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Neste capítulo
Relações entre
Por que ler literatura?
Há muitas formas de responder à pergunta formulada no título deste capítulo. Ma-
nifestações literárias de diversas naturezas sempre estiveram presentes nas práticas dos
grupos sociais humanos, em diferentes culturas, em diferentes partes do mundo. Essa
universalidade do fenômeno literário já seria razão suficiente para considerá-lo merece-
dor de ser conhecido, estudado, analisado.
literatura, No entanto, a melhor maneira de descobrir “por que ler literatura” é vivenciar a opor-
linguagem e
realidade.
tunidade que os textos literários oferecem ao leitor de ver e compreender a realidade de
Funções da
uma maneira diferente, mudando a percepção dele sobre si mesmo e sobre aquilo que
literatura. o cerca. Por isso, este capítulo se inicia com um convite à leitura.
O direito à
literatura.
Sua leitura
O conto apresentado a seguir é de Lygia Fagundes Telles, escritora que ganhou projeção
na cena literária brasileira a partir da década de 1970. Para começar, leia o texto observan-
do que efeitos ele provoca em você: se algo chama especialmente a sua atenção, se lhe cau-
sa estranheza, surpresa, incômodo. Em seguida, leia o texto novamente, dessa vez para res-
ponder às questões propostas na próxima página.
História de passarinho
Um ano depois os moradores do bairro Em verdade, o homem ruivo sabia bem
ainda se lembravam do homem de cabelo poucas coisas. Mas de uma coisa ele estava
ruivo que enlouqueceu e sumiu de casa. certo, é que naquele instante gostaria de es-
Ele era um santo, disse a mulher abrindo tar em qualquer parte do mundo, mas em
os braços. E as pessoas em redor não pergun- qualquer parte mesmo, menos ali. Mais tar-
taram nada nem era preciso, perguntar o que de, quando o passarinho cresceu, o homem
se todos já sabiam que era um bom homem ruivo ficou sabendo também o quanto am-
que de repente abandonou casa, emprego no bos se pareciam, o passarinho e ele.
cartório, o filho único, tudo. E se mandou Ai!, o canto desse passarinho, queixava-se
Deus sabe para onde. a mulher. Você quer mesmo me atormentar,
Só pode ter enlouquecido, sussurrou a mu- Velho. O menino esticava os beiços tentan-
lher, e as pessoas tinham que se aproximar do fazer rodinhas com a fumaça do cigarro
inclinando a cabeça para ouvir melhor. Mas de que subia para o teto, Bicho mais chato, Pai,
uma coisa estou certa, tudo começou com aque- solta ele.
le passarinho, começou com o passarinho. Que Antes de sair para o trabalho, o homem
o homem ruivo não sabia se era um canário ou ruivo costumava ficar algum tempo olhando
um pintassilgo, Ô, Pai! caçoava o filho, que raio o passarinho que desatava a cantar, as asas
de passarinho é esse que você foi arrumar?! trêmulas ligeiramente abertas, ora pousando
O homem ruivo introduzia o dedo entre num pé ora noutro e cantando como se não
as grades da gaiola e ficava acariciando a ca- pudesse parar nunca mais. O homem então
beça do passarinho que por essa época era enfiava a ponta do dedo entre as grades, era a
um filhote todo arrepiado, escassa a pluma- despedida e o passarinho, emudecido, vinha
gem amarelo-pálido com algumas peninhas meio encolhido oferecer-lhe a cabeça para a
de um cinza-claro. carícia. Enquanto o homem se afastava, o
Não sei, filho, deve ter caído de algum ni- passarinho se atirava meio às cegas contra as
nho, peguei ele na rua, não sei que passarinho grades, fugir, fugir. Algumas vezes, o homem
é esse. assistiu a essas tentativas que deixavam o
O menino mascava chicle. Você não sabe passarinho tão cansado, o peito palpitante, o
nada mesmo, Pai, nem marca de carro, nem bico ferido. Eu sei, você quer ir embora, você
marca de cigarro, nem marca de passarinho, quer ir embora, mas não pode ir, lá fora é di-
você não sabe nada. ferente e agora é tarde demais.
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Sobre o texto
1. O conto desenrola-se em torno de uma sequência de fatos. Descreva-os brevemente.
2. Ao longo do conto, é possível perceber uma relação de afinidade entre o homem e o pas-
sarinho e, indiretamente, também entre a mãe e o filho. O que os indivíduos de cada dupla
tinham em comum?
3. Ao ver as tentativas do passarinho de fugir da gaiola, o homem ruivo dizia: “Eu sei, você
quer ir embora, você quer ir embora, mas não pode ir, lá fora é diferente e agora é tarde
demais”. A que o homem se referia ao dizer isso?
4. Qual é a possível relação entre a fuga do passarinho e o sumiço do homem ruivo?
5. No início do conto, a mulher, conversando com os vizinhos, diz do marido desaparecido:
“Ele era um santo” e “Só pode ter enlouquecido”.
a) A maneira como a mulher agia com o marido quando ele ainda vivia com ela é condizen-
te com essa fala? Justifique.
b) Quanto à justificativa da mulher para a fuga do marido, o leitor pode acreditar que essa
é sua opinião sincera ou que ela está escondendo algo dos vizinhos?
6. Ao olhar para o pai momentos antes da sua partida, o menino se dá conta de que ele “era
um homem alto, nunca tinha reparado antes como ele era alto”. O que teria provocado a
mudança de percepção do menino sobre a estatura do pai?
7. O conto chama-se “História de passarinho”. Explique a razão desse título.
8. O homem ruivo desapareceu e o leitor nada mais sabe dele. Há no texto algum indício que
aponte para seu possível futuro? Explique.
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Literatura e linguagem
Repertório Dentre as diversas formas de interação humana, a literatura lança mão de um
tipo específico de linguagem, a verbal, para produzir no espectador um efeito
A história depois da estético. A palavra estética, diretamente ligada às manifestações artísticas, tem
história sua origem em um termo grego que remete àquilo que é “perceptível pelos sen-
O livro O apanhador no campo
tidos, sensível”. O cinema, o teatro, a dança e a música fazem uso de outros re-
de centeio (1951), de J. D. Salinger cursos expressivos: imagens, gestos, cores e sons, associados ou não às palavras.
(1919-2010), narra um fim de se- Na literatura, a palavra está no centro da criação artística e é a matéria-prima de
mana da vida de Holden Caufield, que dispõe o escritor para produzir sentidos, efeitos, impressões, sensações.
jovem de 16 anos que, expulso do
colégio interno, perambula pelas Polissemia
ruas de Nova York em busca de Uma das características da linguagem verbal é a polissemia, a proprie-
respostas para importantes ques- dade de produzir diferentes sentidos conforme o contexto. Por exemplo,
tões existenciais.
uma palavra como santo pode remeter a múltiplos significados (“sagrado”,
Em 2009, J. D. Salinger, então
“divino”, “puro”, “perfeito”, “bondoso”, “isento de culpa”, “pessoa que se
com 90 anos, abriu uma ação ju-
finge de inocente”, “simples”, “ingênua”...), assim como duas palavras de
dicial contra outro escritor, dis-
posto a publicar um romance que sentidos aparentemente distintos podem ser usadas em relação de equiva-
seria uma “continuação” da histó- lência, como em “marca de carro” e “marca de passarinho”, em que a ideia
ria de Holden Caufield, sessenta de “espécie”, ligada ao reino animal, é substituída pela de “marca”, própria
anos depois. das mercadorias ou produtos.
Além da dimensão ética do fato, O mesmo vale para realizações linguísticas mais extensas, como os tex-
uma questão curiosa a respei- tos. O desfecho do conto “História de passarinho”, por exemplo, pode ser
to dos livros ficou em evidência: lido de formas diversas: para alguns, o desaparecimento do homem ruivo
o que acontece com as persona- terá sugerido o início de uma nova vida, mais significativa; para outros, não
gens depois que o livro acaba? poderá ser interpretado como outra coisa senão um ato de insanidade; para
Como continua a história a partir
outros, ainda, lido a partir da perspectiva do que acontecera com o passa-
do momento em que ela deixa de
ser contada por seu autor? rinho, o sumiço do homem poderá ser um prenúncio da sua morte. Todas
essas leituras são possíveis, já que o próprio conto não oferece essa resposta
e, ao mesmo tempo, deixa pistas para que o leitor formule hipóteses sobre
o futuro do homem ruivo.
A polissemia é própria da linguagem verbal e, por isso, não se pode di-
zer que seja exclusiva do texto literário. A abertura de um texto a diversas
interpretações é, sob certo sentido, sempre possível; no entanto, em tex-
tos que têm por objetivo regular a vida em sociedade, tais como as leis, ela
busca ser amenizada. Na literatura, a polissemia é particularmente impor-
tante para o trabalho do escritor; portanto, a abertura para interpretações
diferentes é esperada e desejável.
No dia a dia, os falantes também brincam com a linguagem e produzem,
a todo momento, sentidos novos e inusitados com o objetivo de fazer rir, im-
pressionar, agredir, agradar, provocar. Revistas semanais, por exemplo, empre-
gam com frequência a polissemia no título de suas matérias para dar um toque
de irreverência aos textos. Veja um exemplo.
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Ame-se o que é, como nós, Lições, há quem diga, poesia, pode ocorrer que o título
efêmero. Todo o universo são inúteis, por mais belas. escolhido para a obra não seja
podia chamar-se: gérbera. Melhor, porém, acrescento, simplesmente uma descrição da imagem
representada. A obra apresenta-se,
Tudo, como a flor, pulsa se azuis, vermelhas, amarelas. assim, como um objeto que desafia o
e arde e apodrece. Sei, observador a atribuir-lhe um sentido.
repito ensinamento já sabido
e lições não dizem mais Ferraz, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo:
que margaridas e junquilhos. Companhia das Letras, 2008. p. 57.
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Literatura e realidade
Assim como as demais formas de arte, a literatura cria modos de repre-
sentação do mundo e do ser humano. Mesmo em uma obra abstrata, po-
dem-se estabelecer ligações entre ela e os elementos de dada realidade por
meio de uma leitura interpretativa.
Da mesma forma que um objeto abstrato sempre guarda alguma relação
com o real, uma obra de arte que se proponha a uma representação figu-
rativa de objetos, fenômenos, pessoas, acontecimentos também expressa
um ponto de vista e produz um efeito de sentido a partir da escolha desse
modo de recriar o real. Não deixa, portanto, de ser um simulacro, ou seja,
algo que não tem um estatuto de verdade.
Verossimilhança
No universo da ficção, verossímil é aquilo que, no conjunto da obra ar-
tística, se relaciona de modo coerente para a produção de sentidos. Dife-
rente da noção de “verdade” ou de “verdadeiro”, o verossímil está ligado à
coerência interna da obra artística.
conceito de verossimilhança. Ao rejeitar a ideia da outra personagem de tomar uma “poção da invisibilidade”,
alegando que ela não existe, o ratinho da esquerda ignora que partiu dele mesmo a sugestão de pensar em
um “mundo mágico”.
20
>
Antiguidade Clássica. O primeiro
sobre a realidade – só acontece na leitura, no contato entre leitor e texto. concebeu a teoria atômica. O segundo
Para ilustrar essa afirmação, o ensaio retoma uma referência de Heráclito de é considerado o pai da dialética. As
reputações de “filósofo que chora” e
Éfeso (540 a.C.-470 a.C.). O “rio de Heráclito” sintetiza o sistema filosófi- “filósofo que ri” advêm da Literatura
co proposto por esse pensador: tudo na natureza se move e flui; portanto, Clássica Romana, de autores como
um ser humano nunca pode banhar-se duas vezes em um mesmo rio, pois Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), que atribuíram
uma personalidade alegre e divertida
assim como a água que percorre um rio nunca é a mesma, um ser humano a Demócrito e obscura e melancólica a
que nele se banha também nunca é o mesmo; conforme passa o tempo, ele Heráclito.
se modifica. Ao aproximar a relação entre leitor e texto à imagem do rio e
do ser humano em permanente transformação, o ensaio de Borges atesta a
constante renovação dos textos literários.
A literatura promove, portanto, um espaço de interação estética entre o
autor e seu público. Interação pressupõe troca, diálogo e um conhecimen-
to de mundo que deve ser compartilhado, em um trabalho de cooperação
ativa do leitor no “preenchimento de lacunas” deixadas pelo texto. No con-
to “História de passarinho”, por exemplo, você precisou levar em conta as
pistas deixadas pelo texto para supor de que maneira a fuga do passarinho
poderia ter motivado o sumiço do homem ruivo. Para isso, considerou as
relações entre as personagens, entre outras coisas.
Bramante, Donato. O filósofo que chora (Heráclito)
Intertextualidade e o que ri (Demócrito), 1477. Afresco transferido
para tela, 102 cm 107 cm. Pinacoteca de Brera,
A menção do ensaio de Borges ao rio de Heráclito possibilita uma impor- Milão, Itália.
tante constatação: a interação, na literatura, não se restringe à relação autor-
-obra-leitor. Cada parte desse conjunto também participa de outros conjun-
tos; um escritor também é um leitor. É o caso, por exemplo, de Borges, que
leu Heráclito e revelou essa influência em seu ensaio. Da mesma forma, para
fazer suas interpretações, o leitor mobiliza suas experiências pessoais e rela-
ciona o que lê a outras experiências de leitura. Para um leitor que tenha lido Hipertexto
Heráclito, a menção à metáfora do rio será mais imediatamente identificável.
A intertextualidade, portanto, diz respeito a esse emaranhado de tex- A intertextualidade pode envolver
tos que, de forma explícita ou implícita, dialogam na produção e na também dois textos não literários, ou
um texto literário e um não literário.
leitura de textos. Na literatura, esses diálogos passam a constituir uma Veja na parte de Linguagem (capítulo
tradição, em que os textos permanentemente retomam as referências do pas- 18, p. 219) a análise de um artigo de
sado em movimentos de reverência, negação ou renovação. Quanto maior opinião que explora a intertextualidade
com um soneto.
a experiência de leitura, maiores as possibilidades de um leitor perceber os
diálogos entre um texto literário e a tradição que o antecedeu.
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Uma leitura
A seguir você lerá um poema de José Paulo Paes (1926-1998). Após a leitura, observe nos
boxes laterais a análise de alguns elementos que pedem a participação do leitor cooperativo. Em
seguida, responda em seu caderno à pergunta do último boxe.
<
Na tira de Fernando
Gonsales, a cigarra canta
músicas que enaltecem o
trabalho para entreter as
formigas. Ela conseguiu
ganhar a vida cantando,
mas precisou submeter-
-se a uma “demanda de
mercado” para ser bem-
-sucedida.
Gonsales, Fernando. Jornal de Londrina, 23 out. 2003.
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Sobre o texto
1. Quem é a personagem principal do conto e o que há de inusitado em relação a isso?
2. Ao longo do conto, o que é que faz o jornal transformar-se em folhas impressas e depois
transformar-se novamente em jornal?
3. O terceiro e o quarto parágrafo do conto iniciam-se praticamente com as mesmas pala-
vras. Explique que efeito se cria com essa repetição.
4. Por que o narrador afirma ser esse processo de uso e desuso do jornal uma “excitante
metamorfose”?
5. O jornal é um veículo de informação fundamental na vida contemporânea. Depois de pas-
sar por vários leitores, ele encontra seu fim como um objeto para embrulhar verdura. O
que, portanto, confere a ele o seu valor ou, inversamente, o torna desimportante?
6. Relacione a metáfora citada por Jorge Luis Borges sobre o “rio de Heráclito” ao conto “O
jornal e suas metamorfoses”.
7. A obra literária oferece ao leitor a possibilidade de alterar sua visão de mundo e perceber
aspectos distintos ou novos de sua realidade. Em sua opinião, qual é a mudança de pers-
pectiva oferecida pelo conto de Julio Cortázar?
Repertório
Cronópios, famas e esperanças
Esses são os nomes das criaturas inventadas por Julio Cortázar no
livro Histórias de cronópios e famas.
Instruções para subir escadas, dar cordas em relógios e sentir medo,
além das “estranhas ocupações” de uma família, são alguns dos temas
desse livro. Para Gloria Rodríguez, a tradutora da obra para o português,
Julio Cortázar “[...] escolhe a arma do humor e o caminho do fantástico
para denunciar um mundo onde o sentido humano se perdeu”.
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Funções da literatura
No curso de sua história, o ser humano sempre se indagou sobre o papel
da arte na sociedade. Se a arte tem um compromisso de crítica ao estado
de coisas, ou, inversamente, é um “fim em si mesma” (e não um meio para
atingir outra finalidade), é uma discussão que encontra diferentes respostas
a cada época, em cada meio social.
O mesmo ocorre com a literatura. Uma vez que a obra literária só existe
como objeto social, que se completa na leitura e interação com o leitor, a
“função” da literatura é dependente daquilo a que o leitor se propõe quan-
do busca o texto literário.
Além disso, como disse o escritor Umberto Eco, as grandes obras lite-
rárias tiveram profundo impacto na sociedade, o que extrapola sua impor-
tância para além da relação imediata entre leitor e obra. Por isso, investigar
algumas das funções desempenhadas pela literatura ao longo do tempo é
um modo de reconhecer o seu poder transformador.
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Na sequência, uma série de assassinatos acontecerá na ilha. Junto com O entretenimento proporcionado pela
literatura manifesta-se com bastante
o narrador, o leitor perseguirá pistas, mantendo-se alerta para tudo o que clareza nas crônicas e nos contos de
possa esclarecer o mistério: quem convidou essas pessoas para a ilha e por humor. Na parte de Produção de texto
que estão sendo mortas? Assim, a literatura também cumpre outra função: (capítulo 25, p. 314-315), você pode ler
o divertido conto “De cima para baixo”,
entreter, ou seja, dar ao leitor a oportunidade de passar o tempo de forma escrito por Artur Azevedo.
agradável, prazerosa.
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Obra aberta
Os romances de Émile Zola e de Agatha Christie foram tomados como exemplos de diferen-
tes funções que a literatura pode desempenhar. É possível supor que, no ato de criação, cada es-
critor tenha em mente um público leitor e determinadas intenções. No entanto, o texto literário
ultrapassa seu autor, atinge leitores de outras épocas e lugares e adquire novo interesse a cada
tempo. Assim, não se pode dizer que a função de uma obra literária esteja selada e determinada
no momento em que ela é escrita.
Também não é verdade que essas diferentes funções se concretizem de forma isolada em cada
ato de leitura. Assim como o conto de Lygia Fagundes Telles pode iluminar um aspecto impor-
tante da natureza humana e o poema de Guilherme de Almeida pode entreter o leitor, o conto
de Julio Cortázar também pode denunciar a descartabilidade que marca a sociedade contem-
porânea, o romance de Agatha Christie pode desvendar aspectos psicológicos aos quais não se
está atento e a narrativa de Zola pode ser fonte de entretenimento.
Ao entrar em contato com o texto literário, o leitor passa a participar de um diálogo iniciado
há tempos. Por isso, as possibilidades de interação na literatura são inesgotáveis, assim como
as suas funções.
Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas
do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a
presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília
a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades,
está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em qua-
drinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta
desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou
na leitura corrida de um romance.
Candido, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro - São Paulo: Ouro Sobre Azul - Duas Cidades,
2004. p. 174-175.
O autor conclui, por fim, que é a literatura parte indispensável da “humanização” do ser humano,
devendo ser entendida como um “direito incompressível”, que não pode ser negado a ninguém.
Hipertexto
Assim, o contato com a literatura é um direito fundamental ao ser humano. Por isso, ainda
Na parte de que um leitor não tenha particular interesse ou predileção pelos textos literários, ele não pode
Produção
de texto
ser privado da possibilidade de conhecê-los e de desfrutar deles, razão suficiente para que a li-
(capítulo 30, teratura seja parte dos estudos de linguagem na escola. Negar o contato com qualquer tipo de
p. 358), é representação artístico-literária é privar o sujeito de exercer sua humanidade plenamente.
analisado o
modo como
Antonio >
Candido A contribuição de Antonio Candido para os estudos da literatura
constrói sua é inestimável. Sua obra Formação da literatura brasileira,
argumentação publicada em 1959 e reeditada em 2006, é referência para o
para defender entendimento sobre a maneira como, no Brasil, as relações
a tese de entre autor-obra-público passam a constituir um
que a literatura sistema literário a partir de meados do século XIX,
é um direito em contraposição às “manifestações literárias” que as
fundamental precederam e não participavam, ainda, de uma tradição.
do ser Para ele, só a partir desse momento é possível efetivamente
humano. falar de uma literatura brasileira, entendida como
instituição cultural e patrimônio social.
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Motivo
Eu canto porque o instante existe Se desmorono ou se edifico,
e a minha vida está completa. se permaneço ou me desfaço,
Não sou alegre nem sou triste: – não sei, não sei. Não sei se fico
sou poeta. ou passo.
Sobre o texto
1. Os dois primeiros versos do poema podem ser interpretados como a resposta a uma per-
gunta. Supondo que a palavra canção, no texto, tenha o sentido de criação artística, de
literatura, que pergunta seria essa?
2. Com relação a essa pergunta, o eu lírico (o “eu” que fala no poema) afirma que “o instante
existe”. Mais adiante, afirmará ser, ele mesmo, “irmão das coisas fugidias”. Fugidio signifi-
ca passageiro, que dura pouco. Como entender, então, a resposta do eu lírico à sua própria
pergunta?
3. Ao perguntar-se “Se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, o eu lírico
afirma, repetidamente: “– não sei, não sei. Não sei se fico / ou passo”. Qual parece ser o
estado de espírito do eu lírico diante dessas perguntas, considerando-se o efeito produzi-
do por essa repetição?
4. Ao afirmar “E um dia sei que estarei mudo”, o eu lírico faz referência a uma característica
comum a todos os seres vivos: sua condição de mortais. No entanto, aponta também para
uma particularidade dos seres humanos. Que particularidade é essa?
5. Considerando suas respostas às perguntas anteriores, explique por que o próprio poema
contraria a afirmação do eu lírico sobre o fato de que um dia estará mudo.
6. Pensando na sua experiência de leitura do poema de Cecília Meireles, explique de que
maneira a literatura se opõe ao que é passageiro, temporário.
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