralidade são pilares que sustentam a relação que se
apresenta nessa fase. Ela nos explica que, ainda no período do quelê109, há uma
prática intensa de ritos por parte do iniciado. A Ialorixá expõe que no seu período de
quelê vivia mais em sua comunidade de cultos do que no convívio com os seus
familiares.
Dessa mesma maneira, a Ialorixá Daniele d’Oyá nos conta que viveu de
forma idêntica essa fase. Há uma concordância nas falas das duas Ialorixás quando
nos esclarecem como se processou esse período de suas vidas ritualísticas. De
acordo com ambas as iniciadas, essa fase é como se o elégùn fosse um bebezinho,
um recém-nascido que necessita estar em contato com o colo dos seus pais110,
adquirindo sua atenção, proteção e benção. Nesse contexto, elas dormiam nos seus
respectivos espaços de culto no dia da semana consagrado ao seu ancestre, a
quarta-feira111, no dia do ancestre de seus zeladores e no dia consagrado ao
ancestral Obatalá (também conhecido como Oxalá), a sexta-feira. Esses dias eram
constituídos de banhos de ervas, oferendas de comidas secas112, rezas, recitação
de orikis e ofós, além de, em alguns momentos, cantar e dançar para os ancestrais
divinizados.
Com essas celebrações semanais, segundo os ebômis, a circulação de axé é
constante na vida dos iniciados, impregnando, assim, o orixá em seu ori e corpo.
Logo, praticar e exercitar os ritos, ou seja, as danças, as cantigas, a confecção das

109
Quelê é um cordão feito de búzios e missangas da cor da preferência do orixá que fica “preso” ao
pescoço do iniciado por um determinado período. A Ialorixá explica que no tempo em que foi
iniciada, esse período era de três meses. Durante esses meses ela tinha dias e horários
determinados para estar no barracão. Esclarecemos, ainda, que nesse período o iniciado é tratado
como se fosse um recém nascido, recebendo vários cuidados ritualísticos.
110
Vale lembrar que nas comunidades de cultos negros brasileiros os ancestrais divinizados/orixás
são tratados por seus iniciados como “pai ou mãe”, e nesse contexto eles são tratados de “filhos”.
111
As comunidades de cultos negros brasileiros vinculam os dias da semana para se cultuar e louvar
os orixás. Cada ancestral divinizado que migrou nas memórias e nos ritos dos negros africanos para
essas terras tem um dia dedicado a seu culto. Assim, a quarta-feira é o dia dedicado a Oyá.
Destaca-se que, independentemente da nação à qual o espaço esteja ligado (Angola, Congo, Kêtu,
Jeje, Efon, Ijexá), este dia é comum a todos.
112
Termo utilizado para as oferendas que contêm cereais cozidos ou torrados, frutos sagrados (obi e
orobô), frutas frescas, dentre outros, mas não há sacrifícios de animais.
123

comidas, os banhos de ervas, enfim, a interação com as representações do orixá dá


prosseguimento à formação ritual do noviço.
Assim, no contexto do ritual, bater a massa do acarajé 113 é manter a energia
vital, quinar as ervas para os banhos, enfiar as missangas para fazer os elequés114
(fios de conta), rezar, cantar etc. é celebração de axé; encher as quartinhas 115,
reproduzir a performance do orixá nas danças é vínculo com a ancestralidade; é
encontro de forças (iniciado e ancestral divinizado), ou seja, é significação de
sentidos. As Ialorixás falam de maneira clara e objetiva que somente aprende e
apreende quem convive e ritualiza nos espaços de cultos.
Por isso, explica a Ialorixá Daniele d’Oyá, o contato dos iniciados com as
“coisas” do orixá é estimulado frequentemente nos ritos, na perspectiva de
identificação e apropriação. É na rotina desse contato que o ancestral, a partir do
ritual de iniciação, dá continuidade à incorporação de traços, gestos, modos, no
comportamento do iniciado e, dessa maneira, amplia a sua identificação nele (no
iniciado). Pode-se dizer que é no contato com as “coisas” de seu ancestral que o
descendente formula as suas identificações e um diálogo próprio, acentuando,
assim, o axé do seu orixá em si.
Há um forte consenso entre os Babalorixás e as Ialorixás que participaram
neste estudo no que se refere às práticas rotineiras dos iniciados. Para eles, o fim
dos ritos iniciáticos (a reintegração à vida social) não representa o fim do processo
de aprendizagem. Ao contrário, pode-se mesmo dizer que se trata do princípio, uma
vez que somente depois da iniciação que o elégùn passa a ser “um terreno fértil”
(VERGER, 2002) para que o ancestral divinizado possa retornar ao tempo presente
livremente e, de certa maneira, interagir com seus descendentes e devotos.
Na experiência vivenciada por eles, o domínio do manejo de instrumentos e
representações dos orixás se dá em momentos formais e informais, ou seja, nos
rituais sagrados e nas práticas cotidianas das comunidades de cultos. Percebe-se,
assim, nesses ritos a existência de um treinamento que objetiva estreitar os laços

113
Expressão utilizada pelos adeptos dos cultos negros brasileiros para se preparar a massa do
acarajé que é composta de feijão fradinho descascado e moído, temperado com cebola e pimenta.
114
Eléques são fios de contas (missangas) maiores que os quelês. A diferença entre eles está na
utilização, pois o eléques podem ser retirados do pescoço a qualquer momento, enquanto os quelês
ficam no pescoço no período da iniciação e nas obrigações de renovação.
115
Jarro pequeno de barro ou louça que compõe o assentamento do orixá para se colocar água. No
caso de Oyá, geralmente são quartinhas de barro pelo seu vínculo a egun; a terra.
124

entre descendente e ancestre. Assim, percebemos, mais uma vez, a


intencionalidade da fixação das aprendizagens de práticas ritualísticas (rotineiras)
com o disciplinar um comportamento esperado.
O axé do orixá, segundo os iniciados mais velhos, vai se intensificando no dia
a dia pelos encontros nos espaços de cultos, ou seja, nas rodas de candomblé, na
preparação das comidas dos orixás, no cuidar das novas iniciações, nos boris dos
adeptos e, também, auxiliando aos ebômis nos afazeres que são de sua
competência. As comunidades de cultos compreendem movimentos que propõem
sentidos e aguçam as aprendizagens. Tais movimentos significam-se na circulação
e trocas de energias, nos contatos com o egbé e nas suas bênçãos. De acordo com
a Ialorixá Denise d’Oyá, quanto mais se trocam bênçãos, mais os adeptos recebem
o axé dos seus orixás; quanto mais se pede benção aos mais velhos, mais
afortunado de boas energias o noviço será, mais ele aprenderá com a sabedoria dos
que lhe antecederam.
Podemos refletir, diante do apresentado, que há humildade no ato de trocas
de bênçãos, ao mesmo tempo em que os iniciados com essa prática reconhecem e
respeitam os ancestrais divinizados uns dos outros. Pontuamos que a ação de se
trocar as bênçãos ocorre sempre que os participantes dos cultos se encontram, e
não somente nos momentos de rituais. Essa prática também os acompanha na vida
social.
A humildade deve ser o pilar de sustentação do caminho trilhado por todo
iniciado, segundo a Ialorixá Nilza d’Ogum. Ela nos diz que orixá é preceito, privações
e provações. De acordo com a ebômi, a vaidade e a soberba não encontram espaço
no celeiro da ancestralidade, mas nas teias tecidas nos convívios mundanos. Na
perspectiva apresentada, ser humilde é uma virtude e, como tal, deve ser
desenvolvida nas práticas diárias.

Quando me iniciei em orixá tudo era muito diferente, havia mais dedicação e
menos vaidades. O santo ensinava a gente a lidar com as adversidades da
vida. Por mais problemas que se enfrentasse, havia mais confiança, ao
mesmo tempo em que se tinha a certeza que tudo seria resolvido, que
nosso santo nos livraria daquela dificuldade. As provações serviam para
testar a nossa fé e dedicação ao santo e no nosso axé. Era preciso ser
paciente e humilde. Nossa atitude era sempre de respeito ao santo e aos
nossos mais velhos. Mantínhamos nossa cabeça baixa ao ouvir um
ensinamento de um iniciado mais antigo que nós na vida do santo. Aprendi
muito com os meus mais velhos, com meus tios e primos de santo, e a cada
ensinamento, lhes tomava benção (IALORIXÁ NILZA D’OGUM, 2013).
125

Nas palavras saudosas de Mãe Nilza (é como todos do seu egbé lhe tratam
carinhosamente), percebemos que a humildade era essencial para que as
aprendizagens acontecessem, para que o elégùn pudesse contar com a sabedoria e
apoio dos “mais velhos” na resolução dos problemas enfrentados. Logo, a “postura
de cabeça baixa” contextualizava as posições de cada um nas relações que se
propunham, segundo a Ialorixá. Assim como citado anteriormente pelas Ialorixás
que participaram desta pesquisa, Mãe Nilza alega que para se aprender é preciso
conviver no espaço de cultos; é preciso respeitar os mais velhos e também os mais
novos e, ainda, demonstrar sempre boa vontade na realização das tarefas ou do que
for solicitado.
Nesse prisma, observamos que o axé é praticado, exercitado, sentido,
dançado, gesticulado, saboreado, visualizado, preparado e, principalmente,
compartilhado e vivenciado. Ele pressupõe trocas de energias e emoções entre
todos os participantes (ancestral divinizado–elégún–egbé–animal–vegetal–mineral).
É como se o axé fosse o combustível necessário para que as engrenagens dos
cultos negros brasileiros se movimentassem. Ele é ativo, dinâmico, plural,
agregador... é sentidos.
Para todos nós, seguidores desses cultos, ter axé é fundamental, pois ele tem
relação com tudo o que é importante para o bom desempenho da vida em seus
aspectos espirituais e materiais, com positividade; com boa sorte, com prosperidade,
com concretude. No egbé, ter axé significa o bom equilíbrio entre essas duas
esferas: espiritual e material. Todo o encantamento proposto nos rituais sugere a
existência do axé tanto no espaço geográfico quanto na vida de seus iniciados e
participantes. Por isso, quando falamos a expressão “axé”, é o mesmo que dizer
“tudo dará certo” em ambos os planos (espiritual e material).
A expressão axé é comum entre adeptos dos cultos negros brasileiros. Ela é
abrangente. Está presente em vários contextos utilizados por nós. Seja para
sacralizar ritos, na finalização das falas de iniciados mais velhos nos cultos, para
saudar os ancestrais divinizados, no diálogo entre irmãos, enfim, ela alicerça
relações.
Vale salientar que o axé se insere no terreno das culturas negras. Ele é
arraigado de encantamento, de sedução, de fascinação, de envolvimento (SODRÉ,
2005, p. 120). Logo, a cultura ocidental, imersa na concepção de verdade única,
126

distancia-se dos seus sentidos. Sua realização se dá no devir dos acontecimentos


ritualizados, ou seja, na realidade vivida constantemente dos espaços de cultos
negros.

3.4 Elégùn – devir sociocultural

De acordo com Hall (1997), a cultura é uma produção, possuindo sua matéria
prima, seus recursos, enfim, seu “trabalho produtivo”. Ela permeia os tempos e
envolve os homens em suas tramas, acompanhando, assim, a(s) história(s) da
humanidade. Logo, a(s) cultura(s) é(são) processo(s) constante(s), repleto(s) de
continuidades, descontinuidades, rupturas, vazios, fendas que, a todo momento,
sofrem ações/intervenções do homem. Assim, sua característica processual (estar
em formação/em movimento) é acentuada no fazer do homem, enquanto agente
social, histórico e cultural. Desse modo, cultura(s) e homem estão em constante
(trans)formação, reinventando-se, cotidianamente, no devir da contemporaneidade.
Nessa perspectiva, não há rigidez nem características fixas, imutáveis ou estáticas,
mas movimentos, transitoriedade, fluidez e mutações.
Cabe pontuar que, no que se refere à reinvenção, nem sempre há a noção
desta ou até mesmo intencionalidade. Muitas vezes ela passa despercebida, pois se
dá de maneira natural e nos acontecimentos diários, ou seja, nos processos vividos.
No entanto, ela está presente nas ações humanas, agindo e interagindo nas
relações que se estabelecem. A reinvenção assume, assim, o papel das
possibilidades e das negociações travadas pelo homem em sua vida, em suas
histórias, em sua formação.
Diante desse contexto, pode-se dizer que o elégùn é a possibilidade de
reinvenção a partir do elo com a ancestralidade. Mediante ritual de iniciação, com o
seu renascimento simbólico, moldam-se, no contexto atual, ancestre e adepto. É
importante esclarecer que o destaque dado ao “contexto atual” deve-se ao fato do
ritual iniciático ser inserido nas culturas negras e, como tal, sofre (sofreu e sofrerá)
transformações e adaptações. Posto isso, enfatizamos que o elégùn se constitui
entre o ancestral divinizado e o indivíduo. Ele é o espaço preenchido pelas marcas
127

culturais de ambos, ou seja, do ancestre mas também do iniciado enquanto ser


social. Dessa maneira, ele se faz plural, coletivo, multifacetado. É fundamental,
neste estudo, a compreensão de que ele – o elégùn – se faz coletivo por abarcar a si
próprio e o seu ancestral116. Dessa maneira, há adições, junções, interseções que
encontram sentido nas relações sociorritualísticas. Reforçamos que o ritual de
elégùn apregoa uma nova etapa, uma nova era, uma nova vida, novos saberes,
fazeres, que estarão vinculados ao ancestre/orixá. Mais do que práticas
ritualísticas/religiosas, o ritual tece laços socioculturais entre os seus atores:
ancestral e descendente.
Conforme abordado no capítulo anterior, há (re)elaborações nas identidades
do iniciado. Há comunicação entre o orun e o aiê, e, nesse prisma, entre o ancestre
(imaterial) e o adepto (material). Portanto, há novas possibilidades de
conhecimentos e de ações; há incessantes mudanças. O indivíduo, ao consagrar-se
em elégùn, passa a ser reflexo do seu ancestral, passa a assumir papéis na
comunidade de cultos, mas também acumula esses papéis em sua vida social, ou
seja, eles (os papéis) os acompanham em sua vida além ritual. Não há isto ou aquilo
nessa perspectiva, e sim isto e aquilo; há soma; há completude; há encontros de
ambos (indivíduo social e ritualístico). E, dessa forma, o ritual de elégùn torna-se
“algo que se supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar
nossa existência como sujeitos humanos” (HALL, 2005, p. 10).
Assim, as identidades (re)elaboradas no contexto dos ritos significam-se no
grupo, no egbé, e estão direta ou indiretamente ligadas à constituição das
comunidades de cultos. Logo, a dinâmica proposta pelas comunidades interfere nas
novas identidades. Faz eclodir novos sentidos para o iniciado que ultrapassam as
fronteiras geográficas da comunidade. Esses sentidos trazem o sentimento de
pertença e partilha. Eles não se esgotam ou se encerram no elégùn, mas atuam em
suas histórias, em seus momentos, em suas ações e, principalmente, em suas
realizações. Eles o identificam, marcam, representam, contradizem e constituem.
Nesse contexto, os sentidos, apresentados por Sodré (2005) como
instrumentos culturais (afetos constituídos nas/das vivências), possibilitam escolhas,

116
Reforçamos que há o ancestral divinizado feito (iniciado) no elégùn, assumindo, assim, certa
primazia. No entanto, conforme explicado no capítulo anterior, a ancestralidade divinizada é
composta por vários ancestres. Há comunidades de cultos que denominam como primeiro orixá,
segundo orixá, e assim por diante. Há outras que se referem como pai e mãe. O mais importante
aqui é entendermos que o elégùn vincula-se com mais de um ancestre divinizado.
128

acordos, jogos, negociações e possibilidades. Eles se dão na práxis, no devir, nas


realidades humanas com os seus fatos, seus quereres, seus fazeres. Assim, as
culturas identificam-se com o que faz e dá sentido, ainda que provisório, para o
homem. Dessa maneira, o elégún, enquanto ser sócio, histórico, político, enfim,
cultural, é repleto de sentidos. Nele há as nuanças das representações, dos
significados, das diferenças, das contradições, das afirmações, das negações, das
dúvidas, das analogias, dos saberes e poderes que se estabelecem e se
concretizam em suas vivências. Essas nuanças se constituem no real, no imaginário,
nas simbologias, nos ritos das comunidades de cultos negros. Elas se entremeiam
às suas culturas e, consequentemente, às suas identidades.
Nesse contexto, percebemos que é necessário assumir a(s) identidade(s). No
entanto, é crucial entender que ela (s) é (são) um processo que não se
descontextualiza(m) do tempo e da sociedade. Logo, a(s) identidade(s) se
constrói(em) a várias mãos. Ela não é um processo solitário, e também não se
permeia por homogeneidades. Ela depende de encontros, companhias,
acompanhamentos. O isolamento, nesse sentido, não propicia as condições
necessárias para que as identidades se estabeleçam. Mediante interações diárias,
elas falam sobre nós; exemplificam-se em nós; (re)inventam-se em nós.

A elaboração de uma identidade empresta seus materiais da história, da


geografia, da biologia, das estruturas de produção e reprodução, da
memória coletiva e dos fantasmas pessoais, dos aparelhos de poder, das
revelações religiosas e das categorias culturais. Mas os indivíduos, os
grupos sociais, as sociedades transformam todos esses materiais e
redefinem seu sentido em função de determinações sociais e de projetos
culturais que se enraízam na sua estrutura social e no seu quadro do
espaço-tempo (CASTELLS, 1999, p. 18).

Assim, as identidades dos iniciados estão à mercê dos meios/espaços nos


quais eles convivem e interferem. Como já dissemos, elas abarcam seus ancestrais
divinizados, suas identificações, seus pares, sua comunidade de cultos, seus
familiares, seus amigos, suas ações/funções/pretensões, seus gostos, seus rituais.
E, assim, elas vão sendo vividas e significadas, ininterruptamente.
O elégùn, ao participar do mundo, descobre-se, percebe-se e,
consequentemente, acaba por dar continuidade ao processo de constituição (e até
mesmo reinvenção) das suas identidades. Seus ritos, seus ritmos, seus apetrechos,
129

suas cores, seus banhos de cheiro, suas falas, suas histórias, suas
experiências/vivências, de um modo ou de outro, agem nos movimentos da vida.
Com isso, evidencia-se, neste estudo, a perspectiva de que, cotidianamente,
o iniciado ritualiza-se entre o humano e o divinizado. Há no iniciado a porção do
homem (enquanto descendente) e, também, a porção do ancestral divinizado em um
mesmo corpo117. Nesse contexto, a visão nietzschiana também sustenta essa
abordagem quando afirma que “o corpo é apenas uma estrutura social de muitas
almas”. Logo, com esse entendimento, percebemos no elégùn as potências que
engendram suas estruturas sociais118.
Cabe salientar que a sua comunidade de cultos está no seu mundo, ou seja,
em suas estruturas sociais, assim como, da mesma forma, seu mundo está na
comunidade de cultos. Eles integram-se, completam-se, assemelham-se,
confrontam-se. Desse modo, é importante frisar que seus impulsos, sentimentos e
sentidos transitam por suas estruturas e, assim, pautam-se em suas pluralidades e,
até mesmo, em suas ambiguidades.
Durante os anos em que me dediquei (e ainda me dedico) a discutir com
outros iniciados as minhas inquietações acerca do ritual de iniciação
ritualística/religiosa nas comunidades de cultos negros brasileiras como um
processo no qual novas identidades afloram no indivíduo, não tinha a menor ideia de
que elas chegariam até aqui; de que sairiam das rodas de conversas que
finalizavam os momentos de rituais ou após das rodas de candomblé, encerrando a
madrugada. Muito menos de que se tornariam minhas hipóteses acadêmicas e,
dessa maneira, levariam-me a investigá-las de modo sistemático.
Confesso que, trazer o elégùn para essa arena, não foi tarefa fácil. Trazê-lo
significou trazer a mim e todos aqueles que me antecederam e, ainda, os que
continuarão a nos suceder pelos tempos. Propor a discussão sobre a constituição de
identidades que ele abarca, enquanto sujeito ritualístico, levou-me a investigar os
pilares que o sustentam e a vê-lo como o outro, mesmo sabendo que nesse “outro”
eu habito. Manter certa distância do que me é tão próximo, tão familiar, tão íntimo
para poder analisá-lo como objeto de meu estudo foi um exercício árduo, pois foi, ao

117
Vale relembrar, nesse sentido, o conceito de corpo-território discutido por Sodré (2005).
118
Sinalizamos que as estruturas do elégùn estão em constante movimento. Elas estão sempre em
formação; estão sempre por se formar. Não há, nele, a hipótese de um sujeito único, fixo, mas a
permanente transitoriedade do ser. Ele é devir porque está sempre se constituindo.
130

mesmo tempo, pesquisar-me, reconhecer-me e, principalmente, ritualizar-me


academicamente.
Desse modo, manter o entendimento de que o elégùn se constitui em um
vasto e contínuo processo de reelaborações, negociações e reinvenções culturais é
fundamental para a compreensão deste estudo. O ritual iniciático proposto pelas
comunidades de cultos negros é o pontapé inicial de uma formação que prossegue
cotidianamente. Isto ficou perceptível para mim e para todos os elégùn que
participaram deste estudo. Por muito tempo achávamos que a iniciação efetivava os
rituais, que a partir dela estávamos “prontos”. No entanto, as discussões e as
provocações propostas por esta investigação levaram-nos a concluir que, a cada
dia, no devir da nossa história, damos continuidade em nossa formação, em nossa
reinvenção, em nossa (re)iniciação. Mostraram-nos, ainda, o quanto são importantes
a comunidade, o egbé, os rituais, as oferendas, os vínculos, os laços construídos, os
significados, as simbologias e os sentidos para que possamos ser, de fato, um
elégùn.
Diante do apresentado, encerramos este estudo, acreditando que o ritual está
na formação do iniciado efetivando-se em um intenso e real processo. Ele (o ritual) o
acompanha em suas atuações na vida, no mundo, nas relações. Ele o identifica e o
diferencia. Dá um tom de unidade em um ser tão plural, tão constituído por
diversidades. Logo, o ritual e a formação humana para o elégùn assemelham-se e,
podemos até mesmo dizer que, por analogia, são a mesma coisa. Não há um sem o
outro.
131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi proposto na perspectiva de contribuir para a ampliação de


estudos referentes às culturas dos adeptos dos cultos negros brasileiros enquanto
produtores cotidianos de histórias. Desse modo, propõe, ainda, reflexões,
discussões, debates, diálogos, reelaborações, enfim, todas as possibilidades de
ações políticas que corroborem para o respeito à diversidade, a não propagação da
intolerância religiosa e a efetivação de um Estado laico como determina a Carta
Magna.
As comunidades de cultos negros brasileiros são espaços intensos no que
tange às pluralidades de rituais destinados ao coletivo de ancestrais divinizados que
fundamentam as suas estruturas históricas, sociais, culturais e ritualísticas. Elas
também propiciaram, em sua genealogia, encontros e convivência das diversas
etnias africanas que para essas terras migraram forçosamente a partir do século
XVI.
Foi nesse contexto que reinvenções culturais se estabeleceram e,
impulsionadas por elas, as “nações” do continente africano presentificaram-se na
dinâmica dos cultos negros que sofreram (e ainda sofrem) profícuas reelaborações e
interseções em cada comunidade de cultos que se ergueu em nome da
ancestralidade. Cultuar era a possibilidade de reviver, rememorar, remontar histórias
das “Áfricas” que existiam em cada negro africano, em cada descendente. Fosse
individual ou coletivamente, a prática dos cultos aos ancestrais possibilitou que o elo
com a terra-mãe não se rompesse, que houvesse (pelo menos em suas memórias)
um “eterno retorno” às suas celebrações.
Como assinala Nietzche (1998), a realidade tem um caráter móvel, dinâmico,
incessantemente em mudança e, foi nesse contexto que as relações (re)construídas
nas comunidades de cultos pautaram-se, ou seja, modificando e negociando com as
perspectivas impostas. Dessa maneira, realidade e vida intercruzaram-se nos
panoramas ritualísticos culturais que eram (e ainda são) apregoados pelas referidas
comunidades.
A relação constituída a partir dos preceitos da ancestralidade divinizada
assume, então, lugar de comunicação e interação entre os seus atores: adepto e
132

ancestre. Segundo os iniciados nos cultos negros, é por meio do contato constante e
efetivo com os rituais estabelecidos nas comunidades de cultos que a ancestralidade
reveste-se de significados e sentidos. É mediante essas relações/rituais que
(re)inventa-se, pelos tempos, o ancestral divinizado em seus descendentes,
(re)elaborando-se, assim, o elégùn.
Partindo do princípio da junção de ancestre e iniciado em um ser ritualístico,
pode-se inferir que não há a perspectiva de unidade de sentidos/significados, mas
sim uma multiplicidade que convive em alguns momentos harmonicamente e, em
outros, confrontando-se. Há a constante presença do indivíduo e do ancestral
divinizado no elégùn. Assim, impulsos, emoções, sensações, sentimentos, convivem
na esfera compartilhada pelo ritualístico e pelo social.
No devir de sua história o elégùn impregna em si as características e as
identificações de seu ancestre: temperamentos, predileções, paramentos, cores,
traços que aumentam o vínculo entre eles. Assim, mantém ativo o axé que
fundamenta a sua constituição enquanto sujeito sociorritualístico, além de sustentar
suas identidades. Reforçamos que esse processo não é inato ou natural. Ele se
constrói em uma árdua dinâmica que se alicerça nas comunidades de cultos a partir
dos rituais e avança na direção das ações do elégùn no tempo e na sociedade.
De certo, os rituais iniciáticos estimulam a constituição de identidades no
adepto que se respaldam e se justificam nas histórias e nas memórias dos
ancestrais divinizados e, ainda, nas histórias e nas memórias de todos os elégùn
que os antecederam na comunidade de cultos. Logo, as identidades integram-se nos
movimentos, nos ritmos, nos sabores, nas cores, nos sons, nas cantigas, nas
estruturas dos rituais. Elas (as identidades) presentificam o ancestre no adepto de
forma latente e, assim, dão a ele (o ancestral divinizado) o tom da
contemporaneidade.
Para Sodré (2005), a cultura se dá no devir humano, no relacionamento com
as suas realidades, nas suas expressões, nas suas produções, nos seus sentidos.
Assim, embasada por essa visão, esta investigação percorreu os caminhos dos
elégùn enquanto produtores ativos de histórias que se interpelam nos tempos e nas
sociedades. Seus rituais e performances estão nos seus cultos, mas não se
enclausuram neles. Eles se conectam com a sua formação.
133

Ao longo da execução deste trabalho, percebemos a atuação dos sujeitos


ritualísticos que protagonizam histórias reais cotidianamente pelas comunidades de
cultos negros brasileiros e, principalmente, no mundo. Por onde passam deixam
rastros de sua ancestralidade divinizada. Por onde atuam impregnam suas
identidades e, assim, vão preenchendo (com os seus sentidos) espaços, lugares e
realidades. Suas vivências não apartam mundo e comunidade de cultos. Pelo
contrário. Elas os agregam. Nesse sentido, o elégùn perpassa ritual e formação
humana. E é na sua atuação nos seus universos que ele se constitui, faz-se real.
134

REFERÊNCIAS

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ANEXO - Ficha de entrevista

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO
HUMANA

COMPOSIÇÃO DE TRABALHO DE CAMPO – ENTREVISTA


ROTEIRO DE PERGUNTAS

ENTREVISTADOR:ENTREVISTADO:

LOCAL DA ENTREVISTA:

DATA:

PERGUNTAS:

1- Quanto tempo o(a) senhor(a) tem de iniciado(a) nos cultos negros brasileiros?
2- Qual é o seu ancestral divinizado?
3- Como se deu a sua iniciação?
4- O que mudou no(a) senhor(a) após a sua iniciação?
5- Em que aspectos o(a) senhor(a) percebe o renascimento simbólico
apregoado nos rituais iniciáticos?
6- Como se deram as suas aprendizagens ritualizadas?
7- O(a) senhor(a) ocupa (possui) algum cargo em seu espaço de cultos?
8- Atualmente, como o(a) senhor(a) vê a iniciação?
9- Para o(a) senhor(a) ser elégùn é ...

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