Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nacional e o INPSO/Fundação
Ami nu 1 .
Joaquim Nabuco que focaliza os
\ « j; ' i i i n i t i i i ’. n i «'
’ , | \L
povos indígenas do Nordeste em
sobre o tema.
8. Além da tutela:
bases para uma nova política indigenista 1JI
Antonio Carlos de Souza Lima
Maria Barroso-Hoffmann (orgs,)
no Nordeste indígena
LACED
Copyright © dos autores 1999,2 0 0 4
Fotografia de capa
Fernando Barbosa (G T Indígena/UFPB)
360 p.; 14 x 21 cm
ISBN: 85-86011-80-0
Inclui bibliografia.
Apoio
0 Oxfam
2004
Todos os direitos desta edição reservados à
C o n tra Capa Livraria Ltd a.
<atendimento@contracapa.com,br>
Rua de Santana, 198 - Loja | Centro
22230-261 | Rio de |aneiro - R|
Tel Fax (55 21) 2512.3402 | 25 11.4764
%umário
A |n in e n ta ç ã u è s e g u n d a e d içã o 1
|'i,ln [\icheco de Oliveira
7
A publicação conjunta dos trabalhos que integram esta coletânea chama
a atenção para a im portância de um a linha de investigação na an tropo
logia brasileira sobre a inter-relação entre modalidades de existência de
tradições culturais e formas de territorialização, perm itindo explorar ana-
liticam ente os jogos identitários, os usos da m em ória e as estratégias
políticas que expressam faces articuladas dessa relação.
Os esforços para a dessubstancializaçao das unidades de análises (“so
ciedades”, “culturas”, “etnias”) característica dos anos 1960 e 1970,
hoje revigorados pelos estudos sobre a globalização, seus limites e con
tradições (Appadurai, C anclini, H all, entre outros), conduziram a um a
ênfase crescence no estudo das identidades, vistas com o cambiáveis e
eletivas. O fenôm eno étnico foi relativizado, cm um m ovim ento que
levou à proliferação de identidades m últiplas e heterogêneas, antes des
critas como “novas” ou “em ergentes” (Bennett 1975), parte de u m pro
cesso de “invenção de tradições” (H obsbaw n e Ranger 1984), e agora
consideradas integrantes de um contexto pós-colonial, de mundialização
econôm ica, política e cultural.
Em bora o exercício de comparação çom outras formas de etnicidade
tenha se revelado muito útil para desvendar a complexidade das escalas e o
dinam ism o de diferentes contextos históricos, havia necessidade de um
estudo circunstanciado que indicasse as razões pelas quais vinham a ser
acionadas identidades indígenas específicas, um a vez que essas, tanto no
plano das escolhas individuais quanto no plano estrutural das compulsões
legais e morais, são assumidas e aplicadas a coletividades que se pensam
como autóctones, isto é, como descendentes atuais de populações que sem
pre aqui habitaram, contrastando com outras que se pensam por meio de
processos m igratórios historicam ente identificáveis.
Foi justam ente isso que os trabalhos dos pesquisadores aqui reunidos
tentaram realizar, conduzindo estudos localizados que não perderam de
vista as políticas governamentais e os processos sociais mais amplos; pro
cedendo a descrições densas de situações atuais sem esquecer o estudo do
passado e a gênese dessas unidades sociais; realizando um a investigação
sobre os aspectos identitários e políticos da etnicidade sem om itir a di
mensão ritual e religiosa.
A VIAGEM DA VOLTA
di.vrir.tções de m estrado defendidas no Program a de Pós-G raduação
<in Antropologia Social do M useu N acional [PPG A S-M N ], na Univer-
itil.ule Federal d a B ah ia [U FB A ] e n a U n iv e rsid a d e F edera! de
1* in.im huco [UFPE] entre 1992 e 1996, resultantes de um prolongado
iiiili.ilho de campo e da utilização de m étodos e conceitos antropológi-
oi ( .mudam entre si um a relativa unidade de gênero, caracterizando-
u pi-la apresentação densa de relações sociais, pela ênfase nas situações
* |M'i,voltagens específicos e pelo exercício vigilante da crítica.
Alguns resultados prelim inares dessas pesquisas foram apresentados
i tn vrinínários e congressos científicos, com o as reuniões da Associa-
*, «i Brasileira de A ntropologia [ABA] em 1994 [Universidade Federal
I liiinincnse, U FF], em 1996 (Salvador) e em 1998 (na U niversidade
Federal do Espírito Santo, UFES); nos encontros de antropólogos do
I Imic <: N ordeste em 1993 (Belém), em 1995 (João Pessoa) e em 1997
iNiital); na m esa-redonda sobre “Identidades indígenas em ergentes”,
i im nlenada por m im na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên-
*ii |SBPC] em Recife, em julho de 1993; no G rupo de Trabalho “Terri-
i iii in c invenção social da etnicidade em populações tradicionais (índi-
icinanescentes de Q u ilom bos)”, tam bém coordenado por m im e
n iili/.ado em o utubro de 1994, no encontro anual da Associação N aci-
uiiiil de Pesquisa em C iências Sociais [A N PO C S]; no sem inário “A
invenção social de tradições indígenas: N ordeste e A m azonas”, coorde-
nidii por Stephen G. Baynes e realizado n a U niversidade de Brasília,
iiu junho 1995- Destaco a continuidade de um a linha de reflexão e a
i «imAlicia de um perm anente diálogo entre os participantes de todas
i vi.iv iniciativas. A m arca desta coletânea, no entanto, não é ser com-
|n imi,1 p o r com unicações apresentadas em congressos científicos, mas
um ser constituída pela apresentação de um painel etnográfico e analí-
th n sobre as sociedades indígenas do N o rd este, em que cada a u to r
K iuiun extensam ente o m aterial de sua pesquisa de cam po e articula
niin interpretação da situação por ele estudada.
A i liamada inicial aos colaboradores ocorreu em 1994, tendo um a par
ir dos textos sido elaborada nesse e/ou no ano seguinte. Foi esse o caso dos
ii ilulhns de Henyo Trindade Barreto Filho, Carlos Guilherm e do Valle,
Fiduci Peres e Rodrigo de Azeredo Griinewald. Juntam ente com Mércia
l(c’],me Rangel Batista e José M aurício A ndion A rruti, participaram do
|mijem “Fronteiras étnicas, território e tradição cultural”, coordenado por
iiiiiu c desenvolvido no PPG A S-M N de 1988 a 1996, com apoio do Con-
.<Um Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] e de
APRESENTAÇÃO 9
um convênio FIN EP/PPG A S-M N . Por razões operacionais e financeiras,
a preparação do livro foi interrompida durante algum tem po, sendo reto
mada em 1998, graças ao apoio financeiro da Fundação Ford.
A ausência de alguns pesquisadores que trabalham na m esma temática
merece um a explicação. Cabe destacar em especial o im portante trabalho
de investigação realizado pelo Projeto Levantamento de Terras Indígenas
no Estado da Babia [PINEB], coordenado pelos professores Pedro Agos
tinho da Silva e M aria Rosário G . de C arvalho, e desenvolvido com
estudantes de graduação e de pós-graduação e estagiários da UFBA, cujos
rextos foram objeto de um a publicação anterior {Silva 1988); naquele
m om ento, estavam preparando, sob a coordenação de M aria Rosário G.
de Carvalho e Edwin Reesink, em associação com o projeto “A cor da
Bahia”, um a instigante coletânea sobre a relação entre populações indíge
nas e afro-descendentes. A dissertação de mestrado de V ânia Fialho de
Paiva e Souza sobre os X ukuru (Paiva e Souza 1998), tendo sido premia
da pela Fundação Joaquim N abuco, ceve garantida sua publicação inte
gral como monografia. O utros pesquisadores, como Mércia Rejane Rangel
Batista e José Augusto Laranjeira Sampaio, não compareceram com tra
balhos nesta coletânea por razoes circunstanciais, um a vez que eram,
durante esse período, responsáveis perante a Fundação N acional do ín
dio [FUNAI] por complexos estudos de identificação de terras. A fim de
maximizar a d 'ersidade etnográfica trazida pelo livro, preferi não apre
sentar trabalhos de diferentes autores sobre uma m esma situação.
À diferença do que julga a opinião pública em sua maioria, os povos
indígenas do Brasil não estão localizados apenas na Am azônia e no Bra
sil Central, lugares de acesso rem oto em que a sociedade nacional ainda
se expandia no século XX. H abitam tam bém as mais antigas áreas de
colonização do país, com o o N ordeste, o Sudeste e o Sul do país, cons-
tituindo-se não só como im portantes atores políticos c interlocutores
das políticas públicas, mas tam bém inspirando estudos fecundos e inte
ressantes formulações analíticas por parte dos antropólogos. Ao tornar
disponíveis etnografias e interpretações sobre essa parcela m enos co
nhecida dos indígenas do país, tem os a esperança de que a reunião e
divulgação em livro desses trabalhos propicie bons exemplos de pesqui
sa antropológica com povos indígenas no N ordeste, e perm ita que tais
textos venham a ser utilizados com o leituras com plem entares ern cursos
que integram a formação básica de estudantes de antropologia (tanto de
graduação quanto de pós-graduação) ou sirvam de apoio a discussões
em disciplinas afins (história, lingüística e arqueologia).
10 A VIAGEM DA VOLTA
Esta segunda edição não traz alterações de conteúdo em relação à
prim eira edição, dc maio de 1999. H á algumas pequenas atualizações1
c a correção de erros que escaparam na revisão da edição antetior, em
particular nas referências bibliográficas, C om o a coletânea está referida
a um conjunro de dissertações c reflete um m om ento da investigação
sobre os povos indígenas do N ordeste, optam os por m anter a sua uni
dade. Isso, contudo, não significa a inexistência de um a produção mais
recente. U m exem plo da vitalidade dessa área de pesquisa são duas
teses de doutorado defendidas no PPG A S-M N em 2000 e 2001, e que,
m an ten d o seu caráter m onográfico, foram publicadas recentem ente
(G rünew ald 2001, Barbosa 2003)- Nesse período de cinco anos, foram
term inados ou estão em vias de conclusão alguns trabalhos acadêmicos
que m ereceriam ser divulgados mais am plam ente e que im aginam os
transform ar cm publicações futuras.
Por fim, a reedição desta coletânea constitui uma iniciativa do projeto
Os Primeiros Brasileiros, coordenado por mim e por Antônio Jorge Siqueira,
e desenvolvido em associação do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade,
Cultura e Desenvolvimento [LACED] / M useu Nacional com o Instituto
de Pesquisas Sociais [IN PSO ] / Fundação Joaquim N abuco, contando
com apoio da FINEP, do M inistério da C u ltu ra e da O X FAM . Seu
relançamento é simultâneo a outra iniciativa editorial do mesmo projeto,
a publicação pela Editora Massangana, da Fundação Joaquim N abuco, de
uma coletânea sobre a dimensão crucial da existência dos povos indígenas
do Nordeste, o Toré, a qual incorpora parcialmente algumas das pesquisas
realizadas nesses últimos anos (Grünewald 2004). O uttas atividades, como
a realização de seminários, exposições e pesquisas, já concluídos ou em
vias de organização, vêm igualmente integrar o projeto acima citado, que
mante'm, por intermédio da Articulação dos Povos e Organizações Indíge
nas do Nordeste, M inas e Espíriro Santo [A PO IN M E], interlocução per
m anente com o movimento indígena organizado, contando ainda com o
apoio das prefeituras de Recife e de Olinda.
*
1 Em especial, a listagem de povos indígenas do Nordeste e sua localização espacial em
mapas, tendo em vista sua im portante repercussão política.
APSESENTAÇÃO 11
J o ã o P a c h e c o d e O l iv e ir a
14 A VIAC EM DA VOLTA
uç.iilos". É im portante lem brar que o artigo de Galvão — por seu
0 iii i introdutório e classificatório —constitui-se em um dos textos mais
n.uli.ulos não só p o r estudantes de antropologia, mas tam bém por
iM nilogos, bibliotecários, educadores e comunicadores sociais em geral,
fii.i o público mais especializado, o cenário não é diverso. No Handbook
1 Siiiith American Indians, obra de referência capital para os estudos
"ilnpuos, os povos indígenas do N ordeste são focalizados em peque-
iitigos (quase verbetes) escritos por R obert Lowie (1946) e Alfred
I li i i .iiix 11946), um deles com a colaboração de C urt N im uendaju. Em
«iii Ihis os textos são utilizadas fontes históricas e, p rim o rd ialm en te,
0 I tu u, rio cronistas quinhentistas e seíscentistas o u naturalistas viajam
ii dos séculos XVIII e XIX. O u seja, tais povos e culturas passam a ser
■I. i. tilos apenas pelo que foram (ou pelo que se supõe terem sido) há
i nios, mas nada (ou m uito pouco) se sabe sobre o que eles são hoje.
1 i iiuc, rum certeza, pouca contribuição traria à etnologia com o estudo
ini]i,nativo das culturas.
I ui um a famosa m etáfora, Lévi-Strauss nos ensina que “o antropólo-
, * i* 11 astrônomo das ciências sociais: ele está encarregado de descobrir
um sentido para configurações m uito diferentes, por sua ordem de gran-
ili/i c seu afastam ento, das que estlo im ediatam ente próximas do ob-
iv.nlor” (1967: 422, ênfases no original). N ão se trata de um a associ-
iç.iu acidental ou pouco represencativa de sua obra, mas de um ensina-
nu ni*i conectado com pressupostos fundam entais do “m étodo etnológico”
jiin r!c delineado,6
mis , como intercalar, entremear, incorporar (tam bém bastante cabíveis), é registrado
i qilicitamente “misturar (o sangue) pelo casamento de pessoas de raças diversas” (Holanda
1975: 915).
'' l'ui um lado, Lévi-Strauss chama a atenção para a escala dc tempo em que o etnólogo deve
In iii eder aos seus regisrros e interpretações: é a “longa duração”, na qual as disposições
quanto ao tempo, como em Braudel, remetem aos parâmetros com que opera a geologia;
por outro, etnologia e história, partilhando o mesmo objeto e m étodo, distinguem-se
por perspectivas compiemenrares, organizando seus dados em relação “às condições
inconscientes da vida social” ou, respectivamente, “às expressões conscientes” (Lévi-
Sli.iuss 1967: 34). A noção de cultura é equiparada à de “isolado” em demografia, sendo
do mesmo tipo e possuindo o mesmo valor heurístico. A inda que a sua am plitude possa
variar cm “função do tipo de pesquisa considerado", jamais deixaria, contudo, de
"i orrespondera uma realidade objetiva” (: 335). Seguir cais regras de m étodo perm itiria
definir o lugar da anrropologia entre as demais ciências sociais, com n sendo “hoje a única
disciplina do distanciamento social” (: 423).
A VIAGEM DA VOLTA
ilhas e barrancos do São Francisco (Ribeiro 1970: 56). Recorda com
i ristcza que até m esm o “os sím bolos de sua origem indígena haviam
sitio adotados no processo dc aculturação” (: 53), o que exemplifica por-,
meio dos Potiguara, que em suas danças utilizavam instrum entos afri-
t unos —zambé e p u itã - “acreditando serem tipicam ente tribais” (: 53).
I Jcscrevendo os_X ucuru de m odo similar, o au to r observa que estão
altam ente mestiçados com a população sertaneja local, tendo perdido
"o idiom a e todas as práticas tribais, excero o culro do Juazeiro Sagra
do, sc é que este cerim onial fora originalm ente deles” (: 54). ‘
Ao am argor vêm juntar-se a suspeiçao e, logo, o descrédito, inclusi
ve, com o possíveis sujeitos históricos: “Por todos os sertões do N o r
deste, ao longo dos cam inhos das boiadas, coda a terra já é pacifica
m ente possuída pela sociedade nacional; e os rem anescentes tribais,
que ainda resistem ao avassalamento, só têm significado com o aconte
cim entos locais, im ponderáveis” (: 57). O s índios do N ordeste não
possuiriam mais im portância com o objeto de ação política (indigenista),
nem perm itiriam visualizar perspectivas para os estudos etnológicos.
18 A VIAGEM DA VOLTA
A unidade dos “índios do N ordeste” é dada não por suas instituições,
nr in por sua história, ou p o r sua conexão com o meio am biente, mas
|n ii pertencerem ao N ordeste, na condição de conglom erado histórico
i geográfico.
Ao longo do ensaio, contudo, esses autores m encionam um estigma,
um a caracterização sociológica que poderia aplicar-se a todas aquelas
populações: “a partir da segunda m etade do século, sobretudo, os índi
os dos aldeam entos passam a ser referidos, com crescente freqüência,
to m o índios ‘m istu rad o s’, agregando-se-lhes um a série de atributos ne-
p.iiivos que os desqualificam e os opõem aos índios puros’ do passado,
idealizados e apreseutados com o antepassados m íticos” (D antas e ou-
itns 1992: 451). Tal observação, no entanto, é integrada a um a cadeia
puram ente cronológica de fatos históricos, sem vir a ser incorporada a
11111 esforço de conceituação.
A expressão “índios m isturados" — freqüentem ente encontrada nos
Relatórios de Presidentes de Província e em outros docum entos ofici
ais - merece um a o u tra ordem de atenção, pois perm ite explicitar valo-
tcs, estratégias de ação e expectativas dos m últiplos atores presentes
nessa situação interétnica. Em lugat de estabelecer um diálogo com as
tentativas de criat instrum entos teóricos para o estudo desse fenôm eno
como a noção dc “fricção interétnica (Cardoso de Oliveira 1964), as
i rívicas às noções de tribalism o e aculturação (C ardoso de O liveira
1960a e 1968), ou a noção de “situação histórica” (Oliveira 1988) —, a
tendência dos estudos foi restringir-se aos trabalhos sobre a região (tal
i om o a definem) e discutir a “m istura” com o um a fabricação ideológi
ca e distorcida.
O órgão indigenista, igualmente, sempre m anifestou seu incôm odo e
hesitação em atuar jun to aos “índios do N ordeste”, justam ente por seu
alto grau de incorporação na economia e na sociedade regionais. O pa
drão habitual de ação indigenista ocorria em situações de fronteira cm
expansão, com povos indígenas que m antinham sob seu controle amplos
espaços territoriais (ou, inversamente, ameaçavam o conttole das frentes .
sobre estes) e que possuíam um a cultura manifestamente díferenre daque-_^
Ia dos não-índios. Estabelecer a tutela sobre os “índios” era exercer uma ^
função de mediação intercultural e política, disciplinadora e necessária
para a convivência enrre os dois lados, pacificando a região como um
lodo, regularizando m inim am ente o mercado de terras e criando condi
ções para o chamado desenvolvimento econômico (ver Oliveira 1983 c
1988, Souza Lima 1995 para aprofundam ento desse ponto).
A VIAGEM DA VOLTA
I idades com o a reinvenção de etnias já reconhecidas. C om o apontei
naquela ocasião (O liveira 1994), é isso que pode ser toma'do com o base
para distinguir os povos e as culturas indígenas do N ordeste daqueles
da Amazônia.
A “etnologia das perdas” deixou de possuir um apelo descritivo ou
interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista téorico pas
sou a ser o debate sobre a problem ática das emergências étnicas e da
reconstrução cultural. E foi orientado p o r essas preocupações teóricas
que se constituiu, do início dos anos 1990 até hoje, um significativo
conjunto de conhecim entos sobre os povos e culturas indígenas do N or-
dcste", ancorado na bibliografia inglesa e norte-am ericana sobre etnici-
dade e anrropologia política, e —é im portante acrescentar —nos estudos
brasileiros sobre contato interétnico.
A poiando-m e nessa significativa acum ulação de dados etnográficos
e nas interpretações aí conduzidas, parecc-me possível e necessário ten-
tar um a reflexão mais sistemática e elaborada sobre o lugar e a contri
buição que podem aportar esses estudos para a etnologia indígena. É o
que procurarei fazer a seguir.
22 AVIACEM DA VOLTA
próprios m em bros daquela sociedade. Isso o leva a propor o desloca
m ento do foco de atenção das culturas, (enquanto isolados) para os pro-
i essos identitários que devem ser estudados em contextos precisos e
percebidos tam bém com o atos políticos (recuperando assim a defini-
i,.ío weberiana de “com unidades étnicas” - W eber 1921).
A elaboração teórica de Barth vai justam ente ate esse ponto, quando,
então, cede a vez à investigação empírica. Q uando a primeira é retornada
mais tarde (Barth 1984, 1988), o prism a adorado já é diverso (como
mencionarei adiante). Creio, no entanto, que é im portante refletir mais
detidam ente sobre o contexto intersocierário no qual se constituem os
grupos étnicos. N ão se trata de m aneira algum a de um contexto abstra
io e genérico, que possa absorver todas as sociedades e suas diferentes
lonnas dc governo, mas dc um a interação que é processada dentro de
um quadro político preciso, cujos parâm etros são dados pelo Estado-
nação (W illiam s 1989). Para dar mais atualidade histórica a tal contex-
to, caberia fazer dois reparos à formulação anterior: que algumas vezes
o exercício do m andato político pode ser transferido de um Estado-
nação para outro; c que existem regulam entações internacionais que
ganham a cada dia mais força e que podem instituir novos dinam ism os
na relação entre grupo étnico e Estado-nação,
A dim ensão estratégica para se pensar a incorporação de populações
cinicam ente diferenciadas dentro de um Estado-nação é, a meu ver, a
territorial. D a perspectiva das organizações estatais — das quais os rei
nos seriam a prim eira m odalidade conhecida —, adm inistrar é realizar a
gestão do terrirório, é dividir a sua população em unidades geográficas
menores c hierarquicam ente relacionadas (Revel 1989b), definir lim i
tes e dem arcar fronteiras (Bourdieu 1980).
A noção de territorialização tem a m esm a função heurística que a
dc situação colonial - trabalhada por B alandier (1951), reelabotada
por C ardoso de O liveira (1964), pelos africanistas franceses e, m ais
recentem ente, p o r S to ck in g jr. (1991) —>d a q u a l descende e é caudatária
em term os teóricos. E um a intervenção da esfera política que associa
— de form a prescritiva e insofismável — um co n ju n to de indivíduos, e
grupos a limites geográficos bem determ inados. É esse ato político -
constituidor de objetos étnicos acravés de m ecanismos arbitrários e de
arbitragem (no sentido de exteriores à população considerada e resul
tante das relações dc força entre os diferentes grupos que integram o
Estado) — que estou p ro p o n d o to m a r com o fio c o n d u to r da investi
gação antropológica.
12 Caberia chamar a atenção para a diferença entre territorialização (um processo social
deflagrado pela instância política) e “territorialidade" (um estado ou qualidade inerente a
cada cultura). Esta últim a é uma noção urilizada por geógrafos franceses (Rafícscin, Barel)
que destaca, naturaliza e coloca em termos atemporais a relação entre cultura e meio
am biente (ver crítica conduzida em Oliveira 1994).
24 A VIAGEM DA VOLTA
i.un nos aldeam entos sob o controle dos missionários, e distantes dos
demais colonos e dos principais em preendim entos (como as lavouras
de cana-de-açúcar, as fazendas de gado e as cidades do litoral). Nesse
sentido, a relação de aldeam entos missionários (D antas e outros 1992:
h S-6) pode ser lida com o um a complexa árvore genealógica, contendo
i .ideias sucessótias e dem andas territoriais.
Mas as missões religiosas foram instrum entos im portantes da políti-
(.1 colonial, em preendim entos de expansão territorial e das finanças da
1 nroa, localizadas principalm ente no sertão do São Francisco. Para isso,
incorporavam ao Estado colonial português um contingeute de “índios
m ansos” e que já era p ro d u to de um a p rim eira “m istura”. D evem os
observar que o processo de territoríalização vivenciado pela população
autóctone é radicalm ente diverso daquele gerado pela política indigenista
do século XX que, em term os de ptopositura, pretende interrom per o
processo de assimilação com pulsória, deixando o progresso material da
icgião com o um a tarefa para os não-indígenas. N o caso das missões,
i]uc são unidades básicas dc ocupação territorial e de produção econô
mica, há um a intenção inicial explícita dc prom over um a acomodação
entre diferences culturas, hom ogeneizadas pelo processo de catequese e
pelo disciplinam ento do trabalho. A “m istura” e a articulação com o
mercado são fatores constitutivos dessa situação interétnica.
Se as missões - com o p ro d u to de políticas estatais — conjugavam
aspectos que podem os cham ar de assimilacionistas e preservacionistas,.
o seu sucedâneo histórico - o “diretório de índios” - pendeu decisiva
m ente para a prim eira direção, estim ulando os casamentos interétnicos
e a fixação de colonos brancos dentro dos lim ites dos antigos aldeam entos.
Essa foi a segunda “m istura”, cujos efeitos só não foram maiores pelo
caráter extensivo e rarefeito da presença hum an a nas fazendas de gado,
único em preendim ento que teve relativo sucesso n a região. Sem existir
(luxos m igratórios significativos p ata o sertão, as antigas terras dos
aldeam entos perm aneceram sob o controle de um a população de des
cendentes dos índios das missões, que as m an tin h am com o de posse
com um , ao mesmo tem po que se identificavam coletivam ente m edian
te referências às missões originais, a santos padroeiros ou a acidentes
geográficos.
Porém, a política assimilacionista recrudescerá, apoiada em m udan
ças demográficas e econômicas. C om a Lei de Terras de 1850 inicia-se
por todo o Im pério um m ovim ento de regularização das propriedades
rurais. As anrigas vilas, progressivamente, expandem o seu núcleo urba
26 A VIAGEM DA VOLTA
>,,u' da últim a ressalva do decreto, que fazia parte das finalidades declara
das da política indigenista oficial, a intenção de cutores e tutelados nunca
i am inhou na direção da total assimilação e da eliminação da tutela.
Nas décadas seguintes foram im plantados Postos Indígenas em di
versas áreas do N ordeste, visando atender as populações ali situadas.
Pm 1937 isso ocorreu com os Pankararu (Brejo dos Padres, PE) e os
Pataxó, da Fazenda Paraguassu/C aram uru (Ilhcus, BA); em 1944 com
os Kariri-Xocó, da ilha de São Pedro (AL); em meados da década de
1940 com os Tfuká, da ilha de Assunção (BA); em 1949 com os A tikum ,
da serra do U m ã (PE), e os Kiriri, de M irandela (BA); em 1952 com os
X ukuru-K ariri, da Fazenda C anto (AL); em 1954 com os Kam biw á (PE);
e em 1957 com os X ukuru, de Pesqueira (PE). N a m aior parte desses
casos terras foram dem arcadas e destinadas às populações atendidas.
Em linhas gerais, esse processo de territorialização trouxe consigo a
imposição dc instituições e crenças características dc um m odo de vida
próprio aos índios que habitam as reservas indígenas e são objeto, com
maior grau de com pulsão, do exercício paternalista da tutela (fato inde
pendente de sua diversidade cultural). D entre os com ponenres princi
pais dessa indiantdade (Oliveira 1988) cabe destacar a estrutura políti
ca e os rituais diferenciadores.
A organização política de quase todas as áreas passou a incluir três
papéis diferenciados - de cacique, de pajé e de conselheiro (isto é, m em
bro do “conselho tribal”) tom ados com o “tradicionais” c “autentica
m ente indígenas”. A indicação o u ratificação dos ocupantes desses pa
péis era realizada pelo agente indigenista local (o chefe do PI), que de
lato ocupava o topo dessa estrutura de poder e era quem distribuía os
benefícios provenientes do Estado (de alim entos a empregos, passando
por em préstim os ou permissões de uso de instrum entos agrícolas, mei-.
os de transporte, cacimbas d ’água etc.).
O patrim ônio cultural dos povos indígenas do N ordeste — afetados
p o t um processo de territorialização há mais de dois séculos, e depois
subm etidos a fortes pressões no sentido de um a assimilação quase com
pulsória - está necessariamente marcado p o r diferentes “fluxos” e “tra
dições” culturais (H annerz 1997, Barth 1988). Para que sejam legítimos
com ponentes de sua cultura atual não é preciso que tais costum es e
crenças sejam, portanto, traços exclusivos daquela sociedade. Ao con
trário, freqüentem ente tais elem entos dc cu ltu ra são com partilhados
com outras populações indígenas o u regionais, como ocorre, por exem
plo, com os índios Tremem bé e seus vizinhos, que possuem em com um
28 A VIAGEM DA VOLTA
i idas com o indígenas) e os “braiados” (produto de intercasam ento com
brancos ou outros já mestiçados) (Fialho 1992, M artins 1994).13
Algumas vezes era o próprio Posto Indígena que identificava os mem-
Imis de um a denom inação indígena, m ediante o fornecimento de cartei-
i.i individual, que atestava que “o portador desta era efetivamente índio”.
Mas à im posição da n o rm a segue-se a sua apropriação local, sem pre
específica e individualizadora. Assim, os Kiriri criaram um a nova figura
p.ira lidar com o fenôm eno da identidade étnica, tão simples e clara como
.i lista, só que sob seu controle e, portanto, podendo ser usada situacional-
mente —para “ser índio” não basta ter ascendência indígena ou carteira,
é preciso tam bém , com o dizem, “passar no coador”, isto é, ter um a
conduta m oral e política julgada adequada, m antendo-se em um a lista
que fica em mãos do cacique e que é atualizada de tempos em tempos em
icunião do “conselho indígena” (Brasileiro 1996).
Antes de finalizar esta sum ária apresentação de dados tesultanres dc
pesquisas mais recentes, caberia reto rn ar à discussão do início deste
subtítulo sobre a natureza últim a dos grupos étnicos. Seguindo a análise
ile Wcber sobre as com unidades étnicas, Barth certam ente diria que é a
política. Os dados apresenrados em um a situação etnográfica bastante
adversa - em que populações que se reivindicam como indígenas estão
altam ente dependentes do Estado e m uito afetadas por agências e insti
tuições ocidentalizantes - parecem exigit um a m aior complexificaçao,
Cada com unidade é im aginada com o um a unidade religiosa e é isto
que a m antém unificada e perm ite criar as bases internas para o exercí
cio do poder. Um a metáfora acionada por diferentes grupos, em varia
dos contextos, conecta as gerações do passado e do presente (Batista
1992, Barreto F° 1993, G rünew ald 1993, A tru ti 1996). O s antepassa
dos seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais "as pontas de ram a”.
Q uand o as cadeias genealógicas foram perdidas na m em ória e não há
mais vínculos palpáveis com os antigos aldeam entos, as novas aldeias
têm de apelar aos “encantados” para afastar-se da condição de “rnistura”
cm que foram colocadas. Só assim podem reconstruir para si mesmas a
relação com" os seus antepassados (o seu “tronco velho”), podendo vir a
redescobrir-sc como "pontas de ram a”.
30 A VIAGEM DA VOLTA
I.unidade privilegiada14. E m bora possa ser de utilidade com o artifício
descritivo, no plano da análise com parativa continua a ser caudatária
dc lima etnologia das perdas c das ausências culturais.
A caracterização de “índios emergentes” não deixa de ser igualmenre
incômoda, Por um lado sugere associações de natureza física e mecânica
i|u.mto ao estudo da dinâmica dos corpos, o que pode trazer pressupostos
<- expectativas distorcidos quando aplicada ao dom ínio dos fenôm enos
humanos. Com o imagem literária, ao contrário, reporta-se a um a apari-
i,.io imprevista, enfatizando o fator surpresa. Por sua am bigüidade, pode
•,rr suscetível de usos variados sem, no entanto, contribuir para o en
tendim ento de aspectos relevantes do fenôm eno que designa.
Um outro conjunto de imagens adota como estratégia singularizar
i.ii.s sociedades, de form a a poder contrapô-las e distingui-las dos m ode
los sociológicos usuais. O mais popularizado é o costum e de falar em
iiovas etnicidades” (B ennett 1975), englobando um extenso arco de
lenôm enos (m igrantes, m inorias reconhecidas, afro-americanos, índios
<in cidades etc.) que em si mesmos pouco têm em com um . M as, afinal,
i viste um a “velha” etnicidade? O u os autores que utilizam tal expressão
cMariam construindo um a unidade fantasm ática a partir de diferentes
coloques pelos quais os antropólogos estudaram outras unidades soci-
,i is? Em lugar de perder-se na linguagem do em piricism o, seria o caso
dc partir para u m a explicitação de pressupostos teóricos, m ostrando
aqueles que não seriam cabíveis nas novas circunstâncias, bem com o
apontando os que poderiam abrir cam inhos alternativos para a análise.
A noção de sociétés fractales (B ernand e G ruzinsky 1992: 32), elaborada
para indicar sociedades cujas formas de sociabilidade são irregulares e
interrom pidas, tam bém parece-me sofrer dc u m a limitação similar.
Em um artigo recente, Çlifford (1997) procura dar um status de ins-
m u n en to analítico ao tetm o “diáspora”, am plam ente difundido nas dis-
i ussões atuais sobre globalização, m igrações e etnicidade. E m bora o
autor não se encam inhe para urna definição, poderíam os dizer que a c
diáspora rem ete àquelas situações em que o indivíduo elabora sua iden- ‘y
i idade pessoal com base no sentim ento de estar dividido entre duas
11 Não se trata de uma aplicação nova em face das populações indígenas da América,
existindo m onografias - com o a de Elizabeth Colson (1953) sobre os M akah, e de
A nthony Stocks (1981) sobre os Cocama —que assumem como eixo ordenador de sua
exposição a idéia da invisibilidade.
32 A VIAGEM DA VOLTA
■.nia próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histótica i y*
não anula o sentim ento de referência à origem, mas até m esm o o refor- h
i,a. É da resolução sim bólica e coletiva dessa contradição que decotre a
lorça política e em ocional da etnicidade,
N a im agem de “viagem da volta” há dois aspectos que explicitam ,
icspectivamente, a relação entre etnicidade e território e enrre etnicidade
e características físicas dos indivíduos, que é preciso esclarecer e elabo-
rar melhor. A exptessão “enterrada no um bigo” traz para os nordestinos
W -
um a associação m uito particular. Nas áreas rurais há um costum e de as
mães enterrarem o um bigo dos recém-nascidos para que eles se m ante- * ^
nham em ocionalm ente ligados a ela e à sua terra de origem. C om o é
lreqüente nessas regiões, a migração em busca de m elhores opo rtu n id a
des de trabalho, tal ato mágico (um a “sim patia”) aum entaria as chances
de a criança retornar um dia à sua terra natal, O que a figura poética
'.ugere 6 um a poderosa conexão entre o sentim ento de pertencim ento
étnico e um lugar de origem específico, onde o indivíduo e seus com
ponentes mágicos se unem e identificam com a própria terra, passando
.1 integrar um destino com um . A relação entre a pessoa e o grupo étnico
seria mediada pelo território e a sua representação poderia rem eter não ti'
só a um a recuperação mais prim ária da m em ória, mas tam bém às im a
gens mais expressivas da autoctonia.
O outro p onto é a relação entre etnicidade e características físicas.
Ao dÍ7.cr que sua natureza está “gravada” na própria m ão, o narrador 3 r-c A
■lia um vínculo prim ário inextirpáveí, transm itido biologicam ente, cn-
ire cie e a coletividade maior. Trata-se de algo m uito mais forte do que [V *
um a lealdade, a qual rem eteria a fenôm enos socioculturais e a contex- f
los e oportunidades de atualização histórica (ou não). Inscrita em seu u im
próprio corpo e setnpre presente (“d en tro e fora, assim com igo”), a
idação com a coletividade de origem rem ete ao dom ínio da fatalidade,
«Io irrevogável, que esrabelece o norte e os parâm etros de um a trajetória
social concreta. E nquanto o percurso dos antropólogos foi o de des-
mistificar a noção de “raça” e desconstruir a de “etnia”, os jn em b ro s de.
um grupo étnico encam inham -se, freqüentem ente, n a direção oposta,
ícafirm ando a sua unidade e situando as conexões com a origem em
planos que não podem ser atravessados o u arbitrados pelos de fora.
.Mahem que estão m uito distantes das origens em term os de organização
política, bem com o na dim ensão cultural c cognitiva. A “viagem da
volta” não é um exercício nostálgico de retorno ao passado c desconectado
do presente (por isso não é um a viagem de volta).
34 A V1ACEM DA VOLTA
•i'..is/morais/políticas) perm ite a superação da contradição entre os ob-
iriivos históricos e o sentim ento de lealdade às origens, transform ando
,i identidade étnica em um a prática social efetiva, culm inada pelo pro-
i esso de territorialização.
A VIAGEM OA VOLTA
Terceiro, os relatos etnográficos evidenciam que as sociedades indí
genas são complexas e suas culturas heterogêneas e diversificadas. Até
para com preender as expressões mais em ocionais e reiteradas de u n i
dade e harm onia, é preciso resgatar a polifonia real (Ramos 1988). As
.içõcs e os conteúdos simbólicos que trazem não correspondem unica
m ente a um a projeção de m odelos atem porais e inconscientes, mas
icpresentam um a solução a problem as (inclusive com um a dim ensão
11 ico-valorativa) surgidos no curso das interações sociais (Bellah 1983,
Velho 1995). Seria extrem am ente em pobrecedor despojar as interven-
i.oes verbais dos naífvos de um a dim ensão crítica e explicativa, que
esteja associada à constituição de “com unidades de argum enração” (C ar
doso de Oliveira 1996b) que podem operar em diferentes planos e com
objetivos diversos.
Q u a rro , as culturas não são coextensivas às sociedades nacionais
nem aos grupos étnicos. Õ que as to rn a assim são, por um lado, as
dem andas dos próprios grupos sociais (que através de seus porta-vozes
instituem as suas fronteiras), e, por outro, a complexa temática da au-
ietnicidade (que acaba p o r conferir um a posição de poder ao an tropó
logo, dem arcando espaços sociais com o legítim os ou ilegítimos). Em
tem pos de m ulticulturalism o, vale lem brar a indagação form ulada por
U.idhakrishnan: “por que eu não posso ser indiano sem ter de scr au-
lenticam entc indiano’? A autenticidade é um lar que construím os para
nós mesmos ou é um gueto que habitam os para satisfazer ao m undo
dom inante?” (1996: 210-1). Para escapar dessa arm adilha, alguns auto-
ie.s (B arth 1982 e 1988, H annerz 1992 e 1997) sugerem abandonar
imagens arquitetônicas de sistemas fechados e passar a trabalhar com
processos de circulação de significados, enfatizando que o carárer n ío
estrutural, dinâm ico c virtual é constitutivo da cultura.
Tal alternativa de construção teórica parece-m e mais profícua e u n i
versal, perm itindo um a base mais am pla de comparações, sem exigir a
.iteitação de pressuposições quanto ao isolam ento, ao distanciam ento e
.i objetividade. Nesse sentido, considero que as pesquisas e in te rp re ta -.
çoes sobre os “índios m isturados” tiveram o m ériro de trazer para o
debate entre os etnólogos alguns dos desafios presentes na disciplina
antropologia.
Ao concluir, gosraria de explicitar com a m áxim a clareza possível
que a m inha intenção não é propor uma etnologia dos “índios do N o r
deste”, o u mesmo um a etnologia dos “índios m isturados”, que funcio
nasse com o um contraponto ao modelo dos am ericanistas. C om o lem-
A VIAGEM DA VOLTA
I -file | Pm /M useu Nacional. Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, 1993; FLINAI,
T E R R A IN D ÍG E N A PO VO M U N IC ÍP IO
1 Truká Truká C a b ro b ó
2 A tikum A tikum C a rn a u b e ira da Penha
3 N ova Rodelas Tu xá R odelas
4 Riacho do Bento Tu xá R odelas
5 Brejo do Burgo P a n ka ra ré Glória, Paulo Afonso e Rodelall
6 P a n ka ra ré P a n ka ra ré Rodelas e Paulo Afonso
7 K a n ta ru ré K a n ta ru ré N ova G lória
8 Q u ix a b a X u cu ru -K arrri G ló ria
9 Pa n ka ra ru P ankararu Ta caru tu , Petrolând ia e JatoLw
10 M assacará K a im b é Euclides da Cunha
11 K iriri K iriri Ribeira do Pom bal e Banzae l l
12 K a m b iw á K a m b iw á Inajã, Ib im irim e Floresta
13 G e rip a n kó G e rip a n có Parico n h a
14 Fazenda Funil Tu xá Inajá
15 K a p in a w á K a p in a w á Buique
16 Fulní-ô Fulni-ô Ág uas Belas
17 C aiçara/Ilha de São Pedro Xokó Porto da Folha
18 X ucuru X ucuru P e sq u eira
19 X u cu ru -K a riri X u cu ru -K a riri Palm eira dos índios
20 Fazend a C anto X u cu ru -K a riri Palm eira dos índios
21 M ata da C afurna X u cu ru -K a riri Palm eira dos índios
22 K a riri-X o c ó Kariri-X o có Porto Real do C olégio
23 Tin g u i-B o tó Ting ui-Botó Feira G ran d e
24 K a ra p o tó K a ra p o tó São Sebastião
25 W assu -C o ca l W assu Joaquim Gom es
26 Ib o tira m a Tuxá Ib o tira m a
27 B arra A tikum e Kiriri M uquem de São Francisco
28 V arg em A leg re Pankararu Bom Jesus da Lapa
29 P o tig u a ra P o tig u ara Baía da Traição , M am anq u ap l
e Rio Tinto
40 A v ia g e m da v o lta
10 |acaré de São D om ingos P o tig u ara Rio Tinto
!l Potiguara de M o nte-M o r P o tig u ara Rio Tinto
12 T a p e b a Tapeba C a u c a ia
11 Trem em b é de Alm ofaía T re m e m b é Ita re m a
f4 São José do Capim -Açú T re m e m b é Ita re m a
IS P ita g u a ry P ita g u a ry M aracanau e Pacatuba
1(1 Lagoa Encantada C a n in d é A q u ira z
1/ M o nte N ebo* P o tig u a ra C ra te ú s
fff K a la b a ç a * K a la b a ç a Po ran g a
19 T a b a ja ra * T a b a ja ra Viçosa
■ Iurras que constam no site da FUMAI ou em program ação visando sua identificação.
** ferras indígenas que, em função da escala adotada, não puderam ser plotadas no m apa.
43
diferentes agências de contato em um nível local, ou seja, referentes a
grupos étnicos específicos.
P retendem os aqui com preender o processo histórico de produção
de terras indígenas nos estados de M inas Gerais, Espírito Santo, Bahia,
Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernam buco, durante o período de existên
cia do SPI: 1910 a 1967. A análise em preendida tem como pano de
fundo as redes de dom ínio tecidas pelo SPI em um a de suas configura
ções espaciais específicas: o processo de constiruição de um circuico
político regional de exercício da prática tutelar indigenista. U m a vez
que a nossa preocupação não era com n en hum grupo étnico ou posto
indígena singular, a docum entação existente no Setor de D ocum enta
ção do M useu do ín d io (S E D O C /M I) à qual recorremos encontrava-se
extrem am ente dispersa, isto nos obrigou a um a intensa e exaustiva ex
cursão pelos filmes e fotogram as que remetessem à 4a Inspetoria Regio
nal. Em conseqüência, foi necessária a garim pagem das inform ações
consideradas relevantes para a investigação devido às próprias caracte
rísticas das fontes, que aglutinavam séries heterogêneas de dados relati
vos ao funcionam ento das unidades adm inistrativas do SPI.2 D eparam o-
nos, p o rta n to , com u m a escrita de Estado destinada à produção de
registros dc um m on tan te de informações inerentes ao aparato de m e
diação/dom inação indigenista. D aí a verdade em ergente desses docu
m entos estar inserida na lógica de legitimação (segundo os critérios do
aparato governam ental indigenista) da conduta de funciouários diferen
tem ente posicionados ua hierarquia burocrática do órgão estatal.
Tais práticas discursivas não foram reificadas, mas apreendidas no con
texto sociológico que perm itiu o seu aparecimento. Os docum entos fo
ram considerados a partir de um a propriedade inerente à experiência
social em geral, o u seja, o seu caráter narrativo. Entretanto, esses relatos
fazem parte de um a prática governamental e de uma obrigação profissio
nal; estão sob as compulsões e ingerências de condutas adequadas à exis-
44 A VIAGEM DA VOLTA
ii-iicia dc um a burocracia estatal. A competência na produção de descri
ta* t c avaliações sobre as situações-objeto da ação governamental está dis-
iiibuída de m aneira diferem il entre os vários membros do corpo admi
nistrativo. O capital simbólico acumulado pelos atores nesse cenário polí-
iiio é im portante, pois remete para um a dimensão temporal a capacidade
de as ações de certos personagens gerarem efeitos concretos e condutas
duradouras. Isso não impede, no entanto, o sucesso na disputa pela defini
rão do real de sujeitos posicionados em níveis inferiores do aparelho esta
lai —e até fora dele — ao buscarem alianças em instâncias decisórias mais
pmeminentes. A eficácia histórica de enunciados proferidos por agentes
indigenistas depende das forças sociais mobilizadas em torno deles. Nessa
perspectiva, não procuram os descobrir a realidade empírica objetiva su
postam ente veiculada p o r esses rcxros, mas abordá-los em si mesmos,
tom o realidade histórica recortada por práticas discursivas vinculadas a
processos de governamentalização de grupos sociais específicos.3
( íbservamos tam bém que as monografias sobre os grupos indígenas
dc interesse deste rrabalho não apresentavam um a abordagem sistemáti-
i .1 que procurasse explicar os arrendam entos a partir de um horizonte
ii‘órico adequado. Pesquisando o material encontrado no S E D O C /M I
iclercnte à IR 4, constatamos a necessidade dc construir o entendim en
to sobre o cema cm questão a partir de um contexto significativo maior,
mi seja, com o parte de um a lógica mais am pla de atuação do órgão
governam ental indigenista. Sendo assím, form ulam os a idéia dos m ode
lo s de ação indigenista como construções analíticas elaboradas para com
preender um a dada realidade, recortada a p artir de um co n ju n to de
problemas previamente colocados e/ou nascidos da observação empírica.
Logo, é um a abstração do real, cuja finalidade é construir os contextos
de significado (ou conexões de sentido, em term os weberíanos)4 entre
atos e eventos verificados nas fontes de inform ação; por o u tro lado,
esses modelos correspondem a determ inadas formas de criação de terras
*Para lima discussão aprofundada sobre o relaco histórico, a crítica documental positivista
e as práticas discursivas, ver Chartier (1990).
* “Denom inam os ‘motivo1a conexão de sentido que, para o ator ou o observador, aparece
corno o ‘fundam ento’ com sentido de um a conduta. Dizemos que um a conduta que se
desenvolve como um todo coerente c adequada pelo sentido’, na medida em que afirma
mos que a relação entre seus elementos constitui um a conexão de sentido’ típica (ou,
como geralmente dizemos, correta), de acordo com os hábitos m entais e afetivos médios
[...]" W eber (1921: 10-1).
AVJAGEM DA VOLTA
ii .iparato norm ativo que a regulam enta {legislação referente à relação
m m os diversos segm entos da sociedade nacional, critérios definidores
da condição indígena, norm as de ação, estatutos das várias instâncias
político-adm ínistrativas etc.), podendo inclusive transbordar o próprio
unbito da agência indigenista oficial.
.Sendo assim, a política indigenista está conceitualm ente atrelada a
m ntextos históricos singulares, caracterizados pela existência de Esta-
dos-N ação e organism os burocráticos especializados no trabalho de
mediação em um certo tipo de população, cuja natureza se quer modifi-
i .11 c adequar a um m odelo de cidadão previamente estipulado. Para isso,
,i idéia de nacionalização é fundam ental, pois remete aquelas noções a
processos dc emergência e consolidação de Estados nacionais, de invenção
iIo povo e do território nacional/’
li, finalm ente, a ação indigenista aponta para as estratégias m obiliza-
das pelos funcionários do SPI em contextos singulares de exercício da
Imítica indigenista. Portanto são abordadas as m odalidades dc conduta
que incorporam um a reinterpretação conjuntural do material sem ânti-
in (o conjunto estruturado de valores, significados e recursos) inscrito
na ossatura institucional do órgão oficial de governo dos índios. Isto
pressupõe um a dinâm ica própria, diversa porém articulada aos proces
sos de desenvolvim ento da política indigenista no Brasil.
() nosso intuito aqui en tlo foi analisar a prática indigenista em sua
i niidianidade, a fim de compreender certas linhas de ação que adquiriram
o i.iráter de receitas para lidar com situações típicas. Isso implica a refe-
leucia pelos atores a um mapa cognitivo forjado para apreender contextos
específicos, que transbordam as definições fornecidas pelo enquadramento
normativo global inerente ao esqueleto organizacional do SPI. Sendo assim, a
idéia de modelos dc ação remete a essas regularidades observáveis na ação
indigenista, à existência de tais fórmulas transmitidas por uma tradição escri-
i.i (rclató rios, ofícios etc.), fo rjadas a partir da construção de uma exemplaridade
vinculada à atuação de certos personagens inseridos em posição de desta
que na estrutura burocrática do SPI: os inspetores. Estamos assim diante
dc um aprendizado informal ligado a uma rede dc comunicação controlada
prl.is inspetorias, ou seja, uma rede que aglutina e acumula um conjunto de
inlormações oriundas dos Pis sob a sua esfera de. intervenção.
a v ia g e m u a v o l t a
i. Inspetorias de M inas Gerais, do Espírito Santo e da Bahia foram
di.idas em Teófilo O toni, V itória e Itabuna, respectivamente.7 A chefia
dessas instâncias de ação indigenista ficou sob os cuidados de três mili-
i iivs: o capitão Trampowsky, o tenente Alberto Porrella e o tenente An-
iiuiio V ianna M artins Estigarribia, respectivam ente. O s dois últim os
ci, ni engenheiros-m ilitares; pertenciam a um a categoria profissional
fundam ental para a edificação da nacionalidadê; o oficial m ilitar seria o
i .nategista de tal missão cívica. A modalidade de atuação característica
desse m om ento inicial de im plantação de um aparato de sujeição dos
povos indígenas na região eram as expedições? Elas correspondiam a um
investimento cognitivo do espaço, tecido pelo deslocam ento físico do
inspetor. A cada passo ele nacionalizava aqueles sertões do país, realizava
uma operação simbólica de desbravam ento ao registrar oficialm ente a
i Mslência de tal lugar: o território nacional cra costurado sim bolicam en
te através dos relatos m inuciosos dos representantes do Estado, que da-
v.un assim um a prim eira am ostra da sua presença. Tal descrição com-
puliava os lugares, acontecim entos, habitantes, relacionam entos, com
portam entos etc., configurando um a densidade em pírica supostam ente
i■■i essária à elaboração de um retrato fie l das condições locais de convi
1l\in 1912, as duas últimas inspetorias constituíram um a única instância adm inistrativa.
Essas três inspetorias foram reunidas a partir dc 1913 (Souza Lima 1992b). A prim eira
referência a tal concentração administrativa que nós encontramos na documentação exis™
irncc no SE D O C do Museu do índio indicava a seguinte data: 30 dc julho de 1919 (cf.
'‘Relatório semestral do Chefe dos Trabalhos Especiais executados na Inspetoria do
Espírito Santo, Bahia e M inas, no ano de 1919. Vitória, 30/07/1919"). A sede locali
zava-se em Vitória, sob a chefia do engenheiro-miiitar Antonio Martins Vianna Estigarribia.
" Segundo a ideologia positivista vigente no início do século XX, o agente privilegiado para
realizar a dupla tarefa concernente à delimitação das fronteiras empíricas e simbólicas da
Nação era o soldado-cidadão (Souza Lima 1992a).
1 Essa modalidade de unificação simbólica da nação, realizada através do percurso de
pessoas investidas de autoridade política sobre os seus dom ínios espaciais (pretensos ou
efetivos), pode ser verificada em contextos históricos distintos. Podemos mencionar, por
exemplo, as viagens realizadas pelos reis franceses, durante o Antigo Regime, em situa-
çóes de crise para unificar e pacificar os seus súditos. À presença física do rei e o seu
deslocamento traçavam e reafirmavam os contornos do reino (Revel 1989b). O Estado-
Nação, por sua vez, dilui a encenação da sua soberania, encarnada no contingente de seus
lim cionános, que exprimem a ampliação do aparato governamental.
50 A VIAGEM DA VOLTA
A região desenhada pela prática tutelar com o objeto de intervenção
ganhava naquele m om ento im portância considerável para os respecti
vos estados. O vale do rio D oce representava um a alternativa econôm i-
i a para pequenos produtores rutais — em geral im ígtantes estrangeiros;
alemães e italianos em sua m aioria - que, oríginariam ente instalados
cm núcleos coloniais situados na região serrana do ES em meados do
século XIX, estavam em busca de novas terras. D evido à prática de
um a agricultura extensiva e itinetanre, geralmente destinada ao cultivo
do café, logo sobreveio o esgotam ento do solo, causando um m ovim en-
m m igtatório em direção ao norte do estado. O lado ocidental do rio
I'ancas, afluente do rio Doce, recebeu um m aior contingente de m igrantes
(Kgler 1951) e o Pancas tornou-se o principal eixo de acesso à margem
esquerda do rio D oce, de tal m odo que o SPIL TN estabeleceu um
pnsco indígena neste local. Esse órgão governam ental se estabelecia onde
li.ivia a possibilidade de exercer o seu trabalho de m ediação/representa-
t,ao encre os índios e a população sertaneja/pioneira.
Já a zona cacaueira da Bahia, com o aum ento da demanda deste produ-
lu no mercado mundial no início do século XX, tornou-se objeto do inte-
iesse de populações que vinham predom inantem ente do N ordeste e do
Recôncavo Baiano.12 Porém em Itabuna, por exemplo, o mercado formal
dc tetras cra ainda restrito, pois só 20,9911 de sua extensão territorial era
abarcada por estabelecimentos turais. A área cultivada cobria apenas 29,5%
d.i área toral dos estabelecimentos, sendo que a plantação do cacau cor-
icspondía a quase toda a área cultivada (97,8).n Este município era, no
início do século, um dos maiores produtores de cacau e, ao lado de Ilhéus,
i.mibém um dos centros difusores de seu cultivo. Isto demonstra o enor
me porencial agrícola a ser ainda explorado e disputado no sul da Bahia,
naquele m om ento. Nas duas primeiras décadas do século XX, a C om pa
nhia Inglesa monopolizou a implantação de um a malha viária (através dc
Icnovias) para facilitar o escoamento do cacau para o porto de Ilhéus.14
I'atre 1900 e 1935 o consumo mundial dc cacau aum entou de 101.300 toneladas para
645.500. Entre 1900 e 1940 a população da zona cacaueira cresceu 424,9%. A produção
ilc cacau cresceu vertiginosamente cutre 1875 e 1915 (5-016,5%). Em 1915, a produção
dc cacau correspondia a 28,56% da renda estadual toral, enquanto cm 1875 e 1895
eqüivalia a 0,65% e7,5% da renda estadual total, respectivamente (Botelho 1954: 169).
' 1 ( Iciimi da população, agricoltttra e indústria de 1920.
11 Na década de 1930, os interesses setoriais ligados à agto-exportação do cacau foram
reconhecidos na ossatura burocrítica do governo baiano com a criação do Instituto
Baiano do Cacau (tBC). Desde então, o IBC passou a comandar as políticas de iotegração
e organização do espaço regional no sul da Bahia, através da construção de rodovias,
reforomlantlo assim as condições de circulação do principal produto agrícola do estado.
A VIAC EM DA VOLTA
reconhecimento da área dc atuação - produção dc um saber geográfico
visando a futuras intervenções - e da implantação de uma infra-estrutura
viária, destinada a facilitar as condições materiais de ocupação dos ser-
lííes do país. Nacionalizar era tecer um a ampla rede de controles estatais
sobre populações e espaços até então inacessíveis. Tal tipo de expectativa
evidenciou-se quando, após a criação de alguns postos indígenas no rio
Pancas/ES e no tio E m e/M G , criou-se a figura dos colonos dos postos
indígenas, através da imposição de um a série de procedimentos normativos,
constituindo-se assim um mercado fundiário tutelado no âmbito da juris-
ilição da Inspetoria da BA, M G e ES (com relação tanto à força de traba
lho quanto aos produtos agrícolas dos colonos). Vejamos então as condi
ções impostas pela inspetoria do SPI em 15 dc junho de 1921 para a
introdução de trabalhadores nacionais no PI Guido Mariiére:
i) permite o estabelecimento e construção de benfeitorias e que se tenha
animais de sua propriedade, desde que os mantenha cercados. Com anto-
rÍ7.ação do inspetor, e consentimento do encarregado, o nacional poderá ter
animais em pastos ou cercados do estabelecimento; tal concessão sendo
retirada quando de interesse do parrimônio indígena;
ii) o n a cio n al n ã o te rá p osse da terra, p o ré m os seus fru to s, a n im a is traz id o s
o u nascidos e criados nos pastos serão d e su a p ro p rie d a d e ;
iii) p ro íb e b eb id as alcoólicas, exige m o ra lid a d e das relações c o m os ín d io s,
tra ta m e n to co rtês e ate n cio so destes e c u m p rim e n to das o b rig açõ es c o n rra -
ídas com estes;
iv) em caso de infração ao re g u la m e n to , o n a cio n al e su a fam ília terã o d e se
retirar, sem d ire ito a ind en ização . P o d e rá levar o b jeto s do seu uso e d e su a
f.im ília, a n im a is, fru to s d a roça. O in sp e to r p o d e rá a d q u irir esta ro ç a se for
c o n v e n ie n te p a ra o serviço;
v) o inspetor poderá permitir o plantio de cafezais ou construção de casa de
moradia, fixando previamente os valores respectivos. No caso de retirada, o
nacional será indenizado, exceto se os cafezais ou construções não tiverem
.uiLorização do inspetor ou excederem os limites autorizados;
vi) nos casos de rerirada voluntária náo haverá direitos a indenização. Con
tudo, o inspetor poderá indenizar conforme os meios disponíveis;
vii) será facultado ao nacional, pelo inspetor: rransporre nos carros do
patrimônio dos produtos da lavoura; beneficiamento destes produtos nas
máquinas da mesma; utilização dos reprodutores de raça em serviço de
monta; aproveitamento de quaisquer insrrumentos e serviços do patrimônio;
viii) d e p o is d e u m ano o n a cio n al terá d e c o n trib u ir p a ra as despesas gerais
d o p o sto c o m 6 % d o p ro d u ro de suas lavouras e criações;
15 "Relatório dos trabalhos efetuados nesta Inspetoria durante o ano de 192.1, s/d” (SEDO C/
M I. Filme 190. Fotogramas 371-418).
A VIAGEM DA VOLTA
quer dizer, são apropriadas pelo aparelho estatal indigenista. O inspetor
assumiria o papel do patrão no cenário político no nível local ao estatizar
a regime de barracão. Ele monopolizaria o acesso à força de trabalho dos
i idonos do posto, pois eles teriam de participar da execução dc trabalhos
ingentes quando requisitados, e consultar a inspetoria quando fossem
oícrecê-la a terceiros. C ontrolaria tam hém o destino da produção dos
■olonos, pois eles, após um ano, teriam de contribuir com 6% do resul-
i.ido dc suas lavouras c criações, e não poderiam vendê-la a pessoas estra
nhas ao patrimônio sem consultar a inspetoria.16 Para a execução de tal
tutela, um a série de recompensas e penalidades foram elaboradas.
O item 15 do regulam ento, que disciplina a colonização em terras
indígenas, acena com a possibilidade fu tu ra de com pra do lote pelo
colono. Sendo assim, os postos ou povoações indígenas funcionariam
i nmo verdadeiros centros agrícolas, que tam bém expressavam esse pro-
|i'io de criação de um campesinato tutelado.17 Porranto, intrusos eram
iquclcs que não estivessem enquadrados nos regulam entos condicio-
nantes da perm anência de colonos nas terras do posro. O s invasores
deveriam regularizar sua situação, isto é, colocar-se sob a rutela do
órgão ao apresentarem um a “Petição de preferência de localização” nos
loics que seriam dem arcados. As petições m encionadas deveriam vir
a nm panhadas de um a “Declaração de família” e ourra de “Reconheci
m e n to do regulam ento” do posto, ou seja, a inspetoria exigia dos colo
nos um a aceitação explícita e formal da sua submissão à malha discipli
nar por ela tecida.13 Nesse contexto, os postos indígenas recrutavam
1'iupos de trahalhadores nacionais, envolvendo-os na tram a tutelar urdi
da cin torno da população indígena. C om o nós vim os acim a, foram
i nados regulam entos especiais para os colonos introduzidos: os postos
indígenas tornaram -se verdadeiras empresas estatais de colonização. Ten-
i.iv.t sc controlar não só as relações travadas entre a população indígena
56 A VIAGEM DA VOLTA
i tilas por índios. A colonização, entretanto, não deixou de constituir
mu tios elem entos da intervenção indigenista, pois esta tam bém incluía
uma série de instrum entos norm ativos que procuravam orientar a pro
dução do espaço agrário. Essa dim ensão do trabalho de representação
i sercido pelo SPI predom inou nas chamadas zonas pioneiras, nas quais
is iareias de povoam ento e integração territorial foram privilegiadas
prlos inspetores dessa agência estatal. A qui se trata de regiões que já
iinliam sofrido fluxos de colonização passados, que não eram caracteri-
•idas por um a saturação da reserva de recursos fundiários disponíveis
í/iww), mas sim por um a intrincada tram a de direitos terriroriais muitas
vi /es justapostos e conflitantes. Em outros termos, o quadro acima des-
II no em linhas gerais é marcado pela existência de um a gama considerável
de recursos fechados, cujo acesso é disputado através da utilização de ins-
unm entos políticos ou jurídicos, e por intensos processos de concentração
rir ierras. Por outro lado, a liberação de terras também continuou presente no
Imii/onte projetado por este padrão conciliador de atuação, pois os acordos
(ninados para a cessão das terras mencionavam a possibilidade futura de retor-
iiii ao patrimônio estadual, caso o SPI interrompesse suas atividades junto ao
empo indígena beneficiado. N ão obstante, esses dois fatores estruturais da
ai,,10 indigenista perm aneceram subordinados à perspectiva na qual os
In>>,lov indígenas constituíam-se em instâncias de mediação de conflitos agrári-
ii i c distribuição de recursos fundiários. O arrendam ento de lotes de terras
>ni área indígena emergiu então como procedim ento paradigmático de
negociação com autoridades governamentais estaduais.
Em 1921, o Pe. Alfredo D âm aso intercedeu a favor dos Fulni-ô jun-
III ,io Gal. R ondon, no Rio de Janeiro, e ju n to à diretoria do SPI. N o
m o seguinte, 1922, D agoberto de Castro e Silva, ajudante adido do
Md, foi indicado para verificar a situação dos índios e escolher o local
p.H.i instalação de um novo posto de proteção aos índios, ou no estado
■l.i Paraíba ou de Pernambuco. C oncluiu seu relatório desaconselhando
,i i riação de um posto para atender aos Potiguara, lem brando a necessi
dade de indenização dos ocupantes civilizados. Em contrapartida, indi-
i i iii a assistência aos Carijó, alegando que seria pouco dispendiosa, em
i.i/íio da disposição daqueles que se apropriaram de suas terras em pagar foros
,1 um recebedor legal e idôneo. O emissário do SPI constatou no seu relató-
iio que mais da metade dos arrendatários nada pagavam aos Fulni-ô. O
< im selho M unicipal de Águas Belas considerava devolutas as terras do
m ligo aldeam ento do Ipanem a a fim de arrendá-las. A leitura do Inspe-
15 Cf. “Relatório referente às terras ocupadas pelos índios Potiguara na Bahia da Traição,
m unicípio de M amanguape/PB, e visita aos índios Carijó. S/D. Assinado: Dagoberto de
Castro e Silva” (SE D O C /M I. Filme 170. Fotogramas 1557-1589).
20 Cf. “Relatório sobre os trabalhos realizados nus anos de 1925 e 1926, na Inspetoria do
Estado de Pernambuco. í/05/1927. Assinado: Alberto Jacobina” (SE D O C /M I. Filme
190, Fotogramas 655-675).
21 O inspetor Jacobina tinha consciência disto, pois m encionou a nomeação do delegado
Lauro Pinho pata o cargo de fiscal do M inistério da Agricultura junto à Academia de
Comércio de Recife. Cf. “Relatório dos trabalhos executados durante os anos de 1927 e
1928, sob a direção do Auxiliar Alberto Jacobina, encarregado do SPI em Pernambuco.
04/03/1929, RJ” (SE D O C /M I. Filme 190. Fotogramas 736-759).
58 A VIAGEM DA VOLTA
In n tc | Pf.TI/Museu Nacional, 1993.
SPI, principalm ente em relação à regularização da ocupação fundiária de
populações não-índígenas nas reservas. Já o encarregado do posto do
SPI em Águas Belas desde a sua fundação foi transferido para a povoa-
ção indígena de Passo Fundo, 110 Rio G rande do Sul, em 28 de agosto
de 1928.
O acordo já referido loi firmado, em linhas gerais, segundo os termos
da proposta elaborada pelo M inistro da Agricultura, e consubstanciada
no Ato 637 de 20 de julho de 1928 do Governo de Pernam buco.32 Preten
dia-se estender a malha tutelar do SPI à população sertaneja ao instituir-
sc a figura do arrendatário, e o endividam ento constituiria uma fonte de
recursos econôm icos e políticos fundam entais nas mãos dos chefes de
posto diante de índios e foreiros. Estabeleceu-se assim um novo padrão de
ação indigenista, 110 qual o SPI atuou como principal agência mediadora
dos co n flito s agrárias e com o in stân cia d istrib u id o ra dos recursos
fundiários a partir do reconhecimento oficial de grupos e terras indíge
nas. O arrendam ento em ergiu com o procedim ento pred o m in an te de
operacionalização de tal estratégia, porém coexistiu com outros expedientes
utilizados para im plem entar a regularização fundiária em unidades territo
riais indigenistas: os contratos de extração de recursos florestais (madei
ras, cocos etc.).
A questão dos arrendam entos nas terras do posto Gal. D antas Barreto
passou a ser tratada a partir de um ângulo diferente dentro do SPI na
peimeira m etade da década de 1940. N a posição m anifestada anterior
m ente cm relatórios sobre sindicâncias e inspeções, os arrendam entos
com batidas eram aqueles classificados com o irregulares, isto é, aqueles
que foram efetuados de um a form a não controlada pelo órgão indigenista
(sem o conhecim ento da direção) ou que fugiam do seu dom ínio (descum-
prim ento das cláusulas do contrato). N o período aqui delineado, o ar
rendam ento em si mesmo passa a ser considerado nocivo à existência e ao
desenvolvimento econômico e moral dos índios. Em um relatório sobre os
trabalhos executados no posto indígena de Águas Belas durante o ano de
1944, o encarregado Tubal Fialho Vianna afirmou que os arrendam entos
representavam um entrave à emancipação econômica e social dos remanes
centes Carnijós: “O s civilizados arrendatários ocupam as terras férteis e
boas, vivendo o índio de minguadas rendas e de trabalhos com a palha
60 A VIAGEM DA VOLTA
te ouricuri ou p edindo esm olas, o que se co n trap õ e aos princípios
mtpagados pelo SPI.23
Tubal sugeriu então à diretoria a distribuição de um suprim ento es-
uh iTico para indenizar as benfeitorias dos arrendatários, a fim de deso-
up.tr gradarivam ente os lotes arrendados. É bom lem brar que desde o
iiferio dos anos 1940 já ocorria um processo de retirada de arrendatári-
is no posto Paraguaçu, no m unicípio de Itabuna, sul da Bahia. Parece
|ue tal proposta tornou-se hegem ônica quando a direção do SPI deci-
11u aprovar o Plano de Extinção de Foreiros m edianre indenização pe-
,is rendas internas dos postos em 1949.24
A atuação do SPI cm relação aos Poriguara se iniciou quando o Inspe-
ru Alípio Bandeira foi enviado para visitá-los em 1913, deixando implí-
u .i na crítica dirigida à atuação missionária a necessidade da interven-
Ki ria agência indigenista oficial, a fim de gerir racionalmente a ntegração
Iclcs à sociedade nacional.25 Entretanto, até a instalação do posto indíge-
é,i, a intervenção do SPI junto aos Potiguara foi m uito esporádica. Só há
i gisiros sobre os Potiguara da Baía da Traição no início dos anos 1920,
|ii,indo foi enviado outro emissário do órgão indigenista, Inspetor Dagoberto
li1( lastro e Silva, para verificar a situação das terras daquele grupo étnico,
nino já vimos. O desfecho da questão das terras dos Fulni-ô crigiu-se cm
ulução paradigmática quando o M inistro da Agricultura designou o ins
truir Estigarribia (28 de novem bro de 1929) para prom over com o gover-
u d o r da Paraíba acordo similar sobre as terras dos antigos aldeamentos
Ir M onte-M or e São Francisco, e tam bém para providenciar a organiza-
,io do núcleo indígena. O então governador da Paraíba João Pessoa havia
uiKordado com as bases do projeto de decreto proposto pelo funcioná-
m do SPI, apenas introduzindo um a ressalva sobre o retorno para o
Inmínio estadual das terras doadas em caso de abandono. C om o assas-
iii,ito do governador em 20 de julho dc 1930, Estigarribia prosseguiu os
” ( 'í, “Relatório dos trabalhos executados no PI Gal, Dantas Barreto, sob a direção do
encarregado Tubal Fialho Vianna, durante o ano de 1944. Aguas Belas, 13/01/45"
(SIÍD O C /M I. Filme 164. Fotogramas 45-49).
M 1 II. “M em orando n° 77, de 14/03/1949, da Diretoria com unicando a aprovação do
jilann de extinção dc foreiros, m ediante indenização pelas rendas internas" (SE D O C /
MI. Filme 164. Focograma 77).
’’ Cf. “Relatório referente aos índios remanescentes da Bahia da Traição, a nordeste da
Paraíba. Rio de Janeiro, outubro de 1920. Assinada: Aiípio Bandeira” (SE D O C /M I.
Filme 170. Fotogramas 1542-1555).
2<i Cf. “Relatório apresentado à diretoria do SPI, pelo inspetor Dr, Antonio M artins Vianna
Estigarribia, sobre os trabalhos execurados nos Estados de Pernambuco e Paraíba, no ano
de .1930. 30/0 3 /1 9 2 9 ” (SED O C/M 1, Filme 190. Forogramas 805-863).
27 N o período 1933-1939 o PI São Francisco ficou subordinado à Sétima inspetoria
Regional do M inistério do Trabalho, Indústria e Comércio no estado da Paraíba.
3S Em 6 de maio de 1937, o funcionário do SPI afirmou que M anuel Santana recebia
“duzentos réis dos empreiteiros por cada metro cúbico de lenha, consentia a exploração
do carvão por estranhos em rroca de 105000 por carvoeira e arrendava terras por
15$000/ha". Em um relatório referente ao ano de 1939, o encarregado m encionou a
quantia de $500 réis/metro cúbico de madeira extraída recebida pelosemi-indio M anuel
Santana dos donos de carvoeiras. Cf. Amorim (1970: 51) e “Relatório encam inhado à
Sétima Delegacia Regional pelo Sr. Feitor do PI São Francisco, na Baía da Traição (PB),
referente ao ano de 1939" (SE D O C /M I. Filme 180. Forograinas 69-78).
29 Foram apreendidas quantidades de lenha pertencentes a João Manuel, Joaquim Damasio,
M anoel Onça ejosé Leandro; emTram ataia, Cam urupim c Pedrinhas. O seu destino cra
a Fábrica de Tecidos Rin Tinto. Joaquim Damasio, José Leandro tios Santos e João Manuel
do Nascimento figuram como arrendatários nos documentos consultados sobre arrenda
m entos no PI Nísia Brasileira. Todos regularizaram a sua situação em 1949. N um
A VIAGEM DA VOLTA
■1 i*lu. Por o u tro lado, constatou-se a preocupação não só em avaliar e
u p.isliar o m o n tan te de recursos retirados do controle da adm inistra-
^ i>> do posto, com o tam bém de buscar fórm ulas para sustar tal esco-
'iin tuo. Todavia as soluções apresentadas fluíam na m esm a direção:
i obrar o pag am en to das taxas de a rre n d a m en to aos o cu p a n tes das
i< iias da área indígena, que som avam mais de quatrocentos. Justifica-
t i se tal m edida pela criação de um a renda própria para o posto, que
0 libertaria das verbas públicas. ü PI Paraguaçú foi m encionado como
1 n m plo p o r ter regularizado a situação dos o c u p an te s da reserva,
liiinando com eles contratos de arrendam ento em 1 937.30 Já está im-
plli ita aqui a definição da terra indígena com o um reservatório/esto-
qne de riquezas (com o patrim ô n io ), cuja adm inistração eficiente cons
um ia a ação indigenista em fonte geradora de renda. A p a rtir da se-
ipinda m etade da década de 1940, os relatórios dos encarregados pas-
ini a apresentar um a enorm e produção de registros, cujo estilo nar-
i uivo privilegia o relato contábil (o invenrário quantitativo) sobre os
in ursos existentes nos postos.31 As noções de patrim ônio e renda in-
i/iy/nas co nstituíam o fio c o n d u to r desse aparato discursivo. O s pró-
piios índios são pensados com o coisas a gerir, que entravam no côm -
j u i i o dos “Avisos dos Postos Indígenas” através das estatísticas sobre
piipulação, n ascim entos e ó b ito s ao lado de dados sobre pro d u ção
igiíeola, benfeitorias, criação, plantações etc. D este m odo as inspe-
mrias preten d iam acom panhar m inuciosam ente todas as possibilida
des de circulação (in p u tlreceita e tw/^wf/despesa) de recursos, centra-
uiacório referente ao ano de 1939, o chefe do posto avaliou era um milhão de m etros
i úbicos o m ontante de lenha extraído pela Fábrica de Tecidos Rio T into. Cf. “Relacório
encaminhado à Sétima Delegacia Regional pelo Sr. Feitor do PI São Francisco, na Baia da
Ihtição/PB, referente ao ano de 1939“ (SE D O C /M I. Filme 180. Fotogramas 69-78).
l !f, “Relacório encaminhado à Sétim a Delegacia Regional pelo Sr. Feitor do PI São
li-incisco, na Baía da Traição (PB), referente ao ano de 1939” (SE D O C /M I. Filme 180.
Fotogramas 69-78).
1 ( T “Termos de doação”, “Termos de avaliação”, “Termos de morte de animais”, “Termos
dc transferência e transmissão de contratos de arrendam ento”, “Concessões de aumento
tlc área de arrendam ento”, “Recibos de pagamento por serviços prestados”, “Recibos de
pagamento por venda de mercadorias”, “Recibos de arrendamento", “Recibos de paga
m ento de indenizações por benfeitorias”, “Prestação de contas sobre m ovim entação da
renda dos Pis", “ Folha de pagam ento de pessoal”, “Relação de despesas efecuadas”,
"Inventários de bens móveis e semovenres”, “Fichas para controle de m edicam entos",
“Avisos dos Pis” e “Boletins de criação".
3ZTal concepção de terra indígena traduziu-se cada vez tnaís na ossatura material da agência
indigenista oficial a partir da década de 1960, quando se tornou explícito o projeto de
valorização do patrim ônio indígena (Souza Lima 1989). Nessa perspectiva, a demarcação
de áreas indígenas constituiu-se em um dos instrum entos de regularização da ocupação
tundiária. Desse m odo, destinava-se um m ontante de terras para “o uso das populações
indígenas”, estabelecendo o estoque de recursos fundiários disponíveis para os em preen
dim entos empresariais páblícos ou privados, previstos pelo Estado brasileiro nos gran
des projetos de investim entos, durante as décadas de 1970 e 1980.
33 A transferência da sede do posto localizada na vila da Baía da Traição para um lugar
denom inado “Forte” em 1942, quando passou a denominar-se PI “Nísia Brasileira”
(Amurim 1970: 53), pode ser considerada como um modo de aíastar o centro adm inis
trativo desta unidade indigenista da pressão direta dos ocupantes não-índios, pois m ui
tos deles moravam naquele povoado.
34 Para confirm ar isto basta constatar que o índice de ocupação fundiária aum entou de
27,2% para 37,5% , quase alcançando o nívc! verificado pelo censo dc 192(1. Por outro
lado, os estabelecimentos rurais do município de M am anguape passaram a ocupar a
m aior área de terras da zona do litoral e m ata (34,8% ), apesar de corresponder a apenas
19,8% dos estabelecimentos desta unidade fisiográfica. Já percebemos então um indício
da concentração fundiária vigente em Mamanguape. Podemos apontar outro: o m ontanre
de escabelecimentos reduziu-se aproxim adam ente à m etade (51%), mas a área ocupada
por eles cresceu 37,9% (IBGE: Censo Agrícola de 1950).
64 A VIAGEM da v o lta
lenha, condicionado as decisões tom adas p o r agentes do SPI no sentido
de criar instrum entos que garantissem a integridade territorial e a pró
pria existência da área indígena.
Dessa feita, no final dos anos 1940 o inspetor Tubal Fialho V iana
sugeriu alguns procedim entos para o SPI recuperar o controle sobre
ns coqueirais existentes nas rerras do posto N ísia Brasileira. Em p ri
meiro lugar, o levautam ento dos coqueirais e da dívida ativa dos foros
m ure 1933 e 1949; em segundo, o p ag am en to de indenização dos
■íiios.35 Percebe-se um a orientação diferente daquela em itida pelo en-
i arregado do PI São Francisco em 1939. N aquele m om ento, não se
lu ta v a mais de regularizar a situação dos ocupantes da área indígena,
mas de retirá-las através da devolução m onetária do trabalho investi-
■Io nas terras ocupadas. Por o u tro lado, tal in ten to passava pela legali
zação/regularização da utilização dos recursos fundiários do posto pela
população não-indígena nele estabelecida, Isso seria feito firm ando-se
i ontratos de arrendam ento com tais ocupantes, subm etendo-os a um a
série de procedim entos norm ativos de convivência entre índios, SPI e
sitiantes, O bviam ente o controle de tal relacionam ento triádico fica-
n.i a cargo dos representantes do órgão indigenista no PI N ísia Brasi
leira — especialistas do trabalho de m ediação /rep resentação/dom ina-
i,.io envolvendo grupos indígenas. Tal esforço - p o r nós constatado
.uravés de recibos e contratos de arrendam ento do PI N ísia Brasileira
no S E D O C /M I - iniciou-se em 1949, estendendo-se até o m om ento
dc extinção do SPI (1967-8). O s dois prim eiros anos (i 949-50) con-
i entraram quase a m etade (48,3% ) dos arrendam entos estabelecidos
no período m encionado.
Os lotes arrendados no PI N ísia Brasileira estavam na faixa de um a
quatro hectares. Som ente três foreiros ocupavam extensões um pouco
maiores; O távio M onteiro (20 ha, em 1949, e 10 ha, em 1956), Luiz
I hiarte Cavalcante (20 ha, em 1956) e Sabino Franco de Farias (8 ha,
1968). Porranto os inspetores do SPI só conseguiram enquadrar em tal
mecanismo de disciplinarização aqueles que ocupavam pequenas exten
sões de tetra, deixando de fora os que d etin h am áreas m aiores; por
" Cf. “Processa S P l V ' 3773/48. Sugestões pata chamar ao Patrim ônio Indígena os
coqueirais existentes nas terras dos índios Potiguara. De Tubal Fialho V ianna, Inspetor
íispecial do SPI, para o chefc da S.O.A. do SPI” (SE D O C /M I. Filme 170. Fotogramas
1602-1603).
66 A VIAGEM DA VOLTA
onde esta em presa tin h a um a grande plantação de eucaliptos feita se
gundo o plano de reflorestamento recom endado pelo M inistério da Agri-
>ultura. O traçado pretendido por aqueles índios passava por um a área
(quatro léguas) habitada por sitiantes da Vila de M ataraca, que diziam
possuir títulos e pagar im postos territoriais dos terrenos respectivos. O
inspetor, ao contrário dos moradores da vila m encionada, afirm ou não
existir ato de governo sobre as terras dos Potiguara.
Francisco Sampaio procurou algum registro, no serviço regional do
I )om ínio da U n ilo na Paraíba, sobre os lim ites do antigo aldeam enro
dos Potiguara. N ão encontrando n en h u m instrum ento fidedigno de prova
sobre os verdadeiros contornos do território Potiguara38, concluiu que
não havia argum entos para arender às reivindicações dos índios. Suge
riu então que a diretoria ordenasse um a busca no A rquivo N acional, a
lim de encontrar docum entos do governo im perial sobre os Potiguara
da Baía da Traição. D eclarou ainda que, além disso, só restava medir as
terras em poder dos índios, e solicitar a homologação ao Juiz de D ireito
da Com arca de M am anguape.35
Visiumbra-se aqui um m odelo de ação que privilegia o cam po ju ríd i
co, com sua lógica e limites próprios, de reconhecim ento dos direitos
indígenas à terra. A estratégia privilegiada nesse contexto é o desbrava-
m ento de arquivos, bibliotecas e cartórios visando encontrar registros
que atestem com exatidão a antigüidade da fixação dos índios dentro
ilos lim ites territoriais por eles pretendidos. O bviam ente os docum en-
los são hierarquizados em term os da sua com petência no que diz res
peito à emissão de enunciados verdadeiros e, conseqüentem ente, como
instrum ento definitivo —inquestionável —dc solução de litígios fundiá
rios. Desse m odo, os agentes do SPI concentram a sua atenção sobre a
liscrita de EstadoAa, a fim de descobrir o ato fu n d a d o r da existência
pública das terras pertencentes aos Potiguara. Aqui a investigação his-
,s A não ser um croqui que não perm itia, na opinião do agente indigenista, determ inar
nem as distâncias entre os marcos nele mencionados nem a área aproximada do polígono,
devido à falta de escala.
■
MCf. "Carta de Francisco Sampaio, Inspetor do SPI, para Raim undo D antas Carneiro,
chefe d a I R 4 . Recife, 16/06/1952” (SE D O C /M I. Filme 171. Fotogramas 116-117).
Sobre este conceito ver Charrier (1990: 218), em que ele a define como "a escrita dos
representantes da autoridade pública ou a eles dirigida1’ c sugere um a análise dos supor
tes materiais através dos quais "[...] o Estado dá a conhecer as suas vontades ou registra
as dos seus súditos".
A VIAGEM DA VOLTA
mna solução extrajurídica, as dem andas fundiárias dos ocupantes, por
outro, visava induzi-los a reconhecer, através da form alização dc um
acordo, as prerrogarivas do SPI ante a ordenação do espaço agrário e a
preem incncia dos direitos indígenas sobre os terrenos em litígio, Po-
léin, apesar de preservar a integridade formal do território indígena, o
acesso e o controle pleno aos recursos nele existentes encontravam -se
inviabilizados para os índios. Tal situação era propícia ao florescimento
de conflitos, pois criava e fortalecia a expectativa de futuras regulariza
ções de apropriações irregulares de terras em área indígena.44
A amplificação de tensões decorrente da tática acima descrita foi se
inrnando insustentável para alguns funcionários do SPI, que passaram a
defender, alguns anos depois, um a alternativa para resolver os proble
mas existentes no PI N ísia Brasileira: a redução da área indígena, libe-
i.mdo dessa form a as terras ocupadas por sitiantes náo-lndios, C om o já
assinalamos acima, a idéia que norteia esse m odelo dc ação —fortem en-
ic investido de argum entos jurídicos - enfatiza a idéia de aproveitamen
to ou valorização dos recursos existentes nas terras indígenas, em que a
antigüidade da ocupação opera com o fator adicional de legitimação de
dem andas por terra45. Segundo essa lógica, a ausência de meios docu
mentais de comprovação de um vínculo pretérito entre os remanescentes
indígenas e as terras por eles reivindicadas inviabilizava qualquer tenta-
nva conseqüente do órgão de recuperá-las.4s
F.sse m odelo de ação já estava vigorando com o padrão de criação de
ierras indígenas no âm bito político-adm inistrativo da IR 4 desde m ea
11Tal fato pode ser ilustrado através dos periódicos atos de “regularização da situação dus
ocupantes” implementados em diversos postos e das várias concessões dc aum ento de
áreas arrendadas emitidas pelos encarregados dos postos do sul da Bahia. Tais procedi
mentos tornaram-se freqüentes para legalizar tanto a entrada de novos ocupantes quanto as
mcurporaçúes de novas terras por arrendatários antigos.
r ’ li interessante observar que a efetiva e permanente ocupação — que foi acionada para
propor a redução dos limites do PI Nísia Brasileira, em M am anguape/PR — como
rlcm cnto definidor das terras indígenas foi estabelecida pela C onstituição Federal de
1934 (Souza Lima 1992a: 236).
1 liil atitude reforça a estratégia peculiar das elites fundiárias brasileiras, que consiste cm
produzir um a série de registros (pagamento dc impostos, arrendamentos, transferências
rle.) sobre o terreno ocupado a fim de reunir instrum entos legais que garantam os
direitos sobre tal apropriação, O resultado é um a tram a tão intrincada dc títulos que
(urna difícil o seu questionam ento jurídico (Holston 1993).
A VIAGEM DA VOLTA
colonizador estava claram ente presente no m om ento de criação de cer-
i . is indígenas no sul da Bahia.
47 Cf, “Relatório dos trabalhos realizados no ano de 192f> sob a direção do Auxiliar Capitão
Vicente dc Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcellos, 04/03 /1 9 2 7 ” (Cf. S E D O C /M I.
Filme 190. Fotogramas 624-635).
72 A VIAGEM DA VOLTA
.us c própria do m odo com o concebiam a intervenção em grupos indí
genas. O objetivo era orientar a colonização a partir da força de traba-
llm deles. Para tanto, cabia torná-los sedentários, destinando-lhes lotes
i uja extensão tornava inviável a reprodução de formas de relacionam ento
Mim o espaço que exigissem m aior m obilidade. É im portante ressaltar
que, do p o n to de vista das autoridades estaduais, reservar terras para
gitipos indígenas eqüivalia a projetos sem elhantes de colonização atra
vés de outras populações. Portanto não havia a necessidade de um m odo
dr organização específico, inform ado por um a ideologia protecionista
r assistencialista, baseado em um esquem a m ental evolucionista; logo,
dc m on ito ram en to da passagem gradativa dos Índios a estágios mais
i voluídos de existência social e econôm ica. D aí a constante utilização
pelos integrantes de agências governam entais estaduais do term o colô-
m,t indígena —intercam biável pelo term o núcleo colonial — para designar
r. icrras reservadas à localização de índios. Tal perspectiva não excluía a
possibilidade de assentam ento posterior de colonos. U m outro ponto
0 levante a se r salientado refere-se ao fato dc o governo estadual ser o
principal agente financiador de tal em preendim ento, o que lhe conferia
um considerável controle sobre as condições de exercício da prática
mielar indigenista.
No início dos anos 1930, iniciou-se a expansão da infra-estrutura
viária que procurava integrar territorialm ente a zona cacaueira. O m o-
iinpóüo exercido pela C om panhia inglesa sobre os meios de transporte
loi quebrado pela atuação do Instituto do Cacau da Bahia (ICB), que
im plantou um a rede rodoviária no sul do estado. O ICB era um órgão
i-ii.idual que condensava institucionalm ente os interesses de setores so-
1i.ii.s vinculados à exportação do cacau. Essa agência foi criada em 1931,
r através dela o governo estadual passa a intervir na zona cacaueira, de-
i nlidu a orientá-la para um novo caminho (Botelho 1954: 193-9). As
uiilovias construídas provocaram a decadência das ferrovias an terio r
m ente estabelecidas e conferiram no com plexo viário im plem entado
uma im portância central à cidade dc Itabuna. O sistema rodoviário se
i unificava a partir do eixo Ilhéus-Ttabuna, seguindo em direção ao sul,
m uie e in terio r da zona cacaueira, o que significava que o acesso ao
pntio de Ilhéus passava a ser necessariamente interm ediado p o r Itabuna.
Nesse contexto, a dem anda por recursos fundiários no sul da Bahia
deve ter crescido consideravelmente. A observação da situação fundiária
vijmnte em itab u n a nesse período confitm a tal hipótese, m esm o consi-
tlrraudo que a procura por terras - através de diversas m odalidades de
74 A VIAGEM DA VOLTA
Imigração representou o governo baiano, enquanto a U nião nom eou
mu m em bro do M inistério da G uerra para firm ar o acordo sobre os
limites do PI Paraguaçú. Tal em preendim ento foi igualm ente custeado
Iu las partes. Foram designados um engenheiro civil do estado da Bahia,
Alfredo A m orim C oelho, e um engenheiro m ilitar do M inistério da
< Inerra, o capitão Moysés Castelo Branco Filho. A linha proposta pelo
M1[ (450 km 2 ou dez léguas2) era m uito m enor do que aquela determ i
nada pela lei estadual n° 1916 (2100 k m 2), O governador da Bahia acci-
tmi tal proposta. Nesse mesm o período, a adm inistração do posto regu
lai izou a situação dos ocupantes da área indígena, firm ando com eles
iiintratos de arrendam ento.
No início dos anos 1940, a agência indigenista tentou retom ar o pro-
t esso de regularização da ocupação das terras do posto Paraguaçu. Fo-
i .mi publicados editais em Jacareci, Santa Rosa e Itajú, convocando os
u rendatários em atraso a pagat a taxa devida até 15 de março de 1943.
Aqueles que não comparecessem à sede da administração do posto teri
am seus coutratos rescindidos. Em quinze meses (entre março de 1943 e
junho de 1944) foram expulsos da área indígena 145 ocupantes.51
Em 1946, o Insp eto r Sílvio dos Santos elaborou um a relação dos
arren d atário s existentes no PI P araguaçu. N essa ocasião, observou
muitos contratos rescindidos por falta de pagam ento e outras irregulari
dades durante a adm inistração de Saturnino Santana Filho; além disso,
b.ivia vários arrendam entos em atraso, m uitos por um período superior
.« quatro anos. Por outro lado, justificou a regularização de posses denrro
>l.i reserva dizendo tratar-se de pessoas que lá habitavam desde o início
il.i demarcação; eram chefes de fa m ília, indivíduos de bom costume, tendo
jeito algumas pequenas benfeitorias, e p o r isso seria desum ano deixá-los
desam parados. Além disso, o inspetor Sílvio dos Santos autorizou a
m ncessão de áreas adicionais para alguns arrendatários, alegando te-
irm eles cultivado todo o seu lote.51
53 Cf. ‘'Relacório da inspeção feica por Francisco Sampaio, Inspetor Especial do SPI, para
regularizar a situação dos arrendatários e ocupantes sem contrato domiciliados no PI
Caram uru. Recife, 29/0 4 /1 3 4 7 ” (SE D O C /M I. Filme 154. Fotogramas 1524-1527).
34 Cf. “Relatório dos trabalhos de revisão c regularização dc arrendamentos da reserva
indígena do sul da Bahia pelo Inspetor Francisco Sampaio. Recife, 07/10/1947” (SEDO C/
M I. Filme 154. Fotogramas 1552-1554).
76 A VIAGEM DA VOLTA
I')'Í8 foi m uito superior (443). O processo de introdução dc rendeiros
mi posto foi mais intenso na década 1947-1956. O s dois prim eiros
iims deste período concenrraram 65,5% dos contratos firm ados, quase
(mios sob a responsabilidade de Francisco Sampaio (Peres 1992: 192).
As relações entre rendeiros e a administração do SPI estavam formal
mente reguladas pelo “C ontrato Particular de A rrendam ento de Prédio
Rústico”. A estratégia posta em jogo consistia em colocar sob a tutela do
mgâo os processos de organização do espaço e utilização dos recursos
Inndiários na área indígena. Submerer os arrendatários a uma fina teia de
r iiinroles e, ao mesmo tem po, torná-los urna considerável fonte de renda.
< I posro indígena estava destinado à colonização e valorização do espaço
nli sua jurisdição. Se levado às suas últimas conseqüências, tai projeto
• ■induziria a uina estabilização da situação fundiária nos postos indíge-
n,is, sob pleno controle do SPI, porém a sua aplicação interm itente era
■letivamente um a condição fundam ental para a sua reprodução amplia
da, ou seja, a transform ação constante de novos invasores em futuros
arrendatários. Em outras palavras, nesse caso a fraqueza da agência indi-
genista era a sua força. Ao instirucionalizar o modelo de ação colonizador
• m contextos em que os recursos fundiários já haviam sido imobilizados
cm alguns casos por diferentes atores — através de um a série de meca
nismos políticos que envolviam o reconhecimento do Estado, a agência
miligenista assumiu concretam ente a tarefa de mediar conflitos agrários e
• tnitrolar a distribuição dc recursos em terras indígenas.
( lontudo nesse mesmo período, estava sendo traçada em instâncias
■Irrisórias superiores um a nova atitude diante dos arrendatários. Eles
passaram a ser considerados prejudiciais à existência e ao desenvolvi
m ento do posto. Desse m odo, o diretor do SPI aprovou, em 1951, um
parecer em itido pelo chefe da IR 4 R aim undo D antas C arneiro, no
qual solicitava-se a aplicação de 20% da renda dos postos C aram uru e
Paraguaçu em indenizações das benfeitorias de rendeiros, em cuja trans-
leiência o SPI tin h a preferência.55
" Ct. "Ofício n° 104 IR 40, Recife, 17/08/1951. Do Chefe da IR 4 para o escrevente
Manoel M oreira de Araújo” (Cf. S E D O C /M I. Filme 154. Fotograma 2194). Uma
outra m aneira de atualização dessa perspectiva contrária aos ocupantes nSo-índios pode
ser constatada na suspensão das transferências de arrendamenco que vinham ocorrendo
i iim freqüência nos Pis Caram uru e Paraguaçu, dcccrminada pelo direcor do SPI. Cf.
“ Telegrama 477 dc 07/12/1953. Do Chefe Substituto da IR 4 para o Inspetor Tubal
ballui Vianna” (SE D O C /M I. Filme 154. Fotograma 2301).
78 A VIAGEM DA VOLTA
,sões de aum ento, totalizando 439 ha, o equivalente a 60,4% de toda a
área concedida neste ano. Tais “doações” eram justificadas em term os
do com pleto cultivo do lote do requisitance, constituindo ao m esm o
icmpo um a m edida necessária para o desenvolvimento do posto e um
prêm io para o foreiro empreendedor, do ponto de vista da adm inistra
ção. Podemos deduzir então que tal m ecanism o de distribuição de re
cursos dentro da área indígena constituía im portante instrum ento polí
tico, controlado pelo encarregado, no cenário social locai.5Ú
Percebemos que em n en h u m m om ento a criação da área indígena no
sul da Bahia significou a imobilização de recursos fundiários na região.
C) que a agência indigenista ten to u foi controlar a sua utilização, tutelar
os processos dc organização e valorização do espaço: subm eter à adm i
nistração do posto a transferência de arrendam entos, através de com
pra e venda de benfeitorias, e conceder áreas não cultivadas aos arren
datários já estabelecidos. Tais açõrs correspondiam a m ecanism os de
criação de um m ercado fundiário local turelado.
D urante os anos 1950, constatou-se, nos escalões superiores da agên
cia governam ental indigenista, a ineficiência de tal estratégia em razão
de seus baixos rendim entos políticos e econôm icos.57 A d iretoria do
,SPI propôs então, em 9 de agosto de 1958, um entendim ento com o
Secretário de A gricultura da Bahia Herm ógenes Príncipe, no qual seri
am restituídas ao dom ínio estadual as terras arrendadas da área indíge
na (22 m il hecrares). Em troca, o governo baiano cederia 2 m il hecrares
para a localização de índios.58 Para livrar-se do problem a dos arrenda-
55 Cf. “O s Umãs. Raim undo D . Carneiro” (SE D O C /M I. Filme 151. Fotogramas 714-
720), grifos nossos.
60 N o início dos anos 11)40, foi criada a Inspetoria do Centro, sediada em Recife/PE, que
congregava a supervisão dos postos existentes nos estados de Minas Gerais, Bahia,
Paraíba e Pernambuco. Em fins de 1942, a Inspetoria do Centro m udou dc nome,
passando a chamar-se Q uarta Inspetoria Regional (IR 4). Cf. “Boletins Internos do SPI,
n° 11, dc 3 1 /10/1942 e n “ 13, de 31/10/1942". Foram criados três Pis no quadriênio
1940-4. Os postos indígenas sob a jurisdição da IR 4 eram os seguintes em 1944: PI
Paraguaçu, m unicípio de Irabuna/BA; PI Nísia Brasileira, m unicípio de M am anguape/
PB; PI Gal. Dantas Barreto, m unicípio de Águas Belas/PE; PI Pancarus/PE, m unicípio
80 A VtAGEM DA VOLTA
Nísia Brasileira —em 1934 —, no período de 1940 a 1959 foram funda
dos oito postos indígenas. Os anos 1950-60 foram caracterizados pelo
esforço despendido pela chefia da IR 4 —ocupada por R aim undo D antas
Carneiro durante um longo período, de 1944 a 1962 - para m anter o
controle sobre os postos do sul da Bahia; mais precisamente, os Pis Cara-
m uru e Paraguaçu.61 A quase totalidade da extensão territorial destes
postos estava arrendada, o que representava um volume de recursos fun
diários já dispostos no m ercado, supostam ente conversíveis em verbas
para a inspetoria ou para a diretoria. Foi neste contexto de ampliação
da malha governam ental indigenista que, desde o início dos anos 1940,
vários grupos étnicos no n o rd este passaram a recorrer ao SPI e ao
C N P I (Conselho N acional de Proteção aos fndios), reivindicando ter
ras a partir da sua condição indígena.
A atuação do SPI ante o grnpo étnico A ticum na serra Umã, m unicí
pio de Floresta/PE, com eçou quando estes índios encam inharam , com
o cabo Euclides Cavalcanti Novais, um telegrama endereçado ao Gal.
Rondon, durante a prim eira m etade dos anos 1940.62 U m a comissão de
índios Tuchá da cidade de Rodelas visitou o PI Pancarus e solicitou
providências ao encarregado para garantir-lhes o direito às terras com
preendidas entre a Ilha de Sorobobé e a Barra do T arrachiP 3. A lém
disso, o cabo Euclides Cavalcanre Novais intercedeu a favor dos Tuchá
através de um a carta ao chefe da inspetoria, em que descreveu a situa-
A VIAGEM DA VOLTA
ciai. Portanto tal estrutura sêmica dos procedim entos de delim itação de
áreas indígenas começa a desenvolver-se já a partir dos anos 1940.
O SPI passou a ser apresentado então como o redentor dos remanes
centes das antigas tribos aborígines, devolvendo as terras que lhes haviam
sido roubadas e libertando-os das condições opressoras de existência oriun
das do contato com a população sertaneja. Tal concepção sobre os grupos
indígenas não era nova, pois vários de seus elementos foram encontrados
no relatório da inspeção realizada em 1922 pelo inspetor D agoberto de
Castro e Silva, por exemplo, junto aos Fulni-ô e aos Potiguara. A identi
dade étnica é percebida de m odo estático, isto é, através da m anutenção
de elementos de tradição considerados como com ponentes de um m ode
lo de cultura indígena original, puro. Os índios são encarados tam bém
como seres passivos e indefesos, sendo necessário assisti-los, ampará-los,
proregê-los; pois, do contrário, se afastam da civilização.65 Afirma-se aqui
um direito natural/originário dos descendentes das antigas tribos silvícolas ao
território em que os seus antepassados foram aldeados.
C om o já vimos, tal perspectiva não excluía a possibilidade de im ple
mentação de mecanismos de distribuição de recursos fundiários como
um a estratégia para criar terras indígenas. Basta m encionar o processo
dc im plantação de reservas indígenas destinadas aos Pankararú, Kariri
c A ticum durante a década de 1940. Após a m edição da área indígena
destinada aos Pankararú, foram firm ados contratos de arrendam ento
com os ocupantes não-índios existentes.66 O inspetor Sílvio dos Santos
"O SPI chega para salvar o índio, a um fio da extinção, resistindo heroicam ente a
situações dc penúria e opressão”. Cf. “Relatório do Inspetor Especial Alísio de Carvalho:
visita ao PI G uido Marliere e instalação do PI G overnador Góes Calmon. Teófilo O toni,
agosto de 1949” (SE D O C /M I. Filme 301. Fotogramas 365-371).
f'c Cf. “N n 280/66. D o Chefe da 4a Inspetoria Regional, M ário da Silva Furtado, para o
D iretor do SPI. Recife, 12/07/1966” (C E D O C /FU N A I). Em 1937, a diretoria do SPI
designou o inspetor Cildo Meireles para realizar uma inspeção sobre a situação das terras
reivindicadas pelos Pankararú, no m unicípio de Itaparica. Em 1940, após entendim en
tos estabelecidos com o interventor federal no esrado de Pernambuco Agameoon Sérgio
de G odoí Magalhães, indicou-se o topógrafo da Secretaria de Agricultura, Indústria e
Comércio Argemiro Galváo Vieira para efetivar a demarcação da área indígena. Cildo
Meireles acom panhou a medição na qualidade de representante do SPI. Reservaram-sc
nesta ocasião 87 km quadrados (2 léguas quadradas e 114) para os índios. Cf. “Relatório de
Cildo Meireles, cscrirurário do SPI, ao Sr. Cel. Vicente de Paulo Vasconcellos, diretor do
SPI, sobre demarcação das terras do Posto Pancarus, no antigo aideamentti de Brejo dos
Padres, M unicípio de Itaparica (PE)” (SED O C/M I. Filme 175. Fotograma 335-337).
67 Cf. “Relatório sobre os índios de Vila M irandela (Saco dos Morcegos). Suas necessidades
c indicações sobre suas terras, 0 7 /10/1947. Assinado: Sílvio dos Santos, Inspetor
Especial XXIII” (SE D O C /M I, Filme 301. Fotogramas 332-337).
sa Tal solicitação foi negada pelo chefe da IR 4, que justificou sua decisão baseado na
determinação da diretoria de suspender o estabelecimento de novos contratos dc arrenda
m ento em terras indígenas. Cf. “Ofício N D 9 de 14/02/1950. De Josó Brasileiro da
Silva, Auxiliar Encarregado do PI “Aticum”, para Raim undo D. Carneiro, Chefe da IR
4 ” e “M /m . 75-IR 4 de 14/03/1950” (SE D O C /M I. Filme 152. Fotograma 1046-7).
® Cf. N ota 62.
84 A VIAGEM DA VOLTA
Por outro lado, assume im portância a discussão sobre a indianidade,
ou seja, sobre os sujeitos do direito de acesso às terras definidas como
indígenas. Sendo assim, o inspetor Tubal Fialho V ianna, em 11 de ou
tu b ro de 1947, p artiu do PI Rodelas tendo com o destino a Ilha da
A ssunção para verificar “a existência da rribo Tuchá [sic] do tronco
jurem al, e apurar a veracidade das queixas dos índios dirigidas ao Gal.
R ondon”. A sua principal missão: investigar a existência de índios e sua
origem etnológica.713 A indianidade dos Truká foi concebida nos seguintes
termos: não obstante a m istura racial, os índios Tuchá do tronco do
Jurem al da Ilha da Assunção “conservam a dança prim itiva do Toré e
vivem mais ou m enos em regime tribal“ (grifos nossos).
Esse mesmo inspetor já havia sido designado para realizar um a ins
peção sobre o caso dos A ticum da serra U m ã em 1946. Segundo o seu
relatório, a serra Umã era habitada por mais de 1.800 índios.71 Ele asse
gurou a m anutenção da indianidade do grupo através da conservação
de itens culturais atribuídos a um a coletividade pré-colom biana, apesar
de variações em term os de caracteres raciais: "[...] em bora mesclados
com civilizados, conservam costum es e festas religiosas com todos os
rituais de seus prim itivos. São ordeiros, afáveis, trabalhadores e não
corrom pidos pelo álcool”.
P o rtan to , eles ain d a não estavam degradados pelo conrato com a
população sertaneja, Isso, ao m esm o tem po em que legitimava a inter
venção do SPI, por causa da peculiaridade do seu objeto, dem onstrava
a sua urgência, pois cabia a este órgão governam ental inregrá-los ade
quadam ente à sociedade nacional. Tais traços pressupunham a persis
tência de um m odo de vida tribal, podendo assumir dim ensões religio
sas, espaciais, políticas etc. O inspetor Sílvio dos Santos, por exemplo,
destacou que os sitiantes não-índios (trezentos aproxim adam ente) resi
diam na vila de M irandela, enquanto n en h u m Kariri m orava no perí
m etro urbano, mas em núcleos isolados da população regional. Acres
86 A VIAGEM DA VOLTA
.surgiam propostas de insula.men.to de territórios indígenas. Taí lógica
poderia traduzir-se em dois procedim entos distintos: aquisição de pe
quenas extensões de terras ou redução das áreas p rete n d id as pelos
grupos indígenas. N as duas alrernativas as reservas ficariam cercadas
por um a enorm e população de ocupantes não-indígenas. A prim eira
opção pode ser ilustrada com o caso do PI Padre Alfredo D âm aso, de
Porto Real do C olégio.75 O chefe deste posto arrendou, no final de
novem bro de 1947, em com um acordo com o agrônom o do Fom ento
Agrícola Estadual e encarregado do cam po de sem entes de Porto Real
do C olégio, 24 ha desta unidade adm inistrativa do governo alagoano.
Neste m esm o ano, obteve a doação de 50 ha para os Kariri-Xocó resi
dentes neste m unicíp io .76 A segunda opção constituiu a estratégia p ri
vilegiada para a obtenção de terras para os Tuchá de Rodelas e Truká
da Ilha da A ssunção. Em 12 de fevereiro de 1947, o chefe da IR 4
R aim undo D . C arneiro solicitou a doação, para o assentam ento dos
índios Truká, de dez ilhas: Jatobá, C olherzinha, C u p im , C am po Iba,
C abaços, C o b ra, Ingaseira, Form iga, C araibeiras e C hico, o u seja,
abriu m ão das o utras v in te ilhas do rio São Francisco, p retendidas
anterio rm en te para com por a área indígena. R aim undo D antas C ar
neiro justificou cal posição dizendo que “aquelas dez ilhas eram sufici
entes para que os índios pudessem trabalhar, viver e m orrer na terra
que nunca ab andonaram ”.77 P ortanto, além da idéia dc antigüidade da
ocupação, a terra indígena era pensada exclusivam ente com o meio de
repro d u ção física dos ín d io s, sem n e n h u m a alusão às suas form as
p ró p tias de apropriação do espaço, que extravasam um significado
p u ram en te econôm ico.
Nas décadas de 1940 e 1950 os agenres indigenistas que atuavam no
N ordeste cultivavam uma atitude extrem am ente conrrária a possíveis
envolvim entos em interm ináveis conflitos agrários - inclusive e princi
palm ente na arena jurídica —com ocupances não-indígenas das reservas
75 F,stc posto foi instalado em 14/02/1944, na margem esquerda do rio São Francisco,
m unicípio de Porto Real do Colégio/Al. Cf. "Relatório de 1944 do PIT. ‘Pe. Alfredo
Dam aso’, de 3 1 /12/1944” (SE D O C /M I. Filme 172. Fotogramas 1997-2004).
76 Cf. "Relatório do PI Pe. Alfredo Damaso, 1948, de 0 6/01 /1 9 4 9 ” (SE D O C /M I. Filme
172. Fotogramas 2028-2037).
77 Cf. “4. IR 4. Recife, 12/02/1947. Do Chefe IR 4 para o Interventor Federal dn estado de
Pernambuco, Gal. Demcrval Peixoto” (SEDOC/M I. Filme 178. Fotogramas 1286-1287).
TERRASINDÍGENASEAÇÂOIND!GEN[STANONORDESTE(1910-67) j 87
ou áreas pretendidas pelos índios. É claro que esse estado de espírito
predom inava nos escalões mais altos do órgão (diretoria e inspetoria
regional), sendo até proibido que fossem feitos novos contratos de ar-
rendam enro — determ inação não cum prida por alguns encarregados de
posto, com o já vimos. C onseqüentem enre, as várias propostas que sur
giram de redução das áreas indígenas, deixando de lado os supostos
lim ites dos antigos aldeam entos, sustentavam-se na falta de docum enta
ção fidedigna sobre a verdadeira extensão do território tribal. Vejamos,
por exemplo, com o foram explicadas as causas do insucesso da IR 4 em
garantir a área pretendida pelos Trukár
i) os índios não tinham documentos para sustentar sua reclamação das ilhas
ocupadas há mais de cinqüenta anos por terceiros;
ii) a Prefeitura recusava-se a entregá-las;
iii) havia a necessidade de indenizar as benfeitorias dos ocupantes das ilhas,
em caso dc as terem adquirido a justo título e dc boa fé;
iv) havia a necessidade dc uma ação reivindicatória onerosa a ser movida
pelo SPI;
v) a IR 4 não possuía os elementos para instruir ral ação.78
88 A VIAGtM DA VOLTA
Conclusão
90 A VIAGEM DA VOLTA
a condição indígena tinham de provar o seu direito originário à terra, a
sua ligação essencial e imemorial com um a área precisam ente delim ita
da, assim com o a preservação de características tribais de existcncia
coletiva.
Nesse sentido, é m ister elaborar a história do processo de territoria
lização da agência indigenista oficial a partir das estratégias im plem en
tadas pelos seus agentes diante de contextos de disputa por recursos em
terras indígenas. À m edida que o SPI constituía a instância predom i
nante de produção da definição legítim a de terra indígena, a disputa
dos grupos indígenas p o r tais territórios era m ediada pelo sistema sêmico
estatal que orientava a criação de áreas de “proteção dos remanescentes
dos antigos povos aborígenes do N ordeste”.
A indianidade era definida em ín tim a conexão com as form as de
objetivação do terceiro term o da relação triádica estabelecida a partir
do trabalho de mediação indigenista: as diferentes categorias de p o p u
lação não-indígena — colonos, arrendatários e intrusos.
Por outro lado, é fundam ental m apear os distintos projetos territoriais
coincidentes, delineando os circuitos políticos em que os atores elabo
ram as suas linhas de ação e m obilizam recursos nesse tipo específico
de conflito agrário m ediado pelo Estado, ou seja, é im portante com pre
ender as distintas m odalidades de articulação das diferentes escalas de
exercício da prática indigenista: o idi^enismo, a política ini \genista e a
ação indigenista. Pretendem os aqui oferecer apenas um a pequena con
tribuição a essa linha de estudos.
93
O m eu objetivo é analisar os fatores que conform am o estabeleci
m ento da fronteira e da organização social da diferença cultural entre
tapebas2 e brancos. C onstituindo um estudo de caso, o trabalho focaliza
o processo pelo qual um conjunto de pessoas que teside em diversas
localidades do distrito da sede do m unicípio de Caucaia, zona m etro
politana de Fortaleza, Ceará, em um quadro de diversidade m arcado
por grupos locais discrepantes e configurações socioeconômicas distin
tas, vem a ser percebido com o um grupo distinto, cujo reconhecim ento
se traduz pela atualização de um a dada adscrição: tapeba. D enom ino
esse processo, na falta de m elhor term o, etnogênese: processo de form a
ção, m anutenção e dinâm ica de um a fronteira socialm ente efetiva e
um a identidade categórica.3
Longe de ser entendida com o o resultado de fatores originais, subs
tantivos e preexistentes, a individualização desse conjunto de pessoas c
percebida com o contextual, situacional e relativa não só a um elenco
definido de grupos e situações de interação, como tam bém à com peti
ção p o r recursos — isto é, a um “cam po político intersocietário” em
u m a “situação histórica” determ in ad a (O liveira 1988). C onsidera-se
tam bém a luta simbólica pela imposição dos critérios legítimos de reco
nhecim ento coletivo da identidade. Ao usar o term o etnogênese, porran-
1A grafia de nomes indígenas segue aqui as orienrações de Julio Cezar M ek tti e as críticas
desre à C G N T (Convenção para a Grafia de Nomes Tribais, estabelecida pela ABA, no
Rio de Janeiro, em 1953)» em especial à pretensão desta cm eonstituir-se num a nom en
clatura científica para as sociedades indígenas, como se fossem espécies animais e vegetais
(M elatti 1979 e 1989). Levo em consideração» também, as sugestões de H andler (1985)
quanto à cautela retórica que se deve ter ao narrar fenômenos da ordem do nacionalismo
e da etnicidade. O nde quer que o term o apareça grafado em caixa alta (T), refere-se aos
topônirnos ou constitui citação de texto no qual ele aparece grafado desse modo. O ptei por
m anter o nome da coletividade em questão grafado segundo a ortografia oficial brasileira,
com a letra inicial em minúscula e usando o s para o plural.
3Turner (1975: 25-6) chama atenção para o uso de termos metafóricos que, aplicados aos
fenômenos socioculturais, não são correspondentes literais desces. Essas “metáforas” po
dem dar um a idéia equivocada do que se está querendo descrever, pois embora dirijam a
nossa atenção para algumas propriedades im portantes da existência social, podem blo
quear a nossa percepção de outras. Turner refere-se, entre outras» às palavras derivadas do
radical gen, como gerar, gerattvo, gênese c outras: termos que, segundo ele, guardam uma
referência imediata para com o m undo orgânico, o ciclo de vida de organismos, no qual
eles são literais e empíricos em seu sentido original. Com o se verá, não objetivo fazer
nenhum a história do “ciclo de vida” do “grupo étnico” tapeba» embora a expressão
“gênese” perm ita supor que isso seja possível.
94 A VIAGEM DA VOLTA
to, estou me referindo de um m odo abrangente^ ao processo de em er
gência histórica de um a front< ra socialm ente efetiva entre coletivida
des, distinguindo-as e organizando a interação entre os sujeitos sociais
que se reconhecem - e são reconhecidos - como a elas pertencentes.
A análise filia-se às tentativas contem porâneas de definir etnicidade,
de explorar os processos envolvidos na formação, m anutenção e m odifi
cação de identidades categóricas e de desvelar o significado destas para
as dimensões política, econômica e da organização social. O s pressupos
tos centrais da análise, assim com o os conceitos com os quais opera,
provêm do conju n to de tem as e problem as articulados, de um lado,
pelos assim denom inados "estudos de etnicidade” (rubrica que ahriga
um conjunto de investigações m uito diversificado, tanto do p o nto de
vista das situações etnográficas teinatizadas, quanto do ponto de vista
das abordagens teóricas e metodológicas); de outro, pela perspectiva que
vê a luta pela definição da identidade — “esse ser percebido que existe
fundam entalm ente pelo reconhecim ento dos outros”, nas palavras de
Bourdien (1989: 66) ~ como um a forma particular de luta pelas classifi
cações e pela imposição dos critérios legítimos de ordenação destas.
Este artigo beneficia-se de leituras que movimentam as noções de “etno-
graíia multilocal” (Marcus e Fischer 1986) e de “processamento paralelo,
disperso e multilocalizado da identidade” (Marcus 1991). Pot outro lado,
salienta-se aqui um a dim ensão reflexiva sobre a pesquisa de cam po e a
influência do antropólogo (e a teoria da diferença cultural que traz consigo)
no processamento da dentidade e da fronteira socialmente efetiva. Enfatizo
que, ao lado dos outros agentes presentes e definidores da situação enfocada,
o pesquisador de campo também deflagra processos identitários, contribu
indo decisivamente para a “invenção da cultura” (nos termos de Wagner
1981) e para a produção de um a consciência da diferença em termos pro
priamente culturais (como sugerem Turner 1991 e Sahlins 1993).
1 C orrendo o riscu de, ao privilegiar esse termo, reduzir situações e processos sociais que
sc dão em m últiplos níveis e escalas a um a perspectiva unidim ensionai.
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO? 95
vantam entos produzidos por antropólogos e missionários como os únicos
estados no Brasil onde não havia índios. N o Ceará, entretanto, a presença
indígena deixou de ser ignorada —ou melhor, passou a ser considerada —a
partir da primeira merade da década de 1980, quando a então Equipe de
Assessoria às C om unidades Rurais — hoje, Equipe de Apoio à Questão
Indígena — da Arquidiocese de Fortaleza passou a atuar no município de
Caucaia, zona metropolitana de Fortaleza na coletividade dos assim deno
m inados “tapebas” ou “tapebanos” (que é um a locução adjetiva para “do
Tapeba”, “da lagoa do Tapeba”), ou mesmo “pernas-de-pau” (num a refe
rência à alcunha de um ancestral de um segmento dessa coletividade, ao
qual com um ente rem ontam ao traçarem sua genealogia).5
A etimologia da palavra tapeba é tupi, conforme vários autores (Pinto
1899: 559, Pompeu Sobrinho 1919: 208, Almeida 1987), constituindo
um a variação fonética de itapeva (de itã!tâ, isto é, “pedra”; e peva, ou seja,
“plano”, “chato”): “pedra plana”, “pedra chata”, “pedra polida” etc. O nome
do m unicípio tam bém é tupi, representando um a variação de ka'a-okai
(de k a a , isto é, “erva”, “m ato”, “bosque”, “floresta”; e okai, “queim ar”):
“m ato queim ada”, “bem queim ado está o m ato”, “queimada”, "mato que
se queim a”. Poderíam os repetir indefinidam ente este exercício, pois a
toponím ia local é quase toda ela de origem tupi: Capuan, Iparana, Icaraí,
Jandaiguaba, Paumirim, Pabussu, Tabapuá etc., mas tal esforço seria im
produtivo porque esses significados são desconhecidos dos sujeitos soci
ais que hoje vivem nessas áreas. Esses sentidos resultam de um a pesquisa
etimológica das palavras e nos falam de um tempo e de situações históri
cas que, no estado atual de nossa ignorância histórica e etnográfica, não
temos condições de reconstruir e descrever completamente.
N ão existe na literatura etnológica e histórica, nem nas fontes prim ári
as compulsadas, qualquer referência a um a sociedade indígena assim de-
96 A VIAGEM OA VOLTA
nom inada —tapeba.fi As poucas referências encontradas anteriores a 1984
são marérias na im prensa escrita de circulação nacional sobre as precárias
condições de vida dos tapebas. O Jornal do Brasil de 7 dc abril de 1968
publica matéria intitulada “Indígena no Ceará não é nem cidadão”, em
que se descreve “a form a prim itiva de vida que cultivam” e - o que é
interessante - o fato de eles não existirem legalmente dado o desconheci
m ento oficial de sua existência pelo governo estadual e pelo SPI. O Estado
de São Paulo, em 2 de m aio de 1982, publica a m atéria “O s últim os
Tapebas, na misétia”, descrevendo as suas condições de vida e inform an
do que vivem em palhoças às m argens do rio Ceará. D uas m erecem
atenção pelas referências etnológicas desencontradas que veiculam: uma
publicada em 6 de julho de 1969 no jornal O Estado de São Paulo, assina
da pelo correspondente local Rodolfo Espíndola e intitulada “O triste fim
dos índios cearenses”, na qual se afirma que os tapebas são um “subgrupo
dos Caucaias” que, por sua vez, seriam um “subgrupo dos Tiremembé”; a
outra, publicada no Porantim em ahril de 1982 cira nove tapebas vivendo
em terras não demarcadas no município de Paracatu, Ceará, apontando-
os com o um grupo macro-jê.7 Eis um exemplo de como o desconheci
m ento etnológ o sobre as populações aborígines do que hoje é o Ceará
redunda em informações contraditórias e desprovidas de fundam ento.
As fontes históricas acessíveis e a historiografia disponível m encio
nam que o m unicípio de C aucaia ter-se-ia originado da Aldeia8 de Nos-
0 Considero essas fontes não tanto como vias de acesso à existência objetiva das sociedades
indígenas no passado mas sim como fontes que concedem legitim idade à dem anda de
reconhecim ento de continuidade no tem po dessas unidades sociais e, portanto, dc sua
objetividade (Oliveira 1980ae b, Bourdieu 1989). Eis o nó górdío do problem a para os
tapebas.
1 N o que concerne a esta última referência, é importante notar que Paracatu fica em Minas
Gerais e não no Ceará, onde o município cujo nome mais se assemelha àquele é Paracui u.
Nessa mesma listagem do Porantim, os potiguaras, reconhecidamente tupi, encontram -
se ali listados tam bém como macro-jê.
8Aldeia significa aqui náo os assentamentos indígenas tradicionais mas sim um a categoria
histórica que denota um certo modo/modelo de apropriação fundiária, tal como explicita
Faulhaber: “A figura da aldeia indígena constitui um a categoria historicamente enraizada
e que aparece no discurso dos primeiros viajantes, associada à formação estratégica de
agrupam entos populacionais, sendo vinculada à prática missionária de descim entos c
banzados, nos quais participavam os próprios tuxauas e principais indígenas" (Faulhaber
1989: 2). Referimo-nos, portanto, aos conjuntos edificados pelos colonizadores para
assentamento de índios.
98 A v ia g e m d a v o lta
Fonte j PETI/Museu Nacional, 1993; FUNAI.
um lento processo de individuação étnica dos elem entos daquelas qua
tro sociedades indígenas originárias, potiguaras, trem em bcs, cariris e
jucás, reunidos sob a autoridade da adm inistração colonial. Para essa
interpretação (da qual participam tam bém alguns agentes do Estado),
não há dúvidas em relação à origem e à condição indígenas dos tapebas,
considerando a diversa composição étnica da Aldeia de Caucaia. A sua
co n tin u id ad e no tem p o até cultu ras pré-colom bianas e, p o rta n to , a
im em orialidade de sua ocupação estariam atestadas.9
E ntretan to , um a análise m enos apressada da historiografia disponí
vel pode levar à conclusão de que a tese acim a referida ainda guarda um
caráter conjectural p ro n u n ciad o , se com parada à situação de outras
sociedades indígenas no N ordeste do Brasil.10 A inda assim, há, nessa
área, registros de concessões de terra à Missão de Caucaia e aos índios
e seus principais, registros estes que guardam coerência com referênci
as ao passado contidas em relatos de tapebas e regionais, notadam ente
a noção de “terra da santa” (cf. adiante); as fontes autorizam a postulação
de um a variada composição étnica da Aldeia; e Vila N ova de Soure, em
9 Dessa preocupação não estive ausente, um avezque, em texto anterior, considerei que os
tapebas seriam fruto do inter-relacionam ento dos m em bros dos grupos indígenas
supracitados, vivendo sob distintos regimes de administração de populações indígenas e
sob diferentes legislações de ordenam ento fundiário, 'através de um lento processo de
articulação e individuação étnica” (Barrctto F° 1989: 191).
10 Não estou querendo dizer com isso que, para outros grupos étnicos no Nordeste, a
continuidade com populações pré-colombianas seja um dado objetivo por oposição à
situação dos tapebas. C ontudo, na maioria das outras situações no Nordeste, o veredicto
de legitim idade da continuidade no tem po e da objetividade desses grupos c mais
facilmente concedido, dado o registro na literatura etnológica e histórica. Com parando a
situação dos tapebas com a dos capinauás — que também nao são registrados nem
reconhecidos pela literatura, mas têm “data de fundação” (Sampaio 1993), isto é, quando
se apresentaram pela primeira vez à 3* Superintendência Regional da FUNAI, em Recife-
FE, exigindo a demarcação de uma área indígena —observamos que a estes foi possível
legitimar “objetivam ente” sua dem anda de reconhecim ento, por meio de um levanta
m ento da cadeia dominíal na área. Esse levantamento perm itiu, através dos sobrenomes,
reconhecê-los como descendentes dos 'caboclos da M ina G rande”, concessionários de
uma doação de terras a principais (isto é, líderes) indígenas e seus descendentes (Sampaio
1993). Veremos a seguir que, no caso dos tapebas, quaisquer que tenham sido os seus
dom ínios, eles não lograram assegurar a sua m anutenção até os dias de hoje e nem foi
possível reconstituir a cadeia dom ínial, dada a informalidade segundo a qual transacio
naram suas posses.
A VIAGEM DA VOLTA
que se transform ou a A ldeia de Caucaia, c m encionada como “vila de
índios” até m eados do século XIX.
D e fato, são poucos os relatos que, de posse de fontes primárias e da
historiografia disponível, logram dem onstrar a continuidade histórica
das sociedades am eríndias através dos tem pos. Nessa perspectiva, que
procura definir com o critério de e para a identificação dos tapebas a
con tin u id ad e histórica com populações pré-colom bianas, reforçando
assim a definição e sta tu tá ria de ín d io cristalizada no “E sta tu to do
fndio”(Lei 6.001/73), a natureza da continuidade no tem po dessa unida
de é desconsiderada com o um problema: trata-se de afirmá-la no campo
de disputa pela definição dos critérios legítimos de reconhecim ento da
idenridade.
A questão proposta, portanto, é: qual a unidade cuja continuidade
no tem po é afirmada? A dm itindo que as formas socioculturais são dis
tintas das espécies animais (cf. notas 2 e 3) e que, portanto, os “registros
históricos e etnológicos” dessas unidades sociais não podem ser tom a
dos com o referências a realidades supostam ente naturalizadas, e sim
com o "registros” das suas m últiplas formas de existência (ou melhor,
como expressões das condições de possibilidade de percebê-las), optei
por tom ar a luta pelas classificações com o objeto. Logo, este não é um
laudo em que se pretende assegurar que um determ inado grupo é “indí
gena”, porém um a análise que pro cu ra desvelar etnograficam ente os
processos pelos quais essa definição é construída e posta em jogo.
Era invariavelm ente assim que, nos idos de 1989 e 1990, os ouvintes
da em issora eram acordados pelo cantador Pereira, às cinco horas da
m anhã, na abertu ra dos program as consecutivos M etro verso e viola,
Mensagem para um novo dia e Forró danado. A Rádio M etropolitana
A M -230 khz, que tem estúdios em Fortaleza e Caucaia, era então de
propriedade do ex-M Ínistro da D csburocratização, e candidato derro
tado à eleição de 1990 para G overnador do Ceará, Paulo Luscosa da
Gosta. Tendo com o program ador e radialista o padre da Paróquia de
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?
Caucaia Francisco A ntônio Ferreira Cavalcante, vulgo Pe. “Tula”, esses
program as, que reuniam todas as m adrugadas cantadores e poetas de
C aucaia e cidades vizinhas, gozavam de um a audiência significativa
entre os munfcipes.
E n tre os ouvintes dos program as, encontravam -se aqueles tapebanos
que possuíam rádio, alguns dos quais em cujas casas eu residi durante
o período de pesquisa de cam po. Industriosos, m uitos deles já esta-
vam de pé antes da program ação com eçar e invariavelm ente sin to n i
zavam no Pe. “Tula”. O brado radiofônico m atinal do cantador que
abria o program a repetia-sc diariam ente e era u m claro indicador do
reconhecim ento coletivo, ao nível local, da presença e da visibilidade
dos tapebas.
O s tapebas, tapebanos ou pernas-de-pau habitam em áreas geográfi
ca e ecologicam ente distinras (sítios rurais, povoados, vilas, bairros do
perím etro urbano, manguezais) do distriro da sede do m unicípio de
Caucaia. Este faz parte, ao lado de mais seis m unicípios, da microrregião
m etro p o litan a de Fortaleza, área de influência da capital e centro de
escoam ento da produção11, sendo o mais próxim o da capital - 16 km
em linha reta a oeste de Fortaleza.
N o estado do Ceará, C aucaia é o terceiro m unicípio em população,
com 163-793 habitantes, ficando atrás apenas da capital (1.758.334
hab.) e de Juazeiro do N o rte (173.304 hab.). M aracanaá, Pacatuba e
Caucaia, nessa ordem , foram os m unicípios da microrregião m etropo
litana de Fortaleza que mais cresceram em termos populacionais entre
1980 e 1992, tendo o terceiro registrado um a taxa média de increm en
to anual da população da ordem de 5,17% (FIBG E 1992: 35-7). Rever-
teu-se, assim, um a tendência apontada por Almeida, em 1986, de de
créscimo da população de Caucaia em relação à região m etropolitana
de Fortaleza, o que indicaria a contin u id ad e do processo m igratório
oriundo do interior. Se o valor relativo da população residente em Caucaia
diante da população da zona m etropolitana de Fortaleza caiu de 10,42%
em 1940 para 5,89% em 1980 (Alm eida 1986: 5), observam os esse
A VIAGEM DA VOLTA
índice subir para 7,11% em 1991. Poder-se-ia ver aí um indicador da
redução da capacidade de absorção pela capital do fluxo oriu n d o do
interior.
Esse processo foi acom panhado pela concentração da população no
perím etro urbano do m unicípio: em 1960, dos 42.572 habitantes re-
censeados, 36.028 (84,6% ) encontravam -se em áreas rurais e 6.555
(15,4% ) em áreas urbanas; duas décadas mais tarde, dos 94.157 habi
tantes recenseados para 1980, 73.345 (77,9% ) escavam nas cidades e
vilas (sedes de distritos) e apenas 2 0 .8 1 2 em áreas rurais. N ão só o
crescim ento populacional se deu em direção às áreas urbanas, como
tam bém a Lei M unicipal n° 430 de 5 de junho de 1986 am pliou a zona
industrial e urbana do m unicípio de Caucaia, visando prom over a infra-
estrutura para im plantação de m inidistritos indusrriais na m argem di
reita do rio Ceará até a ponte da rodovia BR-222 sobre o m esm o rio .12
Esses são indicadores de um m unicípio em franco processo de urbani
zação e expansão industrial.
Em 1986, C aucaia ostentava dois títulos bastante significativos da
form a desordenada com o vem se dando o seu crescim ento. Era o se
gundo m aior índice de criminalidade, só perdendo para M aranguape15,
e o m aior foco de incidência de dengue no estado (quase todas as pes
soas com as quais então convivi em Caucaia já tinham tido pelo m enos
um a crise dessa doença). Além disso, os benefícios da expansão indus
trial, comercial e urbana parecem não contribuir para o estreitam ento
das disparidades sociais.
C aucaia caracteriza-se pela presença de atividade industrial têxtil,
alim entícia e de beneficiam ento de pro d u to s do extrativism o vegetal
(cera de carnaúba, óleo de m am ona, castanha e óleo de caju). Some-se
a isso estabelecim entos de exploração e beneficiam ento de pro d u to s
minerais (pedreiras, cerâmicas, fábricas de pré-m oldados, brita, areia,
seixo, pedras, cal, argila e barro para tijolos de alvenaria) e a pecuária
leiteira e para o abate. A lavoura e a pesca se dirigem m ais para o
m ercado interno e constituem as principais atividades econôm icas e de
subsistência dos habitantes da zona rural. Aí o trabalho com o “diarista”
em lavouras de terceiros tam bém aparece como um a possibilidade para
12Área que à ípoca estava sendo reivindicada pelos tapebas, com o apoio da Arquidiocese
de Fortaleza (cf. adiante).
13 Caucaia é conhecida regionalmente como a “terra da faca".
INVENÇÃO o u r e n a s c im e n t o ? 103
os posseiros sem terra e “m oradores”. Ao lado do m ovim entado com ér
cio, com centenas de pequenos estabelecimentos varejistas, o turism o c
o m ercado imobiliário configuram outros setores que têm se expandido
progressivam ente, principalm ente na orla m arítim a. Caucaia ficou ao
lado de Sobral no terceiro grupo dos 178 m unicípios cearenses que
receberam os maiores volumes de recursos referentes ao Fundo de Par
ticipação dos M unicípios em 1990 (atrás da capital e de Juazeiro do
N orte) e foi o terceiro m unicípio nas cotas de ICM S distribuídas em
janeiro de 1990, correspondentes ao período de arrecadação tributária
de dezem bro de 1989.
A geografia do m unicípio é m ultifacetada. C om sua sede a um a alti
tude de 29,91 m acim a do uível do mar, o m unicípio é mais acidenta
do do que plano. Com eçam em Caucaia as elevações que constituem o
cordão central do estado do Ceará. Apesar da im ensidão dos tabulei
ros planos repletos de carnaúbas, há no centro do m unicípio um bloco
m ontanhoso com vários nom es relativos a braços ou seções desse pe
queno m aciço. É um dos m unicípios cearenses mais ricos em lagoas
perm anentes. Os rios de Caucaia, entretanto, caracterizam-se por se
rem tem porários, com o é o caso do riacho Tapeba. Sua principal via
fluvial é o rio Ceará, que corta o m unicípio em sua m aior extensão,
d irigindo-se de sudoeste a nordeste, com u m curso de aproxim ada
m ente 50 km . Às m argens do rio Ceará, nas proxim idades da faixa
litorânea, cresce um a exuberante vegetação de m angue. N o s tabuleiros
costeiros p red o m in am solos silicosos e pobres, encontrando-se solos
ácidos nos baixios; são em geral férteis, p rin c ip alm en te nos pés de
serras, mas a com posição física varia m uito no interior. A cobertura
vegetal hegem ônica no território do m unicípio é caracterizada por ca
atingas, capoeiras e carrascos. O clim a do m unicípio é am eno, com a
tem peratura m édia oscilando entre 24° C no inverno e 32° C no verão.
A m édia pluviom étrica anual é de 1,178 m m . N o período de janeiro
a ju n h o , ocorrem precipitações da ordem de 854 m m , dem arcando
p o rtan to duas estações: a chuvosa, localm ente denom inada de “inver
n o ”, que se esrende de janeiro a ju n h o , e a seca, o “verão”, de julho a
d ezem b to .
É nesse q uadro socionatural que se inserem os tapebas. A sua po
pulação — de acordo com estim ativas a p artir do censo genealógico
que realizei em algum as localidades, com parado e cruzado com os
dados do “C adastram ento dos ín d io s Tapeba”, realizado pela A rq u id io
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?
com ércio am bulante (sorveteiros, pipoqueiros, vendedores de broa, de
frutas e legum es, de massa de m andioca, de m udas de plantas e de
anim ais silvestres).
As atividades variam conform e a área ocupada, o tipo de ocupação
da mesma, a disponibilidade de recursos nesses nichos, a época do ano
e o quadro geral de relações sociais (proxim idade e m obilidade física e
social) dos tapebas. Em bora algumas dessas atividades sejam caracterís
ticas de determ inadas localidades em que eles vivem (cf. adiante), é
com um encontrá-las consorciadas n u m a m esm a localidade por vários
tapebanos ou por um mesmo grupo doméstico. São atividades tam bém
desenvolvidas por segmentos da população regional que se encontram
em conc ;ões dc vida sem elhantes às dos tapebas, com o alternativas
reais de sustento. Assim sendo, os tapebas atualizam diferentes ativida
des produtivas e relações econôm icas que — é im portante frisar — en
contram espaço n o m uuicípio e se inserem no âm biro da econom ia
regional. Portanto, ainda que não integralm ente vinculados ao mercado
de trabalho formal, eles são parte da população econom icam ente ativa
do m unicípio.
As áreas onde encontram os os tapebas hoje coustituem grupos lo
cais de densidade, tam an h o , pad rão de assentam ento e localização
espacial distintos. Elas apresentam caracteres contrastantes: há desde
áreas habitadas quase que exclusivam ente por tapebanos, com o a área
dc paisagem rural do Tapeba - a lagoa do Tapeba, a C utia, a lagoa dos
Porcos, a Pedreira S‘“ Terezinha - até áreas em que a sua ptesença é
totalm en te pulverizada e residual, com o é o caso dos bairros do perí
m etro u rb an o da sede do m un icíp io — a C apoeira (bairro Pe. Júlio
M aria), o A çude, a C igana, o Itam bé, o G rilo, a Vila São José, a Vila
N ova (bairro Sta. Rita), sendo que os três prim eiros já crescem para
d en tro dos im óveis rurais que os lim itam ; passando por áreas com
uin padrão de assentam ento singular com o 6 o caso do “T rilho” (com
suas casas distribuídas long itu d in alm en te, num trecho de 2,5 Km, às
m arg en s da F errovia F o rtaleza-S o b ral, c o n stru íd a s em rerren o da
RFFSA ., en tre as barreiras do “c o rte ” e as cercas das p ro priedades
rurais vizinhas, nas localidades de Paum irim e C apuan) e das “Pontes”
(na localidade de Soledade, o nde as casas se situam às margens do rio
Ceará, nas únicas áreas de aterro sólido do m angue, geradas quando
da pavim entação da rodovia BR -222, cuja p o nte sobre o m esm o rio
em presta o n o m e à localidade). T endo sido expropriados das terras
cm que viviam, os tapebas foram levados, em certas circunstâncias, a
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?
nhos produzidos em campo revelou que os tapebanos não conheceram
só um a m odalidade de apropriação fundiária e uso dos recursos n atu
rais disponíveis.
A p a rtir dos dados da historiografia disponível, que indicam um a
situação de instahilidade no século passado (de diferentes propostas
q u an to à destinaçao das terras dos extintos aldeam entos indígenas),
sentim o-nos tentados a caracterizar a situação obtida entre os tapebas
como um híbrido de dois resultados históricos distintos, geralm ente
encontrados em áreas de colonização antiga: a desagregação de domínios
territoriais pertencentes à igreja, nos quais tenham passado a prevale
cer formas de uso com um (donde a “santa” apareceria como proprietá
ria), e/ou a perda da posse de eventuais dom ínios titulados, que teriam
sido entregues form alm ente a grupos indígenas (ou seus “principais” e
descendentes) sob a form a de doação ou em retribuição a serviços pres
tados ao Estado.
Parece ter sido esse o caso em Caucaia. S tudart Filho inform a que
os potiguaras obtiveram do governo português várias datas de sesmaria,
possivelm enre em retribuição ao seu apoio na supressão dos levantes
“tapuios”. As missões, por sua vez, foram beneficiadas na co n ju n tu ra
de consolidação da adm inistração religiosa do espiritual e do secular
das A ldeias. Em 23 de n ovem bro de 1700, alvará em form a de lei
concede a cada missão u m a légua de terra em quadra para sustentação
dos índios c m issionários (S tudart 1896: 126). H á registros de con
cessões de datas e sesmarias a colonos e a índios em Caucaia para a
p rim eira m etade do século X V III. Em 31 de m arço de 1723, registra-
se um a concessão feita pelo cap itão -m ó r da C apitania “ao principal
da aldeia de Caucaia João Paiva e mais officiaes e índios, para elles e
seus herdeiros, de três legoas de rerra com um a de largura, m eia legoa
para cada lado, fazendo peão n o olho d ’água cham ado Taboca” (Brigido
1900: 47).
A noção genérica de um território dado à santa, "a terra da Santa”
(Nossa S enhora dos Prazeres), expressa nas referências que tapebas e
regionais fazem ao passado, guarda coercncia com esses registros históri
cos de concessões territoriais feitas à missão e ao principal dos índios, e
tam bém com o que ocorreu com esse patrim ônio territorial, dadas as
sucessivas m udanças no ordenam ento da adm inistração dos indígenas c
na legislação fundiária.
A VIAGEM DA VOLTA
marcos dessa légua de terra17 sobre a qual ninguém teria direito e sobre
a qual seus ancestrais teriam exercido o uso consentido e talvez mesmo
a posse m ansa e pacífica (identificados hoje pela paisagem antropogênica
fru to dessa fo rm a de ap ro p riação : “os cajueiros do finado ‘M a n é ’
R aim undo, cabeça véio” e "as quintas do finado Casem iro”), eles dis
tinguem : um tem po em que “a terra não tinha d o n o ”, “o dono era nós”,
o que pode significar que o seu uso era consentido ou que os seus
ancestrais tenham exercido a posse m ansa e pacífica; tem po este que
teria precedido aquele em que “um sujeito aceirava um roçado, [e] ia
pagar só no fim da safra, em ju n h o ”, em que eles viveram e no qual
atualizaram relações sociais de produção valorizadas; períodos que se
opõem , em conjunto, às relações expropriarórias e excludenres obtidas
hoje, quando "ninguém pode m eter a foice [...] antes de pagar”, cm que
a “notinha” é apresentada no m om enro de m eter a foice no aceiro.
O bservam os assim a m ultiplicidade de soluções históricas produzi
das e conhecidas pelos tapebas na relação com a terra e os recursos
naturais valorizados (m adeira para lenha, caça, pesca, mananciais, açu
des naturais, lagoas, rios), bem com o com suas benfeitorias (fruteiras,
taperas, etc.). D iante de alguns desses recursos eles conservam ainda
hoje concepções de uso com um - “é do povo”.
A valorização progressiva da propriedade imobiliária rural na zona me
tropolitana da capital está na raiz da desagregação das relações sociais ante-
riormenre vigentes c da formação dos atuais grupos locais em que vivem os
tapebas. Explicam tam bém a m udança do caráter da relação de moradia
que se obtém hoje na área rural (Cutia, Pedreira Sta. Terezinha, Tapeba,
Lagoa dos Porcos), em que alguns tapebas permanecem como “m orado
res”. Estes têm se visto diante dc progressivas restrições e intimidações de
toda ordem pelos supostos proprietários de terras (proibição de reformar
casas, de plantar roças, de construir novas casas para seus filhos erc.), num a
clara tentativa de “persuasão” para que se retirem. C om o já indiquei, a
maioria dos tapebas hoje m ora em terrenos da União, em bairros do perí-
merro urbano da cidade ou em áreas cuja siruação de posse da terra não foi
regularizada (resultado de ocupações de propriedades ou foros de tercei
ros), sendo objetos das mais variadas pressões.
1N o que parece ser uma referência ao patrim ônio territorial da missão (cf. supra.).
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO? 1 11
Que d iferen ça fa z?
15 “As luras a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de proprie
dades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do tugar de origem e dos sinais
duradouros que lhes são correlativos [...] são um caso particular das lutas das classifica
ções, lutas pelo monopólio dc fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de lazer reconhecer,
de im por a definição legírima das divisões do m undo social c, por este meio, de fazer e
de desfazer os grupos” (Bourdieu 1989: 113, ênfases no original).
A palavra tapeba é devido à Lagoa do Tapeba, sabe? Nós morava lá, então
todos nós temos que pegar o nome de tapeba, né? E por isso é que chamam a
gente de tapeba. Mas não é que nós seja tapeba e pegue esse nome assim, mas
o nome que nós pega é devido à Lagoa do Tapeba, porque todos nós morava
lá na Lagoa do Tapeba, né? (Chagas, tapeba, 78 anos, Trilho/Paumirim).
Tapeba é a lagoa acolá que chama Tapeba, né? A lagoa lá onde nós morava.
Era Tapeba. [...] O Casimiro nasceu e se criou foi lá mesmo, lá pertinho da
lagoa. Ele nasceu lá no Tapeba e se criou foi lá. Que eles dizem que a gente
morava no Tapeba, criatura, e chamava nós de tapeba, só porque a gente
morava lá no Tapeba. Ora! {“Dona” Adélia, tapeba, 82 anos, Cutia).
AVIACEM DAVOLTA
o modo segundo o qual as pessoas traçam ou vêem traçada sua ascendên
cia por relações de parentesco (consangüinidade e/ou aliança indistinta
mente) com ancestrais que teriam vivido naquelas áreas. N o Tapeba,
destaca-se a figura de M anoel Raim undo, “cabeça” dos “tronco véio” da
lagoa do Tapeba. No Paum irim , a figura em blem ática de José Alves dos
Reis, o “Zé Zabel Perna-de-Pau”, tido com o a últim a forte liderança dos
tapebas do Paumirim, o “ultimo tuxaua”, após a m orte do qual conta-se
que os tapebas do Paumirim , que viviam sob a sua autoridade, se disper
saram num a espécie de diáspora. O caso absolutamente singular de poliginia
sororal que ele teria m antido e os m uitos filhos que ele teve com as suas
duas mulheres20 geraram um grupo de descendência claramente delimita
do. Alguns elementos desce, notadam entc da segunda geração descenden
te, casaram-se entre si. Estes referem-se a si próprios como “a verdadeira
nação”, opondo-se aos tapebas de outras localidades, considerados por
cies não puros. Referem-se a “Perna-de-Pau” como o “fundador” da “na
ção”. Desse m odo, eles dem andam o status de tapeba exclusivamente
para si, negando-o a outros. Essa disputa pela autoridade e pela legitimi
dade do discurso vetdadeiro sobre os tapebas é um a constante, principal
mente entre os “Zabel”, os pernas-de-pau, que se julgam os legítimos
interlocutores para falar sobre os tapebas e de seu passado.
Deve-se assinalat que, no caso dos tapebas, não existem regras de
descendência que vinculem um a pessoa a qualquer grupo de parentes,
prescrevendo séries de direitos e deveres, nem regras de casam ento
preferencial ou in terd ição de união com brancos. T am bém não há
regras de residência. A dim ensão d a organização social assum e im
portância com o um elem ento definidor em função do teconhecim en-
to de alguns grupos de descendência irre strita 21 com o tapebas e da
20 H á inclusive quem fale em três esposas (uma seria “amante”, e não viveria junto com ele)
c outros ainda em oito, todas morando na mesma casa. Até onde se pôde avançar, só
conseguimos identificar Filhos e netos das duas esposas referidas, por isso nos limitamos a
estas. Q uanto ao número total de filhos, nao foi possível identificar codos, mesmo porque
muitos não residem mais em Caucaia e as relações se estenderam para outras direções.
21 Conto grupos de descendência irrestrita compreendemos aqueles “grupos” - no sentido
amplo e descritivo, de qualquer coletividade cujos m em bros possuam um a semelhança
qualquer - que consistem de rodos os descendentes, através de hom ens c mulheres, de
um ancestral comum. Uma configuração social característica dos sistemas de parentesco
bilaterais, caracterizados pela ausência de grupos de parentesco exclusivos recrutados na
base da descendência (cf. Bott 1976: 127-8).
A VIAGEM DA VOLTA
caracterize com o um núcleo de identidade em torno do qual esta se
enfraquece: trata-se de um a área onde, com o já indiquei, a presença
deles é hegem ônica, os vínculos econôm icos entre as pessoas são relati
vam ente mais estreitos que nas outtas áreas, a m obilidade física é rela
tivam ente menor, as relações de vizinhança tendem a ser mais estreitas
e cordiais e, portanto, a possibilidade de encontros fora desses círculos
c m enor (o patente c vizinho, que p o r sua vez é colega de trabalho na
palha ou nas roças, que é com panheiro nas horas de lazer etc.). As
famílias do Tapeba já se encontram ali há várias gerações, com o no
Trilho, propiciando algum a estabilidade e continuidade aos relaciona
m entos, o que contribui para que a conexidade das redes de parentes,
amigos e vizinhos seja relativam ente mais intensa e estreita.22
Já podem os perceber aqui sinais de que a fronteira constitui-se pela
ptesença fundadora de diferentes perspectivas de perceber e organizar a
diferença cultural entre tapebas e brancos, o que não exclui, p o t sua
vez, u m a le itu ra m ú ltip la dos m esm o s c rité rio s e c a ra c terístic a s
dem arcadores da fronteira.
17 Refiro-me a “redes” porque, não havendo um a regra de descendência que vincule uma
pessoa a um grupo de parentes, prescrevendo um a série de obrigações e direitos, os
relacionamentos sociais externos das pessoas e suas famílias de orientação tendem a
assumir a forma de uma rede, m uito mais do que a forma de um grupo organizado (cf.
supra e n ota21). N a Formação da rede, como indica Bott, somente alguns e não todos os
indivíduos com ponentes têm relações sociais entre si, podendn haver variações na
conexidade das redes, ou seja, na extensão em que as pessoas conhecidas por um a dada
família se conhecem e se encontram umas com as outras independentem ente da dada
família. A autora emprega o termo “malha estreita” para descrever a rede na qual existem
muitas relações entre as unidades c “malha frouxa” para indicar o oposto (Bott 1976: 76-
7}. As localidades onde residem os tapebas e as relações que estes entretêm nelas e entre
elas podem ser diferenciadas por esse critério também.
23 “De fito, este trabalho dc categorização, quer dizer, de explicitação c classificação, faz-se
sem interrupção, a cada m om ento da existência, a propósito das lutas que opõem os
agentes acerca do sentido do m undo social e de sua posição nesse m undo, de sua
idenridade social, por meio de todas as formas do bem dizer e do ma! dizer, da bendição
e da maldição ou da maledicência, elogios, congratulações, louvores, cum prim entos ou
insultos, censuras, críticas, acusações, calúnias etc." (Bourdieu 1989: 142).
A VIAGEM DA VOLTA
M uitos regionais e até m esm o tapebas fazem referência a essas con
dutas como diferenciadoras e características. Pelo contato que m antive
com regionais de vários estratos sociais, essa “im agem pública” dos
tapebas é algo que ainda tem m uita força no contexto local, sendo os
regionais ainda socializados nessa concepção sobre a conduta dos tapebas
e na expectativa de que se com portem costum eiram ente assim.
É com um alguns tapebanos assentirem em alguns elem entos desse
reconhecim ento negativo de que são objeto, como definidores das ca
racterísticas singulares que os distinguem —noradam ente o consum o de
álcool e o hábito de com er carniça. Este últim o, eles reconhecem , é um
hábito não tão costum eiro como era no passado: define m uito mais a
“convivência” dos cham ados “troncos velhos”, dos “cabeça véio” dos
quais eles descendem, ao mesmo tem po em que marca um a m udança de
conduta em relação àqueles, pois hoje eles se reconhecem como “mais
civilizados”, ou ainda como sendo “as pontas de rama”, “os renovos”.
Era tudo bêbado quando passava por aqui. [...] Aquelas infieira de tapeba
bêbado. E era os maiores nomes do mundo! Ealavam palavrão alto. E toda
vida eu gostei de respeico e aí eu grevava com eles (Zé “Tatú”, 66 anos,
Trilho/Paumirim).
E come rudo no mundo. Porque tudo quanto não presta eles come. Porque
eu me lembro quando eu morava ali, eu morava confronte com efes. [...]
Por uma hora dessas eles chegavam com um bocado de galinha velha
podre, Essas galinha velha doenre das granjas, eles chegavam com um
bocado. Um saco cheio. As bichas chega estavam roxa! Tinha umas assim
dependurada no cordão já, tudo cheio de bicho. Boravam no fogo e comi
am (Clcide, tapeba, 40 anos, Trilbo/Capuan).
Isso era a história que até a Maria Lúcia foi para Brasília, chegou lá e disse
que aqui mesmo não existia índio. [...] Porque aqui só existia bebedor dc
cachaça e ladrão. [...] Mas graças a Deus, meus Deus, ladrão eu nunca vi
não. Beber cachaça... Taí eu gosto dum trago. Hão vou mentir. [...] Ora
quem é que não gostai A bichinha é boa! (Prazercs, tapeba, 56 anos, Capuan
de dentro).
C: [...] E o pessoal, que a gente passa por aí, aí eles dizem, “Olha os tapebanos,
comedor de carniça!”
H: Mas por que comedor de carniça?
C: Ah, mas tinha de primeiro! Esse pessoal mais antigo mesmo comiam. Os
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?
antigos, os troncos velhos. Eles comiam coisa que achavam morto, dois,
três dias às vezes, por aí a fora. Porco, chega era inchado! Aí eles arrastavam
gado que morria assim, o trem matava e eles traziam. E comiam mesmo!
Agora é que nao está mais, né? Os tronco velho morreu tudo. [...] Agora que
o pessoal já estão mais civilizado, né? (Carminha, tapeba, 58 anos, Trilho/
Paumirim).
A VIAGEM DA VOLTA
O "reconhecim ento" dos tapebas:
a Igreja, o Estado e os potentados locais
Uma etnografia com pleta das agências de contato está além dos objeti
vos deste artigo. C o n tu d o um a breve descrição do encadeam ento dos
fatos, um a rápida consideração dos efeitos que produziram e da inter
pretação de tapebanos e demais regionais sobre estes perm itirão que eu
conclua o trabalho am arrando as implicações teóricas da idéia dc orga
nização social da diferença cultural e da identidade categórica com o
fenôm eno processual e contextual, ligado a um determ inado estado de
relações de forças na luta simbólica.
A Equipe de Assessoria às C om unidades Rurais da Arquidiocese de
Fortaleza com eçou a trabalhar em Caucaia em 1984, assistindo indis
tintam ente a tapebas e brancos e tentando equacionar os problem as de
ambos, índios e pequenos posseiros. Isso levou à criação, em 1985, da
Associação das C om unidades do Rio Ceará, organização civil sem fins
lucrativos, laica, com representação paritátia de tapebas e brancos des
de a presidência até o conselho, passando pela tesouraria e secretaria.
Em parre devido à sua própria form a de atuação m arcadam ente assisten-
cialista n u m prim eiro m om ento e em parte devido a um a m udança de
conjuntura — o naufrágio do Plano N acional de Reform a Agrária —, a
E quipe logo se descuidou do projeto original de dar suporte tanto a
índios com o a brancos n u m a luta com um pela terra.
D e um a solução na qual o diálogo principal com o governo se dava
com o extinto M IR A D /M inistério da Reform a Agrária, a E quipe A rqui
diocesana concentrou seus esforços em equacionar a dem anda por ter
ra propondo a criação de um a Área Indígena no m unicípio de Caucaia.
Assim sendo, nesse processo alguns d en tre os tapebas com eçaram a
estabelecer novas relações (com a ação da Igreja e com várias agencias
governam entais) e novas alternativas de fu tu ro se abriram para eles.
Eles se relacionaram e ainda estão lidando com a FU N A I e com o seu
lento, burocrático e afunilado processo de reconhecim ento, dem atea-
ção e regularização fundiária das terras indígenas. M as o que é mais
im portante para a(s) sua(s) auto-im agem (ns) c a(s) imagem(ns) que os
outros têm deles foi a transição de “tapebas im undos” para índios sujei
tos de direitos e a reativação de vínculos com parentes efetivos e paren
tes distantes.
Quando eu soube dessa história, que o Chico Passarinho me falou [...] “Zuíla,
porque você não entra nesse negócio de comunidade?” Eu digo, “Olhe Chico,
eu não tinha vontade de entrar não. O pessoal disse que isso é arrumação de
índio. Sei lá se até o pessoal não tem vontade é de pegar a gente para mandar
e desterrar, para matar por aí?!” O Chico disse, “É nada! É isso não. Isso é
besteira tua. [...] Zuíla vai que é bom. O pessoal do rio Ceará estão bem devida
c tu vive nesse trabalho de fábrica, trabalhando aperreada com esse horror de
gente para tu dar de comer” (Zuíla, rapeba, 57 anos, Trilho/Paumirim).
A VIAGEM DA VOLTA
por ser o Rm do prazo de trinta dias da notificação de despejo expedida
judicialm ente pela T B A /T ccnica Brasileira de Alim entos contra cinco
das 64 famílias que m oravam na Vila N ova àquela época.
E nesse m om ento que os tapebas se tornam um caso publico. Entramos
aqui no dom ínio da esttatégia da mobilização, do manifesto, da nomeação
pública e da “dialética da manifestação”, que detêm um lugar determ inante
na imposição das percepções que estáo em jogo nas lutas pela identidade,
porque realizam à vista de todos a objetivação e a oficialização de fato do
grupo: a manifestação é ato tipicamente mágico pelo qual o grupo virtual,
ignorado, negado, torna-se visível, manifesto, para outros grupos e para
ele próprio, atestando assim a sua existência com o grupo conhecido e
reconhecido, aspirante à institucionalização (Bourdieu 1989: 117-8).
A discussão cm torno da identidade foi o elem ento que norteou o
processo de reconhecim ento jurídico-adm inistrativo da AI Tapeba.25 Essa
luta simbólica se explicitou e se acirrou ainda mais após a identificação
da área indígena, no contexto do levantam ento fundiário e por ocasião
do arquivam ento do processo, em 1988, determ inado pelo “grupão” —o
G rupo de Trabalho Interm inisterial instituído pelo D ecreto 88.118/83 e
depois modificado pelo D ecreto 94.945/87, instância com a atribuição
formal de avaliar as propostas de criação de áreas indígenas.
O levantam ento fundiário dos imóveis rurais de incidentes na AI
Tapeba, realizado em agosto de 1987, foi um a etapa extrem am ente
conflitiva, plena de situações de resistência ativa e passiva dos brancos
à vistoria. M uitos destes, logo após o levantam ento fundiário realizado
pela FU N A I c pelo IN CR A , venderam seus imóveis, outros lorearam e
outros ainda levantaram benfeitorias. O cercam ento dc alguns açudes,
lagoas c mananciais de uso com um para tapebas e regionais, a renova
ção e a ampliação das cercas, o progressivo crescim ento dos loteam entos
e arrendam entos (preferencialmente feitos a não-tapebas), enfim , a m u
dança na paisagem rural local contribuiu de form a decisiva para que os
tapebas tivessem um a percepção mais clara dos significados e repercus
sões do novo statiis ao qual foram alçados: índios sujeitos de direitos e
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO?
D epois da visita, bastante tum ultuada e plena de situações quixotes
cas (Barretto FD 1993a: 620-23), o “grupão” voltou a se reunir em 20 de
julho, retornando à pauta a AI Tapeba e outras Ais, todas em reaprcsen-
ração e previamente visitadas pelos m em bros do G T I a fim de observar
in loco a situação das mesmas. C o ordenada pelo então Presidente da
FU N A I Romero Jucá, este, alegando dúvidas nos corpos dos relatórios
anexados ao processo (o que teria justificado a vistoria in loco), base
processual insuficiente (o processo seria farto em docum entação históri
ca, mas insuficiente em dados sobre a presença dos tapebas em Caucaia
neste século) e falta de recursos para a indenização, bem como indispo-
nibilidade de terras para o assentam ento, “sugeriu a retirada da terra
indígena Tapeba de pauta, sendo determ inado-se em resolução do G T I
que a m esm a não fosse reconhecida com o imemorial e que se aguardas
sem, para enriquecer o processo, novos dados acerca da etnia, quando
então a FU N A I voltaria a analisar o caso” (Ata da 6a Reunião O rdinária
do G T n° 94.945/87, de 20 de julho dc 1988, ênfase m inha), A Resolu
ção n° 01 do “grupão” estabeleceu, que, “tendo em vista as dúvidas quait-
to à etnia dos remanescentes, levantadas a parrir da docum entação apre
sentada; [...] a situação atual da região em apreço; [,,,] a observação in
loco [...] pelos m em bros do G T ” (ênfase m inha), a área proposta pela
FU N A I não deveria ser considerada com o terra indígena.
Percebe-se claram ente a am bivalência que o produtor das taxonom ias
oficiais deixa transparecer na gestão que faz dos nom es e categorias de
divisão do m undo social: há dúvidas quanto à “etnia” dos “rem anescen
tes”, ao m esm o tem po em que aguardam-se novos dados sobre a mes
ma. Ao classificar e tentar hom ogeneizar, o detentor do m onopólio da
violência sim bólica legítim a abre brechas para que se reforcem, por sua
apropriação, categorias socioculturais singulares. Essa não é um a bata
lha m eram ente judicial. E um a batalha entre idiomas culturais entrem e
ados às relações de poder em nossa sociedade (como observa Clifford,
1987, a respeito dos M ashpee).
Não é difícil perceber que, a partir desse m om ento, o processamento
da “identidade” dos tapebas como grupo social específico alcança outros
"níveis de integração sociocultural” (Steward 1972: 43-63) que transcen
dem a esfera local das relações pessoais.27 É na simultaneidade da relação
INVENÇÃO OU RENASCIMENTO? 1 31
Porque ficou visto, ficou muito prático. Este nome [...] já andou em todos
os órgãos. Ficaram mais respeitado ainda. Ficaram com liberdade dc andar
em certo tipo de órgão. Eles realmente já foram na FUNAI, na Capitania
dos Portos. E aliás já foram cm muitos órgãos e eles agora são grande. Agora
eles estão mais respeitados. Aí agora todo mundo quer ser tapeba (Graça,
esposa de um tapeba, 34 anos, Capoeira).
D e ralé a ator político, tudo rem ete aos sentidos contraditórios em
butidos no termo “índio”: o significado até então inédito para eles e que
levou alguns deles à ampliação dos seus horizontes existenciais, relacio-
nando-os com os horizontes de outros sujeitos sociais e instituições; e o
sentido pejorativo genérico com um entc implicado na palavra, que faz
sobrevir um a relação a um conjunto fragm entado de condutas desabona-
doras. A noção que alguns brancos usam para referir-se à diferença espe
cífica dos tapeba, “sistema de ín d io ”, exprim e bem essa an tin o m ia e
sim ultaneidade. Tendo acum ulado um universo novo de significados e
inform ações sobre a categoria “ín d io ” (m uitos deles veiculados pela
m ídia), para além da concepção regional pejorativa do termo, a parcela
da população local que convive mais diretam ente com os tapebas usa a
noção de “sistema de índio” para expressar o reconhecim ento de condu
tas, práticas, modos e hum ores que julgam ser diferentes dos seus. Ba-
seiam-se em filigranas de conduta não tão facilmente perceptíveis, tais
como: o jeito de andar, o hu m o r volúvel e idiossincrático, o m odo de
iC • A • »
cum prim entar as pessoas, a convivência etc.
Eu esrou cansado de estar aqui mais o seu Fernando, às vezes eu digo, "Essa
família, dias passa pela gente, Fala com a gente, ou dá com a mão ou fala
mesmo. No outro dia passa abalroando a gente, como se passasse por um
pau aí”. O sistema do índio é esse mesmo. Não é raiva da genre nem nada.
No dia que eles tão com aquela venera boa eles falam com a gente, no outro
dia é com a cara desse tamanho, nem ligam quando passam. A natureza
deles é que é aquela mesma, o ritmo deles, o clima deles é que é aquele
mesmo (“Seu” Pedro, 45 anos, Capoeira).
A VIAGEM DA VOLTA
A gente vê muita televisão e aqui os tapebas têm toda a qualificação de
índio mesmo, na própria pele, na cor, na qualidade deles. Eles não podem
negar. Por isso foi quando a FUNAI chegou aqui [...] na hora que chegou,
reconheceu logo como índio. [...] Se você chegasse aqui e fosse uma pessoa
que quisesse prestar atenção [...] no jeito dos outros, pelo próprio você via.
Pela própria convivência você ia logo cirando, analisando. Que aquela par
te, aquele pessoal, eles tinham uma diferença de cor. [,..] Quem é que não
vê o jeito dos tapebas para os que não são, Tem o jeito deles. São
diferentes até na marcha, na cor. Em tudo eles são diferentes. [...] Muito fdcil
da gente conhecer eles (“Seu” Fernando, 60 anos, Capoeira; ênfases minhas).
A VIAGEM DA VOLTA
balho formal) e a intensidade de relações com seus parentes ("eu sempre
fui mais isolada da família”), mal sabiam da atuação da Arquidiocese, da
FU N A I c demais agências governam entais, bem como da presença de
um pesquisador na área. Os percursos, trajetórias, formas de abordagem
e objetivos privilegiados por um são distintos dos atualizados pelos ou
tros. D aí porque as implicações dessas atuações se farão sentir mais em
algumas localidades, e em determinadas pessoas, do que em outras, com-
prom etendo-as com as pautas e os padrões de conduta gerados (Prazeres
foi representante da “com unidade” lagoa do Tapeba na Comissão Geral
da Associação das C om unidades do Rio Ceará).
Assim, creio que seria im portante recuperarmos o sentido de “inven
ção”, não tan to nos term os de H obsbaw n — em bora este perm aneça
im portante, como fica claro a partir do agenciamento da Arquidiocese —
mas sim nos termos propostos por Wagner, ou seja, de que invenção é
cultura (Wagner 1981). O antropólogo torna as suas experiências com
preensíveis, para si m esm o e para os outros em sua sociedade, perce
bendo-as e com preendendo-as em termos de sua própria vida familiar e
das categorias de sua cultura —um a das quais (e fundam ental) é a própria
categoria cultura. Ele inventa as suas experiências como "cultura” (: 35-
6). O antropólogo aparece assim, ao lado das políticas governamentais
de classificação, como mais um agente da disciplinarização e da objeti-
ficação. A sua prática e os conceitos que traz consigo, contudo, sofrem
um intenso escrutínio “interno” da parte dos “nativos” no contexto do
encontro etnográfico e para além deste. O controle sociotécnico sobre o
sentido e o exercício da indianidade, sobre a definição de índio e dos
tapebas com o tais e sobre a sua diferença genérica e/ou específica em
term os socioculturais é em baralhado localmente.
Estaríam os, então, diante de um a “invenção”, um simulacro de um
passado m orto, um a recuperação artificial, um sinal de decadência cul
tural, ou um genuíno renascimento cultural? Se optarm os pela prim eira
alternativa, só nos restaria adm itir, com o Sahlins, que de fato alguns
povos têm toda a sorte ao seu lado, visto que têm o privilégio de reser
var o term o “Renascim ento” a um período da sua história, no qual “um
bando de intelectuais nativos [...] se reuniu e com eçou a inventar suas
tradições e a si próprios, ao tentar ressuscitar o conhecim ento de um a
cultura antiga, que eles alegavam ser um a realização de seus ancestrais”.
(Sahlins 1993: 7-8).
in v e n ç Ao o u r e n a s c im e n t o ? 135
C o n clu são
| 139
tais grupos eram vistos com o resíduos de populações indígenas e seus
m em bros com o remanescentes indígenas.
Em c o n tra p a rtid a , ao se tro c a r a noção de ac u ltu ra ção pela de
etnogênese, pode-se não visualizar grupos que sofreram perdas, mas
sim perceber a formação de novos agrupam entos étnicos que foram se
consticuindo p o r entre descontinuidades históricas e assum indo a de
nom inação de índios, um a vez que seus antepassados eram assim desig
nados e que assim p o d iam ter acesso à terra e o b te r assistência da
União. O caso dos índios de A tikum -U m ã m ostra bem esse processo:
eles não são um caso de perdas que um grupo específico sofreu ate se
tornar resíduo de um a cultura aborígene prévia; ao contrário, trata-se
de um agrupam ento de pessoas de diversas origens étnicas (índios des
cendentes de diversos grupos distintos, negros e brancos) que, ameaçadas
de perderem seu recurso básico (a terra), resolvem constituir-se como
com unidade indígena e atribuir a si próprios tradições, tais como o ór
gão tu to r exigia para o reconhecim ento de reservas indígenas no N or
deste. C om esse exem plo, destaca-se o engodo de se pensar os índios
apenas com o aqueles que guardam um a cultura aborígine - e a isso eu
cham o de ilusão autóctone — pois grupos indígenas surgem situacio-
nalm ente da mesma forma que suas tradições podem ser situacional-
m ente construídas.
O que eu pretendo aqui é justam ente alcançar uma compreensão de
um a comunidade indígena sertaneja em term os de sua etnicidade, ou
seja, tentar perceber como os A tikum -U m ã se inserem no conjunto mais
am plo da sociedade regional com o um agrupam ento discreto, singu
lar. Sabendo que a “com unidade indígena de A tikum -U m ã” 1 se for
m ou apenas na década de 1940, este texto estabelecerá a etnicidade
na Serra do U m ã (sertão pernam bucano) tom ando por base a gênese
do grupo étnico, processo este fundam ental para o enten d im en to do
fenôm eno em questão. M as antes cabe ap o n tar alguns dados gerais
q u an to à situação atual da área indígena A tikum e ao povoam ento da
Serra do U m ã.
1 Uso aspas para comunidade indígena de A tikum -U m ã porque é assim que se referia ao
grupo o líder A bdon Leonardo da Silva.
A VIAGEM DA VOLTA
A áre a indígena
2 Segundo o Atlas das Terras Indígenas do Nordeste (PETI 1993), que se baseia em
docum entação da FU NAI de 1989, a área indígena teria 3.582 habitantes.
3 Não há contudo qualquer concordância quanto ao núm ero de aldeias csuas denom ina
ções tanto por parte do autor, como da FU NAI e dos próprios índios. O term o aldeia foi
estabelecido pelo SPI/FUNAJ, que vem, para melhor m apear a área, num erando aldeias
que são cham adas de sítios pelos habitantes da Serra.
4 O Atlas Terras Indígenas do Nordeste aponta que os A tikum estão situados na Serra das
Crioulas. Isso porque segundo a cartografia oficial da região o complexo de serras (Serra
Umã, Serra G rande, Serra das Crioulas etc.) onde está inserida a área indígena leva essa
últim a denominação. Contudo, para os índios, ral complexo de serras é chamado de Sena
elo Umã no sentido de pertencim ento ao grupo Umã.
3 Em outubro de 1991, ocorre a emancipação política de Carnaubeira, que torna-se
m unicípio com o nome de Carnaubeira da Penha, contendo dois distritos: Barra do Silva
e O lho d ’Água do Padre, este últim o um a aldeia da área indígena Atikum .
A Serra do Umã
P rim eiram ente, cabe m encionar que já a p a rtir do século XVI dois
fatores - o sistema de doação de sesmarias e a introdução e desenvolvi
m en to da criação de gado no N o rd este - caracterizam a experiência
colonizadora6 dos sertões nordestinos, a qual teve como objetivo prin
cipal a ocupação efetiva da terra a ser transform ada em pastagens. E
assim — e d iante da contrariedade indígena — que se estabelecem as
guerras justas con tra os índios de corso7. Sobressaíam-se aí os Cariris,
6 Para tratar com a idéia de colonização, sigo a evolução do pensam ento dc Bosi (1992),
para quem as “palavras cultura, culto c colonização derivam do mesmo verbo latino colo"
(: 11), o qual “significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão,
eu trabalho, eu cultivo o campo. U m herdeiro antigo de colo é íncola, o habitante”(: 11).
Além disso, a “ação expressa neste colo, no cham ado sistema verbal do presente, denota
sempre alguma coisa de incom pleta c transitivo. É o m ovim ento que passa, ou passava,
dc um agente pata um objeto. Colo é a matriz, de colonitt enquanto espaço que se está
ocupando, terraoupovo que se pode trabalhar esujeitat” (: 1 l).E ain d a, “como se fossem
verdadeiros universais das sociedades hum anas, a produção dos meios de vida e as
relações de poder, a esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e porenciam-se
toda vez que se põe cm m archa um ciclo dc colonização" (: 12). C ontudo “o novo
processo não se esgota na reiteração dos esquemas originais: há um plus estrutural de
dom ínio, há um acréscimo de forças que se investem no desígnio do conquistador
emprestando-lhe às vezes um tônus épico de risco e aventura. A colonização dá um ar de
recomeço e arranque a culturas seculares” (: 12).
7 Denom inavam -sc índios de corso aqueles que assaltavam fazendas dc gado, engenhos e
outras unidades de produção. N a opinião de Albuquerque, "é im portante, no entanto,
notar que esses ataques etam realizados por grupos indígenas ameaçados pelas frentes
p ioneiras coloniais, por deslocamentos produzidos por crises que ameaçavam a sobrevi
vência tribal, além do fato de que nas formações sociais indígenas inexistia a noção de
propriedade privada sobre os meios de produção. C ontra os índios de corso decretavam-
se as guerrasjustas que foram legalizadas a partir de 1611. Tal classificação foi comum ente
invocada para organizar expedições punitivas” (Albuquerque 1984: 30-1).
A VIAGEM DA VOLTA
que ocupavam um a faixa de terra que ia do São Francisco ate a Serra do
Ibiapaba, no Ceará.
A prim eira m etade do século XVTII se caracterizou pela escravidão
indígena e pela ad m inistração de missões p o r padres jesuítas. Já na
segunda m etade ambas foram abolidas e foi criado o cham ado D iretório
dos índios (para prom over a integração dos índios à sociedade coloni
al), extinto no século XX. N o entanto, as cham adas guerras indígenas
prolongaram -se d urante toda a etapa colonial e som ente no início do
século X IX os serrões do Pajeú (onde está inserida a Serra do Umã)
tornaram -se mais pacíficos. D e fato, este foi o século dos aldeam entos
na região, quando os índios bravios, já cansados, começaram a entregar
suas arm as e se estabelecer em missões com o a do O lh o d ’Á gua da
G am eleira (atual aldeia O lho d ’Água do Padre, na Serra do Umã), a do
Jacaré e a de Baixa Verde. Já na passagem do século XIX para o XX, as
idéias de “progresso” e “civilização” com eçam a ser levadas adiante. Em
1910 é fundado o Serviço de Proteção ao ín d io (SPI), m arcado ideolo
gicamente pela “idéia dos postos de atração e dos postos de pacificação
para se colocar os índios em contato com o civilizado” (R ondon 1947).
A ação protecionista assim se desenvolveu duranre pelo m enos as p ri
meiras décadas do presente século; ainda na prim eira m etade do mes
mo, vários postos indígenas - inclusive no N ordeste, dentre os quais o
Posto Indígena de Alfabetização e Treinam ento A ticum —foram funda
dos apenas com o intu r de prestar assistência às com unidades.
G rupos indígenas de várias denom inações habitaram a Serra do Umã,
porém a sua localização geográfica não se restringiu à Serra, pois vários
foram os que procuraram as serras sertanejas, fugindo dos cam inhos do
gado. Sendo ou não nôm ades, esse grupos se deslocavam m uito pelos
sertões. Foram os Umas — provavelm ente um grupo C arirí8 — os que
mais se destacaram na ocupação da Serra do Umã.
A partir da compilação de fontes históricas, pode-se estabelecer, por
exemplo, que por volta de 1696 os Umas perambulavam pelo vale do rio
São Francisco; em 1713, estavam na ribeira do Pajeú; em 1746, em Alagoas,
entre os rios Ipanema e São Francisco; em 1759, em Sergipe; em 1801,
foram aldeados em Olho d ’Agua da Gameleira, de onde se dispersaram
Digo “provavelmente”, por haver aurores que classificam os Umas com o um grupo de
língua isolada (Loukotika 1968). Além disso, devo informar que os U m as foram deno
m inados por diversos emônim os: H uanoi, H uam oi, Huam ães, H uam ué, H um ons,
Umã, Umâes, U m an, Umãos, Urum â, Woyana, enrre outros.
s N a verdade, o citado chefe Sr. Raim undo Dantas Carneiro afirmou, durante entrevista
realizada em sua residência em 26 de novembro dc 1991, que o primeiro nome do posto
indígena foi “Governador Estácio C oim bra”. Por outro lado, em docum ento do SPI de
1961, Raim undo sc refere ao mesmo pelo nom e de Posto Padre Nelson.
22 E como já deixou claro Fortes (1938), os contatos culturais provêm novos canais de
expressão.
A etnogênese A tikum
23 Sigo de form a mais sistemática o depoim ento de João Leonardo da. Silva por cie ter
participado ativamente de todo o processo de reivindicação da criação da reserva indígena
desde a tomada de consciência de que isso era possível até a construção do posto indígena
e demais benfeitorias na reserva já criada. Todo o seu depoim ento foi corroborado
posteriorm ente por Raim undo Dantas Carneiro, o qual, com mais de oitenta anos,
guarda na lembrança a figura de João Leonardo.
24 C onsta que foram os Tuxá ajudar os A tikum —onde ficaram m orando por seis meses —
porque, segundo o mito, teria o personagem A tikum casado com um a índía de Tuxá;
casamento esse que se realizou na Pedra do Gentio, aldeia Jatobá, Serra do Umã. Além
disso, da mesma forma que os Tuxá foram ajudar os Atikum , estes últim os posterior
m ente teriam ido ajudar os Truká da Ilha de Assunção, em C abrobó, Pernambuco.
25 Estou certo de que foi o SPI que incutiu essa idéia de aldeia na cabeça dos Atikum. Tdcia
essa levada depois à frente pela FU N A I que, arbitrariamente, parece estabelecer, através
dos estudos de seus te'cnicos, a quantidade de aldeias e seus limites, Quando estive na área
indígena havia um processo de m udança do números de aldeias: de 16 para vinte. Apesar
de todos esses anos, os membros da com unidade Atikum continuam a chamar os lugares
identificados pela FUNAI como aldeias da forma como sempre chamaram, dc sítios.
ME cDino parece ter percebido Ahmed (1982), m uitas vezes a identidade exibida pelo
grupo náo tem o mesmo delineamento de sua identidade incerna.
Etn icid ad e
2BD e fato, as considerações dc Bourdicu servíram anccs como um pano de fundo para a
presente seção do texto, pois elas fornecem uma im portante base epistemológica para a
compreensão dos grupos étnicos e de sua formação. Por outro lado, o instrumencal por
ele desenvolvido não parece plenam ente operacional para lidar com essas realidades.
Inclusive, Bentley (1987) tentou operar com a “teoria da prática” na análise de um a
etnicidade, utilizando, como operador, o conceito de “habitus”, sem contudo conseguir
avançar m uito para uma abordagem do fenômeno em questão —e apesar da relevância
daquele conceito na condição de princípio e eficácia das estratégias classificatórias.
Segundo Seyferth, “uma definição dc grupo étnico deve incluir dois aspectos importantes:
é um grupo cujos m em bros possuem um a identidade distintiva atribuída, e sua
distintiviclade como grupo tem quase sem pre por base uma cultura, origem e história
comuns. U m terceiro elemento só raramente aparece nas definições, mas muitas vezes esta
implícito na idéia de origem com um : é a noção de raça’ (1987: 530).
50Talvez isso não seja válido para os índios do Nordeste, que invariavelmente marcam suas
diferenças através do ritual do toré, dada a imposição do SPI.
J1 Com relação ao fenômeno do sincretismo, Sangirardi Jr. assinala que “os pajés indígenas
ensinaram aos brancos e mestiços os mistérios dapajelança.Esta influiuno catimbó. Uma
e outra receberam a mescla do espiritismo, da feitiçaria européia e, nas orações e imagens
dc santos, do catolicismo. Depois, completando o ciclo, o pajé indígena recebe de volta,
sincretizado, tudo aquilo que ensinara. E passa, inclusive, a trabalhar com os encantados'
(Sangirardi Jr. 1983:194).
O u nesta outra em qne os term os caboco e índio fundem -se num só:
Oi meu caboco-índio
oi do centro do mar
eu vim do juremê
cu vou pru juremá.
34 Ajucá, como já mencionei baseado em Oliveira (1942), é um a festa em Brejo dos Padres,
Tacaratu. Na verdade, área indígena Pankararu; índios estes com quem os Atikum
parecem guardar afinidades. Além de anjucá e ajucá, Cascudo ainda com enta que “um.
dos reinos no catim bó é Vajucá, talvez corrução de Ajucá” (Cascuda 1979: 24). Daí, se
por um lado a jurema representa o sangue de Jesus, por outro, anjucá pode representar
todo o panteão. Dessa forma, nos trabalhos, há um a com unhão com todos os encantos,
santos católicos, antepassados, etc.
35 Segunda esse informante, tal fato se deu no “encontro da revolução dos índios [...] foi prá
se despedir”. Nessa época, “O rubá tava sendo o dono da ciência”. Após tal encontro,
“O rubá subiu a serra... d c andava com uma pena". Já segundo Deocleciano Antonio dos
Santos, da mesma forma que Um ã seria o índio mais velho dos A tikum , O rubá seria a
índio mais velho dos Xucuru. Os Atikum têm conhecim ento desse roante porque eles
recebem ancestrais também de outras tribos durante seus trabalhos ocultos. O rubá se
refere inclusive à já citada Serra do Ararobá. Por fim, para Cascudo (1937), Orubá seria
um dos reinos do catimbó.
V er G ríin c w a ld (1 9 9 3 ).
■
v'Trata-se dc um a prática social desenvolvida no intuito de escapar do controle das classes
(religiosas, políticas etc.) dominantes.
A VIAG EM DA VOLTA
dade, apesar de opcional, geralm ente se reveste do fator solidariedade,
que entre os A tikum nos parece ser o suporte para a ação política inte
ressada. E é som ente aí, depois de ativadas solidariedades tais com o as
m encionadas, que se torna operacional um a solidariedade étnica orien
tada para a obtenção do reconhecim ento da reserva indígena.
É claro que cies sabiam ser descendentes de índios, mas tam bém de
negros e brancos. Eram caboclos, caboclos da Serra da Umã. E c de fato
som ente com base nessa identidade prévia que lhes foi possível, diante
de um a situação adversa (fazendeiros e prefeitura com interesses em
suas terras), se organizarem politicam ente e reivindicarem um reconhe
cim ento de sua com unidade, que era a única garantia de acesso seguro
à terra que lhes pertencia. Se era com o índios que deviam se m ostrar à
sociedade nacional, assim o fizeram, podendo dar continuidade a sua
form ação com o um a população discreta, auto-identificada, auto-refe-
rente. Se agora se cham am de A tikum -U m a, isso não nega sua identida
de anterior de caboclos, apenas sobrepõe-se a esta, fortalecendo e sin-
gularizando ainda mais os elos da com unidade.
Pois bem, mas se assim o é, volto à questão: o que dizer dos limites
da com unidade? Tento afirm ar aqui que a área indígena é um a ilusão
com o tantas outras ilusões que tocam à com preensão dos índios do
Nordeste. O s habitantes da Serra do U m a podem deixar de ser conside
rados índios ou com padres conform e sua inserção em facções'50 que
atuam na área indígena. D a m esm a forma, pessoas dc fora podem pas
sar a pertencer ao grupo. Pessoas contam com a solidariedade de com
padres no exterior da área indígena e não com a de índios no interior
da mesma. Portanto, em term os da organização de sua interação social
com a sociedade envolveute, as fronteiras da com unidade são extrem a
m ente fluidas e não coincidentes com os lim ites territoriais da área
indígena. C o n tu d o , para efeitos de envolvim ento com a FU N A I e com
pessoas ligadas a órgãos interessadas na área, os h ab itantes da Serra
a se cham ar assim. AJém disso, as pessoas podem deixar de ser consideradas compadres
caso sua conduta seja reprovada pelas demais pessoas daquele fcompadresco”.
40 N a verdade, a etnicidade na Serra do U m ã - como fenômeno essencialmente político -
deve ser vista não apenas sob o prisma das relações intcrctnicas; há que se destacar
tam bém o quadro de suas relações intra-étnteas. O conflito exam inado cm suas formas
organizacionais nos dois tipos de relação pode levar a um a m elhor compreensão da
constituição de fronteiras comunitárias tão fluidas. Ver G rünewald (1993)-
41 Devo ressaltar que isso é uma interpretação de cunho pessoal, pois, além de já ter
destacado um a identidade de oriundos da Serra do Umã, há um toaiue m uito significa
tivo no sentido de salíencar um sentimento de rem anescência- principalmente espiritual
—com aborígenes locais. Destaco a seguinte parte de um roante: “Contra-mesrre, Conrra-
guia / Vamos trabalhar G entio/ Q uando eu me lemhro daquelas matas/ Eu também já fid
bravío.
42 “Carnaubeiras” é como são cham ados os habitantes de Carnaubeira, seus vizinhos
imediatos.
“4 N ão se deve esquecer, entretanto, que, a princípio, os negros que afluíram para as serras
do sertão eram refugiados que foram acolhidos pelas populações indígenas e começaram
a viver dentro dos padrões destas (apesar de não terem interagido culturalm ente apenas
de form a passiva, isto é, levaram elementos que foram incorporados pelos índios),
tornando-se assim m em bros de tais agrupam entos.
A VI AC EM DA VOLTA
Etnogênese, in dian id ade e "reg im e de índio"
175
étnica divisória perm aneceu sem pre viva, ainda que não inalterada, no
cam po intersocietário instituído p o r jesuítas em seu aldeam ento, cm
fins do século XVII.
’ As demais aídeias constituídas pelos jesuítas eram assim denominadas: Canabrava, atual
cidade de Ribeira do Pombal/BA; Natuba, atual Nova Soure/BAe Jeru, atual Tomar do
Geru/SE.
A "légua em quadra"
3 À história oral dos Kiriri identifica nessa época o maior avanço sobre seu território.
* Patente introduzida pelos missionários, que designava, nas aldeias, um índio nom eado
pelo governador da província para exercer o papel de interm ediador ju n to à sociedade
colonial.
A VIAGEM DAVOLtA
e, mais do que isso, envolvido no jogo clientelista da política regional.
N o final da década de 1960, a situação dos Kiriri é ainda bastante precá
ria: altos índices de m ortalidade e alcoolismo, disputas entre núcleos,
discriminação e coerçao dos regionais, aos quais se acrescenta m anipula
ção política e econômica por parte do órgão tutelar (Bandeira 1972).
E m 1968, os Kiriri estabelecem um a parceria com missionários Bahai,
religião de origem persa, que am pliaria os seus horizontes de atuação e
ensejaria um a reestruturação na sua organização sociopolítica, propor
cionando-lhes não apenas m ecanism os de contraposição política e ide
ológica aos regionais, mas sobretudo um modelo organizativo mais efi
caz — gestado nas assembléias coordenadas inicialm ente pelos B ahai
entre os Kiriri — além de um cenário fértil para a formação de novas
lideranças.5 A presença bahai institui um vínculo de dependência só-
cio-religiosa que extrapola o plano local, ao m esm o tem po em que
revitaliza m odelos “próprios” de organização com unitária. Vale notar
que no caso dessa religião, com o no de m uitas outras de introdução
recente no Brasil a p artir de m issionários norte-am ericanos, h á um a
inequívoca predileção por segm entos socialm ente m arginalizados em
contextos urbanos e rurais, para os quais a nova identidade religiosa
constitu i, além dos claros apelos salvacionista e m essiânico, um ele
m ento de oposição, ainda que m uitas vezes não explicitado, às camadas
dom inantes. A relação dos índios com esses missionários se fortaleceria a
parrir da iniciativa destes últimos de interm ediar ju n to ao Governo Esta
dual a construção de uma escola no mais populoso dos núcleos residenciais
kiriri. Esse fato firma os Baha’i como um a alternativa mais eficiente às
anreriores, ou seja, a FU N A Í, a Igreja Católica e os regionais circundantes.
A cam panha de com bate ao alcoolismo, estim ulada no contexto dos
dogm as dessa religião, afigurar-se-ia aos índios com o um a possibilida
de de integração ao quadro regional, atenuando-lhes o referencial este
reotipado de “caboclos bêbados e preguiçosos” (Bandeira 1972). Isto
posto, em bora pareça ingênuo superesrim ar o papel da fé baha’i no
processo de organização com unitária kiriri, e a despeito do m odo frag
7Jurem a (Mimosa nigra) é uma planta de cuja entrecascase extrai bebida alucinógena, de
uso ritual m uito difundido no N ordeste.
a v ía c e m d a v o l t a
mágicas então vigentes entre os K iriri, selecionadas com atenção ao
critério de representatividadc étnica; por outro, fruto da sua incorpora
ção ao cotidiano desses índios, como o delineam ento de um prim eiro
fator de legitimidade étnica. Aqueles que não se adaptaram aos proce
dim entos utilizados no ritual, que não “aliaram os seus guias aos guias do
Toré” foram marginalizados e, em alguns casos, compelidos a migrar.
D e fato, na época, alguns kiriris realizavam “trabalhos” nos m oldes
da tradição rural/sertaneja - isto é, práticas de caráter dom éstico, de
incorporação xamanlstica, evenrualm ente associadas a elementos da tra
dição africana, especialmente ao “X angô” — atuando basicam ente atra
vés de consultas individuais. C om a entrada em cena do Toré, tais “tra
balhos” ganham paulatinam ente um a conotação negativa, respaldada
pelos “ensin am en to s” dos pajés tuxá presentes na área kiriri. C om o
afirm a o índio C arlito, que acom panhou todo o processo:
As pessoas que trabalhavam naquele tem po eram Justino Preco, Pedro Caçuá,
D. Romana, Cesário da Cacimba Seca, [...] esse trabalha não é trabalho de
índia [ ] aí eie [o pajé tuxá] disse que trabalho de índio tinha que sc fazer
era com jurema, era com outro não sei o quê, tinha que pegar maracá, tinha
que fazer uma canga de caroá [...] esse trabalho de Xangô não se dá bem
com o Toré (Salvador, junho, 1992).
a v m c em d a v o lta
modos de inserção e dc aceitação dos indivíduos ao projeto com unitá
rio em curso, além de critérios mais e mais inclusivos de participação
que favorecerão a em ergência de líderes representativos cm cada n ú
cleo, de m odo geral desprovidos do capitai social tradicionalm ente re
querido ao exercício desta posição.
E n tretan to , os aspectos conflitivos oriundos desse processo ganha
rão, nessa fase, m aior relevância no contexto interétnico e as novas
orientações políticas dos Kiriri se afigurarão aos regionais como um a
n ítid a am eaça à reprodução da estrutura de subordinação vigente. O
acirram ento da tensão interétnica conduz o m ovim ento indígena a ori-
entar-se abertam ente para a conquista da terra, centrando-se na condu
ção de um pleito pela demarcação e exrrusão dos não-índios do territó
rio indígena, com base na definição da área originalm ente cedida pelo
Rei de Portugal, ou seja, os 12.320 ha que com preendem a “légua em
quadra”, e, internam ente, em apropriações parciais, simbólicas e efeti
vas desse território, que destaco esquem aticam ente a seguir9:
Cronologia das “retomadas”
1979 - Organização de uma roça comunitária, situada no sul do território
indígena, na estrada que liga o povoado de Mirandela ao município de
Ribeira do Pombal;
1981 - Demarcação da Terra Indígena Kiriri com 12.320 ha, englobando
quatro povoados de regionais até enrão reconhecidos pelos índios como limítrofes
ao seu território: Marcação, Baixa do Camamu, Segredo e Pau-Ferro;
1982 —Reordenaçáo espacial do núcleo Sacão, onde habita um dos caci
ques, com construção de moradias dispostas circularmente em torno da
centro comunitário;
1982 - Ocupação da fazenda Picos, localizada no núcleo da Lagoa Gran
de, maior fazenda no interior do território indígena (com uma extensão de
pouco mais de mil hectares);
1985 — Ocnpação de uma fazenda de cerca de 700 ha, localizada no
núcleo da Baixa da Cangalba;
1986 —Os Kiriri fecham importante estrada de acesso de Mirandela ao
povoado de Marcação, retirando todas as posses e roças de regionais ali
localizadas;
1989 —Cerca de quarenta famílias kiriri de uma das facções “acampam” em
A VIAGEM DA VOLTA
ruída algum tem po depois) e, em especial, do cacique, situado de m a
neira incôm oda entre as pressões da FU N A I e as dem andas da própria
com unidade indígena. O processo de mobilização política kiriri pare
ce, nesse período, sofrer um refluxo, fruto de u m a radicalização do
controle do grupo p o r parte de seus líderes, o que redundaria no acirra
m ento das disputas internas e, posteriorm ente, na ocorrência de um
faccionalism o.
O processo faccio n al
A VIAGEM OA VOLTA
indivíduos que se recusaram a seguir à risca as novas orientações, per
m an ecer nas terras in d íg e n a s sig n ific o u te r os seus “d ire ito s ” de
pertencim ento ao grupo étnico postos em suspeição — ou suspensão —
peias lideranças, no bojo de um processo de graude repercussão que
ficaria conhecido localm ente com o “coador”" . Tal m edida concretizou-
se com o um alijam ento daqueles “benefícios” advindos da condição
étnica, conquistados no processo de “luta”.
Eles têm raiva porque nós enrabamos [expulsamos] com os amigos deles.
Q uando M iranda saiu, eles não gostaram, são amigos dc M iranda
(Bonifácio, atuai conselheiro do Sacão, Sacão, novembro 1991).
Quando sai e chega lá fora diz que foi o índio que enrabou [expulsou] clc.
Não é verdade, ele que não quis trabalhar e saiu (Zé Batista, conselheiro da
Lagoa Grande. Sacão, novembro 1991).
" U m a prática pela qual muitas famílias, consideradas indesejáveis, foram coagidas a sair
definitivamente da terra indígena. Já se entende que o term o “coador" designou um
processo de seleção étnica.
A VIAGEM DA VOLTA
os mais poderosos focos de resistência, ou “linhas de fuga”, a sua au to
ridade na esfera do ritual, Lázaro concentraria aí o seu “poder de fogo”.
A título de restaurar um a pretensa unidade original do grupo, propôs a
eleição de um pajé geral, indicação concebível apenas no plano decisório
do sagrado, o que elidiria possíveis imputaçÕes de m anobra política
centralizadora ao tem po em que reafirm aria os valores de unidade do
grupo, através da sua instância m áxim a de legitim idade, o m undo dos
“encantados”, o que conferiria determ inação à ênfase na necessidade de
expulsar das terras indígenas os indivíduos que porventura se m ostras
sem contrários a essa unificação. C ontudo, inversamente às suas expec
tativas, seu oponente concordou em se subm eter à “prova”, sendo esco
lhido pajé geral dos Kiriri.
Baldados os esforços de banir legitim am ente da área seu mais explí
cito centro de oposição, o cacique passaria a adotar um a postura de
am bigüidade frente ao pajé recém-eleito, de início respaldando-o for
m alm ente, mas agindo de m odo a m inar a sua autoridade, tom ando
um a série de m edidas que term inariam p o r expor o seu desconforto em
relação àquele, legitim ando os dissidentes e instrum entalizando-os com
os recursos “m orais” necessários à divisão dos K iriri em dois segm en
tos faccionais.
H oje, as facções são as unidades mais efetivas da ação política for
malizada no povo kiriri. O s m últiplos códigos que inform am as práti
cas de cada facção conform am dois conjuntos sociais, dois “m odos dc
ser” kiriri que, em bora não guardem um a com pleta autonom ia, pare
cem se constituir de m aneira m uito distinta. Poder-se-ia postular a exis
tência de um a integridade social nessa duplicidade? As facções aí en
gendradas seriam estruturais na constituição desse povo indígena? O u,
dito de o u tro m odo, desde que h á efetivam ente entre os K iriri um a
duplicação progressivam ente institucionalizada de suas estruturas de
poder, com seus espaços de atuação demarcados, seria lícito supor nes
se caso as facções nos term os clássicos de um a relação concorrencial
p or um a estrutura hegem ônica de poder?
Em consonância com os parâm etros teórico-m etodológicos adotados
(Barrh 1966, Spiro 1969, O liveira 1977) e conform e a investigação
realizada, o fenôm eno fàccional pôde ser vislum brado apenas como um
com ponente dc grande relevância no processo de emergência étnica do
g ru p o , não rep resen tan d o um m o v im e n to de desagregação ou de
desestruturação, mas anres um a estratégia de flexibilização, de barga
nha, para os atores presentes no campo sociopolídco kiriri.
' Este texto consiste em parte da m inha dissertação de mestrado em A ntropologia pela
Universidade Federal de Pernambuco (M artins 1994). Essa pesquisa contou com o
apoio fmanceito da AN POCS-Interamerican Foundation e teve como orientador o Pro
fessor João Pacheco de Oliveira (PPGAS/M N/UFRJ). Apesquisa de campo foi realizada
durante duas fases em 1992, totalizando noventa dias de trabalho de campo, Gostaria de
registrar m eu agradecimento aos índios Xucuru-Kariri. Em razão de sua aceitação, pude
realizar pesquisa nas diferentes áreas indígenas. Fiquei receosa de que assuntos aqui
tratados pudessem ser motivo de descontencamenro para alguns deles, principalm ente
porque abordo questões relacionadas a conflitos internos. Gostaria que apreendessem das
descrições apresentadas elementos para uma reflexão atual sobre os Xucuru-Kariri como
unidade átnica c a sua projeção para um futuro. É nesse sentido que penso oferecer
alguma comribu içío .
| 199
N o reconhecim ento do grupo pelo SPI na década de 1940, depoi
m entos de índios e registros bibliográficos revelam a presença do etnólogo
Carlos Estêvão de Oliveira (1942b) e a atuação do Pe. Alfredo Dâm aso
(cf. A ntunes 1973). Em term os gerais, as informações com provam con
textos de interação/articulação entre índios e não-índios no sentido de
um reconhecim ento oficial dc nativos que se localizavam em Palmeira
dos índios. S to essas personalidades, na condição de agentes de contato,
que contribuíram para a aquisição da Fazenda Canto pelo SPI. A instala
ção de um posto por esse órgão consistiu em um a nova form a organi
zacional em que várias famílias indígenas, provenientes de diferentes
localidades, foram reassentadas nessa área. Assim, recebendo proteção
oficial, nativos foram inseridos num a situação de reserva, condição que
im plicou novas ordens econômicas e políticas estabelecidas a partir da
interferência daquele órgão.
A atual AI M ata da C afurna é com posta p or três glebas, ocupadas
em diferentes m om entos. A gleba M ata da C afurna propriam ente dita
foi doada pela prefeitura a partir da ocupação territorial pelos índios em
1980. Em um a ocasião em que a prefeitura tinha a intenção de vendê-la,
os X ucuru-K ariri, sob a liderança do cacique M anoel Celestino e do
pajé M iguel Celestino, contando com apoio/cum plicidade do com erci
ante Luiz Torres e do chefe de posto da FU N A I na época, resolveram
“retom ar” a área. E im portante frisar que essa mobilização política con
tou com a participação de praticam ente todo o grupo, baseando-se p rin
cipalm ente em um consenso de que os índios tinham direito sobre a
rerra, consenso este com partilhado tanto por índios como não-índios.
A p rópria doação da Prefeitura M unicipal é um fato que revela a legiti
m idade do direito dos índios sobre a área. Trata-se de um a reserva
am biental onde se localiza um “açude”, que d urante m uitos anos serviu
com o reservatório de abastecim ento de água à cidade de Palm eira dos
índios. Tam bém teria sido local do prim eiro aldeam ento indígena, rela
cionado à doação de 1773.2
D esde a época em que foi conquistada pelo grupo (1980) até 1985,
a M ata da C afurna foi utilizada por um a parte dos índios da Fazenda
2 Existem registros que comprovam a doação de área para aldeamento indígena nesse ano
do século XVIII. Durante o século XIX, ocorreu um processo judicial dc disputa
territorial entre os herdeiros de uma família de Pernambuco e os índios, tendo estes
últimos ganho a questão (Antunes 1973).
200 a v ia g e m d a v o l t a
C anto para práticas rituais ligadas ao “O u ricu ri”; tam bém faziam roças
nas poucas áreas ali disponíveis para esse fim, não constituindo porém
local de m oradia. A prática do ritual do O u ricu ri foi tran sm itid a a
alguns índios X ucuru-K ariri a partir de contatos estabelecidos com os
Kariri-Xocó (Porto Real do Colégio, AL). Essa inform ação relaciona-se
à divisão faccional do grupo, assunto que abordarei mais adiante.
Em 1985, um co n flito en tre Josc Sátiro do N a scim en to e João
Celestino, resultando na m orte deste últim o, ceve como conseqüência a
transferência im ediata da família Sátiro para Ibotiram a (BA) pela FUNA I.
Alguns meses depois da ocorrência desse hom icídio, a família Santana
jun tam en te com Sr. A ntô n io C elestino decidiram habitar a M ata da
Cafurna, A seguir, pretendo descrever parcelas de terras que os X ucuru-
Kariri atualm ente ocupam , fornecendo um a visão global de fatos que se
relacionam à questão territorial.
A M ata da C afurna foi aos poucos povoada p or famílias que o Sr.
A ntônio Celestino “convidava”. Tom ando-se insuficiente para a explo
ração econôm ica, o segm ento que para ali tinha m igrado ocupou em
1986 um a fazenda de 170 ha contígua àquela área. Segundo a inform a
ção de vários índios, essa m obilização política do grupo foi decidida
em um ritual do O uricuri e não contou com o apoio de não-índios, mas
sim com a presença e a solidariedade de índios Kariri-Xocó.
Posteriorm ente expulsos daquela fazenda pela Polícia M ilitar, esse
mesmo segmento decidiu ocupar outra área, de 22 ha, tam bém contígua
à M ata da Cafurna, que estava sob o dom ínio de um não-índio chamado
Pedro Benone. Este reconhecia tratar-se de área indígena e tinha interes
se em negociá-la com a FUNAI. A ocupação dessa gleba de terra pelos
índios contou com a cumplicidade do próprio “dono” e a sua aquisição
pelo órgão indigenista oficial ocorreu em 1988, em decorrência de pres
sões exercidas por esse segmento faccional Xucuru-Kariri.
Após a assessoria jurídica do C IM I ter im p etrado um recurso na
Justiça Federal de Alagoas contra a lim inar concedida sobre aquela fa
zenda de 170 ha, os X ucuru-K ariri adquiriram o direito de reocupar
essa área, Foi então movida pelo fazendeiro um a Ação de Reintegração
de Posse (n° 15.626/87), decidida favoravelmente aos índios em 1992
(D iário Oficial do Esrado de A lagoas/1992).
Essa gleba disputada judicialm ente pelos X ucuru-K ariri da M ata da
C afurna é identificada p o r eles como local do prim eiro aldeam ento que
se deu em 1773. Encontra-se aí um a im portante localidade para eles,
cham ada "Igreja Velha”, o nde se situava um a capela co n stru íd a por
3 Bentley (1987: 25) aponta que vários autores enfacizam esse caráter de instrumento da
etnicidade, em razão de interessessubjetivos, principalm ente políticos eeconôm icos, de
um a coletividade; m enciona inclusive tratar-se de uma corrente dentro do estudo da
etnicidade, denom inada de instrumentalistas. O utros autores, dc forma diferente dos
instrumentalistas, denominados deprimordialistm destacam que importantes elementos a
serem percebidos no que diz respeito à etnicidade derivam do potencial afetivo, da
existência social assumida como dada.
1 A palavra '‘família", de acordo com o que observei durante o trabalho de campo, referc-se
àqueles indivíduos que possuem um a mesma ascendência genealógica, segundo a term i
nologia dos sobrenomes, reunindo assim várias famílias elementares em diferentes gera
ções. Mesmo quando se dá a m udança da terminologia de sobrenome através do casamen
to, o indivíduo continua fazendo parte da “família” e o cônjuge passa a ser integrante.
Q uando há cisões ficcionais entre membros de um a mesma “família”, como é o caso da
“Celestino”, não há questionam ento sobre o vínculo de parentesco entre eles.
A VIAGEM DA VOLTA
A família Celestino tem tradicionalmente se destacado entre os Xucuru-
Kariri em termos dos papéis/cargos políticos que seus membros vêm exer
cendo desde a fase do SPI, ou mesmo antes do reconhecim ento oficial.
De acordo com dados genealógicos dessa família, destacam-se pelo menos
seis líderes políticos. N a geração mais antiga (segunda ascendente, consi
derando a geração de ego a dos irmãos M anoel e Antônio Celestino), o St.
Francilino (“Zé Caboquinho”) foi um articulador político que, sendo in
form ante do etnólogo Carlos Estêvão de Oliveira na década de 1930,
manteve contato com Pe, Alfredo Dâmaso visando o reconhecimento ofi
cial do então SPI a partir da década de 1940. N a primeira getação ascen
dente, os irmãos Alfredo Celestino (falecido) e M iguel Celestino (pajé),
filhos de Sr. Francilino, tiveram representatividade/desempenho político
cm ambos os períodos de atuação do SPI-FUNAI, tendo sido o Sr. Miguel
um dos atuais líderes faccionais da Fazenda Canto. N a geração de seus
descendentes, destacam-se Antônio Celestino e M anoel Celestino, filhos
do Sr. Alfredo Celestino c tam bém líderes faccionais. N a primeira gera
ção descendente, o filho do Sr. A ntônio Celestino, José Augusto Neto,
chegou a atuar como cacique da M ata da Cafurna durante o período de
1986 a 1988. Várias líderes femininas (M aninha, Graciliana e Q uitéria
Celestino), pertencenres a essa mesma geração também têm ocupado im
portantes papéis de liderança política em diferentes facções do grupo.
Esses exemplos revelam o desem penho político de m em bros dessa
família que tradicionalm ente vêm sc destacando com o líderes políticos
legitimados oficialm ente o u não pela FU N A I. Sobre essa legitim idade
no período do SPI, nem sempre o Sr. Alfredo Celestino contou com o
apoio oficial do chefe de posto M ário Furtado para sua atuação com o
“cacique” (cf. Furtado 1954, 1961, 1962). No período da FU N A I, vá
rios confliros entre Sr. M anoel Celesrino e funcionários desse órgão
interferiram na sua legitimidade para o exercício desse "cargo” político.
O u tro exem plo ocorrido na M ata da C afu rn a pode ser apontado
com o interferência direta na estrutura política-organizacional, quando
o Sr. A ntônio Celestino, pajé dessa área, após a saída de seu filho Zé
N eto em 1988, passou a atuar tam bém com o cacique. Segundo depoi
m entos de índios, funcionários da FU N A I convenceram a população
indígena da necessidade da escolha de um novo cacique para aquela
área. A ssum iu o "cargo” o índio H eleno M anoel (escolhido em ritual do
O uricuri), que no entanto residia na cidade de Palmeira, onde geral
m ente era contactado por funcionários da FU N A I quando estes se des
locavam de Maceió para aquela área.
5 Práticas relacionadas à religião católica podem ser encontradas também nos mais diversos
grupos indígenas no Nordeste. Esse dado revela a marcante presença dessa agência
histórica desde o início do processo de colonização através de mecanismos legitimados
oficialmente (aldeamencos missionários, catequese etc.). Por exemplo, as comemorações
do “mês de M aria” (maio), quando são rezadas novenas, im portantes para a garantia de
um a boa colheita de m ilho e feijão.
A VIAGEM DA VOLTA
dos à facção política do Sr. M anoel Celestino. Vários não-índios que
vivem no povoado de A num , área lim ite da reserva, tam bém vieram,
em um a “procissão” acom panhada de um a “banda de pífaros”, carre
gando a im agem da santa até a igreja.
N a realização dessa festa religiosa, o Sr. Aristides Balbino se encar
rega de contratar a “banda de pífaros” e prom over o “leilão” de alim en
tos em frente à igreja. A firm ou que, após a m orte de Sr. Alfredo Celestino,
apenas ele deveria praticar esse “costum e”. M arcado por um a disputa
en tte o Sr. A ristides B albino, índio m o rad o r da cidade, e o cacique
M anoel Celestino, o evento religioso era um a situação social que reve
lava o prestígio deles com o articuladores políticos. Esse prestígio era
dem onstrado p o r meio da participação de indivíduos pertencentes às
cisões faccionais e tam bém pela capacidade de angariar recursos para
os gastos que o evento exigia. N a Fazenda C anto, som ente aquelas pes
soas ligadas ao cacique participavam , porém essas não se deslocaram à
noite para a cidade por falta de transporte, já que o Sr. M anoel Celestino
não o conseguira com a prefeitura m unicipal. Por sua vez, os índios da
M ata da C afurna não estiveram presentes em q ualquer m o m en to da
festa. Q u a n d o lhes perguntei sobre a com em oração, eles afirm aram
que se tratava de um a festa “de branco” e não “de índio”.
Além das práticas religiosas católicas “não-indígenas”, há na Fazenda
C anto índios ligados à fé Bahd’í, religião do O tien te M édio cujos segui
dores têm atuado em áreas indígenas nordestinas.6 Alguns desses índios
inclusive já participaram de encontros internacionais.7
6 Segundo o livro A promessa da p a z m undial (Rio de Janeiro: E ditora Bahá’í, 1988), nos
últim os cem anos, essa fé estabeleccu-sc cm mais de 118.000 localidades em 214 países
independentes e principais territórios ao redor do m undo. Sua literatura está traduzida
em mais de 780 línguas e seus membros representam mais de 2.100 diferentes grupos
étnicos (: 27). Alguns registros de visita de missionários dessa religião na Fazenda Canto
revelam que pelo menos desde 1969 há contatos entte índios e m em bros Bahá’í. N um
telegrama datado de 28 de agosto de 1969 o chcfc do posto agradece a visita que
indivíduos da comunidade Bahá'i de Recife e de Maceió fizeram àquela área indígena. Foi
localizado no PI uma relação dos índios que participaram da reunião que aconteceu nessa
ocasião. Em 1970, membros dessa comunidade são convidados para a comemoração do
dia do índio (telegrama emitido pelo PI em 8 de abril de 1970.
7 Q uitéria Celestino (filha do pajé Miguel Celestino) e Francisco Ricardo da Silva (filho
do Sr. José Ricardo da Silva) já viajaram para encontros nacionais e internacionais.
Q uitéria participou inclusive de um encontro em 1982 cm um país da América Latina.
Em 1992, juntam ente com o cacique Kiriri Sr. Lázaro, representou os índios do Brasil
em um encontro que ocorreu em Israel.
a Geralm ente às terças, quartas, quintas-feiras e sábados às 19:30 h, e aos dom ingos
quando nao vão para a sede dessas igrejas na cidade, reúnem -se vários protestantes
Xucuru-Kariri na casa de Sr. M anoel Ferreira de Lima (Xelé), D entre os que freqüentam
esse encontro, destacam-se seus parentes (filhas e seu filho A ntonio Ferreira com os
filhos), o Sr, Casimiro Aleíxo e adolescentes cujos pais não são protestantes, por exem
plo, alguns integrantes da família Ricardo.
AVJAGEM DA VOLTA
M em bros da fam ília Celestino, o u afins, tam bém se destacam por
ocuparem cargos como funcionários da FU N A I9: tanto a esposa do sr.
A ntonio, Marlene Santana, como a de sr. M anoel Celestino, M a de Lourdes
Gomes da Silva, são atendentes de serviços gerais (merendeiras), encar
regadas da conservação das escolas e da preparação da alimentação esco
lar. O s itmãos Francisca e Afonso Celestino vivem em Recife e traba
lham no órgão da FU N A I desta cidade; José Celesrino trabalha como
auxiliar de serviços gerais no posto indígena da Fazenda C anto e Q uitéria
Celestino, filha do pajé M iguel, é um a das atendentes de enferm agem
desse mesmo posto. Ainda são funcionários o filho do Sr. A ntonio Celes
tino, José Augusto N eto, técnico agrícola n a AI Kariri-Xocó/AL e um a
filha de Ermilina Celestino, Edleuza, que m ora e trabalha em Recife.
A família Ricardo provém dos irmãos M anoel Ricardo10, José Ricardo
— que migraram para a Fazenda C anto na década de 1950 — e A ntonio
Ricardo, que m igrou em janeiro de 1980, tendo vários de seus descen
dentes casados com integrantes da família Salustiano (M acário), Sátiro,
C osm o, etc. Seus m em bros em geral se filiam à facção política do pajé
Miguel Celestino.
Em um Levantamento das Famílias Xucuru-Kariri, realizado pela FU N A I
(1988b), 106 fam ílias elementares foram registradas como residentes na
área da Fazenda C anto. Nesse levantam ento, são tam bém citadas famíli
as indígenas que utilizam os seguintes sobrenomes: Tomaz da Silva, San
tos, Santos Neves, Messias Felix, G om es da Silva, Queiroz, Paulino da
Silva, Plácido, Belo Feítosa, Cordeiro Lins, Oliveira, Rosendo da Silva,
Alves de Souza, Ribeiro Paz, Pinto da M ota, N ascim ento (Pankararu),
Lourenço e Enoque. Tal diversidade de sohrenom es pode ser explicada
pelos casamentos que têm acontecido enrre índios e não-índios. Geral
m ente esses casamentos se dão entre índias X ucuru-Kariri e “brancos”,
sendo o sobrenom e do m arido m an tid o com o últim o sobrenom e da
mulher. É através dessa aliança m atrim onial que indivíduos não-índios
passam a se identificar e são identificados com o índios.11
m aioria das vezes que perguntava sobre a indianidade de alguém, apesar do reconheci
m ento de que se tratava de alguém "de fora”, logo se j ustíficava que através do casamento
aquele indivíduo podia ser considerado “índio” também.
12 H á uma relação próxima de parentesco através de uma mesma ascendência entre indiví
duos da Família Firm ino e M artins (terminologia de sobrenom e urilizada também pela
geração descendente da família Firm ino), filhos dos irmãos Antonio Firm ino e H onório
Firm ino, este último já falecido. M em bros dessa família podem ser considerados filiados
à facção política do cacique Manoel Celestino, tendo inclusive participado de rituais no
terreiro indígena liderado pelo cacique. Todavia, m antinham relações amistosas com o
pajé Miguel Celestino.
AVIACEM DA VOLTA
sua esposa Generosa, m antendo dessa form a um bom relacionam ento
com ambas as facções da família Celestino na Fazenda C anto.
Tam bém percebi que outros Pankararu se m antinham neutros, ou
seja, procuravam m anter bom relacionam ento com as diversas facções
n a Fazenda C anto e tam bém com m em bros da M ata da C afurna. O Sr.
H erculano Pedro U rbano, por exemplo, que retornou à T I Pankararu,
visita regularm ente seus fdhos que m oram na "Avenida”13, localidade
caracterizada por um a espécie de urbanidade’, ‘arruado'. Ele tam bém
m antém contato com seu irmão A ntonio U rbano, ambos dem onstrando
não se envolverem com disputas políticas dentro e fora da área c prefe
rindo m anter contatos amistosos com m em bros de diferentes facções.
A área denom inada “cam po” abrange todas as habirações próximas
ao cam po de futebol. Este é utilizado para os jogos do tim e “X ucuru-
Kariri Futebol C lube” com times “de fora”. O presidente do clube Luiz
Ferreira Celestino (Lula)14, além de se encarregar de organizar partidas
aos dom ingos, faz com que o tim e participe de torneios (como o de
Futebol A m ador do estado de Alagoas) e tenta angariar recursos com
políticos locais para a aquisição de mareria! (redes, bolas, camisas, etc.)
e para a m anutenção e a melhoria do campo. Semanalmente, Luiz Celestino
“acerta” (agenda) um jogo e com unica as equipes (adulto e juvenil) do
time. Também contrata o transporte para os jogadores e para aqueles que
os acom panham , geralmente familiares, nos jogos fora de casa.
Sendo um a form a de lazer em que todos se divertem bastante, o
“X ucuru-K ariri Futebol C lube” tem o “lem a” dc não se envolver em
questões políticas da aldeia. C om posto por um total de 34 jogadores,
na faixa etária de dezesseis a q uarenta anos, o tim e fazia questão de
afirm ar que não discutia “política”. Todavia, a partir da própria neces
sidade de auto-sustentação e dos im plem entos necessários para as equi
pes do rime, eram feitas articulações políticas com representantes de
partidos locais, com o vereadores, deputados estaduais ou futuros can
didatos. Em troca de tal ajuda, os com ponentes do tim e, através de seu
voto, viriam a dar apoio político nas eleições.
u Seus filhos são: lida Lorcnço Ramos, casada com Anczio Ramos; Petrúcio Pedro dos
Santos, casado com Severina Oliveira dos Santos; e Renilda M 1 Santos Neves, casada com
Edvaldo Ferreira Neves.
14 “Lula" é filho de um dos irmãos Celestino, Benedito Celestino, que é casado com Anália
Ferreira da Silva.
15 Medidas consideradas “de ordem ” foram estabelecidos pela nova diretoria do Xucuru-
Kariri Futebol Clube, objetivando principalm ente m anter conservado o material e orga
nizar a assiduidade dos treinos, a pontualidade etc.
Iú Contavam com o apoio financeiro dos candidatos a prefeito Hetenildo Ribeiro e vereador
Josuel Barros, inclusive para a construção da sede do time dentro da Fazenda Canto.
17 Os filhos e filhas de Sr. João Salustiano casaram-se com índios das “famílias” Cosmo,
Ricardo, Sátiro e Urbano, além dos casamentos com descendentes de não-índios.
A VIAGEM DA VOLTA
hom icídio em 1991, o assassinato de Messias, ligado à facção dc M anoel
Celestino, por m em bros da familia Salustiano.
O caráter difuso do faccionalismo nessa área permice detectar arti
culações políticas entre m em bros de diferentes facções. D e acordo com
a observação de cam po, vários conflitos estavam ocorrendo entre m em
bros da própria familia Celestino a partir das associações de seus dife
rentes m em bros com outras famílias com o a Salustiano (na Fazenda
C anto) e a Santana (na M ata da C afurna). Tais famílias são os princi
pais eixos das facções dos X ucuru-K ariri na Fazendo C anto e na M ata
da C afurna à época da pesquisa de campo.
Em 1996, por causa de outro hom icídio ocorrido na Fazenda C anto,
cuja vítim a foi o então cacique Luzanel Ricardo (casado com um a índia
da família Salustiano), cinco m em bros da família Celestino (todos ir
mãos, fdhos do antigo cacique Alfredo Celestino) foram im pedidos pelos
próprios índios de continuarem vivendo em suas posses dentro da fa
zenda. Esse h o m icíd io teve a p articip ação de um ín d io da fam ília
Celestino cuja mãe morava na M ata da C afurna e refletiu o acirram en
to dos conflitos entre o então cacique Luzanel Ricardo (“parente” da
fam ilia Salustiano) e a facção liderada por Sr, M anoel Celestino. Luzanel
R icardo vinha se legitim ando no exercício do cargo de cacique em
razão do suporte das facções do pajé M iguel C elestino e da fam ília
Salustiano e do apoio da FU N A I.
Ao mesmo tem po que os m em bros da família Celestino foram im pe
didos de reto rn ar à Fazenda C anto, dois irm ãos pertencentes a essa
familia (Sr, A ntonio e Ermilina) e a mãe deles tiveram de sair da área
em que viviam juntando-se aos que haviam ficado na cidade de Palmei
ra dos ín d io s. Esses e o u tro s n ativos, sob a lid era n ç a de M anoel
Celestino, form am um novo segm ento X ucuru-K ariri desde 1996, que
habita provisoriam ente a cidade de Palmeira dos índios em casas alugadas
pela Funai. Eles utilizam a área denom inada Aldeia Capela (quatro ha)
para a prática de riruais religiosos ligados ao Toré, mas não dispõem
atualm ente de áreas destinadas às atividades de subsistência.
A VIAC EM DA VOLTA
F o n te I PETI/M useu N acion al, 1 99 3.
A m aioria dos nom es relacionados com o tendo co n cordado com
Cícero Francilino (França) eram de indivíduos que m oravam na cidade
ou que viviam na M ata da Cafurna. E interessante observar que Cícero
“França” era (cf tem anterior) um daqueles que habitavam a cidade e
se opunham ao Sr, M anoel Celestino, exemplo evidenciado na com e
moração da festa de N , Sra. do A m paro. Ele m antinha um bom relaci
onam ento com o chcfe de posto, que o considerava um dos “índios de
verdade”19.
Por se tratar de um assunto complexo e que revelava um a insatisfa
ção geral sobre essa divisão territorial, c tam bém pelo fato de ser um a
área não m uito extensa (22 ha), alguns dados indicavam que houve uma
certa pressão, o u m esm o coação, para que o Sr. A n to n io C elesrino
assinasse aquele acordo, legitim ando assim um a divisão de lotes para
vários indivíduos que inclusive não viviam d entro da área indígena.
N aquele m om ento, o Sr. A ntonio tin h a sido conivente com o arrenda-
m enro para um fazendeiro vizinho de um a área para pastagem dentro
da M ata C afurna/G arrote. Por ser um a situação irregular, foi “repreen
did o ” pelo representante do órgão indigenista e o fazendeiro, avisado
para retirar o gado da área. Nessa situação de fragilidade política se
en c o n tro u um canal para a im posição do órgão tu to r e a aceitação
passiva de Sr. A ntonio Celestino. Vale lem brar que esse m om ento está
relacionado tam bém ao incentivo e à interferência de Luiz Torres ju n to
aos funcionários da FU N A I, no sentido de reconhecer direitos territoriais
daqueles “índios” da cidade.
19Apesar de nao ter focalizado as articulações políticas dos índios que moravam na cidade
de Palmeira dos índios, eles podem ser considerados uma outra facção Xucuru~Karirh
com posta de m em bros da família de Axistides Balbino, de Cícero França, da família
M aranduba e cie outros nativos que m oram na cidade e se inter-relacionam com agentes
históricos e índios das áreas da M ata da Cafurna e da Fazenda C anto. Observei que não
há um questionam ento sobre a identidade étnica desses índios urbanos. Também regis
trei informações, a partir de depoim entos dos próprios índios durante a pesquisa de
campo, dc que do atual m unicípio de Igaci (antigam ente denominado O lho d'Água do
Accioly), vizinho a Palmeira dos índios, teriam migrado para a Fazenda C anto alguns
indivíduos na década de 1950. Tam bém me informaram que recentemente a FUNAI
havia cadastrado 53 pessoas que se identificavam como “índios” nessa localidade e que
tinham recebido assistência do Posto cm Palmeira dos índios, Nao consegui localizar um
registro na FU NAI sobre esse assunto. Na Fazenda C anto encontram -se ainda hoje
índios que m antem contato e slo ligados através de laços de parentesco a indivíduos que
habitam atualmente em Igaci.
A VIAGEM DA VOLTA
Eles pareciam viver num certo isolamento ou eram de certa form a dis
crim inados através da não “permissão” de que fizessem parte do O uricuri.
Esse é um exem plo q u e d e m o n stra um a prática d iferenciada de se
vivenciar um a indianidade, pois existem formas distintas de ser índio
X ucuru-K ariti dentro de um a mesma área.
C om o acontece com outros líderes políticos e/ou religiosos da fam í
lia Celestino, as filhas de sr. A ntonio Celestino tam bém têm se destaca
do através da atuação política. É o exemplo de sua filha “M aninha”, que
tem particip ad o ativam ente com o m em bro da organização indígena
A P O IN M E . C ontando com assessoria jurídica do C IM I-N E e financi
am ento da organização náo-governam enral O xfam , essa O N G tem reu
nido índios dos mais variados grupos do Nordeste, Leste e M inas Gerais
em reuniões dentro das próprias áreas; dessa form a, têm possibilitado
um m aior núm ero de articulações entre os próprios grupos indígenas.
O utros dados podem confirm ar o fato de o segmento X ucuru-K ariri
ser aquele que mais tem se destacado em term os de um a etnicidade
voltada para fins políticos, p o r exemplo a intenção, principalm ente dos
mais jovens, de aprender a língua Kariri (já extinta) e os intercasam entos
preferen cialm en te en tre ín d io s. N esse sen tid o , a situação h istó rica
vivenciada pelos X ucuru-K ariri dessa área indígena aponta para um a
m aior autonom ia deles com relação à interferência de atuação da FU N A I.
O fato de não contarem com presença direra de um posto indígena tem
viabilizado nessa área um a certa aurogestão, apesar de intervenções es
porádicas de funcionários não-índios.
A VIAGEM DA VOLTA
FU N A I-Paulo Afonso e, juntam ente com funcionários do órgão, foram
vistoriar a área de 18 ha, posteriorm ente adquirida.
Descrevendo a Fazenda Pedrosa, Zezinho contou que ao chegarem,
quando foram reassentados, só havia um a casa construída, local onde
do rm iam as crianças. O s adultos Ficaram abrigados em barracas de
íona fornecidas pelo Exército. Nessa fase som ente cinco fam ílias ti
nham vindo para a Fazenda Pedrosa; com o tem po chegaram mais pes
soas provenientes da Fazenda C anto. A proxim adam ente oitenra pesso
as tinham intenção de vir para a área, mas ele não concordou alegando
que “não dava” e que tu d o teria de ser “com binado com todos” que
m oravam na Fazenda Pedrosa. Segundo dados da FU N A I (1988a), a
população registrada era de 5 2 índios.
E m relação à atuação da FU N A I, ele disse que só houve m elhorias
na aldeia quando veio “genre de fora”, por exemplo, a construção das
casas. Inform ou tam bém sobre algumas articulações com a Igreja que
teriam viabilizado m elhorias n a in fra-estru tu ra da aldeia. C onheceu
padres italianos que estiveram em Paulo Afonso e então convidou-os
p ata visitar a área, fazendo um “pedido” de ajuda para o grupo. Poste
riorm ente, m encio n o u que essa “visita” havia sido interm ediada por
um missionário do C IM I-N E cham ado Z é Carajá, que trouxera aque
les padres até a aldeia. Então tiveram oportunidade de “dançar”, “fazer
brincadeira” (term o utilizado para se referir a dança do Toré) e pedir
um a co n trib u ição para a m elhoria das condições de suas m oradias.
Segundo Zezinho, foi através de um recurso de oiro mil dólares, conce
dido por esses padres e adm inistrado pela diocese de Paulo Afonso, que
eles puderam adquirir material para a construção de novas casas. Disse
ainda que se não tivesse sido o D . M ário, bispo de Paulo Afonso, e os
padres estrangeiros, ainda estariam “m orando debaixo de lona”.
N o que diz respeito à instalação de energia elétrica e o sistem a de
irrigação, Z ezinho inform ou que vários órgãos do estado da Bahia, e
ainda a FU N A I, participaram de sua realização. Isso se deu porque já
tinh am tido m uitos prejuízos com a falta de chuvas, perdendo vários
plantios. Todavia a irrigação era m uito cara, as contas de energia elétri
ca chegavam a “35, quarenta m il por mês”. Por não terem condições de
pagar, todo mês “brigavam” para a FU N A I assumir esse custo.
Essas informações dem onstram a articulação e a atuação de Zezinho
Sátiro no sentido de solucionar problem as surgidos após sua saída da
Fazenda C anto e revelam a presença de outros agentes nessas situações,
relacionados principalm ente à Igreja (Diocese de Paulo Afonso, C IM I),
21 Sendo fiiha de José Paulino da Silva (já falecido) e Flora Ferreira da Silva (Alzira), duas
irmãs de Finha, o irmão Z ito e sua mãe moram nessa AI. U m outro irmão (Osvaldo
Ferreira da Silva) teside com a esposa na AI Fazenda Canto; sua irmã casada com um não-
índio mora na cidade de Palmeira dos índios.
11Por exemplo, soube que certa vez Cícero ficou bêbado e “fez besteiras” e que Zezinko, seu
irmão, teria lhe dado uma “surra” e o “deixado” dc castigo amarrado numa írvore a noite
toda.
A VIAGEM DA VOLTA
atuação do cacique no sentido de u m a mobilização política que supra
as suas necessidades, recorrendo não só à assistência da FU N A I, como
tam bém a outros agentes históricos que estiverem ao seu alcance: a
Igreja Católica, o governo do Estado da Bahia etc., um a intensa articu
lação com outros grupos indígenas regionais sendo tam bém um a carac
terística da situação histórica em que se insere esse segm ento X ucuru-
K ariri.
A VtAGEM DA VOLTA
Jo s é M a u r íc io A n d i o n A r r u t i
A árvore Pankararú:
' Para um exercício em que trabalho com o mesmo período, mas no qual busco uma
reconstrução mais “equilibrada” entre as perspectivas êmica e ética, situando a questão das
emergências indígenas em um contexto histórico e regional mais amplo, cf. Arruti (1995).
2 Depois desse período há um relativo silêncio em que as emergências pareciam ter se
esgotado, mas a partir da metade dos anos 1970 levanta-se uma nova onda que, em
pouco mais de vinte anos, acrescentaria àqueles primeiros outros 24 grupos, sem contar
com as informações sobre a dem anda de um núm ero ainda indeterm inado de grupos no
A VIAGEM DA VOLTA
Pankararu. Além desses dois limites, esse texto pautar-se-á tam bém por
dois focos analíticos, que buscam colocar a situação dos remanescentes
emergentes em diálogo com o campo mais am plo dos estudos étnicos.
Estrategicamente, definirei esses dois focos a partir de duas considera
ções críticas acerca das form ulações de R oberto C ardoso de O liveira
sobre a identificação étnica, ainda representativas desse campo de estudos.
Em um texto de 1971, Cardoso de Oliveira cita alguns “casos limite”, nos
quais um conjunto de indivíduos, na falta de um grupo étnico de referên
cia efetivamente existente, pode apelar à sua história para se representar
como categoria étnica. A noção de grupo étnico com que o autor traba
lhava era retirada de Barth (1969), podendo ser definida, nesse contexto
argumentativo, como “um grupo organizado (organizadonai typé)" que se
utiliza das diferenças culturais de form a contrastiva para dem arcar suas
fronteiras com relação a outros grupos. N o entanto, nos citados “casos
limite” a que o autor se refere como “remanescentes trihais”, a possibili
dade de emergência de um a identidade étnica seria proporcional à cons
ciência que tais “remanescentes” teriam de sua “historicidade” (Cardoso
de Oliveira (1971: 13)3. Dessa forma, o autor supunha a existência de
mecanismos e critérios de identificação étnica haseados exclusiva ou pre
dom inantem ente na memória de grupos cuja organização social já teria
sido desfeita pelo avanço colonial, sem que isso o tenha levado a fazer
com que o problema da “identificação” e de sua “historicidade” retornasse
criticam ente sobre a definição de Barth para “grupos étnicos”. M esmo
supondo a possibilidade de gerar um “modelo de identificação étnica”
derivado da observação do que ele mesmo cham ou de “remanescentes”,
sua preocupação com a formalização c estruturalização dc seus enuncia
dos não perm itiu que cie atribuísse um valor problemático aos usos soci
ais daquela “historicidade”, isro é, à memória.
D a mesma forma, ainda que nesse texto Cardoso de Oliveira aponte
para a questão da ligação entre a identificação ctnica e o acesso a determi-
estado do Ceará, Para um exercício em que busco uma prim eira aproximação desse outro
período das emergências indígenas no Nordeste, atualizando o contexto mais amplo
apresentado no texto citado anteriorm ente, cf. A rruti (1999).
3 Cardoso de Oliveira reconhecia ainda que a presença desses “remanescentes tribais” não
se restringia a regiões de colonização antiga (seu exemplo sao os Terêna), mas poderia scr
observada em regiões mais preservadas, como a xinguana, onde tam bém existiriam
grupos cuja organização social tribal já havia sido desfeita, mas que m anteriam mecanis
mos de identificação semelhantes.
A ÁRVORE PANKARARU
nados direitos que estariam em jogo na assunção do rótulo de “índios”, o
autor praticamente abandona as conseqüências dessa constatação ao m an
ter os problemas teóricos no plano da relação índios versus brancos. Reto
m ando um texto anterior e sem as mesmas pretensões (1960b) sobre o
papel dos Postos Indígenas no “processo de assimilação”, veremos que na
quela análise era a armação de um a estrutura institucional garantidora da
“proteção” e da “assistência” que, por mais precária que fosse, sustentava a
manutenção da identidade étnica, o u seja, frca claro que a onipresença da
“contrastividade” com o branco deveria subordinar-se ou integrar-se à aná
lise da relação entre identificação étnica e acesso às garantias (os “direitos”)
oferecidas por um a agência estatal com funções não só executivas e de
polícia, mas também cíassificatórias, já que responsável pela própria iden
tificação oficial dos grupos e indivíduos. Nesse caso, Cardoso de Oliveira
perde de vista que o fundamental na analogia com a “situação colonial" a
que faz referência náo é a diferença de “escala” entre sociedades tribais e
sociedade nacional (Cardoso de Oliveira (1971: 15), mas o fato de a situa
ção interctnica estar englobada pelo quadro jurídico de um Estado-nação
(Oliveira 1998: 54). Isso faz com que a identificação étnica em situações
coloniais deva levar em conta, além das representações ou das ideologias
geradas nas situações de contraste (Cardoso de Oliveira 1971: 20), o qua
dro institucional que as envolve4, isto é, o ordenam ento jurídico, policial,
de recursos etc., que passa a regular o contexto das interações. Entre outras
coisas, trata-se daquilo que as populações indígenas com que trabalhare
mos a seguir chamam ampla e difusamente de “direitos”.
Este texto pautar-se-á justam ente por esses dois pontos críticos, bus
cando elevar ao lugar de problem áticas analíticas, a memória, dc um
lado, e o que poderíam os resum ir com a idéia da busca dos direitos, de
outro. C om o veremos, esses pontos são praticam ente indissociáveis no
caso dos remanescentes emergentes, já que a m em ória é fundam ental no
processo de ident fteação q u e dá acesso aos “direitos”. Por outro lado,
eles se distribuem por entre problem as mais empíricos, que surgirão a
seguir quase com o unidades de nossa análise: as viagens indígenas e os
fluxos socíoculrurais e políticos desenhados por meio delas; o sistema de
metáforas que organiza e dá coerência aos efeitos e às reconversões da
“m istura”; o ato perform ático e místico dc levantar aldeia; e a polissemia
do Toré, que penetra todas essas unidades de análise.
4 Lembremos que Barth (1969), utilizado por Cardoso de Oliveira, desraca apenas as
condições ecológicas e demográficas.
A VIAGEM DA VOLTA
A teced u ra das em erg ências: anos 1920-40
1 O s Carijó de que fala o autor são hoje conhecidos como Fulní-ô, grupo de 2.790
pessoas, que ocupa uma área dc aproximadamence 11.500 ha, incluindo a cidade de
Águas Belas. Em documentos mais antigos o grupo dessa região, da Serra do C om unati,
próxima ao rio Panema (depois Ipanema), é designado como Carnijó e aparece ocupando
o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em 1705,
extinto legalmente em 18ÊI e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI
1993).
6 Aqui existe uma discordância entre as datas apresentadas pela docum entação do SPI
utilizada no Arias das Terras Indígenas do Nordeste (PETI 1993) e as informações do
texto do Pe. Alfredo Dâmaso. No Atias informa-se que o primeiro contato com o SPI teria
sido feito em 1925 c o posto indígena instalado em 1928.
A ÁRVORE PANKARARU
Pe, D âm aso insiste na im portância do Serviço e de sua atuação na
região com um a argum entação que oscila entre o hum anitarism o e o
pragm atism o político e econôm ico. Em resposta à acusação de que o
órgão teria feito o país gastar inutilm ente cinqüenta mil contos de réis nos
últimos 21 anos, ele pondera que aquele orçamento representava apenas
132 téis de diária para cada índio assistido pelo órgão, enquanto na cadeia
de Campos Sales, compara, cada preso custava 1$000 réis diários. Além
disso, ele pergunta: “Quantas centenas de milhar de contos teria gasto o
governo para dar caça, inutilmente, aos heróicos e invencidos legionários
de Luiz Carlos Prestes?... E com a imigração estrangeira?” (Damaso 1931).
Pe. Dâmaso lembra que apenas no período entre 1910 e 1914 teriam sido
gastos .30.354 conros com o serviço de imigração estrangeira, sem que sc
tivesse a certeza que o imigrante europeu se adaptaria e se fixaria no solo
nacional, já que m uitos realizavam um a segunda migração para países
vizinhos. Por outro lado, poder-se-ia gastar infinitam ente menos com o
"silvícola que do país não sae, que não emigra e que é perfeitam ente
utilizável como elemento de trabalho e de riqueza econômica [...]” (idem).
N a argum entação do pároco, que esclarece as razões do próprio ór
gão de investir naquela região, a proteção do indígena nordestino, além
de representar um a prestação de contas em razão da violência colonial,
responderia a um a racionalidade política ao tutelar um a população ru
ral pobre, assediada pela ebulição revolucionária da época, e a um a
racionalidade econôm ica que, diferente da que guiava as elites, perce
bia nessa população m arginalizada os “braços” que as “classes pro d u to
ras” e o governo reclamavam. D âm aso repetia então o diagnóstico de
um relatório oficial de mais de meio século que, no m om ento da extinção
dos aldeam entos em 18787, insistia na mesma racionalidade econôm i
ca, ainda que com objetivos distintos.
Esse relato não m enciona que naquele m omenro os seus “carnijó” esta
vam concorrendo com os Potiguara de Baía da Traição (PB) pelo privilégio
de serem o único (na realidade, o primeiro) gtupo indígena nordestino a
obter proteção do órgão indigenista oficial. Esse fato, porém, é igualmente
esclarecedor. Em 1922 o SPI havia enviado um funcionário àquelas duas
7 Relatório de José Luiz da Silva (engenheiro responsável pela Comissão de medição das
terras da província de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr. Conselheiro Sinim hú
(Min. e Secr. dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas) sobre o aldeamento
do Brejo dos Padres. Junho de 1878. Arquivo Público de Pernambuco, coleção RTP
(Repartição de Terras Públicas) vol. 17: 391.
A VIAGEM DA VOLTA
comunidades a fim de escolher o local mais adequado para a instalação de
um posto indígena (Peres 1992), Em Águas Belas (PE) o representante do
SPI seria recebido pelo Pe. Dâm aso, mas em João Pessoa (PB) seria o
superintendente da fábrica de tecidos Rio T into, instalada desde o início
do século dentro dos limites do extinto aldeamento de M onte-M or, de
onde a fábrica retirava madeira, que o receberia, de maneira tão hospita
leira quanto o padre. C om o rcsulrado caricatural dessas mediações discre-
pantes, o relatório do funcionário (1922) afirm ou que os “pretensos índi
os” Potiguara não apresentavam qualquer “dos sinais externos geralmente
admitidos pela ciência etnográfica”, fossem eles fisionomia, índole, costu
mes ou idioma, Eram “mestiços” (em “promiscuidade com os civilizados”)
e “indolentes” (vendiam seus coqueiros para os vizinhos “empreendedo
res”) que mereceriam por parte do Estado não a proreçao “que deve am pa
rar o autóctone legítimo ou seus descendentes diretos”, mas a assistência
dispensada aos “trabalhadores nacionais” (citado por Peres 1992).
N o outro cxrremo, os Fulni-ô, afirmava o relatório, “apesar de algu
m a miscigenação racial” e despossuídos dc suas antigas terras “por po
líticos locais”, “conservavam a língua e os costumes de seus antepassa
dos”, assim com o sua “coesão social”. Além disso, ainda que as terras
reivindicadas por am bos os grupos apresentassem posseiros, no caso
dos Potiguara, as indenizações teriam que ser m uito altas, enquanto no
caso dos Fulni-ô os ocupantes já h a v ^ m m anifestado a disposição de
“pagar foros a um recehedor legal e idôneo” (Peres 1992).
Os Fulni-ô reuniam portanto as condições básicas para o empreendi
mento indigenista, que traduziam um outro par de razões que justifica
vam a entrada do órgão no Nordeste: um a racionalidade “etnológica”
ou folclórica (os tais “sinais externos”)3 e econôm ica, mas agora em um
sentido mais estrito, no qual o cálculo não dizia respeito à econom ia
8 Em 1949, Max Boudin relacionava as diferenças qne os separavam dos sertanejos locais,
com quem partilhavam a maior parte das características culturais e econômicas: a) falarem
sempre, salvo raras exceções, o ia-têem suas relações privadas; b) partilharem de caracte
rísticas antropofísicas como o cabelo grosso, preto e liso, parca pilosidade corporal, olhos
oblíquos, maçãs bastante acentuadas, estatura pequena, “cútis bronzeada ou côr grão de
trigo”; c c) praticarem um a religião secreta, “diferença que acusa a singularidade da tribo,
como pertencendo a um m undo cultural completamente estranho ao nosso" (Boudin
1949). Notemos que ainda hoje os Fulni-ô são considerados os que guardam os sinais
diacríricos mais evidentes com relação aos regionais, como registra o privilégio que recebem
no atlas on-line fndios da América do Sul: áreas etnográficas ", do professor Júlio César
Mdatti.
A ÁRVORE PANKARARÚ
nacional ou regional, mas à promessa de viabilidade econôm ica do pró
prio órgão indigenista. O que o funcionário do órgão não sabia, mas
talvez Pe. A lfredo D âmaso tivesse conhecim ento, era que os Fulni-ô
reuniam tam bém outras qualidades, que os fariam ponto dc partida das
emergências seguintes e que condicionariam , e m esm o orientariam , as
ações posteriores do próprio órgão.
9 N o texto (1931) diz que, apesar de sempre ter se interessado pelo grupo, só os teria
visitado recentemente e em com panhia do Deputado M ário Mello e do inspetor do SPI,
A VIAGEM DA VOLTA
N,h]iicla palestra, Carlos Estevão contava que, levado um dia a visi-
iii ,1 diclioeira de Itaparica e as obras da Cia. Industrial e Agrícola do
Haixtt S;u> Francisco, tinha feito um a descoberta “toda filha do acaso”.
N t 'p ro c u ra de um a elevação que m e proporcionasse a possibilidade
dc u.m sportar para o Tilm’ de m inha ‘Roleflexe’ [a] imagem do lindo
<n,ISO que se descottinava diante dos meus olhos”, descobrira em um a
pequena gruta um “ossuário indígena de real valor científico”, que o
levaria, guiado por um “caboclo do local”, aos “remanescentes indíge
nas” Pankararu da aldeia Brejo do Padres. Depois de descrever rapida
m ente as festas, os m itos, a econom ia e o secular processo de espolia
ção a que aquele grupo tinha sido subm etido, o autor dá notícias tam
bém dos “remanescentes indígenas” que ainda se encontravam em “C o
légio”, “Águas Belas” c “Palmeira dos índios”, dirigindo um dram ático
apelo aos seus ouvintes. Cham ava a todos para qne tomassem “sob seu
valioso am paro e proteção [os] rem anescentes indígenas que ainda vi
vem em tetras nordestinas” e que o In stitu to H istórico e G eográfico
Pernam bucano tornasse seu apelo extensivo aos institutos de Alagoas,
Sergipe, Bahia, Paraíba, Rio G rande do N o rte e Ceará, para que estes
tam bém amparassem e protegessem os “rem anescentes indígenas que,
por ventura, existam naqueles estados”. Ao repetir sua palestra no M u
seu N acional do Rio de Janeiro, seu apelo, em função das relações que
essa instituição m antinha com C ândido R ondon, dirigia-se não mais ao
instituto de pesquisa, mas ao próprio órgão indigenista oficial.
Mas, se a presença do SPI cham a a atenção dos acadêmicos para os
Fulni-ô e, p o r m eio deles, para os “rem anescentes” do N ordeste em
geral, os Fulni-ô, por sua vez, cham am a atenção de um a série de com u
nidades, com as quais m antinham laços riruais, para o SPI. O s Pankararu,
que desde o início da década de 1920, por meio de suas relações com
os Fulni-ô, haviam estabelecido contatos com o Pe. D âm aso"’, depois
a Ar v o r e pa n ka raru
de tom arem conhecim ento da existência de um órgão oficial que ofere
cia proteção aos “remanescentes indígenas” contra os proprietários lo
cais, passam a intensificar suas viagens para Águas Belas. É portanto
p o r m eio dessa triangulação que passa pelo Pe. D âm aso, em Águas
Belas (BA), que Carlos Estevão faz sua prim eira viagem ao Brejo dos
Padres em 1935. N o mesmo ano daquela palestra (1937), o M inistério
da G uerra, a que o SPI estava subordinado, envia ao local um funcioná
rio para um a prim eira avaliação. O s trabalhos não teriam continuidade
até três anos mais tarde, após a transferência do SPI para o M A IC 1’,
quando o órgão instalou um Posto Indígena no Brejo dos Padres. Assim
que soube da decisão, lem bram os Pankararú, “o prof. Carlos” voltou à
aldeia para dar pessoalmente a notícia, fazendo festa, abraçando a todos
em grande alegria e com unicando que seus problemas estavam resolvidos.
Através da m esm a mediação e na m esma época, Carlos Estevão en
tra em contato com os X ukuru-K ariri dc Palmeira dos índios (AL) e,
ju n to com o deputado M edeiros N eto , dá início ao seu processo de
reconhecim ento pelo SPI. O grupo, no entanto, teria de esperar até o
ano de 1952 para que o Serviço adquirisse um a fazenda, itisralasse um
posto indígena e depois passasse a reunir e a receber ali famílias indíge
nas oriundas de diferentes localidades próxim as12. O s Kambiwá, locali
zados na Serra N egra (PE), local de quilom bos e de refúgio de um
grande núm ero de grupos fugidos das “guerras justas” e dos aldeam entos,
tam bém iniciam seu processo de reconhecim ento oficial ao final da
década de 193(3. Provavelm ente p o r interm édio dos P ankararú, com
quem m an tin h am contatos regulares, os Kambiwá conseguem auxílio
do Pe. D âm aso e, p o r seu interm édio, um a autorização do governo
federal para voltarem a ocupar a Serra N egra (Barbosa 1991). Efetiva
11 Essa m udança atinge diretam ente a estrutura e o padrão de ação do SPI, que passa a
enfatizar sua função de agência colonizadora e fáz com que a própria imagem do que devia
ser o “índio” sofra unia mutaçãc), que o leva de “guarda de fronteira” para “agricultor”, na
tentativa de torná-lo sem anticamente adequado ao contexto retórico da “m archa para o
oeste”, rescituindo, de ccrta forma, sua parte “LTN ”, Para uma leitura mais atenta das
condicionantes históricas e contextuais da ação do SPÍ no Nordeste, sugiro um texro
anterior de mais fácil acesso (Arruti 1995).
12 Conscituídoscom o unidade territorial e sujeito político entre os anos 1930 e 1950, é só
no impulso da conjuntura do final dos anos 1970, que os Xukuru-Kariri inrcnsificatn
sua mobilização e conseguem ampliar suas terras (PETI 1993).
A VIAGEM DA VOLTA
mente, diversas famílias se organizam para voltar a ocupar a Serra, mas
0 seu principal líder é capturado, to rtu rad o e m orto por fazendeiros
locais. Acuadas, as famílias se retiram para um a região próxim a, onde
perm anecem até 1954, quando conseguem estabelecer novos contatos
1otn o m inistro da A gricultura, que finalm ente dem arca suas terras.
Um pouco depois desses prim eiros contatos, em 1944, mas tam bém
por in term édio do Pe. A lfredo D âm aso, o SPI estabelece um posto
irulígena em P orto Real do Colégio (Al), ju n to aos “rem anescenres
( lariri”, que reivindicavam as terras de um aldeam ento jesuftico às
margens do rio São Francisco, extinto em 1759. Ao tom arem conheci
m ento, os Xocó, tam bém localizados às margens daquele rio, algumas
léguas acima, no m unicípio de Porto da Folha (SE), intensificam sua
migração para ju n to dos "C ariri”. Segundo a m em ória tribal de ambos
os grupos, o direito às suas terras teria sido dado d iretam en te pelo
Im perador que, em um a viagem à cachoeira de Paulo Afonso, se sensi-
bilizata ao to m ar conhecim ento do sofrim ento a que estavam sendo
subm etidos (D antas e Dallari 1980, D antas e outros 1992, PE T I 1993).
C om o os Xocó já estavam m igrando para ju n to dos “C ariri” em função
do acirram en to do processo de ex p ro p riaçao das terras do an tigo
aldeam ento da Ilha de São Pedro, a sua reunião em um m esm o territó
rio no m om ento da criação do Posto Indígena os faz assum ir a identida
de com pósita de Kariri-Xocó.
Dessa forma, respondendo a um a situação pensada como excepcio
nal, a presença do órgão indigenista perm ite que antigas queixas e confli
tos fundiários de com unidades descendentes de aldeam entos indígenas
extintos desde os anos 1870 convertam-se sucessivamente, por meio de
um circuito tradicional de relacionam entos intergrupais, em um a série
de emergências étnicas entre 1935 e 1944. A princípio os Fulni-ô e seu
“porta-voz” Pe. Dâmaso, auxiliados por Carlos Estevão, servern de m edi
adores entre os outros “remanescentes” e o SPI, porém a seguir os pró
prios grupos recém-reconhecidos passam a atuar como mediadores entre
o órgão e outros grupos em um segundo “círculo” de emergências.
A ÁRVORE PANKARARU
ram em Porto da Folha (SE) n lo deixaram de reivindicar, por meio de
diversas viagens à capital do Estado e à p ró p ria capital Federal, seu
direito às terras da antiga Missão Indígena da Ilha de São Pedro. D e
sua parte, seus parentes Kariri-Xocó nunca deixaram de apoiá-los nes
sas reivindicações, fazendo com que, depois de 1944, os estreiros laços
entre as duas populações passasse a servir de via de acesso direto ao
órgão indigenista.
A m pliando essa rede de mediações, existem indícios de que foram
os Pankararú os mediadores na emergência Tuxá. O grupo, que já rea
lizava viagens em busca de seus direitos territoriais, teria entregue, por
meio deles, um abaixo-assinado ao funcionário do seu Posto Indígena
pedindo para que o SPI interviesse na luta que há anos vinham travan
do pela restituição de suas terras. N a resposta, o chefe dc posto com u
nica que C ândido R ondon já havia sido inform ado de sua situação e
que, em função disso, tetia entrado em contato pessoal com o interventor
A gam enon Magalhães no sentido de pedir a liberação das ilhas do São
Francisco e conseguira um a resposta positiva.13 C om o resultado dessas
m ediações, que ligam sucessivam ente os “rodelas”, p o r m eio de suas
lideranças, os Pankararú, p o r meio de seu chefe de posto, o SPI, por
meio de R ondon e o poder público estadual, por meio do interventor,
os prim eiros obtiveram não só o seu reconhecim ento como indígenas
Tuxá, com o tam bém a criação de um PI e a reconquista de um a de suas
antigas ilhas no São Francisco.
Mais tarde, os próprios Tuxá seriam a ponte entre outros grupos e o
órgão indigenista. Esse é o caso dos Trucá, localizados na Ilha da Assun
ção, m unicípio de Pesqueira (BA), sessenta quilôm etros acima dos Tuxá
na m argem oposta do São Francisco. As terras do antigo aldeam ento da
Ilha de Assunção reivindicadas peio grupo teriam sido expropriadas ao
longo do séc. XIX, apesar de o grupo co n tinuar ocupando parte das
terras da ilha. N a década de 1920, no entanto, o bispo de Pesqueira
to m o u posse do que restava dessas tetras sob a alegação de que’ elas
teriam sido doadas pelo próprio grupo para N ossa Senhora, devendo
por isso estar sob a adm inistração da Igreja. Ele reeditava assim um a
das mecânicas da expropriação dos aldeam entos indígenas descritas no
A VIAGEM OA VO LTA
iil.ilório da D ireto ria de ín d io s de 185 7 14, com a diferença que, na
•Mi.idíi dc 1940, essa com unidade é alertada pelos Tuxá da possibilida
de dc, sendo reconhecidos como “remanescentes indígenas”, terem de
vnliu as terras do antigo aldeam ento (Batista 1992).
A emergência A tikum , grupo localizado na Serra do U m ã, m unicí
pio dc Floresta (PE), tam bém tem lugar na década de 1940 em conse
qüência de seu contato com os Tuxá. Segundo relatos do grupo, foi em
uma tias f ras da an tig a R odelas (hoje in u n d ad a pela barragem dc
li.iparica) que um m orador da Serra do Uma, reclamando dos proble
mas da sua região, aliás com uns a m uitas daquelas localidades, como a
invasão de roças pelo gado de fazendeiros vÍ2 Ínhos e a cobrança de
' .iItos im postos” pela prefeitura, ficou sabendo através de um Tuxá que
poderiam alcançar, como “remanescentes de índios”, o apoio do SPI e
,i dem arcação de um a reserva, “Prim o, aqui não é conhecido que é
índio? Então procure os direitos que o governo rá d ando...” (citado por
<im new ald 1993). D epois disso form ou-se um pequeno grupo que se
dirigiu ao Brejo dos Padres para conseguir junto aos Pankararu, com os
i|uais tam bém m antinham laços rituais, informações sobre a form a de
entrarem em contato com o SPI. Q ueriam “ir em busca dos direitos
que foi dado” (idem). A m alha que com eça a se estender entre os gru
pos já identificados e aqueles que estão p o r em ergir desenha assim
outros nexos, mais horizontais que os anteriores. Nesse últim o caso,
por exemplo, os Tuxá levam aos “caboclos da Serra do U m ã” (Atikum),
que levam aos “caboclos da Serra Negra" (Kambiwá), que então recor
rem aos Pankararu e, por meio deles, têm acesso aos nexos verticais já
estabelecidos, isto é, o chefe do Posto Indígena Pankararu, o chefe da
Inspetoria de Recife c a D iretoria do órgão, no Rio de Janeiro.
A ÁRVORE PANKARARU
Esse é o primeiro desenho da rede de relações que, do ponto de vista
dos grupos envolvidos, possibilitou sua passagem do estado genérico e
pejorativo de caboclos para o estado tam bém genérico mas juridicam ente
diferenciado de índios, na luta pela reconquista da terra de m orada e de
trabalho. Porém um elemento fundam ental desse quadro ainda deve ser
devidam ente explorado: o fluxo de indivíduos e informações entre as
com unidades citadas, a partir do qual m onta-se a rede de emergências.
Sugiro que ele tem raízes e repercussões que vão m uito além do ato
técnico de transmissão de um a mensagem, desenhando um “faro social”
central na vida desses grupos e em sua organização política: as viagens.
Fluxos tradicionais
A tram a dessas emergências sugere, e os depoim entos confirm am , que
parte do percurso coberto pelo órgão indigenista no seu reconhecim en
to de grupos indígenas pelo N ordeste respeitou os cam inhos predefinidos
por um a rede de trocas intergrupais.
[P: Na época do seu avô já viajavam de uma tribo pra autra?\ Já. Ajudando
um ao outro. Pegavam aqueles barcos, tinham aqueles brancos que tinham
os barcos c tinham vezes que tinham contato com aqueles índios e eles
vinham pra essa Petrolândia velha. Atravessavam pra Rodeias, pros Tuxá e
iam fazê aquelas festas. Quando não, pegavam o barco aqui em Petrolândia
e subiam e levavam pra fazê aquelas festas. Aí foi quando o negócio da
CHESF acabou... [referindo-se às barragens do rio São Francisco] (Antônio
Moreno, “capitão” Pankararu).
A VIAGEM DA VOLTA
i * id.ule de Rodelas, e “os rodelas”, atuais Tuxá, eram um a referência
I" im .m cntc de suas viagens antes da construção das usinas hidroelétricas
que bloquearam o canal desse fluxo de pessoas. Os Pankararú m anti
nham contatos tam bém com outros grupos, de outros pontos do São
I i.mcisco, com o os Fulni-ô e, m enos freqüentem ente, os K am biwá,
i ii.idos sobre convites recíprocos para a realização de Toré. Sua relação
Mim os Pankararé e com os Jeripancó era ainda mais estreita, no caso
dos primeiros, em função da m em ória de um a origem com um , no caso
dos segundos, porque estes seriam um a parte desgarrada do Brejo dos
Padres, fruto dessas v gens de fiiga, precisam ente no m om ento de mai-
i it expropriaçao das terras do antigo aldeam ento de Brejo dos Padres.
Isso aconteceu durante uma revolta muito violenta, que ocorreu em
Pankararú na época de um Cavalcanti. Os índios corriam à procura de um
lugar onde pudessem viver mais tranqüilos. O índio José Carapina, que
veio de Pankararú, ao chegar no Sugar, onde é hoje a aldeia Jeripancó, pediu
o apoio a um proprietáriof...]. Depois que o Zc Carapina já estava aqui,
ainda na época da rev ta em Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar
os parentes aqui no Ouricuri, e Zé Carapina deu apoio pra eles. Vieram
primeiro o Manuel Carapina, primo do meu avô, chefe de família, trazia
até filho. Depois chegou João Porsena, de Palmeira dos índios e a esposa
dclc era de Pankararú, era da família Jacinto [..,] (Gcncsio Miranda da
Silva, cacique Jeripancó, depoimento transcrito em Brito 1993).
A VIAGEM DA VOLTA
dessa “com unidade” que as viagens constituem , para além de sua dis
persão c fragm entação.
A ÁRVORE PANKARARU
“quebra dc produtividade, desordens nos trabalhos religiosos etc.”. O
problem a, que já havia saído do controle dos missionários, c com unica
do ao Rei, que por sua vez escreve para os governadores de Pernam buco
e Bahia proibindo que tais índios sejam recebidos em aldeias que não as
suas ou em casas de moradores (Barbalho 1985: vol. 6).
O G o v e rn a d o r de ín d io s recém -em p o ssad o em 1722 A n tô n io
D om ingues Cam arão, em sua prim eira correspondência endereçada ao
Rei, faz as mesm as queixas sobre os “índios soldados” daquele terço
que, por serem “inobedientes, crim inosos e m al procedidos”, estariam
“derram ados” por todo o Pernam buco e Paraíba, sendo “m ui dificultoso
o sossega-los”. Por isso pedia:
[...] que publiquem Bandos por todas as freguesias de sua jurisdição para
que os capitães-mores delas tenham vigilância em não consentirem índios
do meu terço, ou das aldeias a que a mim estão subordinadas em suas
freguesias par mais de oito dias, sem ordem de seus cabos por escrito e
passados estes os mandem prender e os remetam para a cadeia da praça para
me serem entregues, e pode-los castigar para exemplos dos aldeados que são
os prontos para o serviço de V. Mj. E a mesina diligência se possa fazer com
os terços dos paulistas, que sempre se estão inrromecendo e chamando-os a
si para lhas assentarem praça, e assim há pouca obediência porque queren
do-os castigar por algum malefício se acolhem ao dito terço paulista; e c só
nessa forma se poderão conservar com sossego para estarem hábeis para tudo
que se oferecer ao real serviço de V. Mj.” (Barbalho 1985, vol. 8: 1067).
A VIAGEM DA VOLTA
ii |.ii iii i i nviu .‘is aldeias de origem. Q uase cinqüenta anos depois a
mi. tu i uiitiiuiava conflituosa nas m argens do São Francisco, onde
nu i ni 1772 as duas capitanias se enfrentariam em função da
nli|i ,i Missão dc Rodelas. (BarbalKo 1985, vol. 8: 1416),
u m o. |mi esse caráter dc resistência à dom inação, tais fugas apresen-
i.M m us gi.uule am bigüidade, como aponta John M onteiro (1994).
iIIh1 1 i|iii‘ tcl.iiiva a uni o u tro contexto, a análise desse au tor cham a
<11111,111 i,unhem para o fato de as fugas m uitas vezes servirem como
n . iii o ii i ncgoi iaçíio com os adm inistradores das missões e aldeamentos,
ji qifi ni.iviS delas os índios podiam se engajar em outras adm inistra-
t,iu i i|iu se mnsiiasscm mais brandas ou “legítimas”, segundo um pa-
ili ti 11 a ilu li ■ido na própria relação entre dom inador e dom inado. Arra-
■i d. ilgim* di poim enios docum entados em inventários ou processos
jiidn cto, M onieiio u lciuilua entre as motivações dessas fugas a recusa
tin . i i i i i .ms |u iileuiis do antigo senhor, a littsca dc parceiras para
i i um nins em oniias itlilet.ci, a tei usa em ai eitai um novo dono impos-
ni pnt u nd t i io iii11 som nin m di exemplos em que o fugido, cm lugar
d> n< o o itilm u o um no a vida nos atdeainenios, procurava m elhorar
o i i.I i i o o i l i « Ni s s i su itid o . i.us fugas serviram para reduzir as
*o nu u n i, i o i ii,iii si uhoi/cK i.ivo e para realizar urna redistri-
I .tit tu «I. io iô di nina, j,l ipn i Ias at aliaram sendo capitalizadas por
,l| uh i iiluiim in oi Inih s, que ionsc|',niram reverter cm seu benefício
u o it ímiiia |ii 111 in ial di icsiuiunia ao sistema dc trabalho forçado.
I Io i i o ilo s ili li mu mos ,i>, margens do São Francisco, a ambigüidade
,/i/t in p s m n icssa lio que cia revela não apenas do sistem a de
ildi mu mos c dc sua possível crise, mas tam bém de um determ inado
p.idi.in de mobilidade daquelas populações étnicas. Se esse padrão pode
si i Imsi ado em turmas culturais nômades anteriores aos aldeamentos, ele
i eiiainenie lambem corresponde a um dos efeiros específicos da dinâmi-
i a di leitiiorialização dos próprios aldeamentos, quando estes, a fim de
m asim i/ar sua administração, juntavam e repartiam grupos de diferentes
origens, criando, com isso, laços entre aquilo que os missionários e ou-
iins adm inistradores concebiam como unidades adm inistrativas estan
que.. ( laracterística que seria ampliada pela estratégia da “m istura”15 ope-
iiiiin-rlc-obra compulsória, na forma do escravo indígena, mas com altos custos militares
i' lima grande dispersão da população que conseguia resistir. Depois a estratégia da
i unversão tam bém veio a exercer a função de liberar terras por m eio da reunião da
A állVORE PANKARARÚ
rada pela “política das reuniões”. Essa política surgiu depois da elimina
ção do poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos, da trans
formação dos aldeamentos em vilas, dos missionários em párocos (1758),
do incentivo oficial aos casam entos mistos entre portugueses e índios
(1775) (H o o rn a ert 1992) e sob o argum ento de que em vários dos
aldeam entos restava apenas um pequeno núm ero de sobreviventes. A
“política das reuniões” consistia cm extínguir os aldeamentos considera
dos subpovoados, para que sua população fosse reagrupada em outros
mais numerosos, acelerando tanto o processo de “m istura” e, portanto,
de descatacterização étnica daquela população, quanto à liberação de novas
terras. O resultado foi a ampliação do caráter pluriétnico dessas organiza
ções territoriais.
Esse caráter pluriétnico dos aldeam entos e missões cham a atenção,
portanto, para razões dessas “fugas” que não eram aparentes aos missi
onários e adm inistradores. R eunindo um a grande variedade de grupos
e, em m uitos casos, separando-os de suas m etades, alocadas ju n to a
outros grupos, a política das “reuniões” em lugar de levar à “m istura”
definitiva daquela população, hom ogeneizada e isolada em territórios
adm inistrados, é reconvertida, pela m obilidade indígena, em um a rede
de referências étnicas sobtepostas. Essa hipótese é reforçada pela ob
servação de que, ao contrário dos casos relatados por M onteiro para
São Paulo, nos aldeam entos do São Francisco tais fugas não eram indi
viduais, tam pouco sc constituíam como ações em massa. Segundo os
relatos, sua escala parece ter sido familiar. Assim, a relevância de tais
“fugas” para nossa interpretação está na sugestão de como elas desenha
ram circuitos de troca de hom ens e inform ação (fatual e cultural) entre
territórios poliétnicos.
Lideranças peregrinas
Se nas páginas anteriores buscou-se apresentar utn esboço do circuito
de trocas ancestrais que orienta o fluxo de populações e, mais recente
m ente, o próprio circuito das emergências, nesse últim o tópico fare-
A VIAGEM DA VOLTA
mos referência a um outro gênero de viagem. As viagens de lideranças
dessas com unidades às capitais do estado e até mesmo ao Rio dc Janei
ro cm busca dos direitos, resposta ao últim o m om ento das políticas de
expropriação territorial, que levou tam bém à extensão oficial dos aldea-
m entos. Essas viagens passam a ser um a m arca da lu ta indígena do
período com preendido entre o últim o quarto do século XIX e o prim ei
ro do século XX, servindo tam bém com o m odelo a partir do qual con-
formar-se-ão as alterações nos arranjos de autoridade internos àqueles
grupos depois do advento do SPI na região.
O século XIX parece assistir a passagem dos pedidos de missionári
os em favor dos índios para pedidos dos índios em seu próprio nom e,
por meio de petições ao im perador o u das viagens que realizavam a fim
de vê-lo pessoalmente. A viagem do Im perador à região em m eados do
sécuLo teria produzido o efeito de dar realidade à figura m ítica que lhes
era apresentada com o um grande pai (D antas e outros 1992). C om o
lem bra Revel (1989), a itinerância do rei não é novidade, fazendo parte,
desde a Alta Idade M édia, do repertório de recursos que o soberano
tem para conhecer o reino e se fazer conhecido p a r ele. As viagens
soberanas serviam para que o rei reafirmasse seus dom ínios periodica
m ente, por meio dn consum o local de seus produtos. No caso de Pedro
II, depois da recente Lei de Terras, tornava-se im portante sua presença
p o t toda parte, arbitrando conflitos, regularizando situações de fato,
pacificando o espaço nacional e se fazendo necessário aos seus súditos:
“Q u a n d o se desloca, o rei delim ita o seu território. Faz o seu reino
existir e tom a posse dele” (Revel 1989).
N o entanto, fazendo-se presente, o podet soberano tam bém m ostrou-
se acessível, abrindo a possibilidade de ser buscado. C o m o m esm o
objetivo de tom ar posse de seus territórios, índios passam a em preender
viagens ao Rio de Janeiro, com um a freqüência grande o bastante para
fazer necessário ao governo central enviar circulares às províncias deter
m inando que fossem proibidas tais viagens (D antas e outros 1992). Ape
sar desta tentativa, parecia ter sido instaurado um padrão, ou mesmo,
poderíam os dizer, um a “tradição”. As com unidades indígenas passam a
ver nas viagens aos centros de autoridade, capazes de conectá-las aos
poderes extralocais, o único recurso para a conquista ou garantia de seus
dom ínios territoriais. M as só excepcionalmente essas viagens ganhavam
algum tipo dc regisrro docum ental, com o as dos X ukuru-K ariri no início
do século XIX, dos Xocó c X ucuru nas últim as décadas desse mesmo
século, e as novas viagens conjuntas de Xocó e K ariri-Xocó enrre as
A VIAGEM DA VOLTA
emerge, mas dão um a m edida do quanto de teatral a representação polí-
lica indígena (como qualquer outra) tem de respeitar. D a mesma for
ma, a participação nas viagens implica todo um imaginário acerca dos
poderes, dos perigos (emboscadas, fome, acidentes) e dos encantos de
um deslocam ento que leva da periferia ao centro, do anonim ato ao
poder, da carestia à abundância. Nas narrarivas de João Binga, atual
cacique Pankararu, de Q u itéria Binga, m aior liderança peregrina em
atuação do Brejo dos Padres16, o u de outras lideranças emergeutes, as
narrativas sobre aprendizado p olítico, sobre as disputas faccionais c
conquistas de “proteção”, assistência, verbas e cargos na FU N A I, estão
invariavelm ente mescladas com narrativas sobre viagens. Viaja-se para
aprender, para acum ular, para mediar, para denunciar ou para esclare
cer calúnias. Viaja-se muiras vezes para dançar Toré em escolas públi
cas, no saguão do palácio do governo em Recife ou na F U N A I em
Brasília, com o form a de fazer sua facção visível e para conquistar pe
quenas benesses. Esse im aginário transform a a viagem tanto em fonre
de prestígio, q u an to em fonte de desconfianças; de q u alquer form a,
parecem apenas reforçar sua inevitabilidade.
Na [minha] época o pedido era sempre a terra, expulsar os posseiros pagan
do seus direitos [...] Mas foi passando o tempo e, no fim, eles quebraram os
marcos divisórios, deram tiros pra cima, fizeram o diabo lá e nós viajando...
Uma hora cra pra ir a Brasília, “Não tem”, aí nós voltava só com o dinheiro
da passagem... Eles mandava nós comê num hotelzinho e o índio ate se
aliciava, só ia pra )á pra encher a barriga. Quando não ia pra o Recife ele
ficava doidinho pra ir de novo, aí chegava lá, “comida boa”, porque aqui ele
só comia esse feijãozinho com farinha... Ah, comia pão, sopa, cuscnz com
leite, uma macaxeira com carne... E com isso, o índio que é besra vai se
embelezando e esquece da rerra. Chegava lá e diziam “Tenham paciência
que a terra é sua”, mas nunca enrregou na nossa mão. [...] Ela vai encolhen-
“'Trabalho com informações dos anos de 1954 e 1595 e, em função dos faccionalisnmos
por que passam os Pankararu, essas caracterizações podem e provavelm ente estão
desatualizadas. Já no início de 1998, tomei conhecimento que a repartição entre as seções
norte e centro da Arca Pankararu, com qoe trabalho no capítulo três de m inha dissertação
(Arruei 1996: 126-78} haviam levado à repartição formal da área indígena, dando
origem à área Entre-Serras Canabrava Pankararu. A Enrre-Serras Canabrava declarou-se
independente sob a liderança dc João Tomás (que m orreu alguns meses depois de ter
sido declarado cacique) e hoje reivindica a demarcação independente de suas terras, além
do seu próprio posto indígena.
A VIAGEM DA VOLTA
i|iur saber aqueles passos da dança do índio”, tom ando para isso, como
parâm etro de avaliação das performances, o Toré dos Fulni-ô, conside-
i.ido “o prim itivo [.„], o verdadeiro Toré” (depoim ento de R. D. C ar
neiro citado por G rünew ald 1993).
( ) Toré, “brincadeira de índio” o u de “caboclo”, com o os próprios
indígenas o descrevem, consisre basicamente em um a dança coletiva de
um núm ero relativam ente indefinido de participantes, que apresentam -
',e cm parte pintados de branco, segundo m otivos gráficos m uito sim
ples, e em parte (nesse caso, só homens) vestidos de Praiá. O Praiá é
um conjunto de duas peças, máscara e saia, tecido com fibras de croá
(planta da fam ília das brom élias) que encobre absoluta e necessaria
m ente a idenridade do dançarino, que então incorpora um Encantado.
Por sua vez, os Encantados são os espíritos de índios que não m orre
ram, mas abandonaram voluntariam ente o m undo por “encantam ento”,
passando a com por o panteão virtualm ente indeterm inado de espíritos
protetores de cada grupo. Nesse caso, a idéia de incorporação deve ser
distinguida da “incorporação” na um banda o u em gêneros dc culto aos
m ortos, que os Pankararu em geral recusam, atribuindo-a aos “negros” .
A dança é regida por um a m úsica fortem ente com passada, o Toante,
cantada por apenas um “cantador” ou “cantadora” e que encontra res
postas periódicas nos gritos uníssonos e ritm ados do grupo de bailari
nos. E possível que o que passou a ser conhecido p o r Toré originalm en
te não constituísse um ritual autônom o, sendo apenas um a parte recor
rente em outros rituais e, com certeza, não idêntico em todos os grupos
que o possuíam . Mas foi essa realidade mais im ediatam ente identificável,
passível de ser isolada e ro tu la d a , q u e assu m iu o lu g ar de m arca
identificadora, prim eiro para o indigenism o, depois para os próprios
grupos indígenas, tornando-se assim símbolo de indianidade.
Se, por um lado, a existência dos grupos e de um a antiga tradição
comum a todos na form a do Toré é pensada com o realidade indiscutível,
por ou tro , R aim undo D antas C arneiro tem m u ita clareza do fato de
estar instituindo um a espécie de rito de passagem, que nada tem a ver
com a verificação da legitim idade dos grupos em ergentes, já que os
reconhecia com o “rem anescentes” e não com o os próprios “p rim iti
vos”. Para aquele inspetor, o Toré passa a funcionat não como expres
são au têntica, mas com o expressão obrigatória, que se investe de um
caráter educativo, cie próprio instituindo um a autenticidade, de m odo
hom ólogo às práticas políticas que pretendem , p o r meio de um proces
so de conscientização, transform ar a “classe em si” em uma “classe para
A VIAGEM DA VOLTA
toante, a pessoa vai suspendê diferente, não suspende como esse daqui, pra
ter modificação. [P: Quer dizer que os Pankararé não sabiamfazer isso?} Não
sabiam, foi na época que eu era moleque, tinha uns sete pra oito anos
11947-1948], c que fui eu rnais meu pai f...] meu irmão. Mas ele já tinha
ido mais vezes lá. Foi lá pra representa de como era pra fazer as festas, pros
toantes serem diferentes. Lá tem parente da gente também, porque a
família da minha mãe tem família lá também. [P; A familia da sua mãe veio
de lá oufoi pra láT\ Foi pra lá. A família dos Antônio Vieira tem lá tambe'm.
fP: Eaqui não teve nenhuma relação com os Tuxá?} Teve também, mas como
convite, porque as festas deles eles já faziam. Faziam convite ptos daqui
mandá uma parte de apresentação pra lá e de lá praqui. [...] nessa época eu
não era nascido ainda não. Eles já tinham aqueles contatos (Antônio More
no, “capitão” Pankararu).
a Arv o r e pa n ka r a r u
gativas instituídas pelo estatuto jurídico diferenciado de tutelados do
G overno Federal.
Assim é que, décadas após João M oreno ter ensinado o T oré aos
Pankararé, um a segunda geração de lideranças peregrinas volta a auxiliá-
los, agora na sua realização, tornada instrum ento de luta. O acirram en
to do seu conflito com autoridades locais na década de 1960 levou os
Pankararé a um a retom ada da possibilidade de terem o reconhecim en
to com o remanescentes indígenas. Para isso, suas novas lideranças in
tensificaram o intercâm bio com os Pankararu, com o form a de “fortale
cer o ritu a l”, e passaram a “levantar” novos terreiros, retom aram os
Praiá, com puseram novos toantes, edificaram um Poró e passaram a
realizar o Toré mais freqüentem ente. O term o usado desde então para
se referirem ao que estava acontecendo era o de “levantar aldeia” (Soa
res 1977), em um a d u p la referência ao que concebiam com o um a
revivescência religiosa e como um nascim ento político.
Em resposta a esse m ovim ento, a repressão local foi canalizada para
seus signos de indianidade, levando-os, sob um a situação de especial
violência, a viajar em busca de apoio mais efetivo no posto indígena
Pankararu. D epois de ouvi-los, o encarregado daquele posto cham ou o
então pajé do grupo João Tomás, sugerindo que ele resolvesse o caso.
Após um rápido impasse em que o pajé queria que o chefe do Posto lhe
desse um a autorização por escrito para ir até Paulo Afonso (BA), recu
sada pelo encarregado, ele acabou se decidindo por viajar por conta
própria, para o que reuniu então 15 jovens Pankararu indo em direção
à cidade de G lória (BA), onde procurou o delegado. A presentando-se
com o pajé dos Pankararu, pediu autorização para visitar os parentes
Pankararé no Brejo do Burgo.
Eu quero falar com o senhor porque como a gente passa muito rempo sem
ver os parentes, quando a gente chega tem que usar qualquer uma alegria,
uma brincadeira pra gente brincar e tal. E a presença que a gente tem. que
fazer quando encontra um parente com o outro. Tem que rer uma diversão
igualmente como vocês branco (JoãoTomás, ex-cacique Pankararu).
A VIAGEM DA VOLTA
N ovam ente o delegado não fez qualquer resistência e escreveu a au-
lori/.ação, que João Tomás colocou no bolso, partindo em seguida para
o Brejo do Burgo, C hegando lá no meio da tarde, cham ou a com unida
de para “brincar”: “Tava todo m undo m uito tem po sem dançá, aí eles
laçaram o pé no T oré”. Q u a n d o já era alta noite, um rapaz chegou
assustado com unicando que o delegado c o prefeito estavam chegando
com cinco soldados para acabar com a brincadeira. João Tomás pediu
então que parassem o Toré e os colocou em form ação, lado a lado,
enquanto ele mesm o seguia para a entrada do terreiro a fim de esperar
a chegada das autoridades e dos soldados. A o chegarem , o prefeito
perguntou quem era o João Tomás e quem tinha autorizado a realização
do Toré. João Tomás se apresentou e respondeu que a autorização não
era de ninguém , ele é que havia autorizado e que podia fazê-lo porque
era índio, estava no meio dos índios e “os índios quando se encontram
uns com os outros têm que dançar o Toré, porque não têm outra diver
são, p o rq u e não são brancos, não são civilizados, e a sua dança era
aquela m esmo”. O prefeito pensou um pouco e pediu para que o João
Tomás suspendesse o Toré até que ele se entendesse com o delegado
regional do órgão indigenista, em Recife.
O Toré estava sendo realizado no terreiro levantado em frente à casa
de um a das lideranças e, de m adrugada, as roças próxim as ao terreiro,
que estavam sendo d isp u tad as pelo irm ão do prefeito, am anhecem
destruídas, Ao tom ar conhecim ento do fato, João Tomás se dirigiu a
Paulo Afonso para pedir a ajuda do m ajor R eni18, que conseguiu res
ponsabilizar a família do prefeito pela destruição das roças e obrigá-la a
pagar os prejuízos causados. V itorioso e reconhecido pelos Pankararé,
joão Tomás volta aos Pankararú. Dias depois, alguns Pankararé procu
rarão novam ente João Tomás, agora para avisá-lo das ameaças do pre
feito e do delegado à sua pessoa e para aconselhá-lo a não mais voltar ao
Raso da C atarina, pois essas autoridades haviam fincado um m oerão
uo meio da com unidade do Brejo do Burgo anunciando que ele serviria
'* Para este final de década acumulam-se referências sobre a atuação de um delegado ou
m ilitar do exército situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemático aos
Pankararú. A grafia de seu nome, no entanto, variou bastante de acordo com os infor
mantes, sendo mesmo difícil avaliar sc todos os relatos diziam respeito ao mesmo
personagem. Assim, o major do exército Reni talvez seja o mesmo delegado de polícia de
Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. Não foi possível, infelizmente, apurar a identi
dade c filiação institucional precisa dcssa(s) personagcm(ns).
A ÁRVORt PANKARARÚ
para acorrentar o João Tomás, caso ele aparecesse novam ente. N o dia
seguinte, ele volta a procurar o m ajor Reni em Paulo Afonso, pedindo
que ele lhe acompanhasse 110 seu retorno ao Brejo do Burgo. O m ajor
destaca dois soldados e um sargento para acom panhá-lo, este últim o
arm ado tam bém de m áquina fotográfica para registrar o Toré. Ao che
garem na com unidade, bem cedo, eles arrancam o moerao e passam a
organizar o Toré, que dura todo o dia.
D e m adrugada, depois de João Tomas já ter ido em bora, o prefeito
chega com a polícia e leva preso o dono do terreiro onde havia se realiza
do o Toré. Ao chegar de volta a Paulo Afonso, João Tomás fica sabendo
da prisão e pede nova autorização ao major Reni para que ele fosse soltar
o rapaz. EIc volta acom panhado de um cabo e um sargento e consegue
interceptar o carro do prefeito, com o delegado, soldados e o preso ainda
na estrada. Tomam-lhes o preso e exigem que o prefeito e o delegado os
acom panhem até o quartel do exército em Paulo Afonso. Lá o m ajor
Reni lhes passa um a descom postura, lhes cham a dc “cachorros”, lhes
ameaça fisicamente e os faz correr a pé do quartel, na presença do João
Tomás. Em resposta, o delegado e o prefeito abrem processo contra o
m ajor Reni na secretaria de polícia de Salvador, rapidam ente arquivado.
Mas, no plano local, o incidente resultou em um a ampla visibilidade do
grupo Pankararé, im pondo sua identidade indígena à população locai e ao
próprio órgão indigenista, que apenas mais tarde interviria na situação,
dando inicio ao processo de reconhecim ento do grupo.
Depois de ter alcançado notoriedade, João Tomás continuou atuando
com o dissem inador do cam po de ação indigenista, sem necessitar dos
m esm os expedientes m ilitares. E ntre os K am biwá e os K apinawá foi
necessário apenas apresentar-se às autoridades locais respaldando a pre
tensão daqueles grupos ao reconhecim ento como “remanescentes”. No
prim eiro caso, em que já existia um a história de auxílios desde a época
do Pe. Alfredo D âm aso, a ajuda agora, na década de 1970, já não depen
dia de um m ediador não-indígena e o próprio João Tomás apresenta-se
ao delegado local, que na época reprim ia o Torc Kambiwá, e o faz com
preender a possibilidade de repetir a situação vivida em G lória. N o
segundo caso, essa posição de autoridade na representação dos “direi
tos” indígenas fica mais evidente. Dessa vez é o próprio João Tomás que
se vê procurado por m ediadores, um grupo de freiras que atuava junto
aos Kambiwá para em prestar legitim idade ao grupo num comício que
seria realizado em praça pública, no m unicípio de Bníque, Em meio aos
pronunciam entos de autoridades locais, João Tomás é chamado a subir
A VIAGEM DA VOLTA
.iii palanque para se p ro n u n ciar sobre a questão da possível dem arca-
(,.io dc um a área indígena no m unicípio. Vendo-se em um a situação
■vi ternam ente delicada e que ele próprio avaliava como perigosa, assu
me um to m apaziguador e defende um diálogo entre fazendeiros e
índios que levasse a um acordo amigável sobre os limites da provável
.oca indígena, ganhando a sim patia do prefeito locai ao m esm o tem po
que confirm ava a existência dos direitos do grupo. Poucos anos de
pois, a FU N A I com eçaria a intervir tim id am en te no conflito através
de ingerências jun to à prefeitura local e, em 1980, enviaria unia an tro
póloga ao local p a ra a “d etecção da id e n tid a d e é tn ic a ” do g ru p o
(Sampaio 1993).
Nos dois casos sua atuação perm itiu transferir legitim idade do Tron-
111 Velho Pankararu para as Pontas de Ram a indígena, alem dc increm entar
seu próprio capital simbólico com o “levantador de aldeia”. João Tomás,
i iimo pajé Pankararu, mas princip alm en te com o liderança peregrina
im buída da missão não só da busca de direitos, mas tam bém do seu
anúncio e da sua transmissão, legitim ado por um a ordem de exceção,
para a q u a l a tu te la ab ria e n tã o , assum e ele p ró p rio o p ap e l de
dissem inador do campo de ação indigenisca:
o Fulni-ô é um tribo muito velha igual aqui a nossa. Ramo daqui é Pankararé
e Kambiwá, quer dizer, já existia mas Foi fundada por gente daqui. Kambiwá
já tinha a tradição deles, mas pra erguer foi gente daqui pra lá. Pankararé é
a mesma coisa, jl tinha a tradição deles mas teve que ir gente daqui. Esse
João Tomás mesmo daqui teve em todas, Se é pra levantar uma aldeia ele
(evantá direitinho. Os posseiros querem prendê ele, eles quizer.im amarra
ele lá num tronco, mas nada, ele gosta de levantá uma aldeia (João de
Páscoa, ex-pajé Pankararu).
A árvore Pankararu
A ÁRVORE PANKARARU
Rede de relações dos grupos indígenas do Médio e Baixo São Francisco
(em ordem cronológica de aparecimento)
1. Fulni-ô 1 3. Xocó
2. Pankararú 14 . Wassu-Cocal
3. Xukuru-Kariri 15.Tingui-B otó
4. Kambiwá 16 . Kapinawá
5. Trucá 1 7 . Karapotó
6. Massacará 1 8. Geripankó
7. Tuxá 19 . Tuxá de Inajá
8. Atikum 20. Xukuru-Kariri de
9. Kariri-Xocó Quixaba
10 . Xucuru 22. Kantaruré
1 1 . Kiriri 24. Kalancó
1 2 . Pankararé
um a descrição dos fluxos e da m ecânica para chegarmos à poética das
emergências, isto é, às categorias que perm item com preender sim ulta
neam ente a unidade e a variedade desses grupos, tom ando como objeto
não o conjunto de todas as emergências catalogáveis, mas o discurso
que as viabiliza, poderíam os dizer, o discurso da etnicidade com o p rin
cípio de eng en d ram en to dos significados que se erguem a p artir do
sistema de m etáforas, o não aleatório da invenção cultural.
O tronco Pankararu
O sistema de metáforas que descreve essas concentrações, dispersões e
cristalizações étnicas organiza-se segundo o par Troncos Velhos/Pontas
de Rama, par que traduz para esses grupos a distância entre eles e seus
antepassados, ou entre grupos mais antigos e mais novos, tanto no que
diz respeito à aparência física quanto às “tradições”. Solução classificatória
para os fenômenos de natureza identitária da “m istura”, esse par de cate
gorias perm ite considerar como parentes grupos política c territorialm ente
distintos, tendo por referência ancestrais com uns (reais ou imaginários)
de um a form a que pode ampliar-se até incluir todos os “índios”, por
oposição a todos os “civilizados”, “brancos” o u “brasileiros”. A oposi
ção, continuidade e com plem entaridade entre “troncos” e “pontas”, que
marca tanto a relação entre gerações e famílias dentro da aldeia Pankararu,
quanto entre os Pankararu e outros grupos, serve como um a form a de
pensar o tem po e seus efeitos segundo um jogo entre a imagem de laços
naturais e experiências em inentem ente históricas. O par Troncos/Pontas
nao implica um sistema fixo de relações hierárquicas, mas opera como
um a espécie de shifter Qakobson s/d), cujo significado depende do con
texto de enunciação. Esse par nao nom eia pessoas ou grupos tom ados
isoladamente, mas os introduz em um sistema de relações que estabelece
a distância com relação a um ideal de “índio p u ro ”. Assim, os Pankararu
podem ser “tronco velho” com relação aos K antaruré ou aos Jeripancó,
que se constituíram como seus “enxames”, mas já são “ponta de rama”
com relação aos Kayapó ou Xavante, por exemplo, com quem travam
relações durante suas viagens à Brasília. N o contexto do Brejo dos Pa
dres, os grupos que vieram a se com binar no com posto hoje designado
como Pankararu seriam troncos velhos com relação a este últim o, consi
derado como ponta de rama daqueles.
Segundo o levantam ento realizado p o r H o h en th al (1960), as notíci
as mais antigas do etnônim o Pankararu (Pancararús ou Pancarús) são
de 1702, surgindo nos relatórios de um a das M issões das ilhas do São
A VIAGEM DA VOLTA
Se, no passado, diferentes grupos puderam ser reunidos num mes
mo território com o estratégia de sobrevivência, por que não pensar que
linje, tam bém com o estratégia de sobrevivência, um grupo possa dar
oligem a outros, m ultiplicando os territórios indígenas? O riginada do
m tm do anim al, mas intim am ente ligada aos processos de reprodução
vegetal, essa nova m etáfora agrega m obilidade à imagem do “tronco/
pontas", carregada dc um a idéia de expansão e fracionam entos para a
constituição de novas unidades. O “enxam e” é em geral um m ovim ento
<om pulsório, localizado em um tem po entre o histórico e o m ítico que
dos troncos velhos produz pontas de rama. Sua contrapartida contem
porânea é o “levantam ento de aldeias”, m ovim ento voluntário, de cará-
ler p olítico e cu ltu ral, q u e das p o n tas de ram a vai buscar apoio e
ensinam ento nos troncos velhos. C om pletando a sintaxe das em ergên-
t ias e restituindo-lhe seu aspecto dinâm ico e essencialmente político, o
“enxam e” é menos um a categoria classificatória do que o elem ento ati
vo que m ovim enta o conjunto e estabelece seus vínculos, expressando
i.im bém seus efeitos territoriais.
A ÁRVORE PANKARARÚ
O s Kantaruré, por sua vez, afirmam ter origem no deslocamento de
um a jovem Pankararu nas peregrinações religiosas da imagem de N . Sra.
da Saúde, durante as últimas graves secas do final do séc. XIX, casando-se
e estabelecendo família np sopé da Serra da Batida, onde deu origem aos
“caboclos da Batida”, como eram conhecidos. Em 1987, um a das m ulhe
res dessa com unidade é abordada na feira da cidade de Glória por índios
Tuxá que, através de seus traços físicos e de perguntas sobre sua origem,
chegam à conclusão de que ela é índia e lhe recomendam procurar seus
“direitos” junto à FUNAI. A partir de então, a com unidade dos “caboclos
da Batida” entra em contato com os Pankararé, com os Xukuru-Kariri,
com os Pankararu e conseguem que em 1989 a FU NAI envie um a antro
póloga para fazer o primeiro reconhecimento, formalizado apenas em 1998.
O m esm o m ecanism o se reproduz na história de fundação dos re-
cém-surgidos Kalancó, que afirm am ter origem na migração, tam bém
ao fim do século XIX, de um dos filhos de um antigo pajé Pankararu.
Nesse caso, os prim eiros contatos foram realizados em 1998, quando,
p or meio dos Jeripancó, de quem são vizinhos, conseguem atenção da
F U N A I. O órgão indigenista, en tretan to , ainda nao providenciou a
“identificação” do grupo, mas seus pajé e cacique já iniciaram visitas
ao Brejo dos Padres d urante suas principais festividades.
As últim as pontas de rama do tronco Pankararu a serem relacionadas
diferem das anteriores em função de seu caráter controverso, seja este
com relação à autenticidade da afirm ada descendência, seja com rela
ção á legitim idade de tornarem -se um novo enxame. O s Pancaru, iden
tificados e reconhecidos pela FU N A I no final dos anos 1970, afirm am
ter origem n a migração do seu patriarca, ainda vivo, do Brejo dos Pa
dres nos anos 1920. Ele então form ou família e peram bulou pelo serrão
até estabelecer-se, na década de 1950, nas terras atualm ente reivin
dicadas, no m unicípio de Serra do Ram alho (BA). Tendo recorrido à
FU N A I p o r encontrarem -se sob a ameaça de grileiros, foram reconhe
cidos com o “rem anescentes” pelo órgão oficial, mas não com o seus
“descendentes” pelos Pankararu, que por sua vez solicitaram ao órgão
indigenista a correção do erro.
A o u tra situação controvertida merece um a atenção mais dem orada.
Os Pankararu de Real Parque form am um grupo estimado em aproxi
m adam ente 1500 pessoas, que ocupam parte da favela de mesmo norne
no bairro do M orum bi, grande São Paulo. Esse grupo rem origem na
intensificação do fluxo de deslocam entos de trabalhadores do N ordeste
para as grande cidades do Sudeste a p artir d a década de 1940, N a
A VIAGEM DA VOLTA
muioria dos casos, o trabalho se deu nas equipes de desm atam ento da
( Tia. de Luz do Estado e, inicialm ente, era agenciado por “gatos” que
1,1111 buscá-los na própria aldeia, para entregá-los, em lotes, ao “em prei
teiros” das obras. A sucessiva elevação de um desses trabalhadores ao
papel dc “gato” e mais tarde de em preiteiro das obras de desm atam ento
da Cia. de Luz acabou acarretando um fluxo direto e constante entre o
IWejo dos Padres e São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. Em pouco
icm po S lo Paulo tornou-se um a referência para todo o grupo, que m an
tém af filhos e irmãos.
Inicialm ente era um fluxo apenas de hom ens, que safam da área
indígena para trabalhar curtos períodos em São Paulo, como form a de
reequilibrarem o orçam ento dom éstico em ano de seca ou em situações
de em ergência. Sem se integrarem à cidade, voltavam sem pre que as
necessidades im ediatas já tivessem sido cobertas o u quando se anunci
asse um bom inverno, N o en ta n to , a p artir da segunda geração de
Pankararu trabalhadores em São Paulo, que coincidiu aproxim adam en
te com a idade adulta das primeiras gerações de crianças alfaberizadas
pelo posto indígena, as m ulheres intensificam suas viagens e aparente
m ente passam a servir de base para perm anências mais estáveis. A cada
núcleo familiar lá instalado, tornou-se mais fácil e provável que novos
jovens percorressem o m esm o cam inho, fazendo com que essas viagens
assumissem um caráter sistemático e fam iliar.15 O fato de construírem
uma base espacial relativam ente hom ogênea, logrando reproduzir um a
organização política e rirual, d im in u iu os custos m ateriais e afetivos
dessas migrações, p erm itindo um a efetiva reterritorialização.20
''' C om o era um a saída para as famílias numerosas com dificuldade de repartir suas terras
entre os herdeiros, essas viagens quase se tornaram uma fase no ciclo de vida dos jovens
indígenas que lí iam buscar recursos para casar, para com prar novos pedaços dc posse
dentro da área indígena ou recursos para instituírem negócio dentro ou fora da área. É
possível que um hom em engajado nessas viagens, aos cinqüenta anos, quando já começa
a abandoná-las, tenha acumulado um total de até dez anos fora da aldeia, distribuídos em
períodos que vão de seis meses a dois anos.
Jil O primeiro pedido de providências à FUNAI proveniente de Real Parque foi apresen
tado por uma personagem cujo percurso vai de simples trabalhador temporário a pedrei
ro profissional e a dono de um a microempresa de reparos e pinturas. Sua posição atual
lhe perm itiu, além de pleitear "carteirinhas de índio” para os m oradores da lãvela, doar
24 alqueires de sua propriedade para que o grupo tivesse sua própria aldeia c criasse a
associação ‘‘SOS Com unidade Pankararu de São Paulo", cuja função seria a de captar
recursos para o grupo.
A Ar v o r e pa n ka r ar u
D epois cias notícias sobre assassinatos de jovens Pankararú21, o n ú
cleo dc Real Parque ganha grande visibilidade, o que lhe perm ite em an
cipar-se do discurso das lideranças do Brejo e reivindicar a criação de
sua própria aldeia. A idéia, entretanto, não foi bem recebida nem pelas
lideranças do grupo em Pernam buco, nem pela F U N A I22. Estava em
jogo, entre outras coisas, o estatuto das viagens a São Paulo. As reivindi
cações fundiárias e os projetos de desenvolvimento do Brejo dos Padres
freqüentem ente contabilizaram a população de São Paulo com o parte
dos beneficiados, caracterizando sua saída com o um a diáspora. Aquela
nova postura, no entanto, convertia a diáspora em mais um enxame, o
exílio econôm ico em reterritorialização étnica, dando continuidade ao
m ovim ento de fragmentação e expansão da identidade Pankararú que,
nesse caso, contrariava a estratégia política existente no Brejo dos Padres.
21 Em 26 de julho de 1994, o jornal Notícias Populares de São Paulo abria a primeira página
do caderno "Piantão N P ” com a manchete índio eliminado na favela. Fugiu da tribo para
morrer em São Paulo. Ao íado da manchete, era estampada a Foto do corpo ensangüentado
de um índio de vinte anos. O texto explicava que, apesar dc estarem ali porque os grandes
fazendeiros haviam invadido suas terras em Pernambuco, os índios continuavam reali
zando seus rituais e conversando “em sua língua nativa, o latê”. Duas semanas depois, o
jornal Folha de São Paulo dedicava uma página inteira para com entara inusitada existên
cia de um a tribo indígena em pleno M orum bi, tribo que tinha criado uma “rede de
solidariedade” nas suas favelas e que se reunia rodas as semanas sob o com ando do pajé
da favela para rituais deTorc, que era comparado ao candomblé. Uma semana depois, o
assunto teria uma página inteira do jornal Diário de Pernambuco, sob o título Pankararus
que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência urbana, na qual tam bém
se registrava que o assassinato teria sido m atéria do tdejo m a l A qui Agora, do SBT.
22 Depois de um a reunião em 1995, decidiu-se náo aceitar a proposta de um a nova área e
restringir o “reconhecim ento” apenas ã declaração oficial dc que, quando fosse o caso,
determ inadas indivíduos estariam “registrados no posto indígena” da área de origem.
Mais tarde acertou-se que um a liderança do Brejo iria até Brasília para identificar quem
é e quem não é índio, e providenciar os registros de nascimentos,
A VIAGEM DA VOLTA
1 nvantados se m anifesram pela primeira vez aos Pankararu e nos servi-
i.i aqui para estabelecer a hom ologia que as metáforas da em ergência
m.mtêm com a teogonia dos Encantados, da qual apresentarei apenas
um rápido esquema.
( )s Encantados são “índios vivos que se encantaram ”, voluntária ou
involuntariam ente, e p o r isso o culto a eles, com o insistem os Pankararu,
não pode ser confundido com o culto aos m orros, identificado como a
icligião de negros”, A form a desse “encantam ento” só pode ser parcial
m ente n arrada seja p o rq u e co n stitu i um m istério para os p ró p rio s
Pankararu, seja por ser um segredo que não pode ser revelado a estra
nhos. Segundo os Pankararu, o segredo do encantam ento é o núcleo da
própria identidade da aldeia. C ada povo indígena tem seu panteão de
Pncantados, m as com o cada rronco é m arcado p or um a determ inada
iurm a de “encantam ento”, esses Encantados podem ser partilhados du-
i.mte um determ inado tem po por grupos ligados entre si como “pontas
de ram a” de um m esm o tro n c o velho. A tu a lm e n te os E n can tad o s
Pankararu habitam apenas as serras e os serrotes que dem arcam o en-
m rno do Brejo dos Padres. Praticam ente para cada um a dessas form a
ções o u m aciços ro ch o so s, e ste tic a m e n te m u ito im p re ssio n a n te s,
corresponde um Encantado. O contato entre os Pankararu e eles atual
m ente restringe-se aos “sonhos”, d u ran te os quais alguns Pankararu
podem viajar ate os castelos existentes dentro daquelas serras e serrotes.
Os “encantam entos” de “índios vivos” que geraram os atuais Encan-
nulos, no entanto, envolviam as extintas cachoeiras de Paulo Afonso e
de Itaparica. Algumas narrativas contam que o surgim ento dos E ncan
tados e dos próprios Pankararu deve-se ao encantam ento de toda um a
população de índios —um a “tropa” —que teriam se jogado na cachoeira
de Paulo Afonso. Foram esses Encantados, que passaram a hab itar a
cachoeira e que tin h am origem em todas as “nações” antigas, que se
com unicavam por meio do estrondo das águas, prevendo desgraças,
m ortes ou mesmo novos encanram entos. D epois desse encantam ento
coletivo, que dá origem à própria aldeia, pensada como unidade espiri
tual, outros índios, após serem anunciados e passarem pela devida pre
paração, podiam continuar se encantando.
Quando era assim um jovem, como o senhor, e chegava o cacique 011 o pajé
e falava: ‘O senhor vai morrê, pode não ser hoje ou amanhã, mas o senhor
vai morre’, aí nós preparava ele e ia pra nossa cachoeira [...] que acé que os
gringo não vieram e não quebraram, tinha o rastro dos índios na pedra. O
senhor viajava hoje e, quando era amanhã, que passava oito dia, nós tinha
A ÁRVORE PANKARARU
que acendê o fogo num reservado e esperá a sua chegada [...] esperá naque
le ponto, acendê o cachimbo. [...] nós não estamo brincando com espírito
morto como os outros alí, nós tamos trabalhando com os índio, Quando i
com oito dia, a gente esperava aquele camaradinha que se encanto, que é
vivo, é vivo graças a Deus. Quando era com oito dia ele trazia a vida dele
numa semente c nós tamos nessa ilusão, A semente que é pra nós ficá
adorando. Nós adora a semente mais ou menos como adora um santo, ou
mais do que isso. [Então todo encantado foi um índio?] Todo Encantado ê
um índio. [Um índio que se jogou da cachoeira?] Todo Encanrado dessa
aldeia aqui foi-se jogado da cachoeira (Mané Bizoro).
A VIAGEM DA VOLTA
in c b c um a “sem ente”, ela passa a concentrar a sua volta e à volta de
mi.i casa um a órbita ritual mais o u menos extensa e intensa. Prim eiro,
ela passa a concentrar os “particulares” de seu próprio núcleo familiar
i i i i de sua família extensa, dependendo da existência de outros zeladores
n.i mesma família ou em núcleos colaterais. Em seguida, depois de ter
levantado” um o u m ais Praiás para os seus Encantados, ela passa a ter
i.unbcm um “terreiro ” para que esses Praiás dancem , que, por isso,
passa a concentrar tam bém parte dos eventos festivos que se realizam
n.i aldeia. C ada terreiro de pai de Praiá é um ponro de realização de
Ibrós, seja p o r iniciativa p rópria, seja em função das visitas que os
Praiás fazem a to d o o circuito de terreiros em cada festa realizada.
Além disso, cada Praiá deve ser vestido por um hom em , em geral afili
ado ao Encantado correspondente à farda, que deve exercer esse papel
em segredo. Nesse caso tam bém não é qualquer pessoa que pode vestir
o Praiá e o zelador deve escolher essa pessoa, d entro ou fora de sua
l.unília, de acordo com sua reputação m oral. Isso estende a autoridade
do zelador, com o alguém que tam bém é um avaliador do co m p o rta
m ento m oral de outros hom ens.
[O que precisa pra ter um Praiáf] Precisa ele se agradá e se chegá no senhor
c, então, antes dele chcgá, ele trás um coraçãozinho, aquele que tem o
coração, que tem a semente, já cem aquele misteriozinho e, então, ele pede
f...]. Então chega o dia que ele avisa ‘Quero sê levantado’. Ainda tem deles
que vêm de juazeiro, de Serra Negra, que foi acabada em Serra Negra, ainda
tão chegando por aqui. Aí tem que fazê um Praiá pra levanrá ele. Tem que
prepará ele porque se fosse pra todos [...]. O senhor vê que é um ponto
fino, que náo é pra nós todos não, uão é pra todos da aldeia não. É pra uns
c outros não. Porque pra uns que têm aquele mistério, e têm aquele ponto
daquela honestidade, eles não vão procurá não senhor, nem o do lugar.
Aqui foi cinqüenta... cinqüenta... náo sei quanros é que foi cncanrado
(Mané Bizoro).
AÁRVORE PANKARARÚ
depois de terem assistido a destruição de sua m orada nas cachoeiras de
Paulo Afonso pela construção das barragens, os Encantados m igraram
para a cachoeira dc Itaparica, mas recentem ente teriam novam ente as
sistido a um a destruição de sua m orada com a construção de novas
barragens. E x tin tas as cachoeiras, os P a n k araru estão lim ita d o s ao
panteão de E ncantados já existente e àquele universo dos que ainda
podem vir a se manifestar. Isso, no entanto, é considerado insuficiente
para co n tin u a r contem p lan d o a sua expansão dem ográfica. H o je os
Pankararu trabalham no descobrim ento de um novo “segredo”.
A cachoeira era um lugar sagrado onde nós ouvia gritos de índio, cantoria
de índio, berros, gritos, O encanto acabô porque o governo qué assim nó
Eu acho qne se o governo quizesse acabá com os índios dentro de 24
horas ele acabava. Ele não acaba por causa dos direitos humano, por causa
dos direito mundial do índio e do ser Humano, porque senão já tinha
acabado [...]. Olha, essa cachoeira, quando ela zuava, tava perto dela chovê
ou de um índio viajá. E a cachoeira não zuou mais, chove quando qué, sem
ra [...]. Acabou-se o encanto dela. Então esse era todo o lugar sagrado que
agente pediu pra preserva, mas... E a força maior combatendo a menor...
Era uma grande cachoeira, de um grande rio, que agenre ouvia os cantos,
das rribos indígena, vários cantos de tribos indígenas cantando junto que
nem numa festa. Mas hoje em dia não sc vê mais nada... Aquele encanto
acabô (João de Páscoa).
T ransm itir a sem ente para um grupo novo, ensinar o Toré, levantar
um a aldeia, não são metáforas vazias. O “regime dos Encantados” for
nece os referentes culturais dos quais brotam as metáforas da em ergên
cia étnica. A capacidade de guardar em seus “sobrenom es”, m antidos
com zelo e discrição sob a sua designação oficial, um a m ultiplicidade
étnica original é hom óloga à natureza m úlripla das “sementes”. D e cada
um a delas podem ser levantados mais de duas dezenas de Encantados.
“Levantar aldeias” surge com o o correlato direto da prática religiosa e
m ística de “levantar o Praiá”, quando, em am bos os casos, os índios
precisam estabelecer contato com o sobrenatural para descobrir o “se
gredo” do nom e, dos coantes e do “regime particular” que individualiza
seja o Praiá, seja a nova aldeia. O “segredo” é tam bém mais um conector
entre esses dois cam pos da prática político-religiosa, já que é a desco
berta de um determ inado m istério do “encantam ento” o que m arca a
origem de um panreão de E ncantados, assim como a identidade do
povo ao qual esse panteão corresponde. Por outro lado, a perm anenre
A ÁRVORE PANKARARU
m ente de suas ações, mas sim com o resultado de um trabalho, que se
expressa na teced u ra dos seus p ró p rio s “P ra iá ”, nos seus p ró p rio s
"toantes” e suas próprias formas de devoção, isto é, n a seu “segredo”. A
sua singularidade com relação aos “brancos” o u a outros grupos é resul
tado desse trabalho místico e social que os leva do terreno do caboclo
ou do índio indistinto (de natureza jurídica) para o território especifi
cam ente A tikum , Massacará, X ukuru etc.
Deve estar claro que, ao descrever essa correspondência entre o “re
gime dos E ncantados” e as m etáforas da em ergência, nao se supõe a
revelação de um código recôndito ou subjacente à realidade manifesta,
que expressaria um a “m entalidade nativa” ou algo do gênero. Essa cor-
respondência é produzida historicam ente, pela confluência e adaptação
recípro ca en tre o registro mísi ;o-m ítico e a experiência p o lítica e
cognitiva da violência colonial: nm cam po de significados servindo com o
form a de traduzir e reconverter as experiências vividas ao mesmo tem
po em que é adaptado por elas na busca de um a auto-inteligibilidade.
Assim, “ensinar o Toré” e “levantar aldeia” são sim ultaneam ente atos
políticos, coletivos, de invenção cultural e projeção do futuro, tanto
quanto atos místicos, particularizantes, de retom ada do passado. C om o
M auss apontou com relação à prece, o Toré não é u m a unidade indivi
sível, distinta dos fatos que o m anifestam ; ele é apenas o sistema deles.
Ponto de convergência de inúm eros fenôm enos religiosos e políticos, o
Toré assume a form a de um a representação, no sentido teatral e político
do term o, mas tam bém de rito, com o atitude tom ada e ato realizado
diante de coisas sagradas, e de credo, com o expressão de idéias e senti
m entos religiosos.
C om o a prece, o Toré “se dirige à divindade” e pretende influenciá-
la, “consiste em m ovim entos materiais dos quais se esperam resultados
[...] é sem pre n o fundo um instrum ento de ação. M as age exprim indo
idéias, sentim entos que as palavras [ou em nosso caso, as performances]
traduzem para o exterior e substantificam ” (M auss 1979). É com um
qu e o T oré seja apresentado às “au to rid ad es” com a in tenção de as
sensibilizar. Isso porque, na retórica Pankararu, o “governo” é sempre
representado com o um a instância distante, incorpórea, que se m anifes
ta através de enviados, eterna p ro teto ra a quem se dirigem todos os
pedidos c única fonte alternativa de poder capaz de se opor à expropri-
ação e à violência locais. O "governo” assume um aspecto de sagrado
traduzido na frase, freqüentem ente repetida, “abaixo de Deus o gover-
AVJAGEM DA VOLTA
Umã
Gsripancò
Kalaricó
E x -bs clavos
Considerações finais
Tendo percorrido os cam inhos abertos por esses grupos, podem os vol-
rar à pauta proposta no início deste texto, As questões da memória e da
busca dos direitos parecem ser com ponentes fundam entais da caracteri
zação sociológica desses grupos de remanescentes emergentes. A busca dos
direitos surge traduzida nos “fluxos” de hom ens, inform ações e cultura
que parecem marcar os grupos indígenas da região desde registros his
tóricos bastante antigos até o m om ento presente. Esses fluxos, a am bi
güidade das fugas, os territórios poliétnicos, as lideranças peregrinas e
as viagens em geral são expressão da “cultura cm m ovim ento” que ca
racteriza as emergências indígenas. M ovim ento que sempre escapou à
lógica de enquadram ento estatal, mesmo nos m om entos em que pare
cia adequar-se a ele. C om o vimos, a territorialização dos grupos tem
sido subvertida, seja pela circulação entre os tertitórios adm inistrados,
seja pela m ultiplicação étnica de um mesmo gtupo, que assim escapa às
fronteiras estabelecidas e força o Estado a realizar novas territorializações,
contradizendo a sua lógica inicial.
Para isso, com o vimos, “as pessoas, enquanto atores e redes de ato
res, têm de inventar cultura, refletir sobre ela, fazer experiências com
ela, recordá-la (ou arm azená-la de algum a o u tra m aneira), discuti-la,
transm iti-la” (H annerz 1997: 12). Aí então voltam os ao outro p o nto da
paura, a m em ória com o fulcro da identidade. A análise das meráforas
associadas à árvore Pankararu cham a atenção para um m odo específico
de produção e reprodução da m em ória social. Os sobrenomes, a rela
ção contextual entre troncos velhos e pontas de rama, os enxames e a
transmissão da sem ente constituem um sistema m nem ônico dinâm ico,
que lança mão do passado não como lem brança de coisas que não exis
tem mais, mas com o relação ativa com o presente. Eles form am os
“quadros sociais” de um a m em ória que resisre em ser “enquadrada”.
Nesse sentido, o Toré é a síntese dessa forma de funcionam ento de uma
3'’ Sobre represenrações próximas a estas, em um contexto inteiram ente distinto, ver
Oliveira (1988).
A ÁRVORE PANKARARÚ
<.ARLOS GUILHERME DO VALLE
| 281
gual 110 cam po sem ântico da etnicidade, Além disso, quero enfocar o
que p ode ser cham ado de um a experiência da etnicidade pelos T re
m em bé, essa sim a m aneira singular, ainda que processual, não subs
tantiva, de diferenciação étnica.
As situações étnicas Trem em bé são encontradas hoje no m unicípio
de Itarem a, litoral do Ceará, na região conhecida com o Vale do Acaraú,
distando a 270 quilôm etros oeste de Fortaleza. O s Trem em bé habitam
vários lugares desse m unicípio, mas se concenrram em crês situações
distintas: a região litorânea da Almofala, que engloba um conjunto de
localidades ao redor da vila hom ônim a até a m argem esquerda do rio
Aracati-m irim ; a região da Varjota c Tapera na margem direita do mes
mo rio; e as localidades vizinhas de São José e Capim-açu, tam bém co
nhecidas atualm ente com o C órrego do João Pereira, que ficam m ais
para o interior do m unicípio e distantes das outras duas situações.
O s Trem em bé são razoavelmente citados em crônicas, relatos de vi
agem e na hisroriografia "clássica” a respeito da formação histórica do
Ceará. H á docum entação prim ária e de segunda mão sobre eles desde
o período colonial. N o século XVÍÍI, os Trem em bé foram aldeados por
jesuítas {em Tutóia no M aranhão) e por padres seculares, como no caso
em quesrão, do antigo Aldeamento de Almofala, controlado pela Irm an
dade de Nossa Senhora da Conceição. A Missão de T utóia teve um a
cu rta existência, mas a de A lm ofala p erd u ro u até m eados do século
XIX, girando cm torno da religiosidade que envolvia a igreja oitocentista,
atualm ente tom bada pelo Patrim ônio Histórico. O A ldeam ento foi fe
chado pelo governo provincial da mesma form a que outros no Ceará.
Em 1857, suas terras foram doadas para a "residência e subsistência”
dos índios (Livro dc terras da Freguesia da Barta do Acaracú, 1855-57),
o q u e não im pediu que fossem sendo ocupadas por “estranhos” nas
décadas seguintes2.
Q u an to à língua originária dos Trem em bé, os poucos estudos exis
tentes sustentam que esta provinha de um a família lingüística distinta
(Pom peu Sobrinho 1951 e 1955, Seraine 1955, N im uendaju 1981).
N ão é possível afirm ar, p orém , que os versos cantados do torém, a
2 Ver Gomes (1988) e Valle (1992) para um estudo prelim inar de fontes históricas
primárias sobre osTremembé. D entre os estudos históricos sobre os Tremembé, destaco
M etraux (1946), Pom peu Sobrinho (1951), Studart F° (1962 e 1963), N oro (1976)
e Araújo (1981).
A VIAGEM OA VOLTA
Tinça “nativa” ainda m antida, sejam originários dessa língua. A tual
mente, os Trem em bé falam o português3.
Km 1992, a pesquisa populacional, prom ovida pelo G rupo Técnico
K IT) da FU N A I, para identificação e delim itação da área indígena,
i m onerou 2247 pessoas cm 332 famílias indígenas, som ente em parte
da Almofala e na Varjota. Essa população reuniria boa parte, mas não
iudos, dos Trem em bé da A lmofala e todos da Varjota e vila D ucoco,
suo incluindo os do Capim -açuE
’ Sobre o torém, ver Seraine (1955), SES1/INF/FUN ARTE (1976), Novo (1976) e Vallc
(1993a: 334-87). É lima dança particular e não pode scr confundida cnm o toré, ritual
encontrado em vários grupos indígenas do Nordeste brasileiro.
1 Em 1986, alguns Tremembé fizeram seu próprio censo, estim ulados pelos missionários
e pela primeira visita do órgão tutelar. Chegaram à cifra dc 2662 pessoas. O relatório da
FUNAI (1992: 26) afirma que foram contados somente os "índios” vivendo no interior
da área proposta para demarcação.
' Terra do Aldeamento, Terra da Santa ou Terra dos índios são categorias territoriais que
possuem significados étnico-políticos. Definem o território que teria sido doado aos
índios no passado. Têm im portância na reprodução das ideologias étnicas Tremembé,
inclusive no contraste entre índios e “não-índios'', sobretudo na distinção entre os de
dentro e os dc fora do Aldeamento. Ver Valle (1993a: 266-329).
A VIAGEM DA VOLTA
I « n t c i PETI/M useu N acional, 1 9 9 1 ,
m uito da noção elaborada por Oliveira. Ela precisa ser considerada então
em um a perspectiva nada empiricista, que não a vê como unidade social
isolada por meio de critérios dem ográficos e geográficos. As situações
étnicas Tremembé devem ser tratadas a partir do duplo m ovim ento de
definição feito pelo pesquisador e pelos próprios arores sociais. Precisei
entender os recortes e as generalizações elaboradas pelos Tremembé, ten
tando perceber as distinções internas que eles inesmos faziam. Vários
agentes e grupos sociais tentavam igualmente definir ou mascarar diferen
ças e unidades. Essas múltiplas visadas são construções culturais elabora
das por diferentes pontos de vista, partindo do universo de relações sociais
efetivas e de estruturas simbólicas e de significação específicas.
Em 1988, encontrei os Tremembé interagindo com agentes missionári
os e pesquisadores, ainda que sua presença fosse variada em cada caso.
Nos últimos cinqüenta anos, pesquisadores voltados para estudos folclóri
cos c culturais e à procura dos “remanescentes” Tremembé vêm atuando em
Almofala, o que não ocorreu na Varjota ou no Capim-açu. Agentes mis
sionários ou não, de origem institucional distinta, atuam nas duas situações
há poucos anos. Esses agentes e pesquisadores se defrontaram com vários
anseios, demandas e “reivindicações” dos Tremembé, que não consistiam,
porém, em um projeto político mais global a dar unidade às três situações.
Havia formas distintas de organização social e as ideologias étnicas, mesmo
exibindo temas similares, sobretudo quanto à ocupação e controle da terra,
eram construídas por meio de referenciais distintos. Assim, os Tremembé
não puderam ser vistos como um grupo corporado em termos políticos e
daí ter preferido tratá-los como vivendo situações étnicas distintas. A noção
de grupo étnico, conform e Barth (1969: 13), seria inadequada para os
Tremembé, ao menos até o período de m inha pesquisa. Desde 1991, po
rém, fatotes políticos de sentido mais global, associados à construção de
sua “indianidade” (Oliveira 1988) e à sua identificação pela FUNAI, vem
sendo fundamentais para a definição mais restrita de um grupo7.
7 Seis pesquisas ou escudos foram feitos sobre ou entre osTremembé e os regionais desde os
anos 1950, sem contar os inúmeros visitantes, curiosos e “turistas” culturais. Alguns dos
trabalhos tinham interesse étnico e outros não. Ver Seraine (1955), Chaves (1973), Novo
(1976), a equipe do .SESI/INF/FUNARTE (1976), Souza (19S3) e os trabalhos etno-
fotogríficos de Marcos Guilherme. Esses autores tiveram contato estreito com os habitantes
da região, inclusive os Tremembé, passando longos períodos dc estadia ou fazendo visitas
freqüentes, sendo o entrosamento visível em seus texcos. Depois dc mim, houve também a
pesquisa do sociólogo Marcos M essederdaUFBA(1996) e a d e Gerson Oiiveirajr. (1998).
AV1AGEMDAVOITA
I )esenvolvi um a pesquisa com parativa que enfrentou a complexida-
iIr das diferenças entre os Tremembé. U m a abordagem com parativa eta
,i mais apropriada para entender as trajetórias singulares das três situa-
i.nes étnicas, tan to de organização social interna com o sobretudo no
i ontrole e ocupação da terra. Parecia que a questão fundiária tin h a
iclcvância destacada quando as investigava. Se, por um lado, esse fator
■onscguia articular as três situações com o um horizonte problem ático,
por outro, os processos de construção e mobilização étnica me pareci-
un, cada um , para cada caso, idiossincráticos.
A im ofala
BEm 1990, a vila possuía 1525 habitantes, que viviam em 376 residências distribuídas
em poucas ruas. Os dados populacionais foram coJigidos na divisáo da SU CAM (For
taleza, CE),
9 Ver Chaves (1973) e Souza (1983), que enfocaram as atividades econômicas desenvol
vidas na região nos anos 1960 e 1970. H á vários tipos de pesca na região litorânea do
Vale do Acaraú, inclusive em Almofala. H á a pesca de curral, de linha, de m anzuá e a
lagosteira.
A VIAGEM DA VOLTA
i iitham parte, mas se in co tp o raram à rede organizacional centrada no
torém10.
O s toremzeiros e, de m odo geral, os Trem em bé da situação, não se
.miculavam em atividades econômicas com uns. Fossem pescadores ou
agricultores, as relações econôm icas se faziam ju n to de regionais, a
yen te de fora. As diversas m odalidades de pesca eram organizadas por
i ritcrios o cu p acio n ais, as d istin çõ es sociais e h ierárquicas in tern as
incidindo para além da origem étnica. A situação histórica na Almofala
descrevia um quadro concentrado de ocupação de terra que inviabilizava
.iiividades agrícolas coletivas dos Trem embé e tam bém dos “regionais”.
Além disso, havia diferenciação econôm ica intetn a entre os que se dizi-
.1111 ou eram considerados da parte dos índios.
E n c o n tr e i g ra n d e n ú m e ro de p esso as q u e , c o n s id e ra d a s da
mdescendência dos índios, tinham pouco contato com os toremzeiros. Etam
pessoas q u e ta m b é m esta v a m d is ta n c ia d a s de o u tra s fo rm a s de
mobilização social. Ainda assim, contavam elementos semânticos simila
res aos toremzeiros e alguns até se auto-denom inavam índios. Todavia
boa parte da população da Almofala se considerava mesmo descendente
dc índio. Seus discursos, porém , m imizavam os investim entos étnicos
dos toremzeiros, ainda que estabelecessem diferenciação étnica dos habi-
tantes da situação. Acreditavam que os toremzeiros apenas im itavam os
“verdadeiros” índios, os de antigamente, que já se acabaram . D iziam
tam bém que seus pais e avós não eram índios, seja porque fossem de
outra fam ília, seja porque não tivessem nascido e se cr. io na região. A
m aioria dos habitanres da vila e da situação de Alm ofala não queria
reconhecer a presença de índios. Todo discurso envolvendo diferencia
ção étnica se adequava a contextos específicos que podiam ser positivos
ou negativos. Era m u ito com um ouvir com entários positivos sobre a
igreja de Almofala, construída pelos índios, ou de que eles viveram ali
ant.oamente. Esses com entários descortinavam a existência de form as
variadas de discurso, conotando graus distintos de referência étnica.
O s descendentes de índi r formavam certa hom ogeneidade social. Em
1991, boa parte deles tinha nascido e se criado na Almofala e tencionava
ascender socialmente. N ão se distinguiam dos Tremembé p o t comporta-
E0 Em 1991, entrevistei 17 pessoa» que eram ou tinham sido toremzeiros, sendo portanto
um grupo pequeno de participantes. C ontudo sua rede soctaf e étnica era m uito mais
ampla.
A VIAGEM DA VOLTA
originalidade na politização da memória, dos discursos e de todo o cam
po semântico no qual sc construía ou minimizava a etnicidade. Desse
modo, as fronteiras étnicas podiam emergir bem conflitivas na Almofala.
Seus habitantes passaram a se portar de form a mais acintosa, quando os
Trem em bé passaram a reivindicar o direito à Terra do Aldeamento de
modo mais político e público. Esses posicionamentos se evidenciavam de
modo antagônico, a minimização étnica conseguindo despontar publica
m ente e a afirm ação étnica aparecendo em níveis m ais privados. O s
modos de diferenciação descrevem o movimento e o caráter situacional
das fronteiras étnicas (Barth 1969).
A organização étnico-política dos Tremembé de Almofala tam bém era
difícil. O s toremzeiros tinham sérios problemas para dar continuidade a
seus investimentos étnicos. Com o era no torêm que os Tremembé subli
nhavam publicam ente sua diferenciação, os toremzeiros tentavam atrair
seus parentes mais diretos para sua organização ritual, especialmente os
íilhos e netos. Havia, porém, razoável relutância da parre deles. N o entan
to, a mobilização do torém era a que vinha se m antendo há mais tem po e
num a dinâm ica mais política, ainda que tal aspecto seja mais recente e
decorrente das relações dos toremzeiros com os missionários e, mais tarde,
com a FU N A I. A figura política do cacique, aliás, foi tam bém um a desco
berta dos anos 1980. Além da dança, conduziram poucas ourras táticas de
mobilização social e política. O correram protestos individuais contra a
ocupação da terra, mas foram atitudes isoladas. Pata completar, a maioria
das pessoas que se identificava positivamente como sendo da parte ou da
indescendênáa dos índios se colocava norm alm ente à distância da mobilização
étnica do torém. N ão queriam participar da dança, o que impedia que
unia massa populacional mais consistente pudesse ser vista como unidade
coesa e com finalidades políticas mais definidas. Por seu lado, as mobiliza
ções num perfil corporativo ou de classe tinham igualmente bastante difi
culdade de se consolidar e mal havia um m ovimento social ou político de
pescadores ou trabalhadores rurais na situação de Almofala12.
produziu sua reorganização e alçou-a como vestígio folclórico regional. Um dos Tremembé
foi escolhido para servir dc intermediário com autoridades e pesquisadores. Era o chama
do capitão dos índios, reatuaiizando uma figura que tinha desaparecido na década de 1950
e que já não tinha papel político m uito definido ou mesmo autoridade. Esse novo capitão
ficava responsável pelos contatos e pelos preparativos e os materiais da dança. Esse termo
foi m antido até m eados dos anos 1980, quando os m issionários passaram a atuar entre
os toremzeiros. O capitão participou de um Encontro de índios do Nordeste e conheceu
o term o cacique, passando a usá-lo depois disso. Esse é apenas um dos fatos que caracte
rizam a politização do torém a partir da segunda metade dos anos 1980.
13 Foi em 1986, quando a FU NAI identificava a área indígena Tapeba, que sc teve a
prim eira documentação oficial da agência sobre os Tremembé. Percebe-se que a prática
dos missionários trouxe consigo a dimensão política, anteriorm ente m ínim a na diferen
ciação étnica dos Tremembé de Almofala. Primeiro, eles faziam parte do C IM I, mas se
desligaram e criaram sua própria entidade, a Missão Tremembé. Ver Valle (1993b).
A VIAGEM DA VOLTA
d.i Comunidade da Varjota, situação sem nenhum a tradição étnica, não
i onseguiam am pliar seu projeto de ação na Aimofala. D e certo m odo,
•in serem incorporados na Varjota, despertavam críticas e oposição dos
licm em bé toremzeiros que desconfiavam da origem étnica dos m em
bros da Comunidade. Todavia, desde 1990, os missionários vêm conse
guindo superar as dificuldades causadas pela m obilização étnica dos
Tremembé em torno do torém. Foi criado um grupo de artesanato “in
dígena”, com posto só por mulheres, na praia de Aimofala. O rganizou-
■ic um novo grupo de torém no S aquinho/Lam eirão, articulando pessoas
que não m antêm relações com os Trem em bé toremzeiros. Lideranças
lêm sido trabalhadas pelo incentivo de viagens a encontros indígenas.
Fssas alternativas vêm sendo priorizadas pelos m issionários e têm al-
i .ínçado resultados razoáveis de m obilização e organização política,
porém sem força suficiente para com pensar o antagonism o dos grupos
dom inantes e dos descendentes de índios.
MAs três localidades fazem parte de uma região mais ampla cham ada Tapera ou Taperinha,
que engl abava as antigas Fazendas Patos e São Gabriel, a leste e a norte, respcct ivamen te,
como seus limites, no passado. Em setembro de 1991. a Varjora tinha 377 habitantes em
59 grupos domésticos, conform e censo populacional realizado por mim.
15 Desde o fim dos anos 1970, algumas empresas passaram a atuar no m unicípio de
Itarema, sobretudo no distrito onde ficam as situações de Almofala e Varjota (Valíe
1993b).
16 O conflito e a questão fundiária da Comunidade da. Varjota foi o primeiro a se im por em
todo o recém-criado m unicípio de Itarema, desmembrado do m unicípio de Acaraú em
1984. Teve repercussão regional, aumentando o prestígio da equipe da C PT esuas idéias
e práticas 'com unitárias”, A Varjota acabou por sc prestar corno a comunidade-m odelo
para as que vieram a sc constituir. Mobilizações camponesas sc iniciaram. À C P T de
Itapipoca logo conseguiu que as C om unidades fossem organizadas o bastante para que
A VIAGEM DAVOtTA
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itarem a foi criado cm 1986,
congregando agricultores, sobretudo das comunidades. Participaram tam
bém da form ação do d ire tó rio regional do PT. A in d a que as duas
corporações fossem compostas pela m aioria dos Tremembé da Com uni
dade da Varjota, hom ens e mulheres, havia pouca articulação entre as
reivindicações étnicas e as cam ponesas. Se ela existia na situação da
Varjota, isto se deveu a certos fatores: a inserção do seu território no
mrerior de outro bem maior, o da Terra da Santa/Terra do Aldeamento
Ilevando-se em co n ta os aspectos ideológicos, sim bólicos e culturais
que operam na definição do território étnico) e não m enos aos efeitos
da prática e norm atização m issionária iniciadas em m eados da década
dc 1980. São fatores organizacionais que explicam a omissão do Sindi
cato e do P T quanto às reivindicações étnicas dos seus filiados da Co
munidade da Varjota)7.
Era 1989, os grupos dom ésticos eram en contrados dispersos pela
Varjota. Cada um tinha um quinral individualizado, lugar para cultivos
básicos. C o n tu d o vários dividiam o m esm o cercado, providos interna
mente por balízas e formas de delimitação particulares. Alguns chega
vam a reu n ir de oito a dez fam ílias, a m aio ria aparentada. Por seu
turno, se o cercado delimitava os terrenos de um conjunto dc grupos
dom ésticos, o que ficava de fora era considerado de uso com um . Tudo
isso contrastav a com o padrão de ocupação d a terra que existia na
Almofala.
diversos pedidos de desapropriação fossem feitos ao IN CRA -M IRA D para algumas das
fazendas sem aproveitamento econômico da região. As mobilizações sociais fomentadas
em torno das CEBs não causaram, porém, o mesmo impacto na Almofala. Dc certo
modo, o sucesso das mobilizações camponesas ocorridas no m unicípio de Itarema acon
teceu num a época que as CEBs, as Pastorais da Tetra e as organizações de trabalhadores
rurais alcançaram uma enorme força política no Ceará. N ão se tratava de um fenômeno
local, mas sim de nível regional, estadual e nacional, havendo um a constante reivindica
ção da Reforma Agrária,
17 O primeiro prcsidencc do Sindicato cra originário de uma família da Varjota e se atribuía
como índio ou Tremembé. M orava no Lameirão, uma das localidades da Almofala. C he
gou a participar de vários encontros indígenas, representando os Tremembé. C ontudo,
não misturava os investimentos políticos étnicos com os dos trabalhadores rurais. Usava,
porem , contcxrualmcntc um discurso que articulava os dois referenciais (ver Oliveira,
1988, sobre a idéia dc pluralidade de referenciais). Todos os fatores organizacionais do
diretório do PT frisavam também a condição trabalhadora dc seus filiados, longe de
qualquer especificidade, sobretudo a de suporte étnico. Ver Valle (1993a).
18 Havia conflitos internos e cheguei mesmo a presenciar o que foi considerada um a das
maiores crises da Comunidade, envolvendo o controle dos recursos naturais, sobretudo
um a área do rio Aracati-m irim cham ada de alagamar. C ontudo foram feitas várias
reuniões em prol da união.
A VIAGEM DA VOLTA
i.isscm o torém da comunidade, cuja organização era basicam ente femi
nina e jovem , um a das várias características que co n trastam com a
dança m antida tradicionalm ente na Almofala. Até mesmo os líderes da
iinnunidade explicaram -m e que vieram a se reconhecer com o índios
depois do início da prática m issionária19.
As relações dos Trem em bé de Alm ofala, sobretudo os toremzeiros,
i nin os Trem em bé da Varjota não eram boas. A situação dos Tremembé
■l.i Comunidade contrastava m uito com a dos habitantes das localidades
de Almofala, especialm ente depois da ação de usucapião. O processo
de concentração da terra foi barrado na Varjota, m esm o considerando
.is ameaças perm anentes da empresa D ucoco. H avia tam bém um a vida
social relativam ente au tô n o m a, sem a m esm a gravidade de conflito
m tcrétnico com o na Almofala. Eram , porém , os Trem em bé dessa situ
ação que cham avam os da Varjota de “os que não são índios mas acham
que sao”, além de os acusarem de estar co n tro lan d o ilegitim am ente
um a faixa da Terra do Aldeamento. A rgum entavam , inclusive, que seus
pais e avós não tinham nascido e se criado no lugar e que todos tinham
vindo de fora, a mesma acusação que faziam contra seus oponentes na
Almofala. A origem “indígena” era contestada porque dependia do nas
cim ento no território étnico, usando tam bém um fator espacial na dife
renciação e na construção da etnicidade, tal com o os h ab itantes da
Varjota. As fronteiras étnicas eram assinaladas m uito m ais por meio
das acusações dos Trem em bé de AJmofala do que mesmo por conflitos
entre grupos sociais de origem distinta. T anto os Trem em bé de Almofala
quanto os da Comunidade da Varjota adm itiam serem da parte dos índios
de Almofala ou da Terra do Aldeamento. C on tu d o , viam-se como dife
rentes entre si. A prática m issionária teve papel im portante na m anu-
w A imissão de posse foi em 1989. Antes, a terra fàzia parte do imóvel rural São José, que
pertencia à família Moura, sendo incluído na categoria de latifúndio por exploração na
época da desapropriação. A paisagem era bem distinta de um a região costeira, com morros,
solo avermelhado e uma vegetação de mato aitoegtvsso. Em julho de 1991, a população era
dc 283 pessoas em cinqüenta grupos domésticos, conforme censo feito por mim.
11 A relação patrão-morador se sustenta por uma série de práticas e valores cuja positividade
emana da ordenação hierárquica de atores sociais num sistema dc relações informais comumente
chamado de patronagem (Pitt Rivers 1971, Silverman 1977). O patrão é o dono da terra na
qual se dá o direito a moradores de dela poderem usufiuir economicamente, contanto que um
leque de obrigações seja realizado. Na fazenda São José era permitido que se plantassem as
roças (mandioca, feijão e milho) de onde se subtraía o pagamento anual da renda da terra. A
produção de íãrinha dependia do aviamento, da casa de farinha do patrão, o que correspondia
ao pagamento de quarenta a cinqüenta litros dc farinha por cada arranca de mandioca. Os
moradores trabalhavam para o patrão dois dias de serviço nas suas roças. O serviço era pago e,
às vezes, ultrapassava o regime costumeiro dos dois dias de acordo com as necessidades do
patrão. Para esse tipo de sistema, ver Palmeira (1977) e Barreira (1992).
n O caso Teixeira é notável como conflito rural, pois ocorreu oos anos 1960 c envolveu
mortes, violências, capangas, ações judiciais até 1967, data do últim o despejo. Seu
advogado era um a das poucas figuras que defendiam os direitos dos camponeses naquela
década, sendo conhecido por sua participação em oucros conflitos agrários. Vet Barreira
(1992) e Valle (í 993a e 1993b).
23 O apelido Patriarca não designa um respeito por parentesco ou tradição, Ele recebeu o
apelido sim plesm ente porque nasceu no dia de São José, o Patriarca.
24 Os Suzano e os Santos formavam 19 e 15 grupos domésticos, respectivamente. Os
Teixeira com punham q uatro grupos e havia mais outras 12 famílias sem m aior
representatividade política. Desde o período do assentamento, mais gtupos se formaram.
A VIAGEM DA V O ITA
membros da C P T e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais —, sem qual
quer referencia étnica. D c m odo geral, os cadastrados ficavam incertos
quanto aos m otivos reais que levaram à desapropriação: podia ser por
,,ntsa dos índios o u devido ao conflito. Todavia os fatos que envolvem a
. iinstrução de etnicidade e a em ergência de fronteiras étnicas giravam
em torno de Patriarca, que era a pessoa que m ais relevava a origem
éi nica, dizendo-se da indescendência dos índios de Almofala, e sobres
saía, frente aos dem ais habitantes do lugar, por identificar-sc com o
índio. D o mesmo m odo, considerava a m aioria dos assentados das fam í
lias Suzano e Santos seus parentes afins, com o índios, divulgando para
agências, órgãos adm inistrativos, empresas e veículos de com unicação
dc massa. D ispersava, p o rta n to , elem entos que caracterizavam a se
m ântica da etnicidade, ao contrário da m aioria dos habitantes do lugar,
mesmo os Suzano. N ão eram m uitas pessoas, porém , que acom panha
vam Patriarca na atribuição e uos investim entos étnicos, aqueles com
vínculos mais próxim os de parentesco, princip alm ente alguns sobri
nhos, que chegavam a se dizer índios, ainda que dependendo dos con
textos, sobretudo na frente dc agentes25.
Impasses interétnicos se destacaram com o início das divergências
entre Patriarca e os Teixeira. O prim eiro negava a origem étnica da
lamflia p o r não ter nascido e se criado n o São Jo sé/C ap im -açu , não
tendo parte ou indescendência de índio. Estava em jogo a com petição
por recursos naturais, a mata, a terra, os cajueiros, o terreno de vazante,
iodos acessíveis e ocupáveis depois da desapropriação, se não fosse o
reassentam ento dos Teixeira nas vizinhanças do grupo dom éstico de
Patriarca. O IN C R A teve um papel decisivo à m edida que os reassentou
e, tam bém , cadastrou praticam ente todos antigos moradores do fazen
deiro. A interferência adm inistrativa do órgão teve efeitos políticos,
u/ctando a liderança de Patriarca. A questão da origem étnica, de ser
índio e “não-índio”, se elevou a um patam ar inexistente m esm o no tem
po dos patrões, já que se tratava de um a disputa entre pessoas sem ne
25 O cadastram ento feito pelo INCRA -M IRAD não satisfez m uitos dos assentados. Em
L991 ,a agência não tinha realizado um processo de assentamento consistente. A atuação
da EMATERCE (Empresa dc AssistênciaTécnica e Extensão Rural do Ceará) foi iniciada
cm 1987. C ontudo seus técnicos suspenderam a assistência três anos depois, afetados
pelos con flitos na situação. O s contatos com o Sindicato perm itiram tam bém o acesso à
CPT, que esperava atuar como nas Comunidades, formando uma outra nova. Suas tenta
tivas foram mal sucedidas.
16A Comissão dos Direitos H um anos do Pirambu era um a entidade sediada em Fortaleza,
voltada para projetos assistenciais na favela do Pirambu. Sua atuação como agencia
“missionária”, se podemos assim definir sua prática na situação do Capim-açu, era m uito
frágil e extremamente polêmica. Uma pessoa ficou responsável pelo auxílio aos Tremembé
do lugar e ao Patriarca. Sem qualquer experiência missionária previa, ela tinha uma
trajetória ligada som ente à favela, T inha sérios problemas de subsistência e o “trabalho”
no Capim -açu era uma fonte regular de recursos. Por oucro lado, a Comissão rinha em
seu sta ffrepresentantes da '‘inteligcntzia” cearense que conseguiam mobilizar recursos
econôm icos e políticos que puderam ser favoráveis ao Patriarca, sobretudo quando ele
passou a questionar os projetos e a ideologia “agrária” do INCRA. Agentes da Missão
Tremembé e da C PT de Itapipoca questionaram juntos a prática da Comissão, mas não
conseguiram se afirmar de forma consolidada na situação.
AVIACEM DA VO LTA
<l;ide de se definir e se dissolver ao largo de fatos, decisões e práticas
políticas pouco estáveis à p rim eira vista, daí o interesse teórico que
desperta (Salisbury e Silvertnan 1977). N o m om ento da luta foi preciso
mna conjunção de forças internas que dessem unidade e neutralizassem
as divergências en tre os moradores, causadas pelas ordens do antigo
lazendeiro e pelas ações de capangas, que acabaram tam bém sendo as
sentados. Nesse sentido, a política dc assentam ento já prenunciava fu tu
ros confliros internos. Por seu rurno, não havia ainda a presença dos
leixeira. C om a sua chegada, o arranjo político interno se m odificou e
Patriarca passou a ter rivais no controle de recursos e sobretudo na
disposição de ideologias. D e início, conseguiu m obilizar o apoio dos
Suzano e de seus parentes. Todavia, passado algum tem po, os investi
m entos étnicos de Patriarca foram sendo considerados desnecessários
no contexto da nova realidade do assentam ento. O s Suzano e outros
parentes voltaram a reconsiderar sua inserção com o assentados, não
priorizando o que seria de direito dos índios. N ão estavam prejudicados
110 acesso aos recursos naturais, fato alegado p o r Patriarca. Nesse sen-
lido, o antagonism o diante dos Teixeira se arrefeceu, ficando restrito às
acusações do líder Tremem bé e de seus com panheiros, m eia dúzia de
pessoas, a m aioria acusada de ter sido capanga do antigo patrão. Os
.Suzano aproxim aram -se dos Teixeira ao verem Patriarca com o novo
oponente, aquele que se unira a antigos perseguidores. Nesse sentido,
outra ordem faccional se definiu ao longo do período pós-assentam en-
10 . Além disso, reuniões políticas passaram a ser feitas desde 1990 a
íiin de reduzir a dinâm ica faccional, tendo os Teixeira com o organizadores
<• seguindo o padrão das celebrações das CEBs27.
A situação histórica do Capim -açu/SãoJosé m ostrou o entrechoque
de facções que têm m odificado suas feições, no sentido da composição
de seus m em bros e líderes como no conteúdo oscilante de seus “proje-
los”. Alianças e divergências políticas eram articuladas tam bém de acordo
com a prática das agências e das possibilidades que podiam advir de
seu posicionam ento. N o caso, novos papéis sociais podiam ser cons
umidos, com o os de cadastrado!assentado, que se detonaram com a de
1 Patriarca acabou por sc envolver em fatos políricos, alianças e confrontos, o que lhe
deixou num a posição de isolamento interno, com pouca chance de reversão no quadro
político local e, do mesmo m odo, circunscrevendo a mobilização étnica. Em 1991, os
investimentos étnicos eram minoritários.
A VIAGEM DA VOLTA
Jade de Telhas, que igualm ente alegavam origem indígena. Seus ante
passados teriam vindo igualm ente da região de Almofala e ocuparam
áreas livres de criação e cultivo mais para o interior no início do século
XXI. N o local, teria sido m antida inclusive a dança do torém no passado.
Finalm ente, a Terra Indígena Trem em bé do Córrego do João Pereira
Ibi hom ologada em 2003, tornando-se a prim eira área a ser com pleta
mente regularizada no Ceará. H á, portanto, um evidente contraste di
ante das situações de Almofala e da Tapera/Varjota, cuja terra indígena,
delim itada e percebida com o mais “tradicional”, está sendo contestada
por processos judiciais. Além dos casos discutidos, os habitantes de
outras localidades próxim as ao C órrego do João Pereira, tais com o
Lagoa dos N egros e Q ueim adas, têm buscado o reconhecim ento étnico
pela F U N A I28.
zs Do mesmo m odo que ocorre com outros povos indígenas do C earí, políticas públicas de
educação e saúde diferenciada têm afetado diretam ente os Tremembé nos últim os anos.
Este attigo não pretende dar conta dc tais questões.
A VIAGEM DA VOLTA
etnicidade Tremembé ou “indígena”, noção que uso inspirado em C ar
doso de O liveira (1976), tentando circunscrever um horizonte discursivo
e sim bólico no qual os diversos atores sociais conseguem entender,
descrever e interpretar, por processos estruturados ao nível consciente
c inconsciente, a vida social, os fatos e fenôm enos sociais, como tam
bém as suas p róprias ações e as práticas de outros atores e agentes,
rodos d o ta d o s de co n te ú d o s o rig in a d o s n a d in â m ica das relações
interétnicas. Esse cam po sem âutico n lo se estru tu ra p o r si só, pois
requer operações sintéticas de apreensão dos fatos e questões de perfil
étnico p o r p arte dos mais diversos atores sociais. Nesse sentido, o cam
po sem ântico está “aberto” para produzir interpretações étnicas díspares
c até m esm o antagônicas, tom ando em consideração os atores e grupos
sociais que as fazem, afinal cies o aproveitam de m aneira diferencial,
conform e as posições sociais que ocupam e as ideologias que investem.
A noção de cam po semântico da etnicidade em Cardoso de Oliveira
{: 102-6) foi construída a partir da análise levi-straussiana do totem ism o.
Nesse sentido, o autor se prende a conceber um a classificação de situ
ações interétnicas fu n d ad a em duas séries: a das identidades e a dos
padrões culturais, que se estruturam por antinom ias do tipo “m inoritário/
majoritário” (identidades) e “sim ples/com plexo” (cultura). As com bina
ções estruturais encontradas, todas de sentido lógico, especificam qua-
tro m odelos étnicos. C ardoso de O liveira chega a dizer que “certos
grupos tribais rem anescentes no N ordeste brasileiro” (: 105) seriam
adequados à terceira com binação, constituindo grupos m inoritários e
"portadores de pautas culturais complexas porque suas culturas, origi-
nariam ente ‘sim ples’, lograram complexar-se’ pelo processo aculrurativo
.i ponto dessas m inorias elim inarem quaisquer barreiras ou distâncias
<uíturais significativas frente aos m em bros da sociedade anfitriã”.
Faço um a interpretação mais livre do que Cardoso de O liveira en-
lende p o r cam po sem ântico. A inda que os Trem em bé possam ser ca-
i.rcterizados com o grupo m inoritário em term os sociológicos e com
partilhem dos mesmos valores e representações que os regionais e os
grupos dom inantes, não gostatia de “dom esticar” os fatos etnográficos
c- dar então p o r encerrado o estudo da construção da etnicidade Trem em
bé. Prim eiro, entendo a noção de campo semântico da etnicidade em
um a perspectiva herm enêutica e n lo estruturalista, stricto sensu. Acre
dito que a etnicidade seja produzida com o um a interação de códigos
culturais (C o h e n 1974: xi), viabilizando a apreensão de significados
múltiplos p o r parte dos atores sociais que se relacionam. Os fatos cultu
3ÜEssa ideia dc cam partilham ento de crenças, representações e conhecim entos não tem
nada a ver com a concepção durkheím iana que frisa seus aspectos conciliatórios e integra
dores. Achamos que o compartilham ento semântico nao implica ausência de conflito e de
o posições, inclusive de ordem simbólica e interpretativa por parte de atores sociais em
divergência. Sigo mais um a abordagem polissêmica dos significados e do com par
tilham ento de padrões e códigos culturais (Dolgin, Kemnitzer e Sehneidcr 1977: 3-40).
O cam po sem ântico tin h a abrangência, o que explica por que vários
grupos sociais mesm o antagônicos a partir dele se orientavam , redefiniam
e interpretavam os fenôm enos de diferenciação étnica. Nesse sentido,
havia um oceano de categorias, valores, representações, expressões ver
bais e semânricas que podiam ser operados no sentido da construção,
positiva o u nao, da etnicidade dos Tremembé. D e acordo com o con-
texro, os grupos sociais privilegiavam certas categorias e representações
cm derrim ento de outras. Era esse processo coletivo de escolha, difusão
e interp retação de valores, categorias e sím bolos, em co ntraste com
outras interpretações, que im plicava um a política das representações,
verificável na dim ensão social das relações interétnicas, H avia o apro
veitam ento e a exploração intensa do campo sem ântico quando as fron
teiras étnicas emergiam e, destacadas, passavam a m ostrar juízos, acu
sações e confrontos entre grupos e atores sociais antagônicos31.
A presença de pesquisadores o u agentes, como os missionários, vinha
estim ulando igualm ente a reprodução e a positividade do cam po se-
EXPERIÊNCIAE5EMÁNTICAENTREOSTREMEMBÉOOCEARÁ | 315
Trem em bé. Q uando for preciso, contextualizarei o aproveitam ento sin
gular que os Trem em bé de cada situação faziam da sem ântica étnica.
N ão apresento, porém , um simples inventário semântico de categorias
e expressões mais usadas pelos Tremembé. G ostaria que vissem tal exer
cício com o um a cartografia da m aneira com o os Trem em bé construíam
sua etnicidade e como, por meio dela, podem os encontrar sim ilarida
des estruturais entre as três situações étnicas.
Q uan d o falo de similaridades estruturais, estou me referindo às con
verg ên cias possíveis que co n seg u i d e te c ta r e n tre as três situações
T rem em b é. N ão eram p rin c íp io s q u e d e fin ia m exclusivam ente os
T rem em bé. O s elem entos que descrevem sim ilaridades p u d eram ser
encontrados entre outros grupos sociais. N o entanto, acredito que so
m ente certo aproveitam ento de elem entos sociais e culturais perm itia
que se estabelecessem nexos, vínculos e relações estruturais entre as
três situações Trem em bé, ao m enos até o período que fiz etnografia,
pois acredito que havia um a tendência à dilataçio de tais elem entos de
convergência, com o a possível difusão do torém e a prática indigenista
da FU N A I.
32 C arneiro da C unha (1992: 136) m ostra que as categorias índios brabos e mansos jí
existiam desde o século XIX. Esse fato corrobora a suposição de que o cam po semântico
em que se atualiza a etnicidade Tremembé tem uma historicidade razoável, reproduzindo
categorias operadas em outras situações históricas e não impedindo que seja apreendido
como conhecim ento pelos diversos grupos soei ais.
A VIAGEM DA VOLTA
il» mato com o se eles pertencessem , nesse prim eiro m om ento, a um
universo “natural”, selvagem e, de certa forma, mais “puro” e integrado.
( K índios brabos caçavam e coletavam frutas no mato. E ta costum e dizer
ijiir os versos do torém foram originados nessas primeiras perambulações
dos Tremembé, quando encontravam no cam inho animais ou frutas das
quais criavam cantigas especiais. Digo “prim eiro m om ento” porque os
i om entários não se referiam a qualquer coisa anterior à mata e aos índi
os brabos. Foi na m ata que se descobriu tam bém a Santa de Ouro: “M a
mãe contava que isso antigam ente era m ata de se caçar assim toda caça.
O uando foi um dia acharam a santa” (Aimofala),
Muitas vezes, não se falava de índios brabos, mas som ente da mata,
sugerindo um am biente, um a paisagem, que deve ser associada a um a
'.miação originária e que pode, com o acontece nos relatos da ocupação
da Varjota e do C apim -açu, explicar a chegada ou descoberta do lugar
pelos índios. A mata e os índios seriam convergentes e associados nesse
passado de descobertas (da santa, de lugares). Assim, a Aimofala teria
'.ido antes um a mata da m esm a form a que foi a Tapera/V arjota e o
( iapim -açu/São José. A mata teria, inclusive, u m a fauna rica (pebas,
<otias) e feroz, com o onças a esturrarem (rosnando) nos seus recônditos
c ao redor das casas dos índios. A “brabeza” dos índios se acom oda
perfeitam ente a tal imagery. N o entanto vale destacar que a mata e a
existência antiga de índios brabos im plicariam um a prim eira realidade
c, sendo única, panorâm ica para um passado ao qual não se retorna,
senão na forma de relato ou narração33.
Eram poucos os Trem em bé que não contavam algum relato sobre
um a antepassada que fora pegada a dente de cachorro e amansada. D eta
lhes o u m inúcias narrativas, com o dela ter precisado fu ra r as ventas,
porque era furiosa., eram com uns, anunciando tam bém a passagem de
um universo selvagem para ourro “dom esticado”. Essa bisavó ou tataravó
estabelecia o vínculo de um tem po considerado com o antigo, no antiga-
-1Í Ver Carvalho (1984: 173-7) no que diz respeito á m anutenção de categorias étnicas
similares em ontros grupos e populações indígenas no Nordeste. A operação das catego
rias índio brabo e manso, porém, não se justifica som ente por haver a “supervalorização
da identidade (de índio hoje) como pessoa reconhecida pelo Estado", o que justificaria o
contraste com os brabos. O s Tremembé operam com as mesmas categorias e só há
pouquíssimo tempo passaram a ter expectativas de reconhecimento pelo órgão indigenista.
O sentido c outro, como mostrarei. Batista (1992: 142) m ostra que os Turká usam a
categoria “brabio”.
EXPERtÊNCIAESEMÃNTICAENTREOSTREMEMBÉDOCEARÁ ) 317
mente, de índios brabos na m ata, com seus parentes que viviam nos dias
de hoje. O vínculo era personalizado pelo parentesco, não adm itindo
qualquer refutação. Se a avó ou a bisavó eram índias brabas, a origem
étnica estaria garantida para seu descendente: “E u tô dizendo. A avó da
m inha mãe era (índia). Foi pegada a dente de cachorro no m ato, tâo
índia era. Ela era índia pura, p u ra , que pegaram ela no mato a dente de
cachotro (Tapera, grifos m eus)”.
A eficácia da vulgata era evidente entre aqueles que desejavam se
incorporar etnicam ente e que a dispersavam. Foi o caso de um hom em
nascido nas Ostras, lugar distante de Almofala, que me contou que sua
hisavó fora “pegada no m ato”. Ele aproveitava-se politicam enre do en u n
ciado, afinal era um dos que organizavam o novo grupo do torém na
A lm ofala e que desejava ser visto com o da parte de índio, apesar da
contestação dos toremzeiros mais tradicionais.
A posirividade da vulgata era tanta que norm alm ente se encontrava
ao nível do senso com um da etnicidade, conform e um dos casos descri
tos. A abrangência do cam po sem ântico da etnicidade perm itia que a
vulg ata fosse reproduzida tam b ém p o r aqueles que m inim izavam a
etnicidade, com o os Teixeira do Capim -açu, que a difundiam neutrali
zando seu efeito “hereditário”: “o papai contava, mas não tou certo qual
foi, se já era bisavó dele, se era escanchavó, se era tataravó. Foi enter
rada na igreja de Almofala. Essa foi pegada a dente de cachorro. Mas
daí quantas geração não já veio?” (Capim -açu).
O relato da avó pegada a dente de cachorro não é encontrado apenas
na sem ântica da etnicidade dos Tremembé. H á outros casos de diferen
ciação étnica que m ostram o aproveitam ento da mesma vulgata, vincu
lando o tem po passado (dos índios, dos antigos) com seus descendentes
nos dias de hoje,
A “braheza” representava um a natureza originária dos índios que veio
a ser amansada, domada por “eles”, outros povos. Os relatos não expli
cavam m uito bem quem amansava os índios, ainda que estabelecessem
n ítid a diferença étnica. O “am ansam ento” transform ava tal “natureza”
prim ária, “bruta”, furiosa, n o u tra que se “dom estica”, o que teria mais
proxim idade com a vida atual dos Trem em bé e assinalava uma situação
assimétrica. C om o amansamento, os índios brabos tiveram de se hum i
lhar. “Ela era braba no m ato. Aí eles pegaram ela a dente de cachorro e
am arraram ela pra rnódi poder ficar m uito tem po amarrada pra se h u
milhar. Ficar mansa. T udo que am ansa tem de se atnansar pra se unir
com os outros” (Almofala).
A VIAGEM DA VOLTA
De certo m odo, a vulgata era a metáfora da situação histórica atual
ilos Tremembé, já que pelo "amansamento” se deu a “união”. Se, por um
l ido, ela é positiva, não deixa de scr assimétrica pelo fato da “humilha-
1, 110”, os índios ficando mansos. Havia um a qualificação am bígua dos índi
os brabos, de form a tam bém pejorativa. E ram furiosos, mas tam bém
,/Instados, deixavam-se enganar. O próprio “am ansam ento” seria um a das
demonstrações de sua tolice. Algumas vezes, comentava-se que os índios
brabos foram tolos por terem vendido suas terras ou dado m orada a pessoas
dv fora. Nesse sentido, eles oscilavam entre a “brabeza” e a ingenuidade,
que ainda seriam sinais de sua natureza. Esses comentários foram encon-
i i.tdos mais na A lmofala onde a situação fundiária era a pior para os
Ifemembé: “Os índios eram um pessoal desinteressado. [...] N ão tinha
ganância por terra. Almofala era desabitada porque os índios não tinham
interesse por nada. Era o pessoal mais tolo do m undo” (Almofala).
Por um lado, os índios brabos davam medo: “Você sabe índio brabo
pega o u tra pessoa e rasga na hora”. Por outro, mesmo com o “amansa-
menro”, os índios não perderam dc todo a sua “natureza”. M uitas vezes,
ouvi dizer que um índio é sem pre cismado, seja porque tem m edo dos
outros, já que foi amansado, seja porque desconfia dos outros: “Aquele
povo cismado, já sabe. A gente chega na casa da criatura. Ele tem um
modo de botar a cabeça assim. A í volta pra trás. Aquele povo já puxa
aquele sangue de índio” (Almofala).
N enhum dos Trem em bé que conheci, nas três situações, se atribuía
como índio brabo. Achavam-se mansos, o que não lhes retirava a parte
de índio ou a “pureza”, outro tipo de qualificação étnica operante na
construção da etnicidade. D iziam que algum as pessoas eram brabas,
mas reconheciam que eram raras, frisando mais aspectos de com porta
m ento, quais sejam, se a pessoa era cismada, desconfiada ou se tinha fala
ruim. Por seu tu rn o , as pessoas que questionavam a diferença étnica
dos Trem em bé confirm avam qtte, nos dias de hoje, som ente haveria
índios mansos, descendentes, o que servia na m inim ização do valor do
perfil étnico.
É porque rem o índio, tem o sangue indigenista. Ele tem o quê? Se ele é
índio, da classe índio, quer dizer que o sangue dele é índio decidido, o
sangue refinado da indescendência. [...] É, quer dizer assim. O sangue é a
mesma. Significa o sangue pra nós, significa a patentesca. Você conhece a
palavra de parentesco? Justamente é o sangue pra nós que nós chama.
Tanro faz ser parente como diz assim: “fulano tem sangue de índio”; “fula
no é parente de índio”. É o mesmo nome (Tremembé, Capim-açu).
A VIAGEM DA VOLTA
’>) explica que as relações de sangue podem ser vistas com o um “fato
objetivo da natureza” que se perdura. Sua “objetividade” não deixa de
ser culturalm ente construída, sobretudo em uma dim ensão simbólica.
() sangue totalizava a pessoa do índio, sendo visto inclusive com o pre-
i edendo as relações sociais que eram m antidas, hierarquizando-as num
nível m enos interveniente. O sangue, definindo as relações parentais e
dc consangüinidade, podia scr visro com o um dos fatores que constru
íam sim bolicam ente a identidade “indígena”. O s fenôm enos interétnicos
niio eram entendidos por m eio das relações sociais que os produziam ,
mas pela determ inação substantiva do sangue e das diferenças de sua
natureza. Explica-se então a perplexidade dos Trem em bé de Aimofala
quanto aos índios que não querem ser índios e tam bém do líder do Ca-
pim -açu q u an to s aos seus parentes, que não se identificavam com o
índios34.
Categorias com o sangue limpo, sangue indigenista (apenas usado no
( iapim -açu p o r Patriarca) e índio puro representavam um a totalidade
que existia no passado originário dos T rem em bé e não só deles, com o
lam bém de todas as raças ou fam ílias. Toda unid ad e de perfil étnico
Icria originariam ente um a integralidade biogenética centrada no san
gue, a substância que m ais se com p artilh a c sem pre se herda. A “fo r
ça” do sangue p o d ia ser enco n trad a em diversas fam ílias ou biótipos,
do m esm o m o d o que sua “fraqueza” o u “su jeira” . O s nêgos teriam
sangue fo rte com o os índios. O cabra (o albino) teria um “sangue fra
co, ruim , que nem água”, conform e m uitos disseram . A lém disso, o
sangue veicula o u tran sm ite características m orais pelas gerações. O
lipo desconfiado, cismado do índio d eco rria da capacidade de resis-
lência e co n tin u id ad e do sangue com o substância q u e se adquire pelo
p arentesco .
O sangue de índio podia ser afetado tam bém pelas relações sociais
interétnicas. N a sem ântica da etnicidade Trem em bé, havia a concepção
da m istura d o sangue, o que im p licav a a ap reen são sim b ó lica de
A VIAGEM DA VOLTA
N ã o Cem puro, mas Cem nós d e sc e n d e n te fo rte ainda dos índios. Puro não
tem mais, P u ro m esm o não tem mais. Só te m neto, b isn e to , ta ta ra n e to ! [...]
Qualquer pessoa daqui de parte de dentro de aldeia pertence aos índios. O que
nasceu e se criou éfilho daqui de Almofala. Ao mais longe o u mais p e r to tem
d e ser parente. É tudo uma descendência só. Agora esses defora que chegam
por agora é outra parte de gente (Tremembé, Almofala, grifos meus).
A VIAGEM DA VOLTA
ilc raças” contribuiu para dispersar algumas imposições corporais ori
ginárias, com o a venta fu ra d a e os traços mais feiosos: “esse nariz só
pode ser da descendência de índio, que é um bicho mais feioso. N ão
linha barba, todo o bicho era liso m esm o”.
N a orientação dos T rem em bé, os traços físicos serviam para con-
irastar vários biótipos: o índio não seria confundido com outros como
o cabra, o caboclo, o nego e o branco. H avia um sentido anedótico na
peroração sobre tais biótipos, por exem plo, se alguém era branco ou
cabra. O cabra seria gazo, de sangue ruim e cabelo enroladinho (era o tipo
do albino). M uitos toremzeiros, porém , se diziam caboclos porque ti
nham cor de pele mais clara: “Tem a cunhã, a tapuia. Tem o índio, tem
o negro. A tapuia é aquela de cabelos de flecha, estirado, n en h u m a
volra. A cunhã é que tem as pernas coisadas, ressecada. O negro é esse
do cabelo que não m olha, bem enroladinho, nêgo legítimo. D izem que
nós somos cu nhã” (Almofala, grifos meus).
A preocupação com os traços físicos não se encontrava, o u tra vez,
som ente entre os Tremembé. Seus oponentes, sobretudo a gente de fora
que vivia na Almofala, serviam-se da descrição anatôm ica para se dife
renciarem dos índios e descendentes. Seu p o n to de vista estético era
m uito pejorativo, inclusive com associações simbólicas negativas, com o
a metáfora em pregada por um a proprietária de terras da região: “Mas a
m aioria do pessoal daqui, isso tudo é descendente de índio. Você vê
esse pessoal assim do rosto achatado, meio mal-feito dc feição. As pes
tanas dos índio é assim, dura, feito pestana de porco!”.
M Carvalho (1984: 181) cita um depoim ento Kapinawá em que desponta o bínarism o
velho/novo associado aos “índios mesmo, puro, brabo”. O s Kariri-Xocó empregam
tam bém várias expressões como os “mais velhos”, “cabocla velha dos troncos” (M ata
1990: 141-4). O s Turká operam com a categoria "antigos" designando os “índios
brabios" (Batista 1992: 142). Ver também o emprego de categorias similares feito pelos
Tapeba (Barretto F° 1992: 491-509).
3'N e in rodo testem unho oral, segundo Vansina ( í 965: 19-23), pode ser entendido como
um a tradição oral, que consistiria de relatos a respeito do passado, sem terem sido
presenciados pelos informantes. As narrativas do passado presenciado são testem unhas
que sc constroem como a memória social de uma coletividade. Ver, nesse caso, T hom pson
(1992: 20-44). Conform e Vansina, os relatos de tradição oral encontrados entre os
Tremembé caracterizam-se por serem textos livres, perm itindo variabilidades narrativas
e não sendo uma forma fixa tradicional como poemas decorados. N o entanto, fica difícil
distinguir a tradição oral dos relatos memoriais já que estes são contados em um mesmo
exercício narrativo, muitas vezes se articulando, os dois sendo propulsores semânticos da
etnicidade. A memória social dos Tremembé deve ser vista como étnica e construída
culturalmente junto com os relatos do passado não-vivenciado. Nesse sentido, a noção de
tradição oral de Vansina deve ser aceita com cautela.
Agora é que eu não sei em que erafoi. É que eu não sei em que era foi que ele
começa a abarcar. Eu sei que ele tomou conta de tudo. A mamãe tinha uma
quinta dc cajueiro, só puro cajueiro doce. [...] Isso lá era uma coisa decente,
A VIAGEM DA VOLTA
bonita, mesmo. Foi-se acabando tudo. Foi-se tempo que acabaram tudo. Efoi
tempo que elefoi tomando conta de tudo. Cercou tudo, tudo, tudo (Almofala,
grifos meus).
334 A V IA C tW DA VOLTA
entemente, mesmo se com efeitos políticos, por parte dos atores sociais
que antagonizavam com os Tremembé nas três situações étnicas. Os di
versos grupos sociais estabeleciam versões, interpretações sociais, basea
das nos elementos do mesmo campo semântico da etnicidade e relaciona
das esrruturalm ente entre si. N a sua abrangência, o campo perm itia com
binações semânticas e de sentido que eram e serviam como interpreta
ções de recorte étnico. Se a versão era positiva na argumentação étnica,
era ourro problema. N a verdade, os grupos e atores sociais que discorri
am de e por elem entos ou questões étnicas partiam da m esma m atriz
conceituai, sem ântica e sintática: os Trem em bé; os seus oponentes, a
gente de fo ra; aqueles regionais que mai os conheciam ou sabiam que
aiuda existiam, agricultores que não exploravam a diferença étnica, como
os trabalhadores rurais das comunidades ou os índios que não queriam ser
índios de Almofala. A etnicidade não era somence construída duplam ente
a partir da efetividade das fronteiras étnicas, dos padrões de interação
existentes e do campo sem ântico no qual se extraía conteúdos: ocorria
também um a difusão para além das próprias fronteiras e grupos étnicos
cm interação. A semântica da etnicidade possuía um a abrangência que se
tlispersava para além das situações, dos contextos interétnicos, constitu
indo um a “tradição” genérica a respeito do “índio”.
O campo semântico da etnicidade podia m ostrar tam hém quais eram
as similaridades estruturais que articulavam as três situações Tremembé.
Os m esm os elem entos sem ânticos e sim bólicos eram em pregados e
dispersos pelos Trem em bé das três situações a fim de construírem a
etnicidade. Suas trajetórias de mobilização étnica, a m anutenção de fron
teiras étnicas e os m odos de controle da terra e dos recursos naturais
retratavam um a heterogeneídade, ainda que m uitos padrões econôm i
cos fossem tam bém abrangentes, sendo igualm ente reproduzidos por
populações camponesas. Do mesmo m odo, vários fatores culturais não
eram comuns, tanto a tradição do torém quanto as diferenças sub-regio-
nais, existentes, por exemplo, entre pescadores e agricultores na Almofala.
As sim ilaridades estruturais foram encontradas som ente em nível se
m ântico e sim bólico da construção da etnicidade, servindo para dar
conteúdo e consistência às suas imagens, discursos e formulações como
índios. Os Trem em bé de Almofala, da Varjota e do São José/Capim -açu
usavam os mesmos parâm etros, binarismos, categorias étnicas, esque
mas temporais, guardadas as variações internas. M esm o estas especificida-
des mostravam , sobretudo, o aproveitam ento plural do campo sem ânti
co, como a combinação diferencial que os Trem em bé de cada situação
A VIAGtM DA VOITA
étnicas. Elas possibilitavam o escopo de reflexões étnicas, pensam entos
e razoabilidade que se faziam em torno da etnicidade e da diferenciação
étnica. Fosse pela atuação de pesquisadores e missionários, que interagiam
dialogicam ente a favor da sua diferença, fosse na própria situação das
fronteiras étnicas, existiam exercícios reflexivos feitos pelos Trem em bé
que serviam ativam ente na construção da sua etnicidade. Todos os ele
mentos semânticos investigados eram revolvidos contextualm ente nesse
exercício de reflexão ctnica. Por m eio das íorm as de discurso os ele
m entos sem ânticos se reproduziam , eram interpretados e possibilita
vam um a atitude reflexiva.
As “histórias”, narrativas orais e todas as formas de discurso étnico
emitidas e/ou contadas pelos Trem em bé servem na com preensão da ex
periência da etnicidade. C om o boa parte da etnicidade era construída
por formas semânticas, os Trem em bé a experim entavam tam bém como
um processo de “atividade” discursiva. Tratava-se de um envolvim ento
ativo e criador com o passado e de como ele podia ser incorporado ao
presenre. Assim, mesmo o esquema tem poral dissoiutivo - do tempo de
primeiro ou dos antigos até os dias de hoje - podia ser interpretado pelos
Trem em bé com positividade, além da visada pejorativa que fazem seus
oponentes. O s Trem embé se aproveitavam de m odo singular e ativo da
sem ântica da etnicidade, con stru in d o interpretações positivas, pero-
rando vorazm ente por com binações semânticas, m odelando sua experi
ência da etnicidade40.
N ão estou privilegiando, rodavia, som ente os significados que cons
truíam a etnicidade. Estou sugerindo que um a das m aneiras dos Trem em
bé experim entarem a etnicidade seria a capacidade prolixa, intensa, a
verve de discorrer ou contar sobre os índios. A atividade sem ântica e
reflexiva da etnicidade term inava por ser disruptiva, não sendo um a
experiência rotineira, ainda que já conhecida, sobretudo na Aimofala.
Por meio das formas de discurso, os Trem em bé tinham sua experiência
singular, reflexiva, m uitas vezes em um processo dialógico com seus
interlocutores e com panheiros.
w Rosaldo (1986: 97-134), estudando as narrativas dos caçadores Ilongot, m ostra que os
“contadores dc histórias” elaboram relatos de caçadas passadas, porém tratam menos dos
eventos que “realmente" aconteceram do que os que se espera contar. As narrativas Ilongot
destacam o suspense, os exageros, os efeitos retóricos, selecionam fatos mais picarescos ou
arriscados a fim de definir o “tipo de experiência” vivida nas caçadas. Rosaldo diz que as
narrativas orais dão acesso às experiências mais significativas das caçadas, todas elas
construídas culturalm ente e, portanto, esperadas e valorizadas nos discursos.
1
EXPERIÊNCIA E SEMANT CA ENTRE OS TREM EM BÉ DO CEARÁ
Referências bibliográficas
A N D ER SO N , Benedict
(1989) Nação e consciência nacional. São Paulo: Atica.
AN TU NES, Clóvis
(1973) Wdkonâ-Kariri-Xukuru aspectos sicio-antropológicos dos remanescentes indígenas de
Alagoas. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, Im prensa Universitária.
(1984) fndios de AJagoas. Docum entário, Maceió: sleditora.
ARAÚJO, Nicodem os
(1981) Aimofala e os Tremembés. Fortaleza: Secretaria de C ultura e Desportos do Estado do
Ceará.
ARMAS, M . N.
(1981) “A antropologia aplicada no México c seu destino final: o indigenism o”. Em:
Junqueira, C.; Carvalho, E. A. (orgs.). Antropologia e indigenismo na América
Latina. São Paulo: Cortez.
| 343
A ZEV ED O , Tliales de
(1976) “Catequese e aculturação”. Em: E. Schadenjorg.). Leituras de etnologia brasileira.
São Paulo: Com panhia Editora Nacional, p. 365-84.
BALAND1ER, Geotges
(1951) “L asituation coloniale: approche théorique”, CahiersInternationauxdeSociologie,
XI: 44.-79,
B A N TO N , Michaei
(1979) “Etnógcnese”. Em: A idéia de rafa. Lisboa: Edições 70.
BARBALHO, Nelson
(1 9 8 2 -1 9 8 8 ) Cronologia pernambucana: subsídios para a história do agreste e do sertão. 16
vol. Recife: Fundação de Desenvolvimento Municipal do Interior de Pernambuco.
BARREIRA, César
(1992) Trilhas e atalhos do poder: conflitos sociais no Sertão. Rio dc Janeiro: Rio Fundo
Editora.
BARROS, Ivan
(1969) Palmeira dos índios, terra e gente. Palmeira dos Índios/AL: s/ed.
A VIAGEM DA VOLTA
(1984) "Problems in conceptualizing cultural pluralism, with illustratíons from som ar”.
Em: Maybury-Lewis (ed.). Theprospectsfor plural societies .W ashington. D .C .:T he
American Ethnological Sociecy,
(1988) “T h e analysis o f culture in complex societies”, Ethnos, 3-4,
BELLAH, Robert N.
(1983) “T he ethical aims o f social inquiry". Em: Social Science as moral inquiry. New York:
Colum bia U nivcrsity Press.
BENSA, Alban
(1996) “D e la m icro-histoire vers une anthropologie critique”. Em: 7~eux cTÉchelles. La
micro-analysc h 1'experiencc. Paris: Gallimard-Lc Seuil.
BENTLEY, G. Carter
(1987) “E thnicityandpractice”, ComparativestudiesinsocietyandHistory, 29(1).
BHABHA, H om i K.
(1995) The location o f culture. London/NewYork: Routledge.
B O H A N A N , Paul
(1967) “Africans land”. Em: Tribal and peasant economies. New York: T he Natural History
Press.
B ON FIL, Guillermo
(1995) “Diversidad y democracia: un futuro necesario”. Em; G runberg, C. (coord,).
Arliculación de Ia diversidad, pluralidad étnica, autonomias y democratizacián en
América Latina. Quito: Abya-Yala.
BOSI, Alfredo
(1992) “Colônia, culto e cultura". Em: Dialética da colonização. São Paulo: C om panhia das
Letras.
B O T E L H O , Carlos de Castro
(1954) “Aspectos geográficos da zona cacaueira da Bahia”, Revista Brasileira de Geografia.
vol. 16, n. 2. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
BOTT, Elizabeth
(1976) Família e rede saciai. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
B O U D IN , Max
(1942) “Aspectos da vida tribal dos Fulniô”, Revista de Cultura, ano 1, n. 3, Rio de Janeiro.
B O U RD IEU , Picrrc
(1980) “L identité et la représenration: éléments pour une réflexion critique sur 1’idée de
région”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 35.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1984) “La delegacion et 1c fctichismc polieique", Actes de ia Recherche tn Sciences Sociales,
52/53.
(1989) O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bercrand Brasil.
(198 9 a) “A identidade e a representação: elem entos para um a reflexão crítica sobre a idéia de
região”. Em: O poder simbólico. Op_ cie.
(1989b) “A representação política". Em: O j>odersimbólico. O p. cit.
BRASILEIRO, Sheila
(1996) “Organização política e processo faccional no povo indígena K íriti”. Dissertação de
M estrado em Sociologia: UFBA.
B RIG1D O, João
(1900) “Ephemérides do Ceará”, Revista Trimestral do Instituto do Ceard, vol. 14.
B R IT O , Fátima Campeio
(1993) Relatório sobre o reconhecim ento dos “K antaruré" ou "Caboclos da Batida” do
m unicípio de Glória (BA). Inédito.
BRUNER, Edward
(1986b) “Experienceanditsexpressions”. Em:Turner, Victor e outros (eds.). The anthropology
o f experiente. Op. cit.
C A R D O SO D E OLIVEIRA, Roberto
(1960a) O processo de assimilação dos Terêna. Rio de Janeiro: Museu Nacional.
(1960b) “O papel dos postos indígenas no processo de assimilação.” Em; d sociologia do
Brasil indígena, Rio dc Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. UnB.
(1964) O índio e o mundo dos brancos; n situação dos Tukúna do Alto Solimões, São Paulo:
DIFEL.
(1968) Urbanização e tribalismo; a integração dos índios Tcrena mima sociedade de classes.
Rio de Janeiro: Jorge Z ahar Editor.
(1971) “Identidade étnica, identificação e manipulação”. Em: Identidade, etnia e estrutura
social, São Paulo: Pioneira Editora, 1976.
(1976) Identidade, etnia e estrutura social. Op. cit.
(1978) A sociologia do Brasil indígena. Brasília: Ed. da UnB.
(1996a) “Antropologia c moralidade: etnicidade e a possibilidade de uma ética planetária”.
Em: Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tem po Brasileiro.
(1996b) “Etnicidade, eticidade e globalização”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32.
C A RN EIRO D A C U N H A , M anuela
(1 986a) “ Etnicidade da cultura residual mas irredutível’’. Em: Antropologia do Brasil: mito,
história e etnicidade. São Paulo: Brasiliense/EDUSP.
(1986b) “Parecer sobre os critérios de identidade étnica”. Em: Antropologia do Brasil: mito,
história e etnicidade. O p. cit.
A VIAGEM DA VOLTA
(1 987a) Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasilleose.
(1987b) “Critérios dc indianidade ou lições de antropofagia”. Em: Antropologia do Brasil.
São Paulo: Brasiliense (2a cd.).
(1 9 9 2 a)História dos índios no Brasil (org.). São Paulo: FA PESP/SM C/Com panhia das
Letras.
(1992b) “Política indigenista no século XIX”, Em: História, dos índios no Brasil. São Paulo:
C om panhia das Letras: Secretaria M unicipal de Cultura: FAPESP.
C A SC U D O , Luis da C.
(1937) “N otas sobre o catimbó". Em: Freyre, G. e outots. Novos estudos afro-brasileiras.
(Tomo 2). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
(1979) “Ajucá” e “C atim bó” (verbetes). Em: Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo:
Melhoramentos.
CHART1ER, Roger
(1990) A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa/Rio de Janeiro: D1FEL/
Bertrand Brasil.
C L IFFO R D Ja m e s
(1987) “Id e n tity in Mashpee", Em: Thepredicarnent o f culture: Twentieth-Century ethno-
graphy literature a nd art. Cambridge: Harvard University Press.
(1988) The predicarnent o f culture. Cambridge: Harvard University Ptess.
(1997) Boutes, travei and translation in the late Tuientieth Century. C am bridge/London:
Harvard University Ptess.
C O H E N , Abnet
(1969) Custom andpolitics in urban Africa. London: Routledge & Kegan Paul.
(1974) “T helesson ofethnícity”. Em: Urban etbnicity. London: Tavistock.
C O H E N , A nthony P.
(1985) “T he symbolic construction of social boundaríes”. A.S.A. Conference, Universiry
o f Keele, Anthropology at Home, 25-29 March.
C O L SO N , Elizabeth
(1953) TheM akah Indians: a study ofan indian tribe in modern dmerican sociely. Westport:
Grccnwood Press, 1974.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 3 47
CRESPI, Muricl
(1975) “W hen índios become choios: some consequences o f the changing Ecuatorian
Hacienda". Em: Bcnnett, J. W. (ed.). The new ethnicity, W est Publishing Co.
DESPRES.LeoA.
(1975a) “Ethnicity and rcsource com petition in Guyanese society”. Em; Ethnicity and
resource competition in plural societies. Paris: M outon Publishers.
(1975 b) “Toward a theory of ethnic phenomena”. Em: Ethnicity and resource competition in
plural societies. Paris: M outon Publishers.
E ID H E IM , Harald
(1969) "W hen ethnic identity is a social stigma". Em: Barth, F. (org,). Ethnicgroups a nd
boundaries: the social organization o f cultural difference. Op. cit.
E PST E IN .A .L .
(1978) Ethos and identity. LondoruTavistock.
FABIAN, Johannes
(1983) Tinte and the other: how anthropology builds its object. Cambridge: Camhridge
University Press,
FA R D O N , Rjchard
(1990) “General introduction” . Em: Localizingstrategíes; regionaltraditionsof ethnographic
writing, Edinburgh/W ashington: Scottish Academic Press/Smirhsonian Institution
Press.
A VIAGEM DA VOLTA
FAULHABER, Priscila
(1989) “Terra devastada: agricultura c extrativismo no ‘fim do Brasil’”, Bele'm-PA. Traba
lho apresentado no E ncontro Nacional dos Grupos Temáticos do PIPSA.
FERRAZ, Alvaro
(1957) “Floresta: m emória de uma cidade sertaneja no seu cinqüentenário”, Cadernos de
Pernambuco n. 8. Recife; Secretaria dc Educação e Cultura.
FERREIRA, Ivson
(1998) Segundo relatório parcial de atividades: levantamento fundiário da terra indígena
Xucuru-Kariri. AER - Recife/Funai,
FIBGE
(1991) Anuário estatístico do Brasil, vol. 5 1. Rio de Janeiro: FIBGE.
(1992) Censo demográfico 1991: resultados preliminares. Rio dc Janeiro; FIBGE.
FORTES, Meycr
(1938) “Culcure concact as a dynamic process”. Em: Mair, L. P. (ed.). Methods ofstudy o f
culturalcontaçtin África. London; International Inscitute ofAfrican languages and
C ulture (M em orandum XV) Oxford University Press.
FOUCAULT, Michcl
(1979a) “Soberania e disciplina”. Em: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
(1979b) “Genealogia e poder”. Em: Microflsica do poder. Op. cit.
FUNAI
(1 9 8 8 a )“Q uadro de acom panham ento das áreas indígenas”. Recife: Divisão Fundiária/d1
SUER
(1988b) “Relatório de identificação e delimitação do tetritório X ucuru-K ariri”. Recife:
Divisão Fundiária/3* SUER.
(1 992) “Relatório do G rupo Técnico criado pela Portaria do Presidente n° 1366, de 04/
09/1992. (G T Tremembé)”. Coordenação: Gomes, Jussara V. Rio de Janeiro:
M useu do fndio/FU N A I, mimeo.
FUNARTE/INF/SES1/CDFB.
(1976) “Relatório do G rupo de Trabalho. Levantamento folclórico no litoral do estado do
Ceará, em julho de 1975”. Coordenação: Aloysio de Alencar Pinto. Rio dc Janeiro:
M E C /D A C /FU N A R TE /C D FB , mimeo.
(1979) “Torém /Ceará, docum entário sonoro do folclore brasileiro”, n° 30. Registro
discográfico, com apresentação dc Aloysio de Alencar Pinto, ficha técnica, pesquisa
e gravação. Rio de Janeiro: M EC/Secretaria de Assuntos C ulturais/FU N A R TE.
FU RTADO, Mario
(1954) “Aviso do Posto, Janeiro". Palmeira dos Indios/SPI.
(1961) “ Ofício n. I. 18 de janeiro”. Palmeira do Indios/SPI.
GALLAGHER, Joseh T.
(1974) “T he emergence o f an African erhnic group: the case o f the N dendeuli”, The
International Journal o f American Historical Studies, 7(1).
GALVÁO, Eduardo
(1979) “Áreas culturais indígenas do Brasil: 1900/1959”. Em: Encontro de sociedades. Rio
de Janeiro: Paz e Terra.
GALVÁO, Sebastião de V.
(1897) Diccionario chorografico, histórico e estatístico de Pernambuco. Recife.
G EERTZ, Clifford
(1959) “Form and vartation in a Balinese Village strueture”, American Anthropologist, vol.
61, n. 6.
(1963) “The integrative revolution: prim ordial sentim ents and civil policies in the new
States”. Em: Old societies a n d neto States. New York: Free Press.
(1978) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
(1983a) “Com m on sense as a cultural system”. Em: Localknowledge. New York: Basic Books.
(1983b) “ From the narives point ofview: on the natureofanthropological understanding".
Em: Local knowledge. O p. cit.
(1991) Negara. O estado-teatro no século XIX. Lisboa: Difel.
G O LD ST EIN , Melvín
(1975) “Ethnogencsis and resource com petition am ongT ibetan refugees in S outh índia".
E m : Despres, L. (ed.). Ethn icity and resource competition in plural societies. O p . cit.
G O M E S, Jussara Vieira
(1985) “Relatório sobre os índios do m unicípio de Caucaia do Ceará”. Rio de Janeiro:
C E N D O C -M useu do fndio/FU N A l.
(1988) “Relatório sobre os índios Tremembé (Irarema/Ce). Rio de Janeiro: M useu do
Índio/FU N A I, mimeo.
G R IG N O N , Claude
(1975) “La paysan inclassificable”, Actes de la Recherche en Sciences Sociais, 4.
A VIAGEM DA VOLTA
(2001) Os índios do descobrimento: tradição e turismo. Rio de janeiro: C o n traC ap a.
(2004) Toré: Regime Encantado dos índios do nordeste. Recife: Massangana.
H A N D LER, Richard
(1985) “O n dialogue and dcstrucdve anaiysis: problcm s in narrating nacionalism and
ethnicity” Journal ofAnthropological Research, 4 6 (2).
H A N N E R Z , U lf
(1987) “T he w orld in creolization”, Afiica, 57.
(1989) “Notes on the global ecum ene”, Public Culture 1(2).
(1992) Cultural coniplexity. New York: Colum bia University Press.
(1997) “Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional”, Mana-,
estudos de antropologia social, 3/1, p. 7-39.
H O H E N T H A L Jr., W. D.
(1960) “As tribos indígenas do médio e baixo Sáo Francisco", Revista do Museu Paulista.
(Nova Série, vol. XII). São Paulo.
HO LA N D A , Sérgio Buarque de
(1975) Novo dicionário da língua portuguesa ( I a ed.). Rio dc Janeiro: Nova Fronteira.
H O L S T O N , James
(1993) “Legalizando o ilegal: propriedade e usurpaçáo no Brasil”, Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 21.
H O O R N A ER T, Eduardo e outros
(1992) História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo (Primeira Época)
4a ed, Petrópolis: Vozes/Pauiinas.
JA KOBSON, Roman
(s/d) Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix.
KEYES, Charles F.
(1976) “Towards a new formulatíon of the conccpt o f ethnic group”, Ethnicity, 3.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEITE, Jurandyr Carvalho F.
(1993) “Quantas são as terras indígenas? O m onitoram ento e as listagens de terras indíge
nas”, Resenha & Debate, textos, 1. Rio de Janeiro.
LEITE, Serafim
(1943) Historiada Companhia deJesus no Brasil, v oi. 3. Rio de Janeiro: Im prensa Nacional.
LÉVI-STRAUSS, Claude
(1967) Antropologia estruturai Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
LIM A S O B R IN H O , Barbosa
(1929) Pernambuco e o São Francisco. Recife; Im prensa Oficial.
L IN N E K IN , Jocelyn S.
(1 983) “Defining tradirion: variations on the Hawaiían id en m y", American Etbnologist.
LOUKOTAKA, Cestmir
(1968) Classifieaúon o f South American lndian languages. Los Angeles: University o f Califórnia.
M AINE, H enry
(1861) Ancient taw. London: D em .
M A M IA N I, Luis
(1877) A arte de gramática da língua brasílica da nação Kiriri. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional.
MARCUS, George
(1991) “Identidades passadas, presentes c emergentes: Requisitos para etnografias sobre a
modernidade no final do século XX ao nível m undial”, Revista de Antropologia. São
Paulo: USP, n. 34.
MARIÉ, Michel
(1986) “Penser son territóire: pour uneépistém ologie de 1'espace local”. Em: Espaces, jeu x
etenjeux. Paris: Fayard/Fundarion Diderot.
A VIAGEM DA VOLTA
MASCARENHAS, Lúcia
(1996) “Rio de sangue, ribanceira de corpos: a participação dos índios kiriri e kaim bé na
Guerra de C anudos”. Monografia de conclusão do Bacharelado em Ciências Soci
ais, FFCH /U FBA .
MATA, Vera L. C.
(1989) A semente da terra: identidade e conquista territorial por um grupo indígena
integrado. Tese de doutoram ento, PPGAS/M useu Nacional/UFRJ.
MAUSS, Mareei
(1970) “La nación”. Em: Obras, vol. III. Barcelona: Barrai.
(1979) Mareei Mauss: antropologia. São Paulo: Ática.
MAYER, Adrian
(1987) “A im portância dos quase-grupos no estudo das sociedades complexas”. Em: Antro
pologia das sociedades contemporâneas - métodos. São Paulo: Global Editora.
MESSEDER, Marcos
(1995) Etnicidade e diálogo político: a emergência dos Tremembé. Dissertação de m estrado,
Salvador: UFBA.
MÉTRAUX, Alfred
(1 946) “The Fulniô”, “ThcTremembé”, "The Puri-Coroado linguistic fámily'. Em: Handbook
ofSouth American Indians. Bulletin o fth e Bureau o f American Ethnology, 143(1).
M O ERM A N , Michael
(1965) “E thnic identificadon in a complex civilization: who are the Lue?”, American
Antropologist, 57(5).
M O N T E IR O , John
(1994) Negros da terra: índios e bandeirantes na formação de São Paulo. São Paulo: C om pa
nhia das Letras.
M O R G A N , Lewis H enry
(1877) A sociedade primitiva. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
M OTA, Clarice N.
(1992) "Being and bccoming an Indian: the case ofthe Shoko and Kaiiri-Shoko of Northeast
Brazil”. Em: Proteus (Columbus Quinccnterial 1492-1992) vol. 9, n. 1. Pensyl-
vania: Sheppersburg University.
NAGATA, Judith A.
(1974) “W hat is Malay? Situational selecdon ofethnic identity i n a pl ural society”, American
Ethnologist.
N A SC IM E N T O , M arcoTrom boni
(1994) “O tronco da Jurema: ritual e etnicidade entre os povos indígenas no Nordeste: o
caso kiriri". Dissertação de M estrado em Sociologia, FFCH/UFBA.
N IM U E N D A JU , C urt
(1981) O mapa etno-hittirico de Curt Nimuendaju. Rio de Janeiro: IBGE.
N O V O , José Silva
(1976) Aimofala dos Tremembés, Itapipoca: s.n.
A VIAGEM DA VOLTA
(1994) “A viagem da voka: reelaboração cultural e horizonte político dos povos indígenas
do Nordeste”. Em: Atlas das Terras Indígenas/Nordeste. Rio dc Janeiro: PE T I/
Museu N acional/UFRJ.
(1996) “Pardos, mestiços ou caboclos: os índios nos censos nacionais". Trabalho apresen
tado na mesa-redonda Estatísticas sobre Raça no Brasil, I V Conferência Nacional de
Produtores e Usuários de Dados Estatísticos. IBGE. Rio de Janeiro.
(1998) “U m a etnologia d o s ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos
culturais”. Mana: estudos de antropologia social, 4/1, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.
(2003) Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contempo
râneo. Rio de Janeiro: C ontra Capa.
O V ERIN G .Joanna
(1994) “O Xamã como construtor de m undos: Nelson G oodm an na Amazônia”, Idéias:
1 ( 2 ).
O W USU, Maxwell
(1978) “Ethnography o f Africa: the usefulness o f the useless", American Anthropologist, 80.
PALMEIRA, Moacir
(1977) “Casa e Trabalho: notas sobre as relações sociais na P lantation Tradicional.
C ontraponto, n° 2. Rio de Janeiro: C entro de Estudos Nocl Nutels.
PARSONS, Talcott
(1975) “Some theoretical considerations o fth e nature and crends ofchange o f ethnicity”.
Em: Glazer, N. ôi M oynihan, D. P. (eds.). Ethnicity, theory and experience. Op.
Cit.
PEIR A N O , Mariza H . G.
(1995) “Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na índia". Em: Estilos de antropo
logia. Campinas: Editora da Unicamp.
PERES, Sidnei C.
(1992) “Arrendamentos de terras indígenas: análises de alguns modelos de ação indigenista
no nordeste (1910-1960)’’. Dissertação de M estrado, PPGAS/M useu Nacional/
UFRJ,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PETI - Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil
(1993) Atlas das tetras indígenas do Nordeste, Rio de Janeiro; PETI/PPG A S/M useu Nacio-
nai/UFRJ.
P IN T O , Alfredo M oreira
(1899) “Tapeba”. Em: Apontamentospara o diccionario geographico brasileiro. Rio de Janei
ro: Im prensa Nacional, vol. 3.
PIN T O , Estevão
(1935-38) Os indígenas do Nordeste. São Paulo: Com panhia Editora Nacional. 2 vols.
PITT-RIVERS, Julian
(1971) “ Friendship and authority", Em: Thepeople o f the Sierra. Cbicago: T he University
o f Chicago Press.
P O M PEU S O B R IN H O , Thom az
(1919) “Ethymologia de algumas palavras indígenas", Revista Trimensal do Instituto do
Ceará, 33, Fortaleza: Typ. Studart.
(1951) “índios Trem em bé”, Revista do Instituto do Ceará. Tomo LXV. Fortaleza: Instituto
do Ceará.
(1955) Pré-história Cearense. Fortaleza: Instituto do Ceará.
RADHAKR1SHNAN, R.
(1996) Diasporic mediations between home andlocations. M inneapolis/Lo ndon: University
o f M innesota Press.
RAFFESTTN, Claude
(1986) "Écogénèse territoriale et rcrritorialité." Em: Esapaces, jeu x et enjeux. Fondation
Diderot/Fayatd.
REESINK, Edwin B.
(1984) “A intervenção de órgãos estaduais na definição de áreas indígenas: o exemplo do
Instituto de tetras da Bahia no caso kiriri de M irandela”. Salvador.
REVELJacques
(1989a)jd invenção da sociedade. LisboafRio de Janeiro: D IFEL /B crtrand Brasil.
(1989b)“Conhecim ento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX".
Em: A invenção dasociedade. Lisboa/Rio de Janeiro: D IFEL/Bertrand Brasil, 1990.
RIBEIRO, Darcy
(1970) Os índios e a civilização. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
(1982) “As fronteiras da expansão pastoril”. Em: Os índios e a civilização. Petrópolís: Vozes.
R O N D O N , general Cândido M . S.
(1974) “H istórico do problem a indígena no Brasil e debate de várias teses correlativas”.
Em: Oliveira, L. H . Coletânia de Leis, Atos e Memoriais referentes aos indígenas
brasileiros compilados pelo Oficial administrativo L. Humberto de Oliveira. M inisté
rio da Agricultura, Conselho Nacional de Proteção aos índios. Publicação n° 94.
Rio de Janeiro: Im prensa Nacional.
ROSALBA, LéliaM . E G .
(1976) “O posto indígena de Mirandela”, Boletim do Museu do índio, n °01. Rio de Janeiro:
FNI.
ROSALDO, Renato
(1980) Iilongotbeadbunting. 1883-1974. Stanford: Stanford University Press.
(1984) “Ilongot H unting as story and experience”, Em: Bruner, E.; Turner, V. (eds.). The
anthropology o f experience. Urbana/Chicago: University o f Illinois Press,
(1989) Culture dr truth: the remakingofsocialanalysis. Boston: Beacon Press.
SA HLINS, Marshall
(1990) Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
(1993) “Goodbye to tristes tropes; ethnographyin the context o f m odern w orld history”,
Journal o f M odem History, 65(1).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SC H N E ID E R , David
(í 968) American kinship: a culturalaccount. Engiewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall/Inc.
SEYFERTH, Giraida
(1983) “Etnicidade e cidadania: algumas considerações sobre bases étnicas da mobilização
pollrica”. Em; Boletim dn Museu Nacional, n° 42. Rio de Janeiro: M useuN acional.
(1987) “Grupo étnico" (verbete). Em: Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Funda
ção Getúlio Vargas/MEC.
SIDER, G eraldM .
(1976) “Lumbre indian cultural natioualísm and ethnogenesís”. DialecticalAnthropology, 1.
SILVERMAN, Sydel
{1977) “Patronage and Com m unicy-Nation Relationship in Central Italy". Em: Schmidt,
S.W, (ed,). Friends,followers andfactions, Berkeley: University o f Califórnia Press.
SK IN N ER, Elliot P.
(1975) “C om petition within ethnic systems in Africa.” Em: Despres, L. (ed.). Ethnicity
a n d resource competition in plural societies. O p. cit.
SPIRO , M . E.
(1969) “Factionalism and politics in Village Burma”. Em: Swartz, Marc J. (ed.).. Local levei
politics, social and culturalperspectives. London: L ondon University.
SOARES, Carlos A.
(1977) “Pankararé de brejo do hurgo: um grupo indígena aculturado”, fWerim do Museu do
índio. Rio de Janeiro: M useu do índio.
A VIAGEM DA VOLTA
( I 992b) “Um grande ccrco de paz. Poder tutelar e indianidade no Brasil”. Tese de
doutoram ento, PPGAS/ Museu Nacional/UFRJ.
S T O C K IN G JR., George W.
(1982) Race, culture, and evolution, NewYork: T he Free Press.
(1991) “Colonial situations". Em: Colonial situations: essays on the contexlualization o f
ethnographicknowledge (Coleção H istory o f Anthropolugy, vol. 7). M adison;T he
University ofW isconsin Press.
STOCKS, Anthony
(1981) Los nativos invisibles. Iquitos: C entro Amazônico de Antropologia y Aplicación
Práctica.
ST U D A R T F°, Carlos
(1962) “O s Aborígenes do Ceará (1)", Revistado Instituto do Ceard, tom o LXXVI. Forta
leza: Instituto do Ceará.
(1963) “Os aborígenes do Ceará (2)”, Revista do Instituto do Ceard, vol. 77, Fortaleza.
SW ARTZ, M arcJ.
(1969) Local levei polities, social a n d cultural perspectives. London: L ondon Univ.
SW ARTZ, M. J. e outros
(1966) Politicalanthropology. Chicago: Aldine.
TAYLOR, Anne-Christine
(1984) “L’americanísme tropical: une frondère fossile dc l’echnologie”. Em: Histoires de
1'anthropologie: XVI-XIXSièc/es. Paris: Klinicsieck.
T H O M A S, Nicholas
(1989) Outoftime-, history and evolution in anthropological discourse. Cambridge: Cambridge
University Press.
(1994) Colonialisms culture: anthropology, travei a n d government. Cambridge: Polity Press.
T H O M P S O N , Paul
(1992) A voz do passado: história oral. São Paulo: PazeT erra.
T O D O R O V , Tzvetan
(1993) A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: M artins Fontes.
TO R R E S, Luiz Barros
(1973) A terra de Tiiixi e Txiliá, Palmeira dos indios m s séculos X V III e XIX. Maceió:
Inédito.
(1975) Os índios Xucuru-Kariri em Palmeira dos índios. Maceió: Inédito.
T R O U ILLO T, M ichel-Rolph
(1995) Sileneing the past: power and production o f history. Boston: Beacon Press.
TU R N E R , Terence
(1991) “Representíng, resisting, rethinking; historicai transform atíons oFKayapo culture
and anthropological consciousness”. Em: Colonial situariam. Madison: W isconsin
University Press, p. 285-313.
TU RN ER, Victor
(1 9 6 9 a )“M ukanda; the politics o f a non-politicaf ritual". Em: Swartz, M arc J. (ed.)., Local
levei politics, social and cultural perspectives. London: L ondon Univ.
(1969b) O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Pctrópolis: Vozes.
(1975) Dramas, fields, and metaphors. Ithaca: Cornell University Press.
VANSINA, Jan
(1965) Oral tradition: a study in historical methodology. England: Pengu in Books,
V A N V E L SE N J,
(1987) “A análise situacional e o m étodo de estudo de caso detalhado”. Em: Feldman-
Bianco, B. (org.) Antropologia das sociedades contemporâneas, O p. cit.
V ELHO, Otávio
(1995) “D e novo, os valores?”. Em: Besta-fera: recriação do mundo. Ensaios críticos de
antropologia. Rio de Janeiro; Relume-Dumará.
W ACHTEL, N athan
(1992) “N ote sur le problèm e des identités coilectíves dans les Andes m éridíonales”.
Vhomme, XXXII (122-24).
W AGNER, Roy
(198 L) The invention o f culture. Chicago: T he University o f Chicago Press.
WILLIAMS, Bracketce F.
(1989) "A class act: anthropology and the racc to narion across ethnic terrain”, A nnual
Revieui o f Anthropology, 18.
WOLF, Eric R.
(1982) Europe and people without history. Los Angel es and Berkley, University o f Califórnia
Press.
(1988) “Inventing society”, American ethnologist, 15(4),
W O O R T M A N N , EUen
(1983) “O sítio cam ponês”, Anudrio Antropológico 81. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
W O O R T M A N N , Klaas
(1988) “Com parente não se neguceia”'. Anudrio Antropológico 87. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
Sheila Brasileiro
D o u to ra em C iências Sociais pela U niversid ad e Federal da Bahia.
A ntropóloga do M iuistério Público Federal no Estado da Bahia.
Sidnei Peres
D outor em Ciências Sociais pela Universidade de C am pinas.