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Capítulo

1
Neste capítulo
ƒƒ Relações entre
Por que ler literatura?
Há muitas formas de responder à pergunta formulada no título deste capítulo. Ma-
nifestações literárias de diversas naturezas sempre estiveram presentes nas práticas dos
grupos sociais humanos, em diferentes culturas, em diferentes partes do mundo. Essa
universalidade do fenômeno literário já seria razão suficiente para considerá-lo merece-
dor de ser conhecido, estudado, analisado.
literatura, No entanto, a melhor maneira de descobrir “por que ler literatura” é vivenciar a opor-
linguagem e
realidade.
tunidade que os textos literários oferecem ao leitor de ver e compreender a realidade de
ƒƒ Funções da
uma maneira diferente, mudando a percepção dele sobre si mesmo e sobre aquilo que
literatura. o cerca. Por isso, este capítulo se inicia com um convite à leitura.
ƒƒ O direito à
literatura.
Sua leitura
O conto apresentado a seguir é de Lygia Fagundes Telles, escritora que ganhou projeção
na cena literária brasileira a partir da década de 1970. Para começar, leia o texto observan-
do que efeitos ele provoca em você: se algo chama especialmente a sua atenção, se lhe cau-
sa estranheza, surpresa, incômodo. Em seguida, leia o texto novamente, dessa vez para res-
ponder às questões propostas na próxima página.

História de passarinho
Um ano depois os moradores do bairro Em verdade, o homem ruivo sabia bem
ainda se lembravam do homem de cabelo poucas coisas. Mas de uma coisa ele estava
ruivo que enlouqueceu e sumiu de casa. certo, é que naquele instante gostaria de es-
Ele era um santo, disse a mulher abrindo tar em qualquer parte do mundo, mas em
os braços. E as pessoas em redor não pergun- qualquer parte mesmo, menos ali. Mais tar-
taram nada nem era preciso, perguntar o que de, quando o passarinho cresceu, o homem
se todos já sabiam que era um bom homem ruivo ficou sabendo também o quanto am-
que de repente abandonou casa, emprego no bos se pareciam, o passarinho e ele.
cartório, o filho único, tudo. E se mandou Ai!, o canto desse passarinho, queixava-se
Deus sabe para onde. a mulher. Você quer mesmo me atormentar,
Só pode ter enlouquecido, sussurrou a mu- Velho. O menino esticava os beiços tentan-
lher, e as pessoas tinham que se aproximar do fazer rodinhas com a fumaça do cigarro
inclinando a cabeça para ouvir melhor. Mas de que subia para o teto, Bicho mais chato, Pai,
uma coisa estou certa, tudo começou com aque- solta ele.
le passarinho, começou com o passarinho. Que Antes de sair para o trabalho, o homem
o homem ruivo não sabia se era um canário ou ruivo costumava ficar algum tempo olhando
um pintassilgo, Ô, Pai! caçoava o filho, que raio o passarinho que desatava a cantar, as asas
de passarinho é esse que você foi arrumar?! trêmulas ligeiramente abertas, ora pousando
O homem ruivo introduzia o dedo entre num pé ora noutro e cantando como se não
as grades da gaiola e ficava acariciando a ca- pudesse parar nunca mais. O homem então
beça do passarinho que por essa época era enfiava a ponta do dedo entre as grades, era a
um filhote todo arrepiado, escassa a pluma- despedida e o passarinho, emudecido, vinha
gem amarelo-pálido com algumas peninhas meio encolhido oferecer-lhe a cabeça para a
de um cinza-claro. carícia. Enquanto o homem se afastava, o
Não sei, filho, deve ter caído de algum ni- passarinho se atirava meio às cegas contra as
nho, peguei ele na rua, não sei que passarinho grades, fugir, fugir. Algumas vezes, o homem
é esse. assistiu a essas tentativas que deixavam o
O menino mascava chicle. Você não sabe passarinho tão cansado, o peito palpitante, o
nada mesmo, Pai, nem marca de carro, nem bico ferido. Eu sei, você quer ir embora, você
marca de cigarro, nem marca de passarinho, quer ir embora, mas não pode ir, lá fora é di-
você não sabe nada. ferente e agora é tarde demais.

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A mulher punha-se então a falar, e falava gato da vizinha desceu o muro, aproximou-se da
uns cinquenta minutos sobre as coisas todas escada onde estava o homem ruivo e ficou ali
que quisera ter e que o homem ruivo não lhe estirado, a se espreguiçar sonolento de tão fe-
dera, não esquecer aquela viagem para Poci- liz. Por entre o pelo negro do gato desprendeu-
nhos do Rio Verde e o trem prateado descendo -se uma pequenina pena amarelo-acinzentada
pela noite até o mar. Esse mar que, se não fosse que o vento delicadamente fez voar. O homem
o pai (que Deus o tenha!), ela jamais teria co- inclinou-se para colher a pena entre o polegar e
nhecido, porque em negra hora se casara com o indicador. Mas não disse nada, nem mesmo
um homem que não prestava para nada, Não quando o menino, que presenciara a cena, de-
sei mesmo onde estava com a cabeça quando satou a rir, Passarinho burro! Fugiu e acabou aí,
me casei com você, Velho. na boca do gato!
Ele continuava com o livro aberto no peito, Calmamente, sem a menor pressa, o ho-
gostava muito de ler. Quando a mulher baixava mem ruivo guardou a pena no bolso do casaco
o tom de voz, ainda furiosa (mas sem saber mais e levantou-se com uma expressão tão estranha
a razão de tanta fúria), o homem ruivo fechava que o menino parou de rir para ficar olhando.
o livro e ia conversar com o passarinho que se Repetiria depois à Mãe, Mas ele até que pa-
punha tão manso que se abrisse a portinhola recia contente, Mãe, juro que o Pai parecia
poderia colhê-lo na palma da mão. Decorridos contente, juro! A mulher então interrompeu o
os cinquenta minutos das queixas, e como ele filho num sussurro, Ele ficou louco.
não respondia mesmo, ela se calava, exausta. Quando formou-se a roda de vizinhos, o
Puxava-o pela manga, afetuosa, Vai, Velho, o menino voltou a contar isso tudo, mas não
café está esfriando, nunca pensei que nesta ida- achou importante contar aquela coisa que des-
de avançada eu fosse trabalhar tanto assim. O cobriu de repente: o Pai era um homem alto,
homem ia tomar o café. Numa dessas vezes, es- nunca tinha reparado antes como ele era alto.
queceu de fechar a portinhola e quando voltou Não contou também que estranhou o andar do
com o pano preto para cobrir a gaiola (era noite) Pai, firme e reto, mas por que ele andava agora
a gaiola estava vazia. Ele então sentou-se no de- desse jeito? E repetiu o que todos já sabiam,
grau de pedra da escada e ali ficou pela madru- que quando o Pai saiu, deixou o portão aberto
gada, fixo na escuridão. Quando amanheceu, o e não olhou para trás.
Telles, Lygia Fagundes. Invenção e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 95-97.

Sobre o texto
1. O conto desenrola-se em torno de uma sequência de fatos. Descreva-os brevemente.
2. Ao longo do conto, é possível perceber uma relação de afinidade entre o homem e o pas-
sarinho e, indiretamente, também entre a mãe e o filho. O que os indivíduos de cada dupla
tinham em comum?
3. Ao ver as tentativas do passarinho de fugir da gaiola, o homem ruivo dizia: “Eu sei, você
quer ir embora, você quer ir embora, mas não pode ir, lá fora é diferente e agora é tarde
demais”. A que o homem se referia ao dizer isso?
4. Qual é a possível relação entre a fuga do passarinho e o sumiço do homem ruivo?
5. No início do conto, a mulher, conversando com os vizinhos, diz do marido desaparecido:
“Ele era um santo” e “Só pode ter enlouquecido”.
a) A maneira como a mulher agia com o marido quando ele ainda vivia com ela é condizen-
te com essa fala? Justifique.
b) Quanto à justificativa da mulher para a fuga do marido, o leitor pode acreditar que essa
é sua opinião sincera ou que ela está escondendo algo dos vizinhos?
6. Ao olhar para o pai momentos antes da sua partida, o menino se dá conta de que ele “era
um homem alto, nunca tinha reparado antes como ele era alto”. O que teria provocado a
mudança de percepção do menino sobre a estatura do pai?
7. O conto chama-se “História de passarinho”. Explique a razão desse título.
8. O homem ruivo desapareceu e o leitor nada mais sabe dele. Há no texto algum indício que
aponte para seu possível futuro? Explique.

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1 Por que ler literatura?

Literatura e linguagem
Repertório Dentre as diversas formas de interação humana, a literatura lança mão de um
tipo específico de linguagem, a verbal, para produzir no espectador um efeito
A história depois da estético. A palavra estética, diretamente ligada às manifestações artísticas, tem
história sua origem em um termo grego que remete àquilo que é “perceptível pelos sen-
O livro O apanhador no campo
tidos, sensível”. O cinema, o teatro, a dança e a música fazem uso de outros re-
de centeio (1951), de J. D. Salinger cursos expressivos: imagens, gestos, cores e sons, associados ou não às palavras.
(1919-2010), narra um fim de se- Na literatura, a palavra está no centro da criação artística e é a matéria-prima de
mana da vida de Holden Caufield, que dispõe o escritor para produzir sentidos, efeitos, impressões, sensações.
jovem de 16 anos que, expulso do
colégio interno, perambula pelas   Polissemia
ruas de Nova York em busca de Uma das características da linguagem verbal é a polissemia, a proprie-
respostas para importantes ques- dade de produzir diferentes sentidos conforme o contexto. Por exemplo,
tões existenciais.
uma palavra como santo pode remeter a múltiplos significados (“sagrado”,
Em 2009, J. D. Salinger, então
“divino”, “puro”, “perfeito”, “bondoso”, “isento de culpa”, “pessoa que se
com 90 anos, abriu uma ação ju-
finge de inocente”, “simples”, “ingênua”...), assim como duas palavras de
dicial contra outro escritor, dis-
posto a publicar um romance que sentidos aparentemente distintos podem ser usadas em relação de equiva-
seria uma “continuação” da histó- lência, como em “marca de carro” e “marca de passarinho”, em que a ideia
ria de Holden Caufield, sessenta de “espécie”, ligada ao reino animal, é substituída pela de “marca”, própria
anos depois. das mercadorias ou produtos.
Além da dimensão ética do fato, O mesmo vale para realizações linguísticas mais extensas, como os tex-
uma questão curiosa a respei- tos. O desfecho do conto “História de passarinho”, por exemplo, pode ser
to dos livros ficou em evidência: lido de formas diversas: para alguns, o desaparecimento do homem ruivo
o que acontece com as persona- terá sugerido o início de uma nova vida, mais significativa; para outros, não
gens depois que o livro acaba? poderá ser interpretado como outra coisa senão um ato de insanidade; para
Como continua a história a partir
outros, ainda, lido a partir da perspectiva do que acontecera com o passa-
do momento em que ela deixa de
ser contada por seu autor? rinho, o sumiço do homem poderá ser um prenúncio da sua morte. Todas
essas leituras são possíveis, já que o próprio conto não oferece essa resposta
e, ao mesmo tempo, deixa pistas para que o leitor formule hipóteses sobre
o futuro do homem ruivo.
A polissemia é própria da linguagem verbal e, por isso, não se pode di-
zer que seja exclusiva do texto literário. A abertura de um texto a diversas
interpretações é, sob certo sentido, sempre possível; no entanto, em tex-
tos que têm por objetivo regular a vida em sociedade, tais como as leis, ela
busca ser amenizada. Na literatura, a polissemia é particularmente impor-
tante para o trabalho do escritor; portanto, a abertura para interpretações
diferentes é esperada e desejável.
No dia a dia, os falantes também brincam com a linguagem e produzem,
a todo momento, sentidos novos e inusitados com o objetivo de fazer rir, im-
pressionar, agredir, agradar, provocar. Revistas semanais, por exemplo, empre-
gam com frequência a polissemia no título de suas matérias para dar um toque
de irreverência aos textos. Veja um exemplo.

Geladeira antiga é fria


O governo brasileiro tem seu projeto antivelharia focado nas geladeiras. Desde o
ano passado, discute-se a implantação de um programa para incentivar as famílias a
trocar seus refrigeradores em mau estado por outros novinhos em folha. O objetivo,
com isso, é reduzir o consumo de eletricidade – e ajudar o país a escapar de um novo
apagão. Geladeiras com mais de dez anos gastam até 40% mais energia. Pela proposta,
seria concedido um desconto de 150 reais no ato da troca.
Revista Veja, 12 ago. 2009. p. 113.

O que diferencia o escritor literário da maioria dos usuários da língua é


que ele tem a exploração da polissemia da linguagem como seu ofício; de-
bruça-se sobre ela de forma intencional, sistemática, planejada.

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  O poder das imagens e dos sons
Em um texto literário, alguns efeitos de sentido podem se encontrar em “par-
celas” da linguagem – em jogos construídos a partir dos sons das palavras, da
sua forma ou do seu significado. Leia este poema de Guilherme de Almeida.

Cigarra Margens do texto


Diamante. Vidraça. No texto literário, a forma do tex-
Arisca, áspera asa risca to participa da construção do seu
o ar. E brilha. E passa. sentido. Procure explicar como
Almeida, Guilherme de. Encantamento, Acaso, Você, seguidos dos haicais a forma desse poema remete ao
completos. Campinas: Ed. da Unicamp, 2002. p. 223. canto da cigarra (observe, para
isso, o uso da pontuação, a orga-
O primeiro verso explora a imagem da cigarra como um “diamante” e nização das palavras e a extensão
como uma “vidraça”. O uso desses dois termos para designar a cigarra pro- dos versos, além da repetição de
duz aquilo que se chama de metáforas: palavras que substituem outras pa- determinados sons).
lavras, sugerindo relações de sentido inusitadas e possibilitando uma leitu-
ra renovada de algum objeto ou acontecimento.
Assim, uma das leituras possíveis do poema é a aproximação do inseto
aos diamantes e a certos tipos de vidraças por meio de uma propriedade
comum: a translucidez. Um objeto translúcido permite a passagem da luz,
mas impede que se enxergue algo que esteja atrás dele. As asas transparen-
tes da cigarra também têm essa propriedade, além de apresentarem saliên-
cias como o diamante ou as vidraças translúcidas de superfície áspera. Essa
relação de equivalência entre as palavras também pode remeter à fragilida-
de do inseto, do vidro e do diamante, que se quebram facilmente.
O poema também consegue um efeito expressivo pela exploração da so-
noridade das palavras. No segundo verso, a aproximação de palavras de
sons semelhantes e sentidos distintos possibilita ao leitor “ouvir” palavras
dentro de outras palavras, como no caso de “arisca”, que traz dentro de si
as palavras “asa” e “risca”. Além disso, a repetição de determinadas vogais e
consoantes remete ao ruído emitido pelo próprio inseto.
Ao ler e reler o poema, nota-se que um elemento aparentemente banal –
uma cigarra – pode revelar uma infinidade de atributos, evidenciados pelo
trabalho com a linguagem. Aspectos não perceptíveis em uma primeira lei-
tura do poema podem ser realçados em leituras posteriores, acrescentando
novos sentidos ao texto.
No que se refere à construção de imagens pelo poema, o título tem gran-
de importância. Há casos em que o título é, de certo modo, “objetivo” e di-
reciona a leitura para um determinado sentido. É este o caso do poema “Ci-
garra”. Em outros, porém, o título não anuncia diretamente o tema que será
tratado, como ocorre no poema a seguir. A palavra vinheta significa “ilus-
tração pequena inserida no texto de um livro”, mas saber disso não dá um
roteiro “objetivo” para a leitura. Cabe ao leitor integrar o título e o texto do
poema para construir uma imagem que faça sentido para ele.
Tozzi, Claudio. Parafusos, 2000. Acrílica sobre tela
colada em madeira, 120 cm  120 cm.
Vinheta
 as artes plásticas, assim como na
N
>

Ame-se o que é, como nós, Lições, há quem diga, poesia, pode ocorrer que o título
efêmero. Todo o universo são inúteis, por mais belas. escolhido para a obra não seja
podia chamar-se: gérbera. Melhor, porém, acrescento, simplesmente uma descrição da imagem
representada. A obra apresenta-se,
Tudo, como a flor, pulsa se azuis, vermelhas, amarelas. assim, como um objeto que desafia o
e arde e apodrece. Sei, observador a atribuir-lhe um sentido.
repito ensinamento já sabido
e lições não dizem mais Ferraz, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo:
que margaridas e junquilhos. Companhia das Letras, 2008. p. 57.

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1 Por que ler literatura?

Literatura e realidade
Assim como as demais formas de arte, a literatura cria modos de repre-
sentação do mundo e do ser humano. Mesmo em uma obra abstrata, po-
dem-se estabelecer ligações entre ela e os elementos de dada realidade por
meio de uma leitura interpretativa.
Da mesma forma que um objeto abstrato sempre guarda alguma relação
com o real, uma obra de arte que se proponha a uma representação figu-
rativa de objetos, fenômenos, pessoas, acontecimentos também expressa
um ponto de vista e produz um efeito de sentido a partir da escolha desse
modo de recriar o real. Não deixa, portanto, de ser um simulacro, ou seja,
algo que não tem um estatuto de verdade.

  Verossimilhança
No universo da ficção, verossímil é aquilo que, no conjunto da obra ar-
tística, se relaciona de modo coerente para a produção de sentidos. Dife-
rente da noção de “verdade” ou de “verdadeiro”, o verossímil está ligado à
coerência interna da obra artística.

Gonsales, Fernando. Níquel Náusea. Folha de S.Paulo, 6 jun. 2009.


 a tirinha de Gonsales, o diálogo entre as personagens produz humor em função de uma brincadeira com o
N
>

conceito de verossimilhança. Ao rejeitar a ideia da outra personagem de tomar uma “poção da invisibilidade”,
alegando que ela não existe, o ratinho da esquerda ignora que partiu dele mesmo a sugestão de pensar em
um “mundo mágico”.

  A autonomia do objeto estético


Ainda que o artista coloque experiências, crenças, valores e visões de
mundo pessoais em um objeto estético, o resultado da obra de arte é sem-
pre maior do que aquilo que motivou a sua criação. Veja o quadro ao lado
do pintor dinamarquês Edvard Munch.
O grito remete a sentimentos como a angústia e a solidão. O rosto da fi-
gura central tem o aspecto de uma caveira e as cores fortes e as linhas dis-
torcidas contribuem para a representação visual do som de um grito que
não parece perturbar as duas figuras da lateral esquerda da tela, enfatizan-
do a impressão de isolamento daquele que “grita”. Sobre o episódio que o
motivou a criar essa pintura, Munch conta o seguinte:

Eu caminhava pela estrada com dois amigos. O sol estava se pondo. De


repente o céu ficou vermelho-sangue. Eu fiquei parado, tremendo de medo.
E senti um grito interminável atravessar a paisagem.
Gariff, David. Os pintores mais influentes do mundo e os artistas que eles inspiraram. Barueri:
Girassol, 2008. p. 142.

Para o observador da tela, pouco importa que essa espécie de ataque de


pânico experimentado por Munch tenha ou não sido a sua motivação. A
Munch, Edvard. O grito, 1893. Óleo, têmpera
e pastel em cartão, 91 cm 3 73,5 cm. National força das imagens e dos símbolos que a pintura evoca não depende da his-
Gallery, Oslo, Noruega. tória pessoal do artista para se construir.

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Literatura e interação
Há, ainda, um elemento que participa de forma decisiva na existência do
texto literário: o leitor. Entendida desse modo, a obra literária é um objeto
social; existe porque alguém a escreve e outro alguém a lê.
Leia o trecho de um ensaio do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
Margens do texto
[...] enquanto não abrimos um livro, esse livro, literalmente, geometrica-
mente, é um volume, uma coisa entre as coisas. Quando o abrimos, quando É fácil entender que os seres hu-
o livro dá com seu leitor, ocorre o fato estético. E, cabe acrescentar, até para manos mudam. A imagem do rio
o mesmo leitor o mesmo livro muda, já que mudamos, já que somos (para em transformação também é cla-
voltar a minha citação predileta) o rio de Heráclito, que disse que o homem ra ao se pensar que as águas se
de ontem não é o homem de hoje e o homem de hoje não será o de amanhã. renovam constantemente. Mas,
Mudamos incessantemente e é possível afirmar que cada leitura de um li- se o livro não sofre nenhuma
vro, que cada releitura, cada recordação dessa releitura renovam o texto. transformação em suas letras, pa-
Também o texto é o mutável rio de Heráclito. lavras, linhas, parágrafos, páginas,
Borges, Jorge Luis. Sete Noites. In: Obras completas de Jorge Luis Borges, v. 3. São Paulo: Globo, como ele pode ser o “rio mutável
2000. p. 284. de Heráclito”?

De acordo com o texto, o “fato estético” – a concretização da possibilida-


 emócrito e Heráclito viveram na
D
de de um texto literário provocar sensações, impressões e novas percepções

>
Antiguidade Clássica. O primeiro
sobre a realidade – só acontece na leitura, no contato entre leitor e texto. concebeu a teoria atômica. O segundo
Para ilustrar essa afirmação, o ensaio retoma uma referência de Heráclito de é considerado o pai da dialética. As
reputações de “filósofo que chora” e
Éfeso (540 a.C.-470 a.C.). O “rio de Heráclito” sintetiza o sistema filosófi- “filósofo que ri” advêm da Literatura
co proposto por esse pensador: tudo na natureza se move e flui; portanto, Clássica Romana, de autores como
um ser humano nunca pode banhar-se duas vezes em um mesmo rio, pois Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), que atribuíram
uma personalidade alegre e divertida
assim como a água que percorre um rio nunca é a mesma, um ser humano a Demócrito e obscura e melancólica a
que nele se banha também nunca é o mesmo; conforme passa o tempo, ele Heráclito.
se modifica. Ao aproximar a relação entre leitor e texto à imagem do rio e
do ser humano em permanente transformação, o ensaio de Borges atesta a
constante renovação dos textos literários.
A literatura promove, portanto, um espaço de interação estética entre o
autor e seu público. Interação pressupõe troca, diálogo e um conhecimen-
to de mundo que deve ser compartilhado, em um trabalho de cooperação
ativa do leitor no “preenchimento de lacunas” deixadas pelo texto. No con-
to “História de passarinho”, por exemplo, você precisou levar em conta as
pistas deixadas pelo texto para supor de que maneira a fuga do passarinho
poderia ter motivado o sumiço do homem ruivo. Para isso, considerou as
relações entre as personagens, entre outras coisas.
Bramante, Donato. O filósofo que chora (Heráclito)
  Intertextualidade e o que ri (Demócrito), 1477. Afresco transferido
para tela, 102 cm  107 cm. Pinacoteca de Brera,
A menção do ensaio de Borges ao rio de Heráclito possibilita uma impor- Milão, Itália.
tante constatação: a interação, na literatura, não se restringe à relação autor-
-obra-leitor. Cada parte desse conjunto também participa de outros conjun-
tos; um escritor também é um leitor. É o caso, por exemplo, de Borges, que
leu Heráclito e revelou essa influência em seu ensaio. Da mesma forma, para
fazer suas interpretações, o leitor mobiliza suas experiências pessoais e rela-
ciona o que lê a outras experiências de leitura. Para um leitor que tenha lido Hipertexto
Heráclito, a menção à metáfora do rio será mais imediatamente identificável.
A intertextualidade, portanto, diz respeito a esse emaranhado de tex- A intertextualidade pode envolver
tos que, de forma explícita ou implícita, dialogam na produção e na também dois textos não literários, ou
um texto literário e um não literário.
leitura de textos. Na literatura, esses diálogos passam a constituir uma Veja na parte de Linguagem (capítulo
tradição, em que os textos permanentemente retomam as referências do pas- 18, p. 219) a análise de um artigo de
sado em movimentos de reverência, negação ou renovação. Quanto maior opinião que explora a intertextualidade
com um soneto.
a expe­riência de leitura, maiores as possibilidades de um leitor perceber os
diálogos entre um texto literário e a tradição que o antecedeu.

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1 Por que ler literatura?

Uma leitura
A seguir você lerá um poema de José Paulo Paes (1926-1998). Após a leitura, observe nos
boxes laterais a análise de alguns elementos que pedem a participação do leitor cooperativo. Em
seguida, responda em seu caderno à pergunta do último boxe.

Ao ler o título, o leitor cooperativo ativa sua lembrança da conhecida fábula “A


cigarra e a formiga” e se pergunta sobre o significado de “& Cia.”, expressão que
se usa nos nomes de empresas: o que têm a cigarra e a formiga a ver com uma O leitor precisa
empresa? recuperar a
informação
sobre os papéis
desempenhados
Cigarra, Formiga & Cia. por essas duas
O trecho “Deixando personagens na
de parte atividades
Cansadas dos seus papéis fabulares, a cigarra e a formiga fábula original. A
mais lucrativas” dá resolveram associar-se para reagir contra a estereotipia a que palavra estereotipia
a entender que a haviam sido condenadas. também se refere
formiga não tem a esses papéis:
interesse material segundo a fábula, a
ao empresariar Deixando de parte atividades mais lucrativas, a formiga empresou formiga “típica” é
a cigarra. Ela é a cigarra. Gravou-lhe o canto em discos e saiu a vendê-los de aquela que trabalha
apresentada como porta em porta. A aura de mecenas a redimiu para sempre do muito; a cigarra
mecenas, uma “típica” canta
pessoa que ajuda
antigo labéu de utilitarista sem entranhas. durante o verão
financeiramente sem se preocupar
os artistas, e isso a Graças ao mecenato da formiga, a cigarra passou a ter comida e em armazenar
“redime” (corrige alimentos para o
moradia no inverno. Já ninguém a poderia acusar de imprevidência
sua falha) do tempo inverno.
em que ela só se
boêmia.
preocupava com
bens materiais. O desfecho desta refábula não é róseo. A formiga foi expulsa do
formigueiro por lhe haver traído as tradições de pragmatismo à O ambiente citado
no poema é o de
outrance e a cigarra teve de suportar os olhares de desprezo com uma sociedade
que o comum das cigarras costuma fulminar a comercialização da mercantil e urbana,
arte. onde há compra e
Paes, José Paulo. Socráticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 63. venda de produtos
artísticos. Esse
ambiente contrasta
com o cenário
rural presente na
Aqui a cigarra relembra o final triste As fábulas são narrativas que costumam
fábula “A cigarra e a
que tem na fábula: faminta e com apresentar, a partir da personificação de
formiga”.
frio, foi bater à porta da formiga, animais, uma situação da qual se extrai
que lhe negou ajuda, acusando-a de uma lição de moral. Assim como a fábula “A
imprevidente por só ter cantado no cigarra e a formiga” ensinava a importância
verão, sem armazenar nada para o de se pensar no futuro e se preparar para
inverno. os tempos difíceis, pode-se dizer que o
poema de José Paulo Paes procura ensinar
uma lição ligada, possivelmente, à relação
do poeta com seus empresários e com os
próprios poetas. Considerando essa hipótese,
explique a visão que o poema manifesta a
respeito desse assunto.

<
Na tira de Fernando
Gonsales, a cigarra canta
músicas que enaltecem o
trabalho para entreter as
formigas. Ela conseguiu
ganhar a vida cantando,
mas precisou submeter-
-se a uma “demanda de
mercado” para ser bem-
-sucedida.
Gonsales, Fernando. Jornal de Londrina, 23 out. 2003.

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Sua leitura
O escritor Julio Cortázar é conhecido por narrar, em histórias curtas, fatos banais da
vida cotidiana a partir de uma perspectiva inusitada. Leia a seguir um de seus contos. Em
seguida, responda às questões propostas em seu caderno.

O jornal e suas metamorfoses


Um senhor pega um bonde depois de comprar o jornal e pô-lo debaixo do braço. Meia hora
depois, desce com o mesmo jornal debaixo do mesmo braço.
Mas já não é o mesmo jornal, agora é um monte de folhas impressas que o senhor abandona
num banco da praça.
Mal fica sozinho na praça, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até
que um rapaz o descobre, o lê, e o deixa transformado num monte de folhas impressas.
Mal fica sozinho no banco, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até
que uma velha o encontra, o lê e o deixa transformado num monte de folhas impressas. Depois,
leva-o para casa e no caminho aproveita-o para embrulhar um molho de celga, que é para o que
servem os jornais depois dessas excitantes metamorfoses.
Cortázar, Julio. Histórias de cronópios e de famas. 4. ed. Trad. Glória Rodríguez. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 64-65.

Sobre o texto
1. Quem é a personagem principal do conto e o que há de inusitado em relação a isso?
2. Ao longo do conto, o que é que faz o jornal transformar-se em folhas impressas e depois
transformar-se novamente em jornal?
3. O terceiro e o quarto parágrafo do conto iniciam-se praticamente com as mesmas pala-
vras. Explique que efeito se cria com essa repetição.
4. Por que o narrador afirma ser esse processo de uso e desuso do jornal uma “excitante
metamorfose”?
5. O jornal é um veículo de informação fundamental na vida contemporânea. Depois de pas-
sar por vários leitores, ele encontra seu fim como um objeto para embrulhar verdura. O
que, portanto, confere a ele o seu valor ou, inversamente, o torna desimportante?
6. Relacione a metáfora citada por Jorge Luis Borges sobre o “rio de Heráclito” ao conto “O
jornal e suas metamorfoses”.
7. A obra literária oferece ao leitor a possibilidade de alterar sua visão de mundo e perceber
aspectos distintos ou novos de sua realidade. Em sua opinião, qual é a mudança de pers-
pectiva oferecida pelo conto de Julio Cortázar?

Repertório
Cronópios, famas e esperanças
Esses são os nomes das criaturas inventadas por Julio Cortázar no
livro Histórias de cronópios e famas.
Instruções para subir escadas, dar cordas em relógios e sentir medo,
além das “estranhas ocupações” de uma família, são alguns dos temas
desse livro. Para Gloria Rodríguez, a tradutora da obra para o português,
Julio Cortázar “[...] escolhe a arma do humor e o caminho do fantástico
para denunciar um mundo onde o sentido humano se perdeu”.

Escritor belga de pais argentinos, Julio Cortázar


(1914-1984) comenta: “Meu nascimento [em Bruxelas]
foi produto do turismo e da diplomacia”.

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1 Por que ler literatura?

Funções da literatura
No curso de sua história, o ser humano sempre se indagou sobre o papel
da arte na sociedade. Se a arte tem um compromisso de crítica ao estado
de coisas, ou, inversamente, é um “fim em si mesma” (e não um meio para
atingir outra finalidade), é uma discussão que encontra diferentes respostas
a cada época, em cada meio social.
O mesmo ocorre com a literatura. Uma vez que a obra literária só existe
como objeto social, que se completa na leitura e interação com o leitor, a
“função” da literatura é dependente daquilo a que o leitor se propõe quan-
do busca o texto literário.
Além disso, como disse o escritor Umberto Eco, as grandes obras lite-
rárias tiveram profundo impacto na sociedade, o que extrapola sua impor-
tância para além da relação imediata entre leitor e obra. Por isso, investigar
algumas das funções desempenhadas pela literatura ao longo do tempo é
um modo de reconhecer o seu poder transformador.

Margens do texto   A literatura como denúncia social


1. A personagem Boa Morte prefe- Em 1884, Émile Zola publicava Germinal, romance que narra uma greve
re continuar trabalhando para de trabalhadores das minas de carvão no norte da França, deflagrada pela
obter uma aposentadoria de redução de salários e pelas péssimas condições de trabalho. Na cena a se-
maior valor. Qual é a importân- guir, Étienne, recém-chegado à mina de Voreux, conhece Boa Morte, que lá
cia dessa postura para o efeito trabalha há mais de cinquenta anos.
de denúncia social produzido
pelo texto?
2. Escolha um trecho do diálogo
— Eu sou de Montsou e me chamo Boa Morte.
que, em sua opinião, seja par- — É o seu apelido? — perguntou Étienne, espantado.
ticularmente expressivo ou im- — É... Já me retiraram três vezes lá de dentro, em pedaços. Uma vez com
pactante. Registre-o em seu ca- o cabelo queimado, outra com terra até a barriga, e a última com a barriga
derno e explique o que chamou cheia de água... Como viram que eu não queria morrer, me deram o apelido
sua atenção na maneira como o de Boa Morte.
texto foi construído. Deu uma risada que se transformou num acesso de tosse e escarrou para
o lado um catarro negro.
[...]
— Eles me mandam descansar — continuou Boa Morte —, mas não
quero. Dentro de dois anos, tenho direito à aposentadoria de cento e oitenta
francos. Se eu parasse hoje, teria cento e cinquenta francos. Esses danados
são espertos!... Mas, fora minhas pernas, sou forte. Foi a água que me deu
problema; dentro da mina, a gente fica o tempo todo com as pernas dentro
da água. Em certos dias não consigo mexer os pés sem gritar de dor.
Outro acesso de tosse interrompeu o mineiro.
— E essa tosse?
— Desde o mês passado que estou resfriado. Nunca tossia, agora não
consigo me livrar da tosse. E escarro sem parar...
De novo o velho cuspiu negro.
— É sangue? — perguntou Étienne, ganhando coragem.
— É carvão. Tenho tanto carvão nesta carcaça que dá para me esquentar
até o fim da vida!
Zola, Émile. Germinal. Trad. Silvana Salerno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 14-16.

O caráter realista do texto e a crueza da descrição da personagem Boa


Morte trazem à tona as dificuldades vividas pelos mineiros e seus enfren-
tamentos junto à classe patronal. Nesse sentido, Germinal funciona como um
instrumento de denúncia social, não apenas da realidade vivenciada por
 ôster de divulgacão da peça Germinal,
P aquele grupo específico de mineiros, mas também por outros grupos que
>

c. 1884. Litografia. vivem em condições semelhantes.

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  A literatura como investigação psicológica
Na continuação de Germinal, Étienne passa a liderar a greve dos minei-
ros. Leia o trecho a seguir e observe a investigação feita pelo narrador sobre Repertório
as motivações de alguns atos da personagem. Ritos de escrita
Comprometido em denunciar o
A partir de então, Étienne foi o líder indiscutível do movimento. Passava processo de desumanização dos
as noites lendo, recebia muitas cartas e um jornal socialista belga, Vingador, trabalhadores das minas, Émile
o primeiro que entrava na aldeia, o que elevou muito a consideração que os Zola passou alguns meses experi-
camaradas tinham por ele. Sua popularidade crescente o excitava cada vez mentando de perto a vida nas mi-
mais. Discutir o destino dos trabalhadores nos quatro cantos da província, nas de carvão e nas vilas operárias,
aconselhar os mineiros da Voreux, tornar-se o centro, sentir o mundo girar de onde extraiu material para a
à sua volta, tudo isso o envaidecia muito, ele, um antigo mecânico, hoje car- construção de suas personagens.
voeiro, com as mãos sempre sujas. [...] E seu sonho de ser um líder popular Outros escritores desenvolve-
o embalava de novo: Montsou a seus pés, Paris a distância, quem sabe?, a ram processos de criação distin-
Câmara dos Deputados um dia, a tribuna elegante, onde ele se via enfren- tos. Gustave Flaubert (1821-1880),
tando os burgueses no primeiro discurso pronunciado por um operário no por exemplo, escrevia em seu es-
Parlamento. critório, “berrando” seus textos;
Zola, Émile. Germinal. Trad. Silvana Salerno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 87. Marcel Proust (1871-1922) isolou-
-se em um quarto fechado, escuro
e à prova de som.
Étienne está profundamente envolvido com a causa dos mineiros, mas o Os ritos ligados ao processo
narrador deixa transparecer que o jovem também alimentava sentimentos criativo dos escritores e artistas
de outra natureza, como a vaidade e a ambição. em geral alimentam a curiosida-
A revelação dos aspectos contraditórios com que o ser humano se equili- de do público, especialmente a
bra ante as adversidades da vida também é alcançada de forma privilegiada partir do século XIX.
pela literatura, que tem, assim, a função de investigar as motivações hu-
manas, diante de circunstâncias históricas concretas.

  A literatura como entretenimento


Em um romance da inglesa Agatha Christie, dez pessoas que não se co-
nhecem estão hospedadas em uma ilha. Na primeira noite, após o jantar,
ainda sem entender a ausência dos anfitriões, são surpreendidas por uma
voz misteriosa que acusa cada uma delas da morte de uma pessoa. Na cena
a seguir, após descobrir que os empregados desconhecem a identidade do
dono da casa (foram contratados por carta, através de uma agência de em-
pregos), os acusados recordam de que maneira foram convidados a ir à ilha
e se dão conta de estarem envolvidos em uma estranha situação. Manet, Edouard. Retrato de
Émile Zola, 1868. Óleo sobre
tela, 146,5 cm 3 114 cm. Museu
— Há alguma coisa de muito singular em tudo isto. Recebi uma carta D’Orsay, Paris, França.
com uma assinatura pouco legível. Dizia provir de uma senhora que encon-
trei em certo lugar de veraneio, dois ou três anos atrás. Supus que o nome
fosse Ogden ou Oliver. Conheço uma Sra. Oliver, e também uma Srta. Og-
den, mas tenho plena certeza de que nunca encontrei ou fiz amizade com
uma pessoa chamada Owen.
— Tem consigo essa carta, Miss Brent? — perguntou o juiz.
— Sim, tenho. Vou buscá-la para o senhor ver.
Saiu da sala e um minuto mais tarde voltou com a carta.
Christie, Agatha. O caso dos dez negrinhos. 17. ed. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre-Rio de
Janeiro: Globo, 1986. p. 41-42.
Hipertexto

Na sequência, uma série de assassinatos acontecerá na ilha. Junto com O entretenimento proporcionado pela
literatura manifesta-se com bastante
o narrador, o leitor perseguirá pistas, mantendo-se alerta para tudo o que clareza nas crônicas e nos contos de
possa esclarecer o mistério: quem convidou essas pessoas para a ilha e por humor. Na parte de Produção de texto
que estão sendo mortas? Assim, a literatura também cumpre outra função: (capítulo 25, p. 314-315), você pode ler
o divertido conto “De cima para baixo”,
entreter, ou seja, dar ao leitor a oportunidade de passar o tempo de forma escrito por Artur Azevedo.
agradável, prazerosa.

25

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1 Por que ler literatura?

Obra aberta
Os romances de Émile Zola e de Agatha Christie foram tomados como exemplos de diferen-
tes funções que a literatura pode desempenhar. É possível supor que, no ato de criação, cada es-
critor tenha em mente um público leitor e determinadas intenções. No entanto, o texto literário
ultrapassa seu autor, atinge leitores de outras épocas e lugares e adquire novo interesse a cada
tempo. Assim, não se pode dizer que a função de uma obra literária esteja selada e determinada
no momento em que ela é escrita.
Também não é verdade que essas diferentes funções se concretizem de forma isolada em cada
ato de leitura. Assim como o conto de Lygia Fagundes Telles pode iluminar um aspecto impor-
tante da natureza humana e o poema de Guilherme de Almeida pode entreter o leitor, o conto
de Julio Cortázar também pode denunciar a descartabilidade que marca a sociedade contem-
porânea, o romance de Agatha Christie pode desvendar aspectos psicológicos aos quais não se
está atento e a narrativa de Zola pode ser fonte de entretenimento.
Ao entrar em contato com o texto literário, o leitor passa a participar de um diálogo iniciado
há tempos. Por isso, as possibilidades de interação na literatura são inesgotáveis, assim como
as suas funções.

  A literatura como direito


Para além de funções e finalidades, a literatura é um direito de todos. É o que defende o crí-
tico literário Antonio Candido em seu texto “O direito à literatura”. Antes de apresentar seus
argumentos, o estudioso explica que está tomando como literatura “todas as criações de toque
poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cul-
tura, [...] folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das
grandes civilizações”.
Em seguida, Candido argumenta que, entendida desta forma, a literatura é um fenômeno
universal de todos os tempos e lugares, inseparável da vida dos seres humanos.

Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas
do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a
presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília
a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades,
está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em qua-
drinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta
desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou
na leitura corrida de um romance.
Candido, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro - São Paulo: Ouro Sobre Azul - Duas Cidades,
2004. p. 174-175.

O autor conclui, por fim, que é a literatura parte indispensável da “humanização” do ser humano,
devendo ser entendida como um “direito incompressível”, que não pode ser negado a ninguém.
Hipertexto
Assim, o contato com a literatura é um direito fundamental ao ser humano. Por isso, ainda
Na parte de que um leitor não tenha particular interesse ou predileção pelos textos literários, ele não pode
Produção
de texto
ser privado da possibilidade de conhecê-los e de desfrutar deles, razão suficiente para que a li-
(capítulo 30, teratura seja parte dos estudos de linguagem na escola. Negar o contato com qualquer tipo de
p. 358), é representação artístico-literária é privar o sujeito de exercer sua humanidade plenamente.
analisado o
modo como
Antonio >
Candido A contribuição de Antonio Candido para os estudos da literatura
constrói sua é inestimável. Sua obra Formação da literatura brasileira,
argumentação publicada em 1959 e reeditada em 2006, é referência para o
para defender entendimento sobre a maneira como, no Brasil, as relações
a tese de entre autor-obra-público passam a constituir um
que a literatura sistema literário a partir de meados do século XIX,
é um direito em contraposição às “manifestações literárias” que as
fundamental precederam e não participavam, ainda, de uma tradição.
do ser Para ele, só a partir desse momento é possível efetivamente
humano. falar de uma literatura brasileira, entendida como
instituição cultural e patrimônio social.

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Sua leitura
Cecília Meireles (1901-1964), nascida no início do século XX no Rio de Janeiro, publicou
seu primeiro livro de poesia aos 18 anos de idade. Ao longo de toda a sua vida escreveu
intensamente, tornando-se um dos mais conhecidos nomes da literatura nacional. Leia a
seguir um de seus poemas.

Motivo
Eu canto porque o instante existe Se desmorono ou se edifico,
e a minha vida está completa. se permaneço ou me desfaço,
Não sou alegre nem sou triste: – não sei, não sei. Não sei se fico
sou poeta. ou passo.

Irmão das coisas fugidias, Sei que canto. E a canção é tudo.


não sinto gozo nem tormento. Tem sangue eterno a asa ritmada.
Atravesso noites e dias E um dia sei que estarei mudo:
no vento. – mais nada.
Meireles, Cecília. Viagem/Vaga música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 14.

Sobre o texto
1. Os dois primeiros versos do poema podem ser interpretados como a resposta a uma per-
gunta. Supondo que a palavra canção, no texto, tenha o sentido de criação artística, de
literatura, que pergunta seria essa?
2. Com relação a essa pergunta, o eu lírico (o “eu” que fala no poema) afirma que “o instante
existe”. Mais adiante, afirmará ser, ele mesmo, “irmão das coisas fugidias”. Fugidio signifi-
ca passageiro, que dura pouco. Como entender, então, a resposta do eu lírico à sua própria
pergunta?
3. Ao perguntar-se “Se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, o eu lírico
afirma, repetidamente: “– não sei, não sei. Não sei se fico / ou passo”. Qual parece ser o
estado de espírito do eu lírico diante dessas perguntas, considerando-se o efeito produzi-
do por essa repetição?
4. Ao afirmar “E um dia sei que estarei mudo”, o eu lírico faz referência a uma característica
comum a todos os seres vivos: sua condição de mortais. No entanto, aponta também para
uma particularidade dos seres humanos. Que particularidade é essa?
5. Considerando suas respostas às perguntas anteriores, explique por que o próprio poema
contraria a afirmação do eu lírico sobre o fato de que um dia estará mudo.
6. Pensando na sua experiência de leitura do poema de Cecília Meireles, explique de que
maneira a literatura se opõe ao que é passageiro, temporário.

O que você pensa disto?


Nos dias de hoje, órgãos governamentais e setores da sociedade civil
promovem iniciativas de estímulo à leitura entre os jovens. Tal esforço
se faz no sentido de possibilitar o acesso ao livro e à literatura a parce-
las da população, que, ao longo do tempo, tiveram negado o seu direito
a esse bem cultural. Ter a leitura como um hábito integrado ao cotidiano
é, porém, algo ainda distante de grande parte dos brasileiros.
ƒƒ Na sua opinião, o “prazer de ler” é algo que pode ser ensinado? Em caso
positivo, qual é o papel da escola nesse processo? Em caso negativo,
como se desenvolve esse prazer?

Folheto do projeto “Ler com Andersen”, parte da proposta do programa de


incentivo à leitura “Ler é uma viagem”, iniciado em 2003. Por meio da leitura
pública de textos literários, acompanhada por música ao vivo, a equipe
do programa convida os leitores-ouvintes a “viajar” com a literatura.

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