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ee Adorno e Flusser: um dialogo possivel Rodrigo Duarte* A investigagio sobre a possibilidade de um didlogo en- tre Theodor Adorno e Vilém Flusser requer um esclarecimento preliminar, pois esse itltimo se celebrizou como um arauto da “pés-histéria” e, como ¢ sabido, muitas opinides conexas a essa concepeao — especialmente aquelas sobre o “fim da histéria” foram proferidas por idedlogos da direita, que se apressaram em celebrar colapso do socialismo real, levando em conta os problemas vividos por esse modelo de sociedade, os quais, culminaram com o consequente desmoronamento do bloco de influéncia soviético no Leste Huropeu, jf anunciado pela que- dado muro de Berlim, em |9H9, l'videntemente, tais pontos de vista nada tem a ver com a Teoria Critiva da Sociedade e, para se evitar esse tipo de conturdo, deve-se ter em mente que a nogao de “pés-histéria”, tal como proposta por Vilém Flusser, perfaz, como jé assinalei alhures!, um ponto de vista profun- damente critico sobre a sociealucde contemporainea, sendo com- pativel, sob varios aspectos, com ox modelos criticos adotado por Theodor Adorno, Professor da Universidade Feoval slo Minan Grain (UIMG) LCF, Rodrigo Duarte, “A plauisil dade ca pachintdrla ni weittlo extéticn”, Trans/Form/Ag3o, Maria v.34, 2011 UNM LOY, 206 Rodrigo Duarte interessante relembrar ainda que, tendo em vista que 0s dois filésofos viveram na mesma época e compartilharam raizes culturais semelhantes, se afigura como muito provavel © fato de ter havido alguma influéncia de um deles sobre outro. No caso presente, nao ha registro de mencao de Ador- no a Flusser; mas desse aquele, hé referencias algumas vezes | pessoa, outras vezes ao tedrico; hé também mendes mais genéricas, aos “frankfurtianos” por parte do filésofo tcheco- brasileiro. Algo que poderia, a principio dificultar 0 estabe- lecimento da possibilidade de um didlogo entre os dois pen- sadores ¢ o fato de que, por vezes, essas referéncias denotam grande respeito de Flusser por Adorno; outras vezes, tradu- zem um sentimento préximo da repulsa, como o demonstra o seguinte trecho de carta a Milton Vargas: (..) no seminatio sobre Kitsch participou um excelente adorniano, (Helmut Lumprecht de Bremen), que analisou o Kitsch do ponto de vista da tal “dialética negativa”.A tese fundamental, (como vocé sabe), est: ‘A negacdo surge da posigio e recai nela. Por exemplo: a razao surge do absurdo natural e vira absurda, (exemplos: Auschwitz, os foguetes americanos). Nao posso imaginar pessimismo mais terrivel. Pois ¢ dizer, no fundo, que o homem morre, nao apesat de negara morte, mas precisamente por negar a morte. Sempre senti calaftios perante os frankfurtianos, mas desta vez. 2 coisa me pegou pelo pescoce’ Esse posicionamento de Flusser nao pode, entretanto, ser interpretado como um juizo definitive sobre Adorno, ja que, em outras passagens, aquele admite até mesmo certa in- fluéncia do filésofo alemao na retomada do marxismo, realiza- da por ele apés 0 seu retorno & Europa no inicio da década de 1970, como o demonstra a seguinte passagem de Bodenlos: “A Yana de Flusser a Mitton Vargas, de 07/09/84, disponivel no Flusser Archiv de Berlim. CARA R TT Adorno 2 Flusser: um dialogo possivel gente se tinha afastado diametraimente do marxiamo. A volta desencantada rumo marxismo, por Spinoza, Hegel e Adorno, esta se dando penosamente apenas agora no segundo distan- ciamento. Mas se tratava, infelizmente, apenas de ‘renascl- mento’, isto 6, de ‘neo-marxismo”’, Além dessas mencdes de Flusser a Adorno, com teor al- ternadamente positivo ou negativo, certo didlogo entre ambos se materializou numa passagem em suas biografias quase to- talmente desconhecida: um encontro entre eles teria ocorride em 1966, quando Flusser, apoiado financeiramente pelo Ita- maraty, fez uma tournée pela Europa e pelos Estados Unidos ¢ teria sido recebido pelo préprio Adorno em Frankfurt, Esse encontro se encontra documentado em duas cartas de Flusse uma delas a Leonidas Hegenberg, outra ao proprio Adomo, Na primeira consta o seguinte: “Esta viagem é para mim um verdadeiro desafio, Nao apenas intelectual (falei com gente do porte de um Adomo, Coing, Heer, Klug, etc.), mas também sentimental (rever a Europa)”*. Se a admiragao de Flusser por Adomo transparece nas entrelinhas desse trecho, ela se reve- la inteiramente na carta de agradecimento pela acolhida em Frankfurt, dirigida a Adorno: Estimado senhor professor, antes de minha partida da Europe, eu gostaria, também em nome de minha esposa, de agradecer pela acolhida amistosa que senhor nos concedeu, Nossa conversa foi part min muito impressionante ¢ instrutiva e eu espero qt senhor envie seu novo livro para uma discussiity em nossos pe-iddicos. Agradego o senhor mais uma we pela honre de ter discutido consigo*. 3 Vilém Flusser, Badenlos. Uma autobiografia fllos6fca. Sao Paul, Ania !hie, 2007, p. 55: 4 Carta de Flusser a Leonidas Hegenberg ,de 31/10/66, disponivel in» Muah Archiv de Berlim. 5 Carta de Flusser a Adorno, de 23/11/66, disponivel no Flixser AMM 207 208 Rodrigo Duarte E interessante observar que, pela data dessa carta, 0 “novo livro” mencionado por Flusser quase com certeza é a Dialética negativa, tao rechacada por ele na supra-referida cor- respondéncia com Milton Vargas. Por outro lado, ¢ inevitével que se tente especular sobre 0 que teria versado a discussdo entre Adorno e Flusser mencionada por esse ultimo e, na im- possibilidade de se saber ao certo o que aconteceu nesse en contro, resta-nos recorrer as obras de ambos 0s fildsofos e, a partir de leituras e/ou releituras, sinalizar os momentos ¢ 08 espacos em que esse dialog poderia ocorrer. Em primeiro lugar deve-se levar em conta uma enorme diferenga entre os fundamentos mais elementares da filosofia de ambos os pensadores: Adorno partiu da sui generis aproxi- macio do marxismo (jé lido pela dtica da filosofia classica ale~ ‘ma) & psicanélise, temperada pela incorporacio de topoi da cri tica nietzschiana da cultura. Um bom exemplo dessa posicao se encontra na palestra inaugural do filésofo na Universidade de Frankfurt, com manuscrito datado de 07/05/1931, na qual transparecem os elementos marxistas ¢ psicanaliticos mescla- dos a. uma discussio sobre o conceito kantiano de coisa em si Aorientacao para a “recusa do mundo das aparéncias", que Freud proclamou, tem validade para além do Ambito da psicandlise, assim como a orientagao da filosofia social progressista para a economia advém nao apenas da preponderancia empirica da economia, mas igualmente da exigéncia imanente da propria interpretacao filoséfica. Se a filosofia hoje perguntasse sobre a relagio absoluta entre coisa em si e fenémeno, ou, para se adotar uma formulagdo mais atwal, pelo puro simples sentido do ser, ou ela permaneceria numa irresponsabilidade formal ou se fragmentaria numa variedade de mundividentes pontos de vista possiveis ce arbitrarios, (..) Seria, entretanto, possivel, que diante Berlim, Original em alemio - tradugio de Rodrigo Duarte Adorno « Flvsner! un dialog ponsivel de uma construgio aufielente da forma mercadoria, © problema da coisa-em-al pura @ ximplesmente desaparecesse: que a figura histérica da merendoria © do valor-de-troca como uma fonte de luz monltasie forma da realidade, enquanto que sobre seu sentido recdndito, o problema da coisa em si, se esforgaria em vvao, pois aquela nao possui sentido recindito, que fosse destacavel do seu primeiro e tinico apatecer historico* K oportuno lembrar que poucas paginas antes do trecho citado acima, nesse mesmo texto, Adorno formula criticas tan- to a ontologia fundamental, de Heidegger, quando ao empiris- mo ldgico — vertente a que, de certo modo, se ligou o primeiro Wittgenstein, Esse posicionamento de Adomo ¢ relevante para a discussao aqui empreendida, uma vez que Flusser, cerca de trinta anos depois, iniciou sua carreira filos6fica realizando nao menos inusitada fusdo de uma teoria da linguagem ad- vinda da ontologia fundamental de Heidegger com outra, de- rivada do primeiro Wittgenstein. Em Lingua e realidade, Flusser propée a lingua como realidade fout court, numa proposta fi- losdfica, segundo a qual o conjunto ~ caético ~ de estimulos & nossa percepgao ainda nao seria o que habitualmente se con- sidera real, na medida em que falta a ele um principio orga- nizador que traga a tona a coeréncia necessaria a constituicao da realidade propriamente dita. Tal principio reside, segundo Flusser, na capacidade humana de compreender racionalmen- te, de pensar, e o fundamento dessa capacidade ¢ nossa ca- pacidade de manipular conceitos. Para ele, tais conceitos nao possuem existéncia para além da que percebemos enquanto palavras, de modo que, ou a prépria realidade se compée de palavras ou nao é nada: J itheodor Adorno, “Dia Aktualitit der Philosophie”. In: Gesammelte Schrift- en 1, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1973, p. 336 et seq ~ tradugao de Ro- dig Duarte. 209

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