Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
ISBN 978-85-63449-08-5
9 788563 449085
Crescendo em silêncio:
A incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX
Roberto B. Martins
Crescendo em silêncio:
A incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX
ICAM - ABPHE
Belo Horizonte
2018
Título original: Growing in silence: the slave economy of nineteenth-century Minas Gerais, Brazil.
Tese de doutorado, Universidade de Vanderbilt, Nashville, 1980.
M386
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-63449-08-5
ICAM
Instituto Cultural Amilcar Martins
ABPHE
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
Para Duca
ICAM – Instituto Cultural
Amilcar Martins
É
com grande entusiasmo que o Instituto Cultural Amilcar Martins se junta
à Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica para a
publicação de Crescendo em Silencio: a incrível economia escravista de Minas
Gerais no século XIX, de Roberto Martins, que contém a primeira edição integral,
em português, da importante tese Growing in Silence: the Slave Economy of Ninete-
enth-Century Minas Gerais, Brazil, defendida pelo autor na Universidade de Van-
derbilt, nos Estados Unidos, em 1980.
Apesar de até hoje só ter sido divulgado por meio de artigos, seminários e con-
gressos, o trabalho de Roberto Martins tornou-se leitura e referência obrigatória
para os estudiosos da escravidão no Brasil, especialmente para aqueles interessados
na história da província de Minas Gerais. É considerado um verdadeiro divisor de
águas, não apenas por sua reinterpretação da história de Minas, mas também por
desafiar, com sucesso, a visão tradicional, até então dominante na historiografia
brasileira e internacional, de que a escravidão só teve viabilidade nas economias
exportadoras de produtos primários.
Há quase 40 anos, as teses defendidas por Roberto Martins têm estado no cen-
tro de um debate acadêmico internacional sobre a origem da população escrava e a
própria natureza da economia mineira do século XIX, que foi iniciado nas páginas
da prestigiosa Hispanic American Historical Review, e se prolonga até os nossos
dias, enriquecendo cada vez mais a historiografia sobre a escravidão, sobre Minas
e sobre o Brasil.
Para nós do ICAM, que somos uma instituição dedicada a promover estudos e
pesquisas sobre a história e a cultura de Minas, não há como exagerar a importân-
cia da presente publicação, que certamente terá grande impacto no conhecimento
sobre o nosso passado. Obrigado, Roberto, por esse livro que já devia estar entre
nós há muitos anos, e que é muito benvindo agora.
A
tese de doutorado de Roberto Borges Martins – “Growing in silence: the
slave economy of nineteenth-century Minas Gerais, Brazil” - defendida em
1980 na Vanderbilt University, teve uma trajetória única no pensamento
social brasileiro. Texto muito citado e nem sempre lido, tornou-se referência obri-
gatória entre aqueles que estudam a economia brasileira no oitocentos e impôs
reflexões e inflexões no fazer historiográfico que até hoje são sentidas para a com-
preensão da importância que a escravidão teve na formação de nossa sociedade.
Orgulhosa de ter o professor Roberto como um dos seus mais antigos mem-
bros, e orgulhosa de participar, juntamente com o ICAM, da publicação de tão
importante obra, a ABPHE reafirma seu compromisso de apoiar e difundir estudos
que, ao deslindarem nosso passado, contribuam ativamente para a discussão crítica
de nosso presente.
A
milcar Vianna Martins, foi o pai mais generoso do mundo. Homem pobre
de dinheiro – viveu e criou seus nove filhos com o salário de professor –
nunca teve nada de seu, para que pudéssemos ter tudo. Sem nenhum luxo
e com muita luta, nos deu tudo o que realmente importa, principalmente uma edu-
cação de qualidade, e uma casa cheia de livros.
Médico, biólogo, e cientista, tinha uma vasta cultura humanista e era um incan-
sável lutador pela democracia, no Brasil e no mundo. Voluntário na FEB, lutou con-
tra o nazismo na Itália. Sua militância pela justiça social o levou a ser perseguido
pela ditadura militar de 64.
Era apaixonado pela UFMG, onde se formou em medicina aos 22 anos, e foi
professor durante mais de quatro décadas. Só se afastou dela por alguns momentos,
para dirigir instituições nacionais de pesquisa, ou quando, cassado em 1969 pelo
AI-5, teve de encontrar trabalho em outros países. Voltou como Professor Emérito,
em 79, e retomou suas pesquisas até morrer, anos depois, vítima do mal de Chagas,
que o pegou no campo de trabalho. Hoje é nome de um auditório na Faculdade de
Medicina, de uma rua no campus e do prédio do Instituto de Ciências Biológicas, o
que o deixaria muito feliz, porque estas eram as suas casas.
Sem nunca o ter dito, incutiu em todos nós – talvez excessivamente – a ideia de
que o dinheiro não vale nada, que a única coisa que importa é estudar, e pesquisar,
e viver a academia – de preferência na UFMG. Gosto de pensar que tentei seguir
esse caminho. Queria que ele estivesse aqui agora, e em sua homenagem publico
esse livro através do ICAM, instituto cultural que leva o seu nome.
Minha mãe, Beatriz, era uma mulher culta e carinhosa, que cuidou de nós – tam-
bém excessivamente – até o dia em que morreu, perfeitamente lúcida, aos 97 anos.
Desenhava, e pintava muito bem, bordava e fazia ótimos doces. Lia muito, escreveu
um livro, e nos obrigava a levantar cedo para não perdermos nenhuma aula.
Meus irmãos e irmãs, Lúcia, Renato, Ângela, Eliana, Sérgio, Amilcar, Letícia e
Eduardo, completaram o ambiente alegre, seguro e inteligente, no qual tive a feli-
cidade de crescer. Sou muito grato a todos, por serem do jeito que são, ou que
foram, e por formarem, com seus maridos, mulheres, filhos e netos, uma família
maravilhosa.
Eustáquio José Reis é meu amigo desde 1959, no Colégio Estadual e depois na
faculdade. Nossa amizade resistiu (talvez por isso mesmo) ao fato de morarmos
em cidades diferentes desde 1970. Resistiu aos quatro anos em que trabalhamos
juntos no IPEA (ele no Rio e eu em Brasília). Resistiu até mesmo ao grande cisma
político que rachou o Brasil nos últimos anos. Além de amigo, o Bola é um pre-
cioso interlocutor, tanto para bobagens quanto para conversas sérias. É para ele que
pergunto todas as (muitas) coisas de macroeconomia, de econometria, e de vários
outros assuntos que não sei. Foi ele que me apresentou, em 1974, quando estudava
no MIT, à hipótese de Domar sobre as causas da escravidão, através da qual cheguei
a Wakefield, Merivale, Nieboer, Kloosterboer, e aos outros membros da família de
teorias que ocupa um lugar importante na minha tese e, até hoje, no meu entendi-
mento da instituição da escravidão. Sou grato a ele, por isso e pelos quase 60 anos
de amizade.
Minha filha Mariana nasceu quando morávamos nos Estados Unidos. É brasi-
leira, mineira e belo-horizontina, porque quisemos que fosse assim, e a Duca veio
para o Brasil no final da gravidez. Mariana participou intensamente do meu dou-
torado. Frequentemente, ainda engatinhando, escalava minha mesa de trabalho,
bagunçava e amarrotava todos os papéis que encontrava. Uma vez sentou-se em
cima de um livro aberto, novinho em folha, e fez xixi. Mais tarde especializou-se
em rabiscar meus livros com aquelas canetinhas coloridas que não saem nunca
mais. Essays Concerning the Socioeconomic History of Brazil and Portuguese Índia,
editado por Alden e Dean, mijado e manchado, e The Destruction of Brazilian
Slavery 1850-1888, de Robert Conrad, um dos rabiscados, continuam nas minhas
estantes, me lembrando daqueles bons tempos. Quando defendi a tese, Mariana
tinha seis anos, hoje ela tem dois filhos, João Pedro, de 23, e Maria Clara, de 20, que
são meus netos muito queridos.
Amilcar Vianna Martins Filho, meu irmão menor, parceiro e sócio em aventu-
ras e trapalhadas desde a infância, teve um papel fundamental na história desta tese
e de suas inovações. Foi ele que, em 1979, analisou, pela primeira vez, a distribuição
dos escravos pelas paróquias de Minas Gerais no recenseamento de 1872, e che-
gou ao surpreendente resultado de que a grande maioria dos cativos não morava
nas paróquias cafeeiras da Zona da Mata. Me ligou, de madrugada, em Vanderbilt,
assustado com a descoberta. Não acreditei, achei que estava tudo errado – aquilo
era uma heresia que contrariava toda a historiografia conhecida. Todo mundo
sabia que a escravidão em Minas no século XVIII era o mesmo que ouro, e que,
no século XIX, em Minas e em todo o sul do Brasil, era sinônimo de café. Que era
impossível haver escravidão fora da grande lavoura exportadora. As contas foram
refeitas e trefeitas, conferidas e reconferidas. Então vimos que estávamos diante de
algo muito importante, que iria mudar a história da província. Eu trabalhava em
outro projeto – as diferentes transições regionais para o trabalho livre no Brasil,
pela ótica da hipótese de Wakefield – que já estava aprovado com todas as forma-
lidades. Convenci meu orientador da importância da descoberta, e trabalhei como
um alucinado durante um ano e meio para transformar o achado do Amilcar em
Growing in Silence, que defendi em outubro de 1980. Assim, devo a ele o ponto de
partida, que deflagrou toda a tese e muito do meu trabalho subsequente. Depois,
escrevemos e publicamos artigos em parceria, fizemos juntos muitas outras coisas,
e continuamos hoje, na velhice, as aventuras e as trapalhadas da infância.
Eu e Duca fomos juntos para Vanderbilt, e vivemos juntos todos os apertos e
alegrias dessa jornada. Me ajudou em tudo na tese, e foi um dos meus raros interlo-
cutores durante esse trabalho. Ela socióloga, eu economista, viramos historiadores
juntos. De volta ao Brasil nos tornamos parceiros em pesquisas, em artigos e em
publicações. Na vida, já éramos parceiros desde os meus dezessete, e os seus catorze
anos. A amo muito e não sei viver sem ela. Esse livro é para ela.
Introdução geral
E
ste livro é a tradução da minha tese de doutorado em economia, Growing
in Silence: The Slave Economy of Nineteenth-Century Minas Gerais, Brazil,
defendida na Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, em outubro
de 1980.
Desde então, Growing in Silence foi apresentada e discutida em palestras, debates,
seminários e congressos, mas nunca foi publicada. Muito pouca gente leu o texto
completo. Até agora, ele só estava disponível, em inglês, na University Microfilms
International. Recebi uma vez, décadas atrás, um cheque de dezessete dólares, que
guardo como uma relíquia, pela venda de um único exemplar. A imensa maioria das
pessoas que dela tomou conhecimento o fez através de um artigo escrito em par-
ceria com Amilcar Martins Filho, publicado em 1983 na Hispanic American Histo-
rical Review ou, mais frequentemente, por meio do resumo A Economia Escravista
de Minas Gerais no século XIX, que circulou mimeografado. Esse pequeno texto foi
escrito em novembro de 1980 para ser submetido ao Encontro Nacional da ANPEC.
Foi recusado: uma senhora da Unicamp (Aureliana não-sei-de-que), deu bomba nele
dizendo que era de interesse apenas regional, e não nacional.
Malgré cela, a tese foi muito bem recebida, como comento adiante, pela comu-
nidade científica no Brasil e no exterior, e é considerada um divisor de águas na
interpretação da história econômica da província e do império, e um desafio a anti-
gos dogmas da historiografia internacional sobre a escravidão moderna. Growing
in Silence, e os artigos dela derivados, frequentam até hoje as listas de leitura aqui
e “lá fora”, recebendo muitas citações e comentários, e ainda gerando animados
debates.
Publiquei vários artigos e recebi propostas para publicá-la em livro, aqui e nos Esta-
dos Unidos, mas nunca as aceitei, porque achava que, apesar da boa acolhida dos pares,
o texto ainda não estava em condições de ser entregue ao prelo, que várias coisas pre-
cisavam ser consertadas. Eu não percebia que uma tese não é o único, nem o último
trabalho, mas apenas o primeiro. Que opera prima e obra-prima são duas coisas com-
pletamente diferentes.
Historiador calouro, demorei a entender que não poderia cometer o pecado
do anacronismo, corrigindo no documento de 1980, com conhecimento adquirido
anos depois, erros inerentes ao estado da arte e à minha própria ignorância na
época em que foi produzido. Que isso seria uma falsificação, e até um desrespeito
àquele estudante, de quem tenho muita saudade.
Assim, resolvi publicá-la agora exatamente como foi escrita, com todos os erros
e defeitos. E com todos os exageros de um doutorando, como todos, apaixonado
pela própria cria. Acrescentei apenas, no capítulo final, algumas notas importantes
que estavam prontas em 1980, mas não puderam ser incorporadas ao texto, no
sufoco para cumprir o deadline da defesa. Essa mesma correria impediu que eu
escrevesse até mesmo a clássica – e indispensável – seção de agradecimentos, que
acrescento agora. Suprimi alguns gráficos de difícil leitura, e acrescentei alguns
outros, bem simples, bem como umas poucas tabelas. Lembrando que naquela
época não existia Excel, e que o próprio microcomputador pessoal era uma coisa
desconhecida, é facil imaginar que fazer um gráfico era um luxo e um sofrimento.
Envolvia papel “milimetrado”, um monte de cálculos, e talentos de desenhista.
Depois tinha de ser recortado e colado no texto “datilografado”. Dá para entender
que a tentação agora é muito grande.
A tradução corrige também alguns erros formais, como referências erradas,
notas, tabelas e até páginas que estavam fora do lugar no manuscrito original e, é
claro, enseja algumas melhorias de estilo. Afinal, agora é a minha própria língua.
Mas a disciplina da história em geral, o conhecimento acumulado sobre a escra-
vidão e o tráfico no Brasil e no mundo, e sobre a história de Minas (em parte pelas
provocações geradas pela própria tese) mudaram tanto nessas quatro décadas, que
não posso deixar de registrar que tenho consciência dessas mudanças. Que não
fiquei congelado em 1980.
Para isso resolvi incluir um postscriptum, um longo comentário, que terminei
agora, em 2018. Aí sim posso corrigir, confessar erros, acrescentar dados, evidências,
leituras, rever posições e opiniões, sem afetar a integridade do texto original. Posso
incorporar livremente as novidades, as importantes contribuições de gente que não
tinha nem nascido em 1980, as novas tendências e as minhas próprias mudanças.
Esse comentário não é uma revisão da tese de 1980. São apenas notas soltas,
sem um roteiro definido. Nelas corrijo alguns erros – talvez cometa outros –
reafirmo a maioria das minhas posições antigas, radicalizo algumas, e modifico
outras tantas. Sugiro sua leitura, porque nessas notas relato revisões, para mim
importantes, na minha visão da história de Minas, particularmente sobre a eco-
nomia do século XVIII e a transição para o século XIX. Apresento principal-
mente a minha opinião atual sobre alguns temas que abordo na tese, e as críticas
que faço a mim mesmo, quarenta anos depois. Discuto alguma coisa de outros
autores, mas não trato de todas as controvérsias levantadas pelo meu trabalho.
Reservo alguns debates para espaços maiores e mais adequados. Espero refletir
nestas notas meu entendimento pessoal das mudanças cruciais que têm ocorrido
na visão geral sobre o passado de Minas nessas quatro décadas.
A primeira parte deste volume é composta pela tradução de Growing in Silence,
com o título de Crescendo em Silêncio: A Incrível Economia Escravista de Minas
Gerais no século XIX. A segunda parte, intitulada Quarenta anos depois, contém o
postscriptum, com as notas e comentários escritos em diferentes momentos e fina-
lizados em 2018.
Para poupar o leitor daquela chatice de ter de buscar a todo momento as refe-
rências e os comentários no final do capítulo, ou do livro, optei por colocar as
notas no rodapé das próprias páginas. Resolvi, também, para maior limpeza do
texto, agrupar todas as fontes, notas e explicações da metodologia das tabelas, que
normalmente ficam no pé de cada uma delas, em um apêndice específico. O estilo
que usei para as citações, com pequenas indisciplinas, é o notes-bibliography style,
conforme o Manual for Writers of Research Papers, Theses, and Dissertations, de
Kate L. Turabian, que era exigido em Vanderbilt e que decidi manter na tradução. A
primeira referência traz o nome e sobrenome do autor, na ordem normal, seguidos
pelo título completo da publicação em itálicos, o local da publicação, o editor, a
data da publicação e o número da página da citação, quando for o caso. Nas ocor-
rências subsequentes da mesma referência, apenas o último sobrenome do autor,
uma versão reduzida do título, e o número da página.
Para maior facilidade de consulta, acrescentei ainda, separadamente, ao final de
cada parte, a lista de referências bibliográficas, ordenadas pelo último sobrenome
do autor.
Sumário
Parte I
CRESCENDO EM SILÊNCIO:
Capítulo 1 - Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Crescendo em Silêncio:
A Incrível Economia Escravista de
Minas Gerais no século XIX
Capítulo 1 - Introdução
E
ste é um estudo sobre o maior sistema escravista regional que jamais existiu
no Brasil: o da província de Minas Gerais no século XIX. Durante todo esse
século a população escrava de Minas foi maior do que a de qualquer outra
província brasileira. Essa população não só era grande, mas era também vigorosa-
mente crescente: de aproximadamente 170 mil em 1819 passou para mais de 380
mil em 1873. Nesta última data, um quarto de todos os cativos do Brasil residia
em Minas, onde havia mais escravos do que em todas as dez províncias situadas
ao norte da Bahia mais as de Goiás, Mato Grosso e Paraná somadas. O plantel
mineiro era maior do que o de Cuba na mesma época, ou que o da Jamaica, princi-
pal colônia inglesa no Caribe, e um dos maiores produtores mundiais de açúcar no
século XVIII, em qualquer momento de sua história. Superava a população escrava
de qualquer sociedade escravista das Américas, em qualquer época, com exceção
dos Estados Unidos, do Brasil, de Cuba, ou de Saint Domingue (Haiti), nos seus
apogeus. As evidências disponíveis indicam que, como importadora de escravos,
Minas Gerais ocupou o segundo lugar dentre todas as regiões americanas nos anos
1800, sendo suplantada apenas por Cuba.1
Diante da óbvia importância desta região na história da escravidão moderna, é
espantoso verificar quão pouca pesquisa se tem feito sobre ela. Não existe um único
estudo sistemático do sistema escravista provincial mineiro. Os mais elementares
fatos e números, sobre os quais qualquer interpretação histórica deveria ser base-
ada, têm sido completamente ignorados ou grosseiramente distorcidos. Nenhum
estudo de abrangência nacional sobre a escravidão no Brasil do século XIX con-
tém mais do que referências sumárias a Minas Gerais. As fontes mineiras estão
1 Com exceção dos Estados Unidos e do Brasil, as maiores populações escravas da América foram: Cuba,
436.495 em 1841; Saint Domingue, 434.424 em 1789 e Jamaica, 345.252, em 1817. Franklin Knight.
Slave Society in Cuba During the Nineteenth Century. Madison: University of Wisconsin Press, 1970,
p. 22; David Cohen e Jack Greene (eds.). Neither Slave nor Free: The Freedmen of African Descent
in the Slave Societies of the New World. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972, p. 337; B.
W. Higman. Slave Population and Economy in Jamaica, 1807-1834. Cambridge: Cambridge University
Press, 1976, p. 256.
29
inteiramente ausentes de todos esses trabalhos, mesmo de alguns mais recentes,
que são bem pesquisados e bem documentados a respeito de outras áreas.2
Isso não impediu, no entanto, que alguns autores tirassem (e proclamassem)
conclusões categóricas sobre a história de Minas Gerais. O resultado é que, fre-
quentemente, eles têm acrescentado mais à nossa ignorância do que ao nosso
conhecimento sobre o assunto, repetindo, sem nenhuma crítica, velhos equívocos,
ou criando alguns novos.
A escassez de pesquisas não se restringe à questão da escravidão. A economia e
a sociedade de Minas Gerais do século XIX, em geral, não receberam melhor tra-
tamento nas mãos dos historiadores. Exceto por seu próprio livro sobre a política
econômica do governo provincial, a queixa de Francisco Iglésias seria tão justifi-
cada hoje como há mais de vinte anos atrás, quando foi formulada: “É verdadeira-
mente chocante a ausência de bibliografia para essa fase: nada de estudos gerais,
pouco de aspectos. A vida provincial mineira ainda não existe como tema para o
historiador.”3
Parte da culpa deve ser atribuída aos próprios mineiros. A maioria dos histo-
riadores locais se deixou fascinar inteiramente pelo esplendor da “idade do ouro”, o
século XVIII, quando Minas era o centro do império português. A República Velha
trouxe nova proeminência para o estado no cenário político nacional, e também
tem tido seus cultores. Assim, a capitania e o estado receberam uma razoável aten-
ção, mas a província foi completamente ignorada.
O trabalho acadêmico estrangeiro, a cujo olhar culturally unbounded a historio-
grafia de outras partes do Brasil deve, em anos recentes, várias revisões e insights
importantes, ainda está por prestar uma contribuição positiva para a história pro-
vincial de Minas. Por enquanto, nessa área sua presença tem significado mais atrasos
do que avanços, pois a maioria dos Brasilianistas estrangeiros, apesar de suas poucas
incursões pelo tema, também tem ajudado a propagar noções distorcidas sobre esse
período da história mineira.
O principal obstáculo para um melhor entendimento de Minas no século XIX
tem sido, entretanto, uma distorção legada pelo colonizador e ainda profunda-
mente arraigada na historiografia econômica do Brasil, qual seja, a noção de que a
2 Veja, por exemplo, Robert Conrad. The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888. Berkeley: University
of California Press, 1972; Robert W. Slenes. The Demography and Economics of Brazilian Slavery, 1850-
1888. Tese de doutorado, Stanford University, 1975; Robert Brent Toplin. The Abolition of Slavery in
Brazil. New York: Atheneum, 1972.
3 Francisco Iglésias. Política Econômica do Governo Provincial Mineiro, 1835-1889. Rio de Janeiro: MEC/
Instituto Nacional do Livro, 1958, p. 11. Esse trabalho foi escrito em 1953.
4 Um dos mais importantes trabalhos nessa linha é o conhecido livro de Celso Furtado, Formação
Econômica do Brasil, cuja primeira edição é de 1959. O tratamento de Furtado sobre Minas Gerais,
especialmente das transformações econômicas ocorridas depois do ciclo do ouro, é particularmente
inepto.
5 Os principais trabalhos dos quais foi extraído este sumário são referidos nos lugares apropriados do
texto, onde aparecem as citações específicas. A citação sobre manumissões é de Thomas Merrick and
Douglas Graham. Population and Economic Development in Brasil, 1800 to the Present. Baltimore: The
Johns Hopkins University Press, 1979, p. 70. Apenas como uma curiosidade, observe-se o equívoco da
expressão “o velho estado minerador”. Minas Gerais é seguramente um dos “estados” mais jovens do
Brasil, pois só foi colonizado no século XVIII.
6 A citação é da introdução de Capistrano de Abreu à Geografia Geral do Brasil, de Alfred W. Sellin. Rio
de Janeiro, 1889. Para um nordestino como Capistrano, o “sul” significa tudo que se situa ao sul da
Bahia.
7 Veja Daniel de Carvalho. Formação Histórica das Minas Gerais. In: Universidade de Minas Gerais.
Primeiro Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Imprensa da UMG, 1957, especialmente p.
25; Ensaios de Crítica e História. Rio de Janeiro: edição do autor, 1964; Estudos e Depoimentos (1ª.
série). Rio de Janeiro: José Olympio, 1953; e Estudos de Economia e Finanças. Rio de Janeiro: Livraria
Agir Editora, 1946.
9 O locus classicus desse argumento é John Elliot Cairnes. The Slave Power: Its Character, Career and
Probable Designs. New York: Negro Universities Press, 1969. A citação utilizada está na p. 46.
A
historiografia econômica da escravidão em Minas Gerais é fortemente con-
centrada em dois setores: a mineração e o cultivo de café. Durante o século
XVIII as minerações de ouro e de diamantes foram, de fato, as atividades
dominantes da região e empregavam a grande maioria dos trabalhadores escravos e
livres. Entretanto, já no início dos anos 1800 o ciclo da mineração estava em grande
parte encerrado e durante o século XIX essa indústria foi um setor de importância
relativamente menor na economia provincial.
Neste capítulo examinamos o setor minerador da província. Depois de uma
breve descrição das corridas do ouro e dos diamantes do século XVIII, a análise
focaliza o século XIX. As companhias inglesas de mineração que se instalaram em
Minas são objeto de atenção especial, e mostramos que sua presença não restaurou
a importância anterior dessa indústria. Ao longo de quase todo o século, os escra-
vos continuaram a ser empregados na mineração, mas a participação do setor no
total do emprego de trabalho servil foi insignificante.
37
As jazidas auríferas e as povoações que se formavam à sua volta estavam disper-
sas por um território imenso – maior do que a França, para usar uma comparação
predileta dos mineiros de antigamente – distantes dos núcleos do litoral, e situadas
em áreas que até pouco tempo antes eram terras completamente virgens, intocadas
por qualquer tipo de “civilização”. As comunicações eram extremamente difíceis
e garantir o abastecimento dos núcleos mineradores e das povoações foi um pro-
blema constante nos primeiros anos.10
A distribuição geográfica das jazidas de ouro e de diamantes apresenta uma
orientação geral sudoeste-nordeste, acompanhando mais ou menos a Mantiqueira
e as outras grandes cadeias de montanhas do centro de Minas Gerais, numa faixa
de algumas centenas de quilômetros de largura, ao longo de todo o estado. A maior
concentração das ocorrências de ouro se situava em torno de Ouro Preto, Mariana,
Sabará, Pitangui, São João del Rei, Caeté e São José del Rei, e as de diamantes ao redor
de Diamantina e do Serro, mas ocorreram importantes descobertas muito além des-
sas áreas principais. Lugares tão afastados como Bagagem, Desemboque e Paracatu,
na direção oeste, ou como São Romão e Grão Mogol, no rumo norte, foram sítios de
consideráveis minas de ouro ou de diamantes. Na verdade, quase não se encontra
nenhum lugar em Minas Gerais que não tenha sido cenário de algum tipo de minera-
ção durante algum período de sua história. A toponímia de Minas nos séculos XVIII
e XIX, grande parte da qual sobreviveu até nossos dias, está repleta de nomes como
Ouro Preto, Ouro Branco, Ouro Fino, Minas Novas, Lavras, Catas Altas, etc., que são
uma lembrança permanente da origem mineradora desses lugares.
O isolamento da região das minas tornava seu abastecimento muito difícil e a
fome foi uma visita frequente nas primeiras décadas da ocupação. Alimentos e outros
artigos essenciais tinham que ser trazidos de São Paulo ou do Rio de Janeiro por
perigosas trilhas através das montanhas, ou da Bahia, por uma rota mais longa, mas
mais fácil, ao longo da margem direita do rio São Francisco. Artigos básicos de ali-
mentação alcançavam preços fantásticos: por volta de 1700 uma arroba de carne de
10 A corrida do ouro em Minas é bem documentada e bem estudada. Algumas das melhores descrições
das descobertas, das técnicas iniciais e da legislação portuguesa sobre a mineração se encontram
em W. L. von Eschwege. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. 2 vols. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1944; em Paul Ferrand. L’Or a Minas Geraes, Brèsil, 2 vols. Ouro
Preto: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, 1894; e em João Pandiá Calógeras. As Minas do
Brasil e sua Legislação. 2ª. ed. atualizada e dirigida por Djalma Guimarães. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1938. C. R. Boxer. The Golden Age of Brasil, 1695-1750. Growing Pains of a Colonial Society.
Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1962, oferece um relato mais curto,
mas mais abrangente do período, incluindo aspectos sociais e políticos da sociedade mineradora em
sua fase ascendente. Esses trabalhos também oferecem muita informação bibliográfica sobre fontes
arquivísticas, escritos contemporâneos e a historiografia do “ciclo” do ouro.
Boxer cita uma fonte contemporânea que afirma que “metade de Portugal”
estava migrando para as minas e alguns historiadores modernos asseveram que
11 Maurício Goulart. A Escravidão Africana no Brasil. Das Origens à Extinção do Tráfico, 3ª. ed. revista.
São Paulo: Alfa-Omega, 1975, p. 135. Informações adicionais sobre as condições de vida dos primeiros
mineradores e sobre os preços contemporâneos podem ser encontradas em Boxer. The Golden Age,
p. 48 e, especialmente, pp. 330-31; André João Antonil. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas
e Minas. 8ª ed. prefácio e notas por Orlando Valverde, ilustrações por Francisco Barbosa Leite e Percy
Lau. Rio de Janeiro: IBGE, Conselho Nacional de Geografia, 1963; Mafalda Zemella. O Abastecimento
da Capitania de Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: 1951; João Dornas Filho. O Ouro das Gerais e
a Civilização da Capitania. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, pp. 12-13.
12 Paul Singer. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana: análise da evolução econômica de São
Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Cia. Editora Nacional e EDUSP,
1968., pp. 202-04; Boxer. The Golden Age, pp. 47-48.
13 João Antônio Andreoni (André João Antonil). Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minasl.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 264. Apesar de ser o autor do mais famoso relato
sobre a corrida do ouro, o jesuíta Antonil nunca esteve em Minas Gerais.
14 Boxer. The Golden Age, p. 49. O historiador mineiro Augusto de Lima Júnior estima que, entre 1705 e
1750, mais de 20.000 pessoas imigraram de Portugal para o Brasil, por ano. Augusto de Lima Júnior. A
Capitania das Minas Gerais. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1943, p. 79.
15 Goulart. A Escravidão Africana no Brasil, p. 136; Boxer. The Golden Age, p. 55; Antonil. Cultura e
Opulência do Brasil, p. 269.
16 Boxer. The Golden Age, p. 54; Lima Júnior. A Capitania das Minas Gerais, p. 76.
Vãos foram os esforços da Coroa para sustar essa drenagem. Vinte anos mais
tarde, repetindo a reclamação, o governador da Bahia confessava sua impotência
nesse assunto:
Não posso eu evitar, nem descubro meio algum que sirva de remédio a
este dano, porque a opulência [das minas] arrasta os ânimos, de sorte
que nenhuma diligência que respeita a impedir-lhes aquela jornada será
17 Goulart. A Escravidão Africana no Brasil, pp. 149-50; Lima Júnior. A Capitania das Minas Gerais, p. 75 e
p. 80. Essa afirmação parece ser um exagero. D. Rodrigo da Costa, Governador Geral do Brasil na época,
afirma que o preço dos escravos na região mineradora era somente duas ou três vezes mais alto do que
nas áreas agrícolas. Citado por Goulart. A Escravidão Africana no Brasil, p. 152.
18 Relatório do Conselho Ultramarino ao Rei, 1o de setembro de 1706, citado por Goulart. A Escravidão
Africana no Brasil, p. 151.
1651-1675 7.400
1676-1700 7.000
1701-1720 14.600
1721-1740 15.600
1741-1760 17.700
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
19 Governador D. Vasco da Cunha Menezes, em 1728, citado por Goulart. A Escravidão Africana no Brasil,
p. 137.
20 Boxer. The Golden Age, pp. 45-46; Philip Curtin. The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison: University
of Wisconsin Press, 1969, p. 210.
21 Goulart. A Escravidão Africana no Brasil, p. 153; Boxer. The Golden Age, p. 55.
22 Boxer. The Golden Age, pp. 39-40; Lima Júnior. A Capitania das Minas Gerais, pp. 98-99.
23 Goulart. A Escravidão Africana no Brasil, pp. 165-70.
24 O imposto por capitação permaneceu em vigor em Minas Gerais de 1735 a 1749. “Todos os escravos
dos dois sexos acima da idade de 12 anos eram tributados a uma taxa fixa de 4,75 oitavas de ouro
por cabeça (...) negros livres, mulatos e mestiços que não possuissem escravos, deviam pagar uma
taxa de capitação idêntica sobre si mesmos. Artífices e trabalhadores pagavam a mesma quantia,
enquanto lojas, armazéns e estalagens eram divididos em três categorias, seus proprietários pagando
vinte e quatro, dezesseis e oito oitavas respectivamente (...) A capitação tinha que ser paga em duas
prestações, vencíveis em 15 de março e 15 de setembro”. Boxer. The Golden Age, pp. 198-99.
Uma vez iniciada, a decadência não foi revertida. A arrecadação do quinto real
permite acompanhar esse declínio: de um máximo de 1.733 quilos em 1754 caiu
para 1.351 em 1770, 999 em 1780, 779 em 1790, 573 em 1800, 411 em 1810, até atin-
gir somente 29 quilos em 1820. Entretanto, de uma perspectiva mais ampla, exa-
minando um período maior, e com dados mais desagregados, podemos perceber
que, na segunda metade do século, a queda foi inexorável, porém bastante lenta.25
25 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 1, pp. 166-68. A série anual que usamos no gráfico 2.1 é o Mappa
250
200
150
100
50
0
1715
1720
1725
1730
1735
1740
1745
1750
1755
1760
1765
1770
1775
1780
1785
1790
1795
1800
1805
Nota: Entre 1735 e 1749 a cobrança foi feita pelo sistema da capitação
Fonte: “Mappa do Rendimento que produzio o Real Quinto do Oiro na Capitania de Minas Gerais
de 1707 a 1787.” RAPM VIII (1908) rep. por Maxwell, Conflicts, p. 253; complementada por dados
de Eschwege, Pluto, pp. 166-68.
do rendimento que produzio o Real Quinto do Oiro na Capitania de Minas Gerais de 1700 a 1787.
Revista do Arquivo Público Mineiro VIII (1908): 575-577, reproduzida por Kenneth R. Maxwell. Conflicts
and Conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808. Cambridge: At the University Press, 1973, p. 253;
complementada no período 1787 a 1805 com dados de Eschwege. Nesta série, o ano de maior
arrecadação do quinto é 1744, quando a receita atingiu 280 arrobas ou 4.113 quilos de ouro.
26 Singer. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana, p. 204.
27 Descrições detalhadas das condições do setor minerador no início do século XIX, a decadência urbana e
a transição geral para a agricultura podem ser encontradas, entre outros, nos seguintes trabalhos: John
Mawe. Travels in the Interior of Brazil. Philadephia: M. Carey and Boston: Wells and Lilly, 1816; Auguste
de Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, trad. Clado Ribeiro Lessa, 2
vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938; Auguste de Saint-Hilaire. Segunda Viagem do Rio
de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo, 2ª. ed., trad. Affonso de Taunay. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1938; Auguste de Saint-Hilaire. Viagem ao Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil, trad.
Leonam de Azeredo Pena. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1941; W. L. von Eschwege. Pluto Brasiliensis;
G. W. Freireyss. Viagem ao Interior do Brasil nos annos de 1814-1815. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, vol. XI, 1906 (São Paulo, 1907), pp. 158-228; J. B. von Spix e C. F. P. von Martius.
Viagem pelo Brasil, 4 vols., trad. Lucia Furquim Lahmeyer. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938; Rev.
Robert Walsh. Notices of Brazil in 1928 and 1829, 2 vols. London: F. Westley and A. H. Davis, 1830, vol. 2.
28 John Mawe. Travels, pp. 149, 177 e 179.
Fica claro que, desde as primeiras décadas do século XIX, a província de Minas
Gerais já não mais poderia ser caracterizada como uma economia mineradora. A
evidência disponível também mostra que a dissociação entre escravidão e mineração,
que já tinha começado há algum tempo, estava quase completa nessa época.
Dos dados colhidos por Eschwege, na sua permanência de dez anos em Minas,
podemos aferir a importância da mineração como setor empregador de escravos no
período. Ele estimou que o número total de pessoas empregadas na mineração do
ouro que, por volta de 1750, tinha sido cerca de 80 mil, ou um terço da população,
diminuira para cerca de 6.000 por volta de 1820, o que não representava mais do que
1,2% da população na época.32
As detalhadas tabelas que publicou, referentes aos anos de 1810 e 1814, regis-
tram a força de trabalho do setor aurífero, desagregada segundo a condição. A com-
paração entre as tabelas 2.4 e 2.5 revela a rapidez com que o setor estava decaindo.
No curto espaço de quatro anos, 114 de lavras deixaram de operar. O número de
35 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 10-11, 65. Russell-Wood cita um tipo de faiscador escravo
que corresponde exatamente aos “negros de ganho” frequentemente encontrados nas áreas urbanas
brasileiras. O escravo era obrigado a entregar ao seu senhor, todo sábado, uma quantia determinada
de ouro, além de prover seu próprio sustento. Cabia a ele decidir onde, quando e como trabalhar. Não
há evidência, entretanto, de quão disseminada era essa espécie de arranjo. Nos primeiros anos do
século XIX certamente não era importante, dado o pequeno número de faiscadores escravos, como
mostram as tabelas 2.4 e 2.5. A. J. R. Russel-Wood. Technology and Society: The Impact of Gold Mining
on the Institution of Slavery in Portuguese America. Journal of Economic History, vol. 37, n°. 1 (março
de 1977), pp. 59-63, 76-77.
36 A produção total dos faiscadores foi estimada em 2.200 quilos de ouro no período 1901-1903,
resultando em uma média anual de 733,3 quilos. Usando o nível de produtividade observado em
1814 (cerca de 69,5 gramas por homem, por ano), chegamos à estimativa mais alta. Goulart sugere
que a produção anual de um faiscador era ao redor de 112,5 gramas. Essa produtividade resulta
na estimativa mais baixa do número de faiscadores. Calógeras estimou a produção de ouro pelos
faiscadores em 20.000 quilos no período 1896-1900, o que daria uma média anual de 4.000 quilos
e um número de faiscadores entre 35.000 e 57.000. Isso parece ser uma enorme superestimativa.
O número que usamos, também devido a Calógeras, está de acordo com o do engenheiro de minas
contemporâneo William Jory Henwood, que estimou a média de produção anual dos faiscadores
e das companhias brasileiras de mineração em 747 quilos no período 1820-1860. Uma vez que as
companhias brasileiras do setor não eram importantes no período, esses números podem ser tomados
como uma aproximação para a produção dos faiscadores. Calógeras. As Minas, p. 473; Goulart. A
Escravidão, pp. 160-61; William Jory Henwood. Observations on Metalliferous Deposits. Transactions
of the Royal Geological Society of Cornwall, vol. 8, t. 1 (1871), pp. 367-69.
Nesse último ano, o número médio de escravos por lavra era de 12,6 mas a
grande maioria delas tinha bem menos que isso. Quase dois terços das lavras em
atividade tinham dez ou menos escravos, enquanto apenas uma, a famosa mina
de Morro Velho, em Congonhas do Sabará (com 122 escravos), ultrapassava uma
centena de cativos.
Algumas poucas lavras ainda apresentavam uma alta produtividade por traba-
lhador e certamente geravam bons retornos. Esse foi o caso, por exemplo, das lavras
do Morro das Almas, no distrito de Água Quente. Essas duas lavras produziram,
em 1814, 46.690 gramas de ouro, usando uma força de trabalho de 48 escravos. A
produção por escravo, 973 gramas de ouro, representava, segundo Eschwege, quase
o dobro do valor de cada escravo.38 A maioria das lavras, entretanto, tinha um nível
de produtividade baixíssimo.
Como se pode ver na tabela 2.7, 340, ou 76%, das 446 lavras para as quais temos
informações sobre a produção e a força de trabalho, tiveram uma produção média
por trabalhador inferior a 70 gramas de ouro, ou seja, menor que a produção média
Tabela 2.7 - Minas Gerais: Produtividade do trabalho em 4461 lavras de ouro, 1814
(número de lavras segundo a localização e a produção por trabalhador)
Municípios Produção por trabalhador, em gramas Total
0 - 10 11 - 20 21 - 40 41 - 70 71 - 100 101 - 200 201 - 500 500 +
Ouro Preto 16 14 15 12 5 1 * * 63
Mariana 9 18 22 26 10 6 * 2 93
Vila do Príncipe 2 3 5 9 8 15 2 * 44
Minas Novas * 3 10 * * * * * 13
Caeté 18 13 16 6 5 6 5 * 69
Sabará 6 9 27 20 11 6 3 * 82
Pintangui 2 * 2 3 * * * * 7
Paracatu * 2 6 8 1 * * * 17
Campanha 2 5 15 13 3 7 2 1 48
Barbacena * * 1 2 3 3 1 * 10
Total 55 67 119 99 46 44 13 3 446
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
39 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 65. Eschwege questiona o resultado de que a produção por
trabalhador era, em média, mais alta na faiscagem do que nas lavras. Na p. 65 apresenta algumas
razões para justificar o argumento de que os dados de 1814 superestimam a produtividade dos
faiscadores. Uma fonte do século XVIII sugere que em 1780 a produção por trabalhador nas lavras já
era muito baixa, embora algo mais alta do que em 1814. Essa estimativa, de 20 oitavas (71,7 gramas)
por escravo está em José João Teixeira Coelho. Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais.
Revista do Instituto Histórico e Geographico do Brazil. 3ª. série, nº. 7, 4º. trimestre de 1852, p. 377.
40 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 32.
A MINERAÇÃO DE DIAMANTES
Nenhuma história da mineração em Minas Gerais pode deixar de mencionar
o setor diamantino.43 A primeira comunicação oficial sobre a ocorrência de dia-
mantes foi apresentada em 1729 à Coroa Portuguesa por D. Lourenço de Almeida,
governador da capitania. As primeiras descobertas, entretanto, certamente ocor-
reram vários anos antes, pois a resposta da Coroa a D. Lourenço foi uma severa
reprimenda pelo atraso da notícia, uma vez que os diamantes de Minas já estavam
chegando a Lisboa, há pelo menos dois anos, nas frotas do Brasil.44
45 A citação é de Boxer. The Golden Age, p. 205. A copiosa legislação portuguesa sobre o assunto é
estudada nas fontes citadas na nota 43 acima. Essas fontes estão, às vezes, em desacordo quanto
a datas e o conteúdo específico de alguns dos atos. Uma possível fonte de conflito está no fato de
que, muitas vezes, se legislava na colônia e na metrópole sobre o mesmo assunto. O governador
da capitania podia promulgar “bandos” ou medidas provisórias, mais tarde submetidas à apreciação
real. Quando aprovadas pela Coroa a decisão contida no “bando” era repromulgada na forma de um
decreto definitivo, dessa forma gerando duas peças de legislação sobre a mesma questão, com datas
diferentes e, algumas vezes, com diferentes disposições.
46 Eschwege. Pluto Brasiliensis, pp. 116-17; Lima, Jr. História dos Diamantes, pp. 30 e 76; Saint-Hilaire.
Viagens pelo Distrito, p. 3; Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 239.
47 Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 330; Pizarro e Araújo. Memórias, vol. 8, tomo 2, pp. 107-115;
Lima Jr. História dos Diamantes, p. 38; Boxer. The Golden Age, pp. 207-08; Burton. Explorations, vol.
2, p. 106; Spix e Martius. Viagem, vol. 2, p. 108; Felício dos Santos. Le Diamant, pp. 55-56. Lima Jr.
e Felício dos Santos descrevem os limites do distrito com maiores detalhes e Mawe. Travels, p. 144,
apresenta um esboço do seu mapa na época de sua visita.
48 Spix e Martius. Viagem, vol. 2, p. 103; Saint-Hilaire. Viagens pelo distrito, p. 1. A legislação repressiva
e sua aplicação são descritas com algum detalhe pela maioria dos autores citados na nota 43,
especialmente Lima Jr., Felício dos Santos e Eschwege. Sobre os garimpeiros, veja especialmente
Felício dos Santos, filho ilustre do Serro e morador de Diamantina, que os retrata como folk heroes.
Seu relato, escrito no terceiro quartel do século XIX, tem fortes tons emocionais, e revela o ódio dos
diamantinenses pela legislação diamantina, mesmo várias décadas depois de sua abolição.
49 Felício dos Santos. Le Diamant, pp. 42-43; Luis Beltrão Gouveia de Almeida. Discurso sobre os Sistemas
de Arrecadação dos Diamantes, em Pizarro e Araújo. Memórias, vol. 8, tomo 2, pp. 232-33; Saint-
Adolphe. Diccionário, vol. 1, p. 329.
50 Lima Jr. História dos Diamantes, pp. 42-43; Saint-Hilaire. Viagens pelo Distrito, p. 3; Boxer. The Golden
Age, p. 210.
51 Eschwege. Pluto Brasiliensis, p. 117; Lima, Jr. História dos Diamantes, pp. 32-33 e 37; Pizarro e Araújo.
Memórias, vol. 8, tomo 2, p. 110; Gouveia de Almeida, Discurso, pp. 232-33; Felício dos Santos. Le
Diamant, pp. 44-52. Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 329, afirma que poucos meses mais tarde a
taxa foi aumentada para 50 mil réis por escravo, mas de acordo com Pizarro e Araújo, somente foi dada
ao governador a opção para fazê-lo.
52 Lima Jr. História dos Diamantes, p. 77; Felício dos Santos. Le Diamant, p. 57; Boxer. The Golden Age, p.
210.
53 Boxer. The Golden Age, p. 211.
54 Boxer. The Golden Age, pp. 212, 221; Felício dos Santos. Le Diamant, pp. 74-75; Gouveia de Almeida,
Discurso, p. 235; Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 330; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 120.
Pizarro e Araujo. Memórias, vol. 8, tomo 2, p. 112, cita um contrato de 1735 a 1739, que está em
conflito com todas as outras fontes.
55 Boxer. The Golden Age, pp. 220-23; Gouveia de Almeida. Discurso, pp. 235-40; Lima Jr. História dos
Diamantes, pp. 83-92; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 120-22 e 177; Felício dos Santos. Le
Diamant, pp. 72-85 e 152-184.
56 Dornas Filho. O Ouro das Gerais, pp. 219-33; Lima Jr. História dos Diamantes, pp. 137-76; Eschwege.
Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 122-58, 164, nota do tradutor 353; Gouveia de Almeida. Discurso, pp.
241-60; Felício dos Santos. Le Diamant, pp. 185-281; Pizarro e Araújo. Memórias, vol. 8, tomo 2, pp.
112-14.
57 Para a produção total e a média anual no período 1772-1827 usamos os números na coluna (D) para
1772-1818 e na coluna (C) para 1819-1827. As estimativas de Calógeras estão em Dornas Filho. O Ouro
das Gerais, p. 222.
58 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 116-17, notas do tradutor. Lima Jr. História dos Diamantes, p.
47, cita uma fonte de 1735 que dá uma estimativa, aparentemente exagerada, de 18.000 escravos no
início dos anos 1730. De acordo com os números da capitação citados por Boxer. The Golden Age, p.
217, o número não excedia 8 a 9 mil nos anos 1730.
59 Gouveia de Almeida. Discurso, pp. 238, 244; Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 330. Boxer, mesmo
concordando que os contratadores frequentemente burlavam a limitação contratual, não acredita
que números tão grandes de escravos clandestinos pudessem ter passado despercebidos pelos
Intendentes. Boxer. The Golden Age, p. 221.
60 Artigos 16 a 21 do “Regimento para a Extração Real dos Diamantes no Arraial do Tejuco do Serro do
Frio, 2 de agosto de 1771”, reproduzidos em Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 130-31.
61 Felício dos Santos. Le Diamant, p. 186; Gouveia de Almeida. Discurso, p. 242; Pizarro e Araújo.
Memórias, vol. 8, tomo 2, p. 113. Spix e Martius. Viagem, vol. 2, p. 109, dão 4.500 a 5.000 como
o número empregado em 1771-75, Alcide d’ Orbigny. Voyage pittoresque dans les deux Amériques.
Paris, 1836, p. 163, menciona 6.000 em 1776.
62 Pizarro e Araujo. Memórias, vol. 8, tomo 2, p. 114, Spix e Martius. Viagem, vol. 2, p. 109.
63 Mawe. Travels, p. 265; Johann Emanuel Pohl. Viagem no interior do Brasil empreendida nos anos de
1817 a 1821. trad. Teodoro Cabral, 2 vols. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1951, vol. 2, p.
405; Freireyss. Viagem, p. 190; Saint-Hilaire. Viagem pelo distrito, p. 9; D’Orbigny. Voyage, p. 163.
64 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 172.
65 O Conselheiro Antonio Rodrigues Velloso de Oliveira estimou que, em 1819, havia 168.543 escravos
e 463.342 pessoas livres em Minas. Eschwege dá 181.882 escravos e 332.225 livres em 1821. Como
número total de escravos empregados na mineração usamos 8.592 no setor de ouro, mostrado na
tabela 2.5, mais 1.500 no setor de diamantes. Para as fontes dos dados de população veja o Anexo A.
Não é possível estimar a força de trabalho, escrava ou livre, nesse período.
66 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 242; Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias, vol. 1, p. 171.
Diversos outros escritores contemporâneos fizeram comentários semelhantes. É interessante notar
que não houve no século XIX nenhuma nova descoberta importante. Todas as companhias inglesas
estabelecidas em Minas Gerais, operaram minas já conhecidas, algumas das quais já tinham sido
exploradas por mais de um século.
67 Carta Régia de 12 de agosto de 1817 ao governador D. Manoel de Portugal e Castro. Sobre isso e sobre
a formação da companhia de mineração de Eschwege, ver Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 93-96, 135.
68 Walsh. Notices, vol. 2, pp. 114-15.
69 Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 100-47; Burton. Explorations, vol. 1, pp. 211-14; Walsh. Notices, vol. 2,
pp. 90, 111, 116. A Companhia da Serra da Candonga é citada somente por Burton e por Gardner,
Viagens. p. 407. Não consegui encontrar nenhuma outra informação sobre ela. A companhia inglesa
em São José del Rei, a qual, segundo Walsh, se denominava General Mining Association, é citada
somente por ele e por Charles James Fox Bunbury. Narrativa de Viagem de um Naturalista Inglês ao
Rio de Janeiro e Minas Gerais (1833-1835). Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 62
(1940), Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942, p. 135. Provavelmente era a General South American
Mining Association, uma companhia que, de acordo com J. Fred Rippy. British Investments in Latin
America, 1822-1949. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1959, p. 23, foi formada em 1824-
25, “principalmente (...) para operar no Brasil”. Henry English, autor de um levantamento de 1825
sobre as companhias britânicas criadas para operar minas estrangeiras, informa sobre a formação
da General South American mas não informa a localização de suas operações. English também cita a
Imperial Brazilian Mining Association, a Brazilian Company, e uma quarta, planejada para operar na
província do Espírito Santo, a Castello e Espírito Santo Brazil Mining Association. A Brazilian Company,
aparentemente, teve problemas em seu início: em 1825 English relatava que “ainda não tinha vindo
à luz” e, em outro levantamento, em 1827, ainda a cita como uma companhia em projeto. Veja Henry
English. A General Guide to the Companies Formed for Working Foreign Mines. London: Boosey and
Sons, 1825, pp. 9, 10, 25, 35 e 76-88, e seguintes; e Henry English. A Complete View of the Joint-
Stock Companies Formed During the Years 1824 and 1825. London: Boosey and Sons, 1827, pp. 4, 6
e 17. Quase todos os viajantes estrangeiros que estiveram em Minas Gerais no século XIX visitaram
as minas inglesas e escreveram sobre elas. Além dos já citados, veja também: Burmeister. Viagem, p.
222; Francis Castelnau. Expedição às Regiões Centrais da América do Sul. trad. Olivério M. de Oliveira
Pinto. 2 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949, vol. 1, pp. 158-78; Charles d’Ursel. Sud-
Amérique. Séjours et Voyages au Brèsil, a La Plata, au Chili, en Bolivie et au Perou, 2ª. ed. Paris: E. Plon
et Cie., 1879, pp. 50-67; e Suzannet. O Brasil, pp. 107-23.
70 Douglas Cole Libby. O Trabalho Escravo na Mina de Morro Velho. Dissertação de Mestrado. Departa-
mento de Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais, 1979, pp. 61-62, 79-81, 84-85; Caló-
geras. As Minas, p. 484. A afirmação de Libby que a St. John del Rey sustentava “sozinha a economia
regional” é um claro exagero. Burton, um grande admirador da empresa, manifestou um juízo muito
mais comedido sobre seu impacto econômico: “Ela emprega diretamente 2.521 almas; indiretamente
o dobro desse número”. Burton. Explorations, vol. 1, p. 278.
71 Henwood. Observations, pp. 367-69.
72 A citação é de Edward Gibbon Wakefield. A View of the Art of Colonization, with Present Reference to
the British Empire [1849], reprinted: New York: Augustus M. Kelley Publishers, 1969, p. 323. Saints era
o apelido dado aos abolicionistas ingleses no final do século XVIII e início do XIX.
73 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 66-104; Burton. Explorations, vol. 1, p. 215-18.
74 Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 126-27; Burton. Explorations, vol. 1, p. 215.
75 Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 124-25.
76 Burton. Explorations, vol. 1, p. 214; Gardner. Viagens, p. 407.
77 Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 100-13. Os dados de produção são de Henwood. Observations; Walsh.
Notices, vol. 2, p. 212; Burton. Explorations, vol. 1, pp. 212-14. Burton cita uma outra fonte que dá
números diferentes para a receita, despesas e lucros da companhia. Os números apresentados no
texto são de Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 111-112, cuja fonte, Henwood, foi um antigo superintendente
da companhia.
78 Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 114; Libby. O Trabalho Escravo, pp. 24-25; Rippy. British Investments, pp. 157,
175-77. A dissertação de mestrado de Libby, baseada em uma extensa pesquisa nos arquivos da
companhia, é a melhor história de Morro Velho disponível até o presente. Outra história da mina, de
autoria de Bernard Hollowood. A História de Morro Velho. edição particular. London: Saint John del
Rey Mining Co., Ltd., 1955, foi escrita com o patrocínio da Saint John del Rey e não é confiável. Além
desses trabalhos existem os relatos dos viajantes europeus, para quem uma visita ou mesmo uma
permanência prolongada em Morro Velho tornou-se obrigatória durante o século XIX. Infelizmente
esses depoimentos são claramente marcados pelo tratamento vip que a companhia dispensava aos
seus visitantes europeus. A tabela de Rippy, na página 175, onde lista as empresas britânicas mais
rentáveis na América Latina, não faz justiça ao desempenho da Saint John no século XIX. O período
incluído, 1875 a 1950, além de se situar em sua maior parte no século XX, contém quinze anos nos
quais não foram distribuídos dividendos, em virtude do desmoronamento de 1886
79 Libby. O Trabalho Escravo, pp. 49, 60. A citação é de Burton. Explorations, vol. 1, p. 247.
84 Ferrand. L’Or, p. 46; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 1, pp. 307, 326-27; Mawe. Travels, p. 229.
85 Mawe. Travels, p. 283; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 1, p. 327; Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias,
vol. 1, p. 220. Essas observações aplicam-se às minas de ouro. No distrito diamantino, diversas
inovações técnicas foram experimentadas com diferentes graus de sucesso pelo empreendedor
Intendente Câmara.
86 Kibble era o nome dado pelos mineiros da Cornualha, em Morro Velho, a um grande balde de ferro
puxado por correntes e rodas d’água, usado para trazer o minério do poço da mina para a superfície.
Burton. Explorations, vol. 1, pp. 246, 253. Castelnau. Expedição, tomo I, p. 174, descreve um mecanismo
semelhante no Gongo Soco.
87 Ferrand. L’Or, p. 60; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 1, pp. 349-50. O processo descrito por Eschwege
é ligeiramente diferente.
88 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 34-63; vol. 1, pp. 75-76, 352-55. Usei uma semana de seis
dias para comparar a produtividade do trabalho antes e depois da instalação do engenho na mina do
Coronel Romualdo. Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 147 diz que na mina do Faria, operada por uma companhia
francesa desde 1867, a trituração ainda era feita manualmente.
89 Castelnau. Expedição, tomo I, pp. 161-175; Gardner. Viagens, p. 406; Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 106-7.
90 Burton. Explorations, vol. 1, pp. 253-55; Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 117-19. Burton relatou que a
companhia estava experimentando ansiosamente máquinas que poupassem mão de obra nos
trabalhos de trituração. Ao lado dos 135 pilões do engenho principal, havia duas outras baterias, com
um total de 56 cabeças, usadas para triturar minério mais pobre. Para computar as exigências de mão
de obra da velha tecnologia usamos os dados fornecidos por Ferrand e assumimos que em 1856 o ano
de trabalho teve 356 dias, como em 1865 e 1877.
91 A produtividade da mão de obra em 1814 foi computada a partir dos dados de Eschwege. Pluto
Brasiliensis, vol. 2, pp. 34-63. Para os outros anos dados são de: Cata Branca: Ferrand. L’Or, p. 125 e
Castelnau. Expedição, tomo I, p. 160. Gongo Soco: Ferrand. L’Or, p. 110. Morro Velho: Libby. O Trabalho
Escravo, pp. 167-68. Cocais: Gardner. Viagens, pp. 405-06 e Ferrand. L’Or, pp. 126-27. A mina de Gongo
Soco não foi citada com esse nome em 1814. Aparentemente é a lavra Paciência em Santa Bárbara,
propriedade do Guarda Mor José Alves da Cunha Porto. A localização e o nome do proprietário são os
fornecidos por Ferrand para Gongo Soco.
92 Burton. Explorations, vol. 1., p. 212. Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 1, p. 81; Walsh. Notices, vol. 2,
p. 212; Acting-consul Westwood to Viscount Palmerston, December 28th, 1848. British and Foreign State
Papers, volume 37, p. 152; p. 429. Inclosure - List of 15 English Subjects within the District of the British
Consulate at Rio de Janeiro who are the Owners of about 2,231 Slaves. Suzannet. O Brasil, p. 119.
93 Walsh. Notices, vol. 2, pp. 118,120.
94 Gardner. Viagens, pp. 405-06; Westwood to Palmerston, December 28th, 1848, p. 152.
95 Castelnau. Expedição, tomo I, p. 160; Suzannet. O Brasil, p. 112; Burton. Explorations, vol. 1, p. 183.
96 Tanto quanto pude apurar, a única empresa em Minas Gerais que teve, em qualquer época, mais
escravos do que a Saint John del Rey foi a estatal Real Extração, no Distrito Diamantino.
97 Burmeister. Viagem, p. 222.
98 Libby. O Trabalho Escravo, pp. 167-88, 63. Libby afirma que a Saint John foi a única empresa a usar
o trabalho de coolies chineses no Brasil. Não foi o caso: a Fazenda de Santa Cruz, de propriedade da
Coroa, empregava-os no cultivo de chá, e a malfadada Companhia de Colonização do Mucuri, em
Minas, também usou indentured labor chinês nos anos 1850. Pode ter havido outros casos além
destes. Ver Robert Avé-Lallemant. Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859. trad. Eduardo de Lima
Castro, 2 vols. Rio de Janeiro: MEC-Instituto Nacional do Livro, 1961, vol. 1, pp. 184-86, 204-05.
99 Libby. O Trabalho Escravo, pp. 167-68.
Em 1867, dos 1.450 escravos empregados, 1.196 eram alugados, dos quais 245
eram de Cata Branca e 155 pertenciam à também falida Companhia de Cocais (Natio-
nal Brazilian). Entre os restantes, 414 podem ter sido antigos escravos de Gongo
Soco, pois 269 foram alugados do Comendador Francisco de Paula Santos que, em
1856, tinha confiscado os escravos daquela empresa e se tornado seu proprietário,
enquanto outros 145 foram alugados de seu genro.101
Em 1879 a Saint John del Rey tornou-se o centro de um escândalo de vastas
proporções. O contrato de 1845 com Cata Branca, cujos termos não foram divulga-
dos no Brasil, estipulava que os escravos transferidos para Morro Velho deveriam
100 O título completo do Brougham Act é: An act for the more Effectual Suppression of the Slave Trade, 24
de agosto de 1843. Ao introduzir sua proposta, Lord Brougham disse explicitamente que um dos seus
alvos eram as companhias inglesas de mineração em Minas Gerais. Veja-se seu discurso na House of
Lords, em 2 de agosto de 1842. Veja também: Libby. O Trabalho Escravo, pp. 57-58. A informação de
que um membro da Anti-Slavery Society possuía ações da companhia Cata Branca é de Frank Bennett.
Forty Years in Brasil. London: Mills and Boon Ltd., 1914, pp. 84-85.
101 Burton. Explorations, vol. 1, pp. 273-74. Tudo indica que “o aluguel” dos escravos de Cata Branca foi
uma fraude para burlar o Brougham Act. Apesar de não serem contados entre os company blacks,
estes cativos também não eram incluídos entre os hired blacks. Seus uniformes, assim como os dos
“pretos da companhia” portavam número de identificação enquanto que os “pretos alugados” tinham
somente as inicias M.V.
102 Libby. O Trabalho Escravo, pp. 68-71; Conrad. The Destruction, p. 136; Richard Graham. Britain and the
Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914. Cambridge: At the University Press, 1972, pp. 184-85. Os
norte-americanos e os franceses sempre tiveram imenso prazer em expor publicamente as hipocrisias
de que acusavam o abolicionismo britânico. O Rio News, jornal da comunidade norte-americana,
desempenhou um importante papel no escândalo de 1879. Para denúncias das práticas trabalhistas da
Saint John del Rey, veja, por exemplo, d’Ursel. Sud-Amerique, p. 65; e Paul Berenger. Le Brèsil en 1879.
Revue des Deux Mondes, tomo 37 (Paris, 1880), pp. 440-41. Veja também, C. F. Van Delden Laerne.
Brazil and Java. Report on Coffee–culture in America, Asia and África. London: W. H. Allen and Co. and
The Hague: Martinus Nijhoff, 1885, pp. 92-93.
103 Para uma discussão dos dados sobre a população escrava de Minas Gerais no século XIX, veja o Anexo A.
110 Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 130-34, Rippy. British Investments, pp. 156-57.
111 Ferrand. L’Or, vol. 1, pp. 135-38.
112 Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 139.
113 Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 139.
114 Ferrand. L’Or, vol. 1, p. 140.
Dados coletados por Burton para os anos de 1861 a 1867 mostram uma média
anual de exportações de 91.902 quilates. Não é claro, entretanto, qual era a proce-
dência desses diamantes.137
138 Sobre as relações entre a Saint John e o governo provincial e sobre as tentativas da companhia de
ocultar acidentes que resultaram na morte de trabalhadores, ver Libby. O Trabalho Escravo. Era
particularmente fácil fraudar o censo de 1872, uma vez que os questionários eram entregues nos
domicílios, preenchidos por seus responsáveis e recolhidos depois pelos agentes censitários. Ver
Oliveira Vianna. Resumo Histórico dos Inquéritos Censitários Realizados no Brasil. In: Brasil. Directoria
Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, Realizado em 1 de setembro de 1920 (Rio de Janeiro:
Typografia de Estatística, 1922), vol. 1.
139 Os números da população escrava para os 27 municípios de Minas Gerais, em 1854, estão nos rela-
tórios das autoridades municipais anexas ao Relatório... pres. Pereira de Vasconcellos, 25 de março,
1855.
140 Brazil. Directoria Geral de Estatística. Recenseamento da população do Império do Brasil a que se
procedeu no dia 1°. de agosto de 1872. Rio de Janeiro: Leuzinger e Filhos, 1873-1876. Em Minas Gerais
só foi realizado em 1°. de agosto de 1873. O censo é a única fonte de informação sistemática sobre a
distribuição ocupacional da população escrava de Minas Gerais. Os resultados para Minas da matrícula
de escravos de 1873 nunca foram completamente publicados. Somente sobreviveu uma lista parcial
dos totais por municípios. Para uma breve discussão sobre o censo e a matrícula, veja o anexo A.
A mera comparação das populações em dois pontos do tempo pode ser enganosa. No capítulo 4
discutimos a utilização de dados de população para estimar exportações e importações de escravos.
141 Lei provincial n°. 1811, de 10 de outubro de 1871. Essa lei estipulava uma taxa de dois mil réis sobre
cada escravo que, direta ou indiretamente, fosse empregado no serviço de mineração de ouro, por
qualquer pessoa particular, se ela tivesse mais do que cinco escravos empregados nesse serviço. Livro
da Lei Mineira, tomo 38, parte 1ª., p. 9.
142 Falla... pres. Antonio Gonçalves Chaves, 2 de agosto de 1883. Anexo A: Directoria da Fazenda Provincial.
Sem número de página. A Saint John del Rey empregava em 1881 uma média de 376 escravos e em
A
maioria dos historiadores, mesmo concordando que a grande e crescente
população escrava de Minas Gerais não pode ser atribuída, no século XIX,
ao agonizante setor minerador, não hesitaria em atribuir esse papel pro-
tagonista à produção do café. O setor cafeeiro é geralmente apresentado como a
atividade que resgatou a província, e na verdade, todo o império, de um impasse
econômico. O cultivo do café teria inaugurado uma nova era, dando novo sopro de
vida ao regime escravista e cumprindo, nesse particular, um papel semelhante ao
que é atribuído ao algodão no Sul dos Estados Unidos.
Já ressaltamos que, pelo menos no caso de Minas Gerais, esse ponto de vista é
altamente questionável e significa um enorme exagero da importância do café na
economia provincial. É uma visão míope que implica na adoção, pelo historiador,
da mentalidade legada pelo colonizador – a de que a atividade exportadora é o
único objetivo econômico respeitável, e que somente através dela se pode medir
o “progresso”. Neste capítulo analisamos a relação entre a escravidão e o café em
Minas, objetivando, em particular, chegar a uma estimativa da mão de obra escrava
empregada neste setor durante o período imperial.
89
iniciaram a plantação de café em larga escala, estabelecendo as primeiras fazendas.
A partir desse núcleo a cultura começou a se expandir através do vale do Paraíba, no
rumo sudoeste, em direção a São Paulo, e no rumo norte, atravessando os rios Para-
íba e Paraibuna e entrando na Zona da Mata de Minas Gerais.
Cerca de 1817 já havia plantações de café em Mar de Espanha, antes de 1830
em Matias Barbosa. Por volta da metade do século alcançaram São João Nepomu-
ceno e estavam começando a se espalhar para Leopoldina, Ubá e Muriaé, a leste, e
até Juiz de Fora e Rio Preto, a oeste.
O movimento foi rápido e existem registros de café exportado para o Rio de
Janeiro desde o princípio do século, mas até os anos 50 o setor cafeeiro mineiro foi
muito pequeno. Suas exportações eram apenas 3,5% do café exportado pelo porto
do Rio em 1820, 4,6% em 1830, e 5,6% no ano fiscal de 1851-52. Mesmo durante a
década de 1850, a exportação de café de Minas não chegava a 10% da fluminense.146
A evolução do setor cafeeiro mineiro, no século XIX, é mostrada na tabela 3.1. O
crescimento aparentemente espetacular dos índices deve-se ao fato de partirem de
uma base muito pequena.
No período compreendido entre o fim do tráfico africano, em 1850, e a eman-
cipação final dos escravos, em 1888, o café apresentou notável expansão em Minas.
Seu crescimento seguiu de perto, com uma defasagem determinada pelo inter-
valo entre o plantio de novos cafezais e sua maturação, as oscilações do preço
internacional.
146 Sócrates Alvim. Projeção Econômica e Social da Lavoura Cafeeira em Minas. In: Secretaria da
Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929, pp.
41-42. Outras fontes sobre os primórdios do café são: Rio de Janeiro: Stanley J. Stein. Vassouras. A
Brazilian coffee county, 1850-1890. New York: Atheneum, 1970, p. 53; Minas Gerais: Aristóteles Alvim.
Confrontos e Deduções. In: Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro no Brasil.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929. pp. 80-83. O desenvolvimento inicial do setor cafeeiro mineiro
é descrito por: Hildebrando de Magalhães. Subsídios para a História do Café em Minas Gerais. O Café
no Segundo Centenário de sua Introdução no Brasil. Rio de Janeiro: Edição do Departamento Nacional
do Café, 1934; Honorio Silvestre. A Colonização Mineira nos Grandes Latifúndios de Café do Estado
do Rio de Janeiro. O Café no Segundo Centenário de sua Introdução no Brasil. Rio de Janeiro: Edição
do Departamento Nacional do Café, 1934; Manoel Xavier de Vasconcellos Pedrosa. Zona Silenciosa
da Historiografia Mineira – A Zona da Mata. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 257
(outubro-dezembro) de 1962, pp. 122-62. O papel dos migrantes mineiros como pioneiros no setor
cafeeiro fluminense é também destacado por Stein. Vassouras, pp. 9-12, 17-21. Veja também Daniel
de Carvalho. O Café em Minas Gerais. In: Secretaria da Agricultura. Minas e o Bicentenário do Cafeeiro
no Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926, pp. 218-27.
12.000
10.000
8.000
6.000
4.000
2.000
0
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890 1900
147 A evolução do índice dos preços médios do café com base em 1853-55 =100 foi a seguinte:
1856-60 =121,5; 1861-65 =176,5; 1866-70 =167,9; 1871-75 =187,6; 1876-80 =137, 2; 1881-85 =101,8;
1886-88 =141,9. Os dados são de Affonso d’Escragnolle Taunay. História do Café no Brasil, 15 vols. Rio
de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1939-1941.
Tabela 3.4.2 - Minas Gerais: Características de 153 fazendas de café em 1883 (continuação)
Valor Valor Valor Valor total Escravos
Municípios médio dos médio dos médio das médio das como % do
escravos dos plantéis fazendas propriedades valor total
Leopoldina 1.174 38.742 51.077 89.819 43,1
Mar de Espanha 1.198 44.805 62.714 107.519 41,6
Juiz de Fora 1.183 59.150 62.330 121.480 48,7
Rio Novo 1.198 37.258 43.481 80.739 46,1
S. P. do Muriaé 1.272 40.831 58.763 99.594 41,0
Rio Preto 1.255 38.403 44.801 83.204 46,2
Ubá 1.079 49.850 51.078 100.928 49,4
Cataguazes 1.295 21.368 35.122 56.490 37,8
Pomba 1.137 29.562 31.605 61.167 48,3
Pouso Alegre 1.483 31.143 42.180 73.323 42,5
Além Paraíba 1.271 61.644 108.175 169.819 36,3
Tabela 3.5 - Minas Gerais: Fazendas de café visitadas por Laerne em 1883
151 Emmanuel Liais. Climat, Géologie, Faune et Géographie Botanique du Brésil. Paris: Garnier Frères,
1872, pp. 631-32.
152 Daniel de Carvalho atribui a origem desse erro a uma interpretação equivocada da observação de
Saint-Hilaire de que o café era exportado du Midi de la Province de Minas. No mesmo estudo sustenta
que o Sul não foi um produtor de café no século XIX e apresenta evidências sobre isso. Carvalho, O
Café, pp. 152-53.
100 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 3.10 - Minas Gerais: Exportações de café, 1881-82, 1882-83 e 1883-84,
por registros e regiões, em toneladas
Café Café Café
Registros exportado % exportado % exportado %
em 1881-82 em 1882-83 em 1883-84
E. F. União Mineira 0,0 0,00 13.420,8 15,95 8.609,8 15,98
E. F. Pirapetinga 0,0 0,00 1.722,6 2,05 0,0 0,00
E. F. Leopoldina 0,0 0,00 16.482,2 19,59 17.623,6 32,70
Flores do Rio Preto 1.615,6 2,57 1.909,4 2,27 1.463,9 2,72
Ilha dos Pombos 0,0 0,00 566,1 0,67 193,5 0,36
Juiz de Fora 7.330,5 11,68 18.506,5 22,00 9.735,5 18,07
Paraibuna 1.512,8 2,41 1.827,6 2,17 1.186,9 2,20
Patrocínio do Muriaé 1.106,2 1,76 1.681,7 2,00 489,7 0,91
Presídio do Rio Preto 1.135,6 1,81 1.116,2 1,33 825,4 1,53
Porto Novo do Cunha 27.935,4 44,52 21.780,3 25,89 7.677,9 14,25
Tombos do Carangola 763,1 1,22 896,6 1,07 639,9 1,19
Três Ilhas 1.486,0 2,37 1.513,4 1,80 1.079,2 2,00
Zacarias 152,1 0,24 169,4 0,20 55,9 0,10
Serraria 17.821,6 28,40 0,0 0,00 0,0 0,00
Chiador 0,0 0,00 0,0 0,00 613,6 1,14
Rio Pardo 0,8 (+) 0,4 (+) 1,7 (+)
Total da Zona da Mata 60.859,8 96,98 81.593,2 96,99 50.196,5 93,15
Caldas 117,9 0,19 284,6 0,34 672,2 1,25
Dores do Guaxupé 769,5 1,23 849,1 1,01 1.096,9 2,04
Itajubá 9,0 0,01 25,0 0,03 29,6 0,05
Jaguari 42,5 0,07 64,1 0,08 43,2 0,08
Monte Santo 331,5 0,53 626,2 0,74 938,5 1,74
Ouro Fino 275,2 0,44 298,9 0,36 350,2 0,65
Passa Vinte 107,0 0,17 108,4 0,13 181,1 0,34
Picu 19,0 0,03 17,5 0,02 7,4 0,01
Sapucaí Mirim 87,9 0,14 94,9 0,11 111,4 0,21
E. F. Minas e Rio 0,0 0,00 0,0 0,00 24,8 0,05
Total da Zona Sul 1.759,5 2,80 2.368,7 2,82 3.455,2 6,41
Jaguara 7,5 0,01 5,3 0,01 0,0 0,00
E. F. do Oeste 0,0 0,00 0,2 (+) 0,6 (+)
Januária 0,5 (+) 1,0 (+) 3,7 0,01
Filadélfia 121,2 0,19 151,2 0,18 228,6 0,42
Salto Grande 5,2 0,01 8,7 0,01 2,2 (+)
Total de Outras Regiões 134,4 0,21 166,6 0,20 235,0 0,44
153 Herbert S. Klein, The Internal Slave Trade in 19th. Century Brazil. The Middle Passage: Comparative
Studies in the Atlantic Slave Trade. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1978, p. 114;
Emilia Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966, p. 110. Essas
duas citações são apenas uma amostra, colhida em dois autores bem conhecidos. Muitas outras
poderiam ser apresentadas, tanto de historiadores mineiros como não-mineiros. Esta proposição está
errada nas duas pontas: O Sul de Minas não era um produtor importante de café nesse período, e nem
estava atraindo escravos em números consideráveis.
102 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
O volume total das exportações de café da Zona Sul até os anos 1870 era equi-
valente à colheita de uma única plantation de porte médio. Cresceu rapidamente
na década de 1880, mas mesmo então poderia ter sido produzido por apenas um
punhado de grandes fazendas. Todas as outras evidências apontam na mesma dire-
ção: o setor cafeeiro do Sul foi uma extensão do Oeste Paulista e durante os últimos
anos da escravidão estava apenas começando a se desenvolver.
A edição de 1874 do Almanaque Sul-Mineiro informa que, nos vales dos rios
Verde e Sapucaí, o café, “até o presente é plantado quase que somente para consumo
local”, acrescentando que em Pouso Alegre e Jaguarí já havia grandes plantações
das quais “algum” café era exportado.154
José Joaquim da Silva, em seu Tratado de Geographia Descriptiva Especial da
Província de Minas Geraes, publicado em 1878, menciona um incipiente cultivo de
café em Caldas, Alfenas, São José do Paraíso, Ouro Fino e Carmo do Rio Claro, dei-
xando claro, entretanto, que todos esses municípios mantiveram sua diversificação
agrícola e que, em todos os casos, o café era suplantado em importância pela cana
de açúcar, pelo fumo, pelos cereais e pela pecuária. Em outros treze municípios da
Zona Sul a cultura do café não é sequer mencionada.155
Todos esses municípios estão localizados na porção oeste da Zona Sul, próximos
à fronteira com São Paulo. Os dados de exportação confirmam que essa área estava
começando a se integrar com o Oeste Paulista nos anos 1870 e 1880: os registros
fiscais de Caldas, Guaxupé, Jaguarí, Monte Santo e Ouro Fino se situavam perto da
fronteira, e o aumento das exportações de café através deles mostra que esses distritos
estavam começando a se aproveitar da expansão da rede ferroviária paulista.
Entretanto, durante a maior parte do período em questão, a Zona Sul era uma
região isolada da costa por uma formidável barreira natural e não dispunha de rotas
exportadoras importantes. Os produtos de sua agropecuária diversificada (princi-
palmente fumo, toucinho e porcos em pé) eram enviados para o Rio de Janeiro, mas
como dependiam do transporte por tropas de mulas através de trilhas montanho-
sas que datavam do século XVIII, era impossível qualquer desenvolvimento de um
fluxo importante de exportações para o exterior.
Por volta da metade do século houve uma tentativa de quebrar o isolamento da
região, com a estrada do Passa Vinte, projetada para ligar Lavras ao litoral. Somente
154 Almanaque Sul-Mineiro, 1874, citado por Daniel de Carvalho. O Café em Minas Gerais, p. 152.
155 José Joaquim da Silva, Tratado de Geographia Descritiva Especial da Província de Minas Gerais. Rio de
Janeiro: Typographia Universal de E. e H. Laemmert, 1878, pp. 78-175. Em alguns dos cinco municípios
onde se menciona o café, esse artigo não é listado entre as exportações. Silva cita a cultura do café em
Aiuruoca, mas deixa claro que era somente para consumo local.
104 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Além de ser localizada quase que exclusivamente na Zona da Mata, a produção
mineira de café era ainda mais concentrada, não abrangendo sequer a totalidade
desta zona geográfica. Várias fontes registram que nem todos os municípios desta
região eram produtores comerciais de café durante o império. Diversas corografias
e relatos de viajantes do século XIX, abrangendo todo o período em estudo, mos-
tram claramente que os municípios do interior da Zona da Mata, aqueles situados
além das serras Mantiqueira, da Gameleira e do Caparaó, não podem ser carac-
terizados como distritos cafeeiros. O Tratado de Geographia Descriptiva Especial
descreve Piranga e Santa Rita do Turvo (Viçosa) como áreas de agricultura diver-
sificada e não lista o café entre seus produtos. Sobre Ponte Nova afirma que a cana
era sua principal cultura, com 140 engenhos de açúcar, e menciona o café como
uma lavoura incipiente.
O detalhado estudo de Laerne, poucos anos depois, lista como distritos cafeei-
ros de Minas Gerais apenas Juiz de Fora, Leopoldina, Mar de Espanha, São Paulo
do Muriaé, Rio Novo, Cataguazes, Rio Preto, Pomba e Ubá. Seu mapa situa a fron-
teira norte da região cafeeira em uma linha que passa por Rio Preto, Rio Novo e
Ubá, isto é, em uma faixa contida entre a fronteira do Rio de Janeiro e as cadeias de
montanhas citadas acima.
Quase quinze anos mais tarde, em 1886, viajando pela E. F. Pedro II, do Rio de
Janeiro rumo ao interior de Minas, o visconde Ernest de Courcy observou que o
cultivo comercial de café não tinha rompido esse limite norte, comentando que, até
a altura de Entre Rios, “todas as encostas do país são cobertas de plantações de café
(...) em Barbacena o país se transforma e a vegetação torna-se mais rarefeita. Sobre
as encostas o milho tomou o lugar do café.161 Toda a zona cafeeira de Minas não
compreendia, na época da abolição da escravidão, mais do que quatro por cento do
território da província.162
161 José Joaquim da Silva. Tratado, pp. 145-46, 154; Laerne. Brazil and Java, p. 118 e mapa no fim do
volume. Vicomte Ernest de Courcy. Six Semaines aux Mines d’Or du Brésil. Paris: L. Sauvaître, Editeur,
1889, pp. 92 e 97.
162 A área territorial da zona cafeeira foi estimada por Pedrosa. Zona Silenciosa, p. 157, como sendo de
25.000 km2, dos 587.000 km2 da província.
163 Descrições detalhadas da tecnologia e das práticas de plantio e processamento do café no Brasil do
século XIX podem ser encontradas em: Laerne. Brazil and Java e Stein, Vassouras.
106 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
e mineiros, isto é, brasileiros do interior, especialmente de Minas Gerais, que fazem
disso seu ofício predileto”.164
Esses lenhadores caboclos gozavam de grande reputação por suas habilidades.
Um engenheiro ferroviário inglês, trabalhando em áreas densamente florestadas
comentou:” Nunca vi os famosos madeireiros do interior dos Estados Unidos, mas
duvido que possam superar um traquejado matuto brasileiro no trabalho de der-
rubar florestas; cada golpe da foice ou do machado é desferido no ponto exato, e
raramente cometem algum erro”.165
A técnica usada para plantar os cafeeiros era extremamente simples. Stanley
Stein recolheu de um velho trabalhador do eito a seguinte descrição da operação:
“Coloque uma muda no buraco, aperte levemente com a enxada; coloque outra
muda e aperte de novo; jogue terra vermelha na raiz. Encha o buraco com terra e
aperte com força.”166 O plantio era outro estágio raramente executado pelos escra-
vos da fazenda. O cafeeiro somente começa a dar frutos no terceiro ano de vida e só
atinge seu potencial máximo em quatro ou seis anos. Por essa razão a maioria dos
fazendeiros considerava mais lucrativo contratar homens livres para esse trabalho.
Esses homens, conhecidos como empreiteiros ou formadores de cafezal, faziam o
plantio e cuidavam dos cafeeiros até a maturidade, capinando o mato e replantando
os arbustos mortos.
Frequentemente os empreiteiros eram, eles próprios, proprietários de escravos,
de Minas Gerais, que migravam de lugar em lugar com suas turmas, mas usual-
mente eram camponeses livres, muitas vezes também mineiros. Em alguns casos
os escravos da fazenda plantavam os novos cafezais, que eram então entregues aos
mineiros para a manutenção durante os primeiros anos. Além de receberem uma
soma fixa por cada árvore madura entregue ao fazendeiro, permitia-se que os for-
madores cultivassem feijão, milho e outros mantimentos entre as fileiras de café.167
164 Laerne. Brazil and Java, p. 279. As palavras caboclos e mineiros estão em português no original. Mais
evidências de que a limpeza dos terrenos para o café era sempre feita por trabalhadores livres podem
ser encontradas em Warren K. Dean. Rio Claro. A Brazilian Plantation System, 1820-1920. Stanford:
Stanford University Press, 1976, p. 35; Stein. Vassouras, p. 32. Um historiador da Zona da Mata mineira
afirma que nessa região o trabalho de “índios amansados” era extensamente usado nesta tarefa. Ver
Pedrosa. Zona Silenciosa, p. 132.
165 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 148. A palavra matuto está em português no original.
166 Stein. Vassouras, p. 33.
167 Viotti da Costa. Da Senzala à Colonia, p. 144; Dean. Rio Claro, p. 35; João Pedro Carvalho de Moraes.
Relatório apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1870, pp. 67-68; Laerne. Brazil and Java, pp. 292-93. Dean e Carvalho de Moraes
mencionam grupos de escravos trazidos por empreiteiros das áreas centrais de Minas Gerais para São
Nas carpas, ou seja, a limpeza completa dos cafezais, o mato tinha que ser arran-
cado e suas raízes inteiramente expostas ao sol, para que não brotasse de novo, com
vigor renovado, logo na primeira chuva. As capinas se resumiam em simplesmente
cortar o mato no nível do solo. Se os trabalhadores fossem poucos as carpas podiam
ser substituídas por simples capinas, e mesmo o número de capinas podia ser redu-
zido. Essa foi a tendência na Zona do Rio nos últimos anos da escravidão, à medida
que a mão de obra ficou cada vez mais escassa. Mas os fazendeiros tinham plena cons-
ciência da relação entre a qualidade da manutenção dos cafezais e sua produtividade.
Importantes tarefas auxiliares eram a poda das árvores e a interminável guer-
rilha contra a saúva, o mais temido predador do cafezal. Essas tarefas especiais
exigiam pequena parcela do plantel, por serem executadas por uns poucos escravos
especialmente treinados. Toda grande fazenda mantinha alguns cativos com a mis-
são permanente de procurar e destruir os formigueiros. Outras tarefas auxiliares, de
Paulo. J. McFaden Gaston. Hunting a Home in Brazil. Philadelphia: King and Baird Printers, 1867, pp.
133-135, também ouviu dizer que isso era comum, mas afirma que os escravos geralmente vinham
da zona cafeeira mineira. Laerne menciona camponeses mineiros livres como empreiteiros. A questão
de os escravos da fazenda serem ou não usados para formar cafezais e para cuidar dos cafeeiros
jovens não é importante para o cálculo dos requisitos de trabalho. Se fossem usados somente escravos
para essas tarefas, tudo que teríamos que fazer era introduzir uma defasagem de quatro ou cinco
anos entre o produto e a correspondente mão de obra necessária. Exceto por essas defasagens as
estimativas não seriam modificadas.
168 Laerne. Brazil and Java, p. 293. Laerne está, evidentemente, descrevendo uma grande plantação. As
palavras turma, feitor e administrador estão em português no original.
108 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
natureza ocasional e não diretamente ligadas ao cultivo, como serviços de pedreiro
e carpinteiro, construção de cercas, regos, etc., eram geralmente executadas por
homens livres, contratados por empreitada ou como jornaleiros.169
Além da manutenção do cafezal, as outras operações que envolviam grande
quantidade de trabalho eram a colheita e o beneficiamento do produto para o
mercado. Ambas eram executadas pelos escravos da fazenda. A colheita, de maio
a setembro, era feita manualmente e exigia a participação de toda a escravaria,
homens, mulheres e crianças. No Brasil os frutos do café nunca eram colhidos um
a um. Devido à crônica escassez de mão de obra, o sistema da derriça, mais rudi-
mentar, mas poupador de trabalho, era o método sempre adotado:
Cada ramo era preso pelo polegar e pelo indicador, e a mão era então
movida para baixo e para fora, debulhando-o com um movimento
rápido e enchendo a peneira de folhas, gravetos secos e cerejas de café.
Quando esta se enchia, o conteúdo era lançado ao ar. O café caía no
fundo, e as folhas e gravetos que ficavam por cima eram varridos para o
chão com um movimento da mão.170
169 Os plantéis das grandes fazendas podiam incluir oficiais cativos, como pedreiros, carpinteiros e
ferreiros. Aparentemente a tendência no final do século foi concentrar a escravaria nas tarefas
agrícolas e contratar pessoas de fora para esses trabalhos. Ver Carvalho de Moraes. Relatório.
170 Stein. Vassouras, p. 35.
171 Laerne. Brazil and Java, p. 301.
172 Laerne. Brazil and Java, p. 302. As palavras sitiantes e quitandeiros estão em português no original.
110 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Toda a questão gira em torno de dois coeficientes técnicos: a produção de
café por cafeeiro e a média de cafeeiros por escravo, isto é, o número de pés que
eram efetivamente cuidados por um escravo. A combinação desses dois parâme-
tros resulta na produtividade por escravo e assim o cálculo do número de escravos
engajados na produção de café se transforma na simples divisão da produção total
por esse coeficiente.
A produtividade dos cafezais (sempre medida em termos de arrobas de café
processado por mil pés) era uma das questões mais debatidas entre os cafeicultores.
Era uma discussão interminável, alimentada não só pela precariedade dos proces-
sos de medição, mas também pelo grande prestígio ligado à obtenção de altas taxas
de produtividade. Por isso, quando falavam de suas próprias plantações, os fazen-
deiros eram sempre bastante propensos a exagerar.
Um fazendeiro, falando com certa autoridade de suas colheitas de 200
arrobas por mil pés, toma ares de grandeza, e acredita que seus vizinhos
logo o estarão elogiando, e cumprimentando publicamente como “um
fazendeiro muito, muito importante”, um título muito valorizado com
vistas às eleições para Deputado Provincial.175
as Laborers and Landowners in the Coffee Zone of São Paulo, Brazil, 1886-1934. Tese de doutorado,
University of Wisconsin, 1974, pp. 152-55; Johann Jacob von Tschudi. Viagem às Províncias do Rio de
Janeiro e São Paulo. trad. Eduardo de Lima Castro. São Paulo: Livraria Martins, 1953, pp. 46-47, 50.
175 Laerne. Brazil and Java. p. 307. A expressão um fazendeiro muito, muito importante está em português
no original.
176 Laerne. Brazil and Java, p. 308.
112 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Quando se discute a questão da produtividade deve-se, entretanto, lembrar uma
diferença importante. Ao contrário do resto da Zona do Rio, a região cafeeira de
Minas não estava em decadência nas últimas décadas do século. Tinha uma grande
quantidade de terras virgens à sua disposição e estava crescendo vigorosamente,
não só no Sul mas também dentro da própria Mata. A fronteira do café continuava
aberta na entrada do século XX e, no final da Primeira República, Minas Gerais
estava exportando três vezes mais café do que no final do Império.177
Não se deve, portanto, associar o setor cafeeiro de Minas com o quadro som-
brio do Vale do Paraíba. É bem plausível, e de fato parece ter sido o caso, que a
produtividade média em Minas Gerais tenha permanecido constante ou até mesmo
aumentado no período em questão.
A consequência disso é que as estimativas de produtividade para a Zona do Rio,
baseadas, como foram, em observações no Vale do Paraíba fluminense no final do
século XIX, devem ser vistas como subestimações da produvidade real que, em
média, prevaleceu em Minas Gerais.
As informações mais antigas que encontrei sobre a produtividade de café na
Zona do Rio, são aquelas colhidas por Johann Jakob von Tschudi, o naturalista
suíço enviado ao Brasil em 1860, como ministro ad hoc para investigar as condi-
ções de vida dos imigrantes suíços na cultura do café. Em uma fazenda de Can-
tagalo, um distrito cafeeiro fluminense próximo de Minas Gerais, ele anotou a
produtividade média de 63,9 arrobas por mil pés em 1847-50; 55,8 arrobas em
1851-54 e 49,3 arrobas em 1855-60. Essa fazenda aparentemente não era típica
porque, usando “informações detalhadas obtidas em várias províncias”, o Dr.
Tschudi concluiu que a produtividade média era de 61,7 arrobas por mil pés em
cafezais com seis a dez anos de idade, e de 69,4 arrobas para aqueles entre dez e
dezoito anos. Ele usou o coeficiente de 61,7 arrobas em todas as estimativas em
seu relatório e observou que essa média foi a mesma obtida no Suriname, Santo
Domingo, Jamaica e Bourbon.178
Para o final dos anos 70 e o início dos 80, existem várias estimativas. Louis
Couty, cientista francês que viveu no Brasil e escreveu extensamente sobre café e
escravidão, sugeriu, em 1884, que nas fazendas escravistas a média foi de 40 a 80
177 Para um estudo sobre a evolução da ocupação e o movimento da frente pioneira na Zona da Mata, veja
Orlando Valverde. Estudo Regional da Zona da Mata, de Minas Gerais. Revista Brasileira de Geografia.
Ano XX, n°. 1 (Jan.-mar. 1958), pp. 25-29.
178 Tschudi. Viagem, pp. 39 e 46.
114 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
discrepâncias que sempre ocorrem em cálculos desse tipo”, tirou a média das duas
estimativas, obtendo o número, tantas vezes citado, de 22,65 arrobas por mil pés.
Obviamente as duas variáveis não são a mesma coisa, e tirar sua média não
faz nenhum sentido. A primeira (23,4) é a produtividade média, isto é, a média da
distribuição das produtividades observadas. A segunda (21,9) é a produtividade
agregada, não é a média de coisa nenhuma, não é comparável com a produtividade
média e não pode ser usada como representativa da distribuição das produtivida-
des, pois não leva em consideração as variações entre as fazendas.
Temos fortes razões para acreditar que a produtividade média de 23,4 arrobas
por mil pés não era representativa da cultura do café em Minas Gerais nessa época.
Taunay sugeriu que uma produção tão baixa era típica das plantações de café em
terras exauridas186, e um exame da tabela 3.13, abaixo, mostra imediatamente que,
de fato, todas as fazendas visitadas por Laerne em Minas Gerais estavam localiza-
das em alguns dos mais velhos distritos cafeeiros da província. Um exame mais
atento das próprias propriedades, especialmente das que apresentam as produtivi-
dades mais baixas, revela que estavam muito longe de serem típicas.
A fazenda Pouso Alegre (13,8 arrobas por mil pés), quando visitada por Laerne,
tinha sido comprada apenas seis anos antes “em uma condição muito abandonada”
por seu dono atual, que estava tentando “tirar a propriedade da ruína”. Seus cafezais
eram velhos, e os novos, que tinham sido plantados há apenas um ano, ainda não
estavam produzindo. A fazenda Recato (16,0 arrobas por mil pés) era, da mesma
forma, descrita como “muitíssimo mal cuidada”. O dono, embora residente na pro-
priedade, não visitava as plantações há vários anos. Tudo era administrado por um
feitor escravo.
As propriedades de Cedofeita, Belmonte e Joazal pertenciam ao mesmo dono,
o conde de Cedofeita, que era um proprietário absenteísta. A Fortaleza de Sant’Ana
foi descrita como “não sendo uma das mais produtivas.” A fazenda Cruz Alta, a
despeito das baixas colheitas obtidas, era a mais bem cuidada dentre as examinadas
por Laerne em toda a Zona do Rio. Era uma propriedade bem administrada, em
rápido crescimento, mas era ainda muito nova. Seu problema não era a velhice dos
cafeeiros, mas, pelo contrário, sua juventude. Seus cafeeiros mais antigos tinham
somente nove anos de idade, e apenas 300 mil dos seus 800 mil pés tinham seis
anos ou mais. A colheita prevista para 1884 é mais informativa sobre essa fazenda
do que as dos cinco anos anteriores: para aquele ano esperava-se uma produção de
35 arrobas por mil pés, e esse número certamente aumentaria nos anos seguintes,
116 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
A amostra de Laerne é ainda enviesada em outra direção. Era opinião consen-
sual (e empiricamente confirmada) que havia uma relação inversa entre a produção
por cafeeiro e o número de pés sob os cuidados de cada escravo. O cafeeiro é, em
outras palavras, muito sensível à intensidade do tratamento. Uma regressão linear
nos dados de Laerne, entre a produtividade por pé e o número de pés por escravo,
mostra uma inclinação negativa e coeficientes negativos de correlação, tanto na
Zona do Rio como na de Santos. Os mesmos resultados foram obtidos com uma
amostra de cafeeiros tratados por famílias de imigrantes livres em São Paulo.188
As fazendas mineiras incluídas na amostra de 31 propriedades da Zona do Rio
(tabela 3.5) tinham uma média de 4.598 pés por escravo, que é 24% mais alta do
que a média de 3.706 pés por escravo, obtida na outra amostra, de 153 proprieda-
des, apresentada na tabela 3.4. A amostra maior, infelizmente, não contém dados
de produção. Uma reta de mínimos quadrados ajustada às fazendas mineiras da
amostra de Laerne indica que, se a fazenda típica tinha 3.706 pés por escravo, a
produtividade média estimada seria de 36,7 arrobas por mil pés.189
As evidências disponíveis para anos posteriores também sugerem que a estima-
tiva de produtividade de Laerne é baixa. Em 1897, depois da abolição da escravidão
e de um período de preços baixos terem causado grandes danos ao setor cafeeiro da
Mata, Bernardino de Campos estimou a produtividade por mil pés em 30 arrobas
na Zona da Mata e o dobro desse número na Zona Sul, que estava em uma fase de
crescimento acelerado.190
As estimativas para o início do século XX, mais confiáveis porque pela primeira
vez os cafeeiros foram efetivamente contados, também indicam produtividades bem
mais altas do que os números de Laerne. Em um detalhado estudo sobre as condições
da agricultura na Zona da Mata, em 1905, o engenheiro Carlos Prates estimou a pro-
dutividade média em 36 arrobas por mil pés, chegando até a 70 arrobas nos distritos
da fronteira em expansão.191 Duas décadas mais tarde, em 1926, dados da Inspectoria
188 Usando as 29 observações na zona do Rio (três das 31 fazendas estavam reunidas em um único
estabelecimento), a reta de regressão entre a produtividade por cafeeiro (medida em gramas por pé)
e o número de pés por escravo tem uma inclinação igual a - 4,97.
189 A regressão para as fazendas mineiras tem a equação y = – 66,615x + 6.155,4, onde x = arrobas por mil
pés e y = pés por escravo.
190 Citado por Taunay. História do Café, vol. 9, pp. 189-90. É razoável presumir que um dos efeitos da crise
seria uma paralização na plantação de novos cafezais e que, por causa da escassez de mão de obra,
haveria uma deterioração na manutenção dos cafezais existentes. Os dois fatores tenderiam a baixar
a média produtividade da região.
191 Estado de Minas Gerais. A Lavoura e a Indústria da Zona da Mata. Relatório apresentado ao Exmo. Sr.
Secretário das Finanças pelo Engenheiro Carlos Prates, Inspector de Indústria, Minas e Colonização.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1906. Anexo, quadro n°. 2, sem número
de página. A produtividade de 70 arrobas por 1.000 pés, observada em Ponte Nova, confirma que, em
1905, o município estava na zona fronteiriça da região cafeeira.
192 O Café no Segundo Centenário, p. 601.
193 Tschudi. Viagem, p. 46. Uma fonte de 1828, citada por Eulália Lobo, afirmou que um negro podia cuidar
de apenas 1.000 cafeeiros, enquanto que um branco era capaz de cuidar de 1.500. Esse testemunho é
contrário a toda a evidência acumulada ao longo do século.
118 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
5.000 pés, considerando que, além da manutenção das estradas e pontes,
ele tem que se ocupar do plantio de milho, feijão, mandioca, batatas,
enfim, de tudo que é necessário para o consumo dos trabalhadores em
uma fazenda. Entretanto, a paixão pelo plantio de café foi tão violenta
que, na maioria dos distritos da Zona do Rio, um escravo tem agora que
cuidar de mais de 7.000 pés.194
Nas 31 fazendas que visitou, Laerne registrou uma distinção entre escravos do
eito (field slaves) e escravos da fábrica (factory slaves), isto é, aqueles empregados no
beneficiamento da produção. O número de cafeeiros por escravo, acima mencionado,
refere-se apenas aos escravos do eito. Não o acompanhamos nesse procedimento, por
várias razões. Primeiro, não é claro, de forma alguma, que uma divisão tão rígida da
mão de obra fosse adotada nas fazendas de café. Na maioria dos casos, o trabalho
do campo e o trabalho da fábrica eram executados pelos mesmos escravos. Alguns
produtores, sobretudo os pequenos, nem sequer beneficiavam a colheita, preferindo
fazê-lo nas fazendas maiores e melhor equipadas de seus vizinhos.
Nas fazendas mineiras que visitou, Laerne registrou 0,61 escravos “da fábrica”
para cada escravo “do campo”. É muito improvável que uma proporção tão grande
fosse permanentemente empregada no beneficiamento, exceto, talvez durante
o período da colheita. Por essas razões, e porque a amostra maior não registra
nenhuma separação entre escravos de campo e de fábrica, decidi usar a razão dos
pés de café pelo número total de escravos nas fazendas. Poder-se-ia acrescentar
que o próprio Laerne abandonou a distinção entre essas diferentes funções quando
computou as necessidades de mão de obra.
No mesmo relatório, comentando sobre as tentativas de introduzir imigrantes
livres na cultura do café, o autor afirmou que os colonos “só cuidarão de uns dois
mil cafeeiros produtivos por homem, ou seja, nem um terço do número atribuído a
um escravo.”195 Nas 31 fazendas que observou pessoalmente, Laerne averiguou que
o número médio de pés por escravo era 3.379 nas 21 fazendas fluminenses e 4.598
nas dez propriedades em Minas Gerais, resultando em uma média de 3.715 pés por
escravo na Zona do Rio.196
Como mencionado acima, a média de 4.598 pés por escravo parece alta demais
para Minas Gerais. A amostra das 153 fazendas penhoradas ao Banco do Brasil
194 Laerne. Brazil and Java, p. 290. As palavras roça e batatas estão em português no original.
195 Laerne. Brazil and Java, p. 215.
196 Laerne. Brazil and Java, pp. 328-29. Nos cálculos da página 336 Laerne encontrou a média de 3.644
pés por escravo na zona do Rio. Aqui ele cometeu o mesmo erro referido acima.
197 As estimativas de Alvim estão em A. Alvim. Confrontos e Deduções, pp. 80-83. Os dados fluminenses
são das seguintes fontes: 1851-70: Relatório do diretor da Fazenda Provincial do Rio de Janeiro, Dr.
Almeida Torres, ao Presidente da província, Visconde de Prados, 1878. Reproduzidos em Taunay.
História do Café, vol. 6, pp. 316, 318-19. 1871-88: Estado do Rio de Janeiro, Relatório apresentado ao
Sr. Vice-Presidente do Estado...pelo Secretário das Finanças... em 31 de julho de 1893. Reproduzido
por Pedro Carvalho de Mello. The Economics of Labor in Brazilian Coffee Plantations, 1850-1888. Tese
de doutorado, University of Chicago, 1977, pp. 32-33.
120 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Utilizamos as duas séries nas estimativas das necessidades de mão de obra
escrava na lavoura cafeeira. A estimativa A usa a série mineira e a estimativa B é
baseada nos dados fluminenses, corrigidos nos anos 1880 para incluir a produção
da Zona Sul, imputando a esta região uma participação de 3 por cento na produção
total da província entre 1880 e 1883, e de 7 por cento entre 1884 e 1887.
Nos dois casos os dados foram convertidos de anos comerciais para anos calen-
dário. Para suavizar as flutuações anuais usamos uma média móvel de três anos.
Isso é especialmente importante no caso da cultura cafeeira porque nela, além das
oscilações anuais normais em qualquer cultura, havia, segundo os especialistas
contemporâneos, um padrão cíclico peculiar ao café, no qual uma safra boa era
geralmente seguida por um ou dois anos de colheitas fracas.
Não se fez nenhuma tentativa para corrigir as séries de exportação no sentido de
incluir o consumo doméstico de café. Isso se justifica porque, como já foi mencionado,
a maior parte do café consumido internamente era produzido em toda a província,
e não apenas na zona cafeeira. Se incluirmos essa produção nos cálculos, estaremos
atribuindo aos escravos das fazendas de café uma produção que estava ocorrendo em
outros lugares, fora da região de plantation utilizando cativos que não pertenciam a
essa região ou trabalhadores rurais livres. Assim, desde que o objetivo aqui é estimar
o emprego de escravos no setor plantacionista de café, não foi feita nenhuma tenta-
tiva de ajustar as séries de exportação para incluir o consumo doméstico.
Não distinguimos entre o café produzido na Zona da Mata e na Zona Sul. Para
a maior parte do período essa distinção é irrelevante por causa da insignificância
da produção do Sul. Na década de 1880, entretanto, dado o rápido crescimento da
participação do Sul, e o fato de que a sua produtividade era duas vezes mais alta do
que o da Mata, isso introduz um ligeiro viés para cima nas estimativas de emprego.
As estimativas na tabela 3.14 nos permitem avaliar o verdadeiro peso do setor
cafeeiro na economia escravista de Minas Gerais. Único setor de plantations que
existiu na província, ele era totalmente baseado no trabalho escravo e cresceu vigo-
rosamente ao longo do século. Porém, visto em perspectiva, contra o conjunto
da economia provincial, seu papel como empregador de cativos foi relativamente
modesto, mesmo nas décadas finais do regime servil.
Em particular, a expansão do café não é capaz de explicar, nem mesmo parcial-
mente, a sobrevivência ou o crescimento da escravidão em Minas Gerais depois
do declínio da mineração. Mesmo que venham a ser feitas correções consideráveis
nessas estimativas, isso não mudará a essência dessa conclusão.
No começo do período estudado os escravos empregados no cultivo do café
representavam menos de 0,1% da população cativa da província. Nas três décadas
198 Os números da população escrava sobre os quais essas porcentagens foram calculadas estão no
capítulo 4. Luiz Corrêa do Lago, usou um procedimento análogo, para estimar que, em 1870-71, cerca
de 60.000 escravos estavam empregados no cultivo do café em Minas Gerais. Considero esse número
exagerado, pelas seguintes razões: 1) O autor usou, sem nenhuma crítica, a estimativa extremamente
baixa de Laerne, de 17,8 sacas de café por escravo por ano. 2) Ao produto exportado acrescentou
350.488 sacas com o objetivo de incluir o consumo doméstico, um procedimento que rejeitamos
pelos motivos apontados no texto. Isso acrescentou 19.688 escravos à estimativa. 3) O ano escolhido
para a estimativa, 1870-71, foi um ano atípico, com uma produção anormalmente alta. As 3.034,4 mil
arrobas exportadas nesse ano foram mais do que o dobro dos dois anos adjacentes, acima e abaixo.
Note-se, incidentalmente, que mesmo se esta estimativa estivesse correta, os escravos empregados
no setor cafeeiro não representariam mais do que 15,7% dos 381.893 cativos registrados pelo Censo
do Império.
122 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
social e era sempre exercida por um homem livre. Seus subordinados, os tocadores
das mulas, podiam ser escravos ou trabalhadores livres.
Tabela 3.14 - Minas Gerais: Estimativa dos requisitos de mão de obra escrava
na lavoura cafeeira, 1820-1887, segundo duas fontes de dados de exportações
Escravos Escravos Escravos Escravos Escravos
Ano Ano Ano
(A) (A) (B) (A) (B)
1820 141 1843 2.236 1866 13.078 13.773
1821 190 1844 2.526 1867 15.746 15.743
1822 240 1845 2.754 1868 16.777 16.809
1823 289 1846 2.861 1869 17.079 16.532
1824 338 1847 2.908 1870 16.262 17.131
1825 388 1848 2.856 1871 15.753 15.759
1826 437 1849 3.611 1872 15.281 15.184
1827 486 1850 4.420 1873 15.771 15.516
1828 535 1851 5.014 1874 17.369 18.131
1829 597 1852 5.090 1875 17.966 19.502
1830 685 1853 5.007 5.718 1876 18.496 19.710
1831 797 1854 5.358 6.155 1877 20.193 20.775
1832 918 1855 5.876 6.424 1878 23.021 23.286
1833 1.037 1856 6.222 6.218 1879 26.889 26.070
1834 1.157 1857 6.237 5.934 1880 29.814 30.447
1835 1.276 1858 5.981 5.660 1881 32.584 33.113
1836 1.396 1859 6.696 6.290 1882 33.832 35.240
1837 1.515 1860 8.010 7.351 1883 32.420 33.415
1838 1.635 1861 8.211 8.212 1884 33.401 36.545
1839 1.744 1862 7.481 8.496 1885 37.160 36.104
1840 1.830 1863 7.280 8.535 1886 35.936 33.287
1841 1.892 1864 8.573 9.270 1887 36.202 30.078
1842 2.004 1865 10.826 11.164
Série A: Dados de exportação de Aristóteles Alvim.
Série B: Dados fiscais da província do Rio de Janeiro.
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
199 A maioria dos viajantes do século XIX descreveu com algum detalhe as tropas de mulas e os tropeiros.
Boas descrições podem ser encontradas em Burmeister. Viagem ao Brasil, pp. 71-72; Saint-Hilaire.
35.000
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
1820 1825 1830 1835 1840 1845 1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885
Stanley Stein afirma que “vinte por cento da força de trabalho masculina das
fazendas (...) sempre escolhidos entre os melhores (...) era retirada do trabalho do
campo e ocupada na função de tropeiro.” Tschudi sugeriu que deve-se acrescentar
um terço sobre o número de escravos empregados no campo, para incluir os requi-
sitos do beneficiamento e do transporte. O Príncipe Adalbert da Prússia, John Luc-
cock, Spix e Martius, e Gardner também assinalaram que a maioria dos tocadores
de mulas eram escravos.200 John Codman, por outro lado, observou, em 1865, que
a “maioria dos tropeiros são açorianos rudes ou índios mestiços,” e o Reverendo
Ballard Dunn, um ex-confederado de Nova Orleans, escreveu, um ano mais tarde,
Viagem pelas Províncias, p. 70; Freireyss. Viagem, pp. 164-66. Veja também João Dornas Filho. Tropas
e Tropeiros. In: Universidade de Minas Gerais. Primeiro Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte:
Imprensa da UMG, 1957: 89-127; Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 147-48; Gardner. Viagens, p. 394.
200 Stein. Vassouras, p. 91; Tschudi. Viagem, pp. 46-47; Prince Adalbert of Prussia. Travels of His Royal
Highness Adalbert of Prussia in the South of Europe and in Brazil. trad. Sir Robert H. Schomburg e
John Edward Taylor, 2 vols. London: David Bogue, 1849, vol. 2, p. 7; John Luccock. Notas sobre o Rio
de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil. trad. Milton da Silva Rodrigues. São Paulo: Livraria Martins,
1942, pp. 226, 246; Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 148-49; Gardner, Viagem, pp. 394-95.
124 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
que era comum para os brasileiros pobres, que viviam quase vegetando, “seguir a
vida quase totalmente selvagem de tropeiro”.201
Adotando a hipótese extrema de que todos os empregados no transporte do
café fossem escravos, podemos estimar o limite superior do número de cativos
necessários para a tarefa, uma vez que os coeficientes técnicos relevantes podem
ser determinados com uma precisão razoável.
Várias fontes informam que a capacidade usual de carga de uma mula era de 250
a 300 libras. No transporte do café essa carga era sempre exatamente de 256 libras,
ou oito arrobas, distribuídas igualmente nos dois lados do animal para garantir
o equilíbrio. Na verdade, foi essa imposição técnica que deu origem à prática de
embalar o café em sacas de 60 quilos, que sobrevive até nossos dias.202
As tropas, às vezes com centenas de animais, eram divididas em lotes ou grupos
de sete mulas cada um, cada lote a cargo de um condutor. Essa organização não se
modificou através dos tempos, tendo sido observada por Saint-Hilaire, por Luc-
cock, pelo Príncipe Maximilian Wied-Neuwied e por Spix e Martius na década de
1810, por Gardner em 1841, por Burmeister em 1851 e por Wells em 1873.203 Por-
tanto, um tocador com sete mulas carregando oito arrobas cada uma, transportaria
56 arrobas de café em uma viagem à costa.
Para avaliar a duração dessas jornadas, os diários dos viajantes europeus são
de muito menos ajuda. Embora seguissem muitas vezes pelas mesmas estradas e
nas mesmas condições que o café – suas mulas totalmente carregadas de provisões,
equipamentos e instrumentos científicos, e outros estorvos – esses homens eram na
maioria dos casos naturalistas em lua de mel com o trópico, inclinados, portanto,
a parar e se extraviar por qualquer coisa que vissem – plantas, índios, insetos ou
201 John Codman. Ten Months in Brazil with Incidents of Voyages and Travels, Descriptions of Scenery and
Character. Boston: Lee and Shepard, 1867, p. 60; Ballard Dunn. Brazil, The Home for Southerners. New
York: George B. Richardson and New Orleans: Bloomfield and Steel, 1866, p. 225. Codman escreveu
“rough, shaggy Western islanders”, referindo-se aos imigrantes das ilhas portuguesas de Açores e
Cabo Verde.
202 Burmeister. Viagem, pp. 71-72; Freireyss. Viagem, pp. 164-65; Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias,
p. 70; Stein. Vassouras, p. 92; Laerne. Brazil and Java, p. 190; Taunay. História do Café, vol. 3, p. 125.
203 Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias, p. 70; Luccok. Notas; Maximilian Wied-Neuwied. Viagens pelo
Brasil, 1815-1817. trad. Edgar Sussekind de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1940; Burmeister. Viagem, pp. 71-72; Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 55;
Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 147-48; Gardner. Viagem, pp. 394-95. A mesma organização foi
descrita pelo Barão do Pati do Alferes em 1848, de acordo com Dornas Filho. Tropas e Tropeiros, p.
109. Walsh está errado ao dizer que havia um condutor para cada três ou quatro mulas e Stein repete
esse erro. Agassiz também está errado ao dizer que cada lote era composto por oito mulas. Walsh.
Notices, vol. 2, p. 27; Stein. Vassouras, p. 92; Louis and Elizabeth Agassiz. A Journey in Brazil. Boston:
Ticknor and Fields, 1868. rep. New York: Frederick A. Praeger, 1969, p. 72.
204 Freireyss. Viagem, pp. 164-65; Codman. Ten Months, p. 59; Stein. Vassouras, p. 92; Gardner. Viagem,
pp. 394-95. Burmeister. Viagem, pp. 71-72 está evidentemente errado quando dá de 3 a 5 milhas
por dia como a velocidade usual de uma tropa de mulas. Pode ser um erro de tradução. Uma légua é
equivalente a 6,56 quilômetros ou 4,08 milhas.
205 Agassiz. A Journey, p. 64; Burton. Explorations, 1;34; William Hadfield. Brazil and the River Plate in
1868. London: Bates, Hendy and Co., 1869, p. 97; Daniel de Carvalho. Estudos e Depoimentos, p. 128;
Pedrosa. Zona Silenciosa, p. 138. Daniel de Carvalho calcula em 10 a 12 dias a jornada de Juiz de fora
até a “raiz da serra” em Petrópolis.
126 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 3.15 - Escravos necessários para
o transporte da safra de café, 1820 -1860
Número máximo
Período
(médias anuais)
1819 - 1825 48
1826 - 1830 108
1831 - 1855 207
1836 - 1840 325
1841 - 1845 455
1846 - 1850 662
1851 - 1855 1.047
1856 - 1860 1.313
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
206 Liais é citado por Burton. Explorations, vol. 1, pp. 34-35. Agassiz. A Journey, p. 64; Hadfield. Brazil, p. 98.
207 Pedrosa. Zona Silenciosa, p. 138; Agassiz. A Journey, p. 66.
Com efeito, em poucos anos a Zona da Mata dispunha de uma rede ferroviária
respeitável, abrangendo todos os distritos cafeeiros importantes. Mesmo antes que
os trilhos tocassem Minas Gerais, a ferrovia D. Pedro II já estava desviando tráfego
da União e Indústria. Em 1864, apenas três anos depois de sua inauguração, a com-
panhia se viu em sérios problemas financeiros e foi vendida ao governo. Em 1869
todo o transporte de carga foi transferido para a estrada de ferro.212 Escrevendo
208 De acordo com Codman a companhia transportou em 1865, 12.000 toneladas, aproximadamente 60
por cento do total das exportações de café de Minas Gerais. Codman. Ten Months, p. 119.
209 Hadfield. Brazil, pp. 96-97; Burton. Explorations, vol. 1, p. 34; Daniel de Carvalho. Estudos e
Depoimentos, p. 128; Agassiz. A Journey, pp. 64, 72.
210 Burton. Explorations, vol. 1, p. 35.
211 Relatório... pres. Sá e Benevides, 1869, p. 23.
212 Daniel de Carvalho. Estudos e Depoimentos, p. 128; Hadfield. Brazil, p. 97; Pedrosa. Zona Silenciosa,
128 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
em 1883, Laerne anotou que “agora os tropeiros vêem sua ocupação chegar ao fim,
exceto nos distritos onde a máquina a vapor ainda não fez sua aparição, isto é, no
longinquo interior, entre as fazendas e as estações ferroviárias”. O engenheiro fer-
roviário britânico James Wells, que tinha trabalhado na região em 1873, retornou
em 1885, encontrando as tropas de mulas “consideravelmente reduzidas” mesmo
no interior, além da zona cafeeira, por causa da extensão da Pedro II.213
Para as duas últimas décadas da escravidão existem dados mais detalhados sobre
a população escrava, sua distribuição geográfica e sua estrutura ocupacional. Com-
parando a mão-de-obra escrava empregada no setor cafeeiro, com essas informações,
podemos ter uma avaliação ainda mais clara da real importância do café na economia
escravista de Minas Gerais no período, como mostram as tabelas 3.16.1 e 3.16.2. Os
resultados apresentados desqualificam seriamente qualquer tentativa de associação
exclusiva entre a escravidão e o café em Minas Gerais, mesmo no final do século XIX.
Até 1886, menos de 15% da força de trabalho escrava (definida como todos
os indivíduos entre 11 e 60 anos de idade) estava empregada na cultura do café.
Mesmo em 1887, quando o regime já estava no estado terminal que conduziu à sua
abolição, e a população escrava estava se reduzindo dramaticamente, o contingente
escravo ocupado no café não atingia um quinto da força de trabalho servil.
Em 1821 havia em Minas cerca de 170 mil escravos fora do setor cafeeiro. Esse
número cresceu continuamente, até atingir 366 mil no censo do Império, e só dimi-
nuiu a partir da Lei do Ventre Livre, acompanhando o declínio geral da população
cativa. Na última contagem do “elemento servil”, em 1887, um ano antes da abolição,
ainda havia na província 155 mil escravos não empregados nas fazendas de café.
Confrontados com os escravos classificados pelo censo como lavradores, os
escravos empregados na cafeicultura representavam, em 1873, apenas 13,5% do
total. Essa porcentagem é certamente superestimada, uma vez que o recenseamento
registrou apenas 116.750 escravos lavradores em Minas, visivelmente uma subenu-
meração, pois representa somente 40% da força de trabalho cativa da província.
Na Matrícula de 1887, os escravos cafeicultores compunham 23,5% dos 153.743
escravoss classificados como “agrícolas”.
pp. 139-40.
213 Laerne. Brazil and Java, p. 190; Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 66. Ver também Dornas Filho.
Tropas e Tropeiros, p. 109.
130 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 3.17 - Rio de Janeiro: Escravos empregados no café, anos selecionados
Exportação Escravos Força de Escravos Força de trabalho
Ano de café 1 empregados trabalho empregados escrava residente
(arrobas) no café 2 escrava 3 na agricultura 4 na região cafeeira 5
1872 7.003.131 92.219 208.264 141.575 99.587
1882 9.467.787 124.675 238.408 199.167 138.114
1885 8.242.267 108.537 222.511 - 129.001
1887 7.766.832 102.276 162.421 149.815 101.480
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
A tabela 3.19 e o gráfico 3.3 deixam claro o enorme contraste que havia entre
Minas Gerais, de um lado e o Rio de Janeiro e São Paulo, do outro. Nas duas últi-
mas províncias a escravidão era, de fato, largamente identificada com o cultivo
do café. Essa associação se tornou especialmente forte nos anos finais do período
escravista, quando quase dois terços de todos os escravos do Rio de Janeiro e perto
de 90% dos de São Paulo, estavam empregados no café. Nas zonas cafeeiras des-
sas províncias a concentração era ainda maior, envolvendo virtualmente todos os
escravos dessas áreas.
80
63,0
60
52,3
49,4
44,3
40
28,5
18,9
20
12,2
5,4
0
Minas Rio de São Minas Rio de São Minas Rio de São
Gerais Janeiro Paulo Gerais Janeiro Paulo Gerais Janeiro Paulo
1873 1872 1874 1884 1882 1883 1887 1887 1887
132 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
A situação em Minas Gerais era inteiramente diferente. A participação do café
no emprego da força de trabalho escrava da província aumentou somente de 5,4%,
em 1873, para 18,9%, em 1887 (nesse último ano, como observado acima, a força
de trabalho escrava era idêntica à população escrava em todas as províncias, por-
que todos os cativos estavam na faixa de 16 a 60 anos de idade). O grande con-
tingente de escravos mineiros não empregados no café mostra que é um grande
equívoco caracterizar a economia escravista de Minas Gerais como um sistema
de plantations exportadoras, mesmo nos anos finais do Império e do regime ser-
vil. O setor cafeeiro era, sem dúvida, grande em tamanho absoluto, e importante,
mas, diante de sua concentração geográfica e dos números apresentados acima, fica
claro que as áreas não-cafeeiras da província merecem muito mais atenção do que
tem recebido até hoje.
O
papel de Minas Gerais nos tráficos internacional e interprovincial de
escravos no século XIX nunca foi estudado. Apesar disso, a província tem
sido frequentemente apresentada como uma importante fornecedora de
escravos para as regiões vizinhas. A decadência da mineração, afirma-se, gerou
um grande reservatório de escravos “redundantes” ou “sub-utilizados”, no qual os
emergentes setores cafeeiros do Rio de Janeiro, de São Paulo e até mesmo da pró-
pria Minas obtiveram a mão de obra necessária para sua implantação e expansão.
Nessa linha de argumentação, Celso Furtado escreveu:
Ao transformar-se o café em produto de exportação, o desenvolvimento
de sua produção se concentrou na região montanhosa próxima da capital
do país. Nas proximidades dessa região, existia relativa abundância de
mão de obra, em consequência da desagregação da economia mineira (...)
Dessa forma, a primeira fase da expansão cafeeira se realiza com base num
aproveitamento de recursos pré-existentes e sub-utilizados (...) O segundo,
e principalmente o terceiro quartel do século passado são basicamente a
fase de gestação da economia cafeeira (...) Como em sua primeira etapa a
economia cafeeira dispôs do estoque de mão de obra escrava sub-utilizada
da região da antiga mineração, explica-se que seu desenvolvimento haja
sido tão intenso, não obstante a tendência pouco favorável dos preços.214
214 Celso Furtado. The Economic Growth of Brazil. trad. R. W. de Aguiar e E. C. Drysdale. Berkeley:
University of California Press, 1963, pp. 123-24. Na 7ª. edição brasileira, de 1967, p. 122.
215 Richard M. Morse. From Community to Metropolis: A Biography of Sao Paulo, Brazil. Gainesville:
University of Florida Press, 1958.
135
tornado o setor dominante da economia provincial, e escravos teriam sido transfe-
ridos, em massa, dos decadentes distritos mineradores para as plantations cafeeiras
em expansão. Em seu estudo sobre a escravidão nas áreas cafeeiras, Emilia Viotti da
Costa afirmou que, para Minas Gerais,
O problema do trabalho rural não se colocava de maneira tão urgente
como no Rio, e principalmente em São Paulo. As atividades mineradoras
tinham propiciado a concentração de grande massa de escravos. Ao
iniciar-se o século XIX, com a decadência das minas, havia abundante
mão de obra escrava disponível. O desenvolvimento da lavoura cafeeira
provocou a migração interna. Primeiramente foram os proprietários que
se deslocaram com seus escravos para as regiões fluminenses e, mais
tarde, encaminharam-se para as regiões cafeeiras paulistas.
(...) Ao mesmo tempo, a Zona da Mata mineira povoava-se de gente
vinda das antigas zonas de mineração. O deslocamento da mão de obra
escrava concentrada nas antigas áreas de mineração, para as zonas de
expansão econômica da Mata ou Sul de Minas, suprirá em parte as
necessidades de braços.216
216 A autora prossegue dizendo que o “êxodo de negros em direção às zonas cafeeiras” estava esvaziando
a força de trabalho de algumas áreas da província. Emília Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia,
pp. 60-61. Na página 132 afirma ainda que, na década de 1870, Minas forneceu grande quantidade de
escravos para o setor cafeeiro paulista.
217 Herbert Klein. The Internal Slave Trade, pp. 111-13.
218 Francisco Iglésias. Política Econômica, pp. 130-31. Afirmações semelhantes podem ser encontradas em
Norma de Goes Monteiro. Imigração e Colonização em Minas, 1889-1930. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1973, p. 16; João Heraldo Lima. Café e Indústria em Minas Gerais, 1870-1920. Dissertação de
Mestrado, Universidade de Campinas, 1977, pp. 2, 12; Peter Blasenheim. Uma História Regional da
Zona da Mata Mineira. Artigo não publicado, junho de 1977, p. 3; e Evantina Pereira Vieira. Economia
Cafeeira e Processo Político: Transformações na População Eleitoral da Zona da Mata Mineira (1850-
1889). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, 1978, p. 56.
136 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
– que “em vez de estiolar-se dentro de escuras e úmidas e podres galerias subter-
râneas, os escravos iriam cantar por entre aleias de cafezais ensolarados e álacres e
salubres.”219
Robert Slenes afirmou que em Minas, como no Rio de Janeiro e em São Paulo,
nas décadas de 1870 e 1880 os principais municípios cafeeiros foram importadores
líquidos de escravos, enquanto aqueles onde a grande lavoura não era importante
“tenderam a ser perdedores líquidos de cativos.”220
Robert Conrad argumentou que a concentração de escravos nas províncias
cafeeiras criou uma profunda clivagem regional no até então monolítico apoio ao
regime escravista. Segundo ele, as diferenças no compromisso com a instituição
servil podiam ser observadas não só entre as províncias cafeeiras e as não-cafeeiras,
mas também dentro das primeiras: nelas próprias a escravidão era mais arraigada
nas regiões produtoras de café e estava perdendo apoio rapidamente nas outras
áreas.
Isto era especiamente verdadeiro na ampla e populosa Minas Gerais, que
possuía uma pequena zona cafeeira pró-escravidão na fronteira de áreas
semelhantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde se concentrava uma
grande parte da população escrava da província. Mais para o interior,
entretanto, havia regiões mineradoras e criadoras mais pobres que,
assim como o Nordeste, tinham perdido escravos para zonas cafeeiras
e continuaram a fazê-lo, em larga escala, durante os últimos anos da
escravidão. Dentro de Minas Gerais, portanto, o interesse pelo sistema
servil variava tanto quanto no Império como um todo – distritos
cafeeiros defendendo este sistema de trabalho, e zonas não-cafeeiras,
maiores, porém mais pobres, demostrando menos preocupação com sua
sobrevivência ou até mesmo ansiosas para ver o seu fim.221
219 Luis Amaral. História Geral da Agricultura Brasileira. 3 vols. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1940, vol.
3, p. 87. “Jolly institution” foi a expressão usada por C. Vann Woodward para ironizar a imagem da
escravidão no sul dos Estados Unidos formulada por Robert Fogel e Stanley Engerman em seu famoso
livro Time on the Cross. The Economics of American Negro Slavery. Boston and Toronto: Little, Brown
and Company, 1974; C. Vann Woodward. The Jolly Institution. The New York Review of Books. May 2,
1974.
220 Robert W. Slenes. The Demography, p. 208.
221 Conrad. The Destruction, pp. 127-28.
138 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Finalmente, em sua obra mais conhecida, o Pluto Brasiliensis, publicado em 1833,
Eschwege afirmou que “na província de Minas importavam-se anualmente de 5 a 6
mil escravos para substituição dos que morriam”.224
Uma petição dirigida ao príncipe regente, em 1810, por alguns pequenos pro-
prietários de minas de Minas Gerais, reivindicava a abolição dos impostos sobre a
importação de escravos, e se queixava dos seus altos preços na capitania.225
Auguste de Saint-Hilaire provavelmente conheceu Minas melhor que qualquer
outro viajante. Nos vários livros que escreveu nunca mencionou qualquer excesso
de escravos, e se referiu, pelo contrário, a escassez de mão de obra em diversos luga-
res. Em sua primeira viagem a Minas, vindo do Rio, encontrou um grupo de afri-
canos recém-chegados sendo conduzidos para o interior. No Distrito Diamantino
observou que “para muitos habitantes do Tejuco, a compra de escravos é um meio
fácil de aplicar seu capital,” e que a maioria dos escravos vendidos naquela região
vinha da Bahia.226
Johann Emmanuel Pohl, que visitou Minas duas vezes entre 1818 e 1821, tam-
bém lista escravos entre as importações mineiras vindas do Rio. Em Barbacena
ele ouviu queixas sobre sua escassez, apesar da existência de quase seis mil cativos
(41% da população). Comentou que a falta de mão de obra servil impedia o cresci-
mento da agricultura e paralizava o setor minerador. Os mesmos problemas foram
notados mais para o interior, em São José del Rei. Na estrada encontrou trinta
jovens africanos, comprados no Rio, sendo conduzidos para Minas.227
Na década de 1820, Jean Baptiste Debret observou que a depreciação do papel
moeda tinha tornado os escravos mais caros para os moradores do Rio de Janeiro,
mas os paulistas e os mineiros, que pagavam em moeda metálica, continuavam a
comprá-los. Em seu famoso desenho do mercado do Valongo no Rio, o cliente que
negocia com o vendedor de escravos é, significativamente, um mineiro.228
224 W. L. von Eschwege. Notícias e Reflexões Estadísticas da Província de Minas Gerais. Revista do Arquivo
Público Mineiro, IV (1899), p. 747. Em face das outras afirmações do próprio Eschwege, os números da
tabela de importações parecem ser incompletos. W. L. von Eschwege. Diário de uma Viagem do Rio de
Janeiro a Villa Rica, na Capitania de Minas Geraes, no anno de 1811. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 1936, p. 16. Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 450.
225 Vicissitudes da Indústria Mineira (1810). Revista do Arquivo Público Mineiro, 3 (1898), p. 80.
226 Saint-Hilaire. Viagem pelas Províncias, vol. 1, p. 171; Saint-Hilaire. Viagens pelo Distrito dos Diamantes,
pp. 48-49.
227 Pohl. Viagem, vol. 1, pp. 197, 204-05; vol. 2, p. 441
228 Jean Baptiste Debret. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. 2 vols. trad. Sérgio Milliet. São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1940, vol. 1, p. 189 e figura 23.
229 Veja: Convenção entre o Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil e Jorge IV, Rei da Grã-Bretanha, com o
fim de pôr termo ao commercio da escravatura da Costa d’Africa, assignada no Rio de Janeiro em 23
de novembro de 1826, e ratificada por parte do Brasil no mesmo dia e anno, e pela Grã-Bretanha a 28
de fevereiro de 1827. As ratificações foram trocadas em Londres aos 13 de março de 1827. Coleção das
Leis do Império do Brasil. Perdigão Malheiro reproduz a lei antitráfico de 1831 na íntegra. Existe uma
extensa literatura sobre a abolição do tráfico internacional de escravos no Brasil. Veja, por exemplo,
Agostinho Marques Perdigão Malheiro. A Escravidão no Brasil. Ensaio Histórico, Jurídico, Social. 2 vols.
3ª. ed. Petrópolis: Editora Vozes e INL, 1976; Leslie Bethell. The Abolition of the Brazilian Slave Trade.
Britain, Brazil and the Slave Trade Question 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970;
Robert Conrad. The Struggle for the Abolition of the Bazilian Slave Trade. Tese de Doutorado, Columbia
University, 1967; Goulart. A Escravidão Africana no Brasil.
230 Walsh. Notices, vol. 2, pp. 321-22, 328-29..
231 O Universal (Ouro Preto), 10 de abril de 1835, citado por Marina de Avelar Sena. Compra e Venda de
Escravos. Belo Horizonte: Edição da autora, 1977, p. 109.
232 Suzannet. O Brasil em 1845, pp. 145, 162.
140 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Rio de Janeiro. Freireyss observou que os escravos crioulos eram, em geral, mais
caros do que os africanos, e os autores da petição de 1810, mencionada acima, afir-
mavam que, em Minas Gerais os escravos não podiam ser comprados por menos de
240 a 280 mil réis, enquanto uma amostra de vendas no Rio de Janeiro, entre 1807
e 1812, apresenta preços médios de 145 mil réis para os homens e 123 mil réis para
as mulheres.233
No final da década de 1820, devido às maciças importações especulativas que
se seguiram à convenção de 1826 com a Inglaterra, os preços de escravos no Rio de
Janeiro parecem ter sofrido uma forte queda. O Reverendo Walsh observou que,
em 1829, havia “tal pletora de carne humana nos mercados do Rio que esse artigo
tinha deixado de ser lucrativo. Os compradores conseguem até dez anos de crédito,
e o leitor gostará de saber que muitos especuladores têm sido arruinados por suas
pecaminosas importações”.234
A Saint John del Rey, uma empresa conhecida por suas atiladas práticas comer-
ciais, recorria sistematicamente ao mercado do Rio para efetuar suas principais
compras de escravos na década de 1830 e início da década de 1840. Aparentemente,
tinha bons motivos para fazê-lo: durante 1835, a companhia comprou 42 escravos
no Rio ao preço de 500 mil réis cada, enquanto 17 outros comprados em sua vizi-
nhança custaram, em média, 574 mil réis. Noventa cativos foram adquiridos no
Rio, em 1839, ao preço médio de 478 mil réis, enquanto 36 outros comprados na
região custaram 600 mil réis por cabeça, em 1841.235
233 Freireyss. Viagem, p. 222; Vicissitudes, p. 80. Os preços de escravos no Rio de Janeiro são de Mary
Catherine Karasch. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Tese de Doutorado, University of Wisconsin,
1972, pp. 525-27. Ao computar o preço médio dos escravos homens, excluí o escravo Jacinto, vendido
em 1807 por 12.800 réis, pois seu preço parece excepcionalmente baixo. Os preços dos homens nesta
amostra variam de 64 a 256 mil réis. O único escravo cuja idade foi registrada tinha vinte anos, e seu
preço foi de 102.400 réis. Lobo. História do Rio de Janeiro, vol. 1, p. 127 afirma que o preço médio
dos escravos no Rio de Janeiro, em 1821, variava entre 140 a 150 mil réis. Eschwege é mais específico,
dizendo que, nesse mesmo ano, um escravo saudável, do sexo masculino, entre 16 e 20 anos de idade,
custava no Rio de Janeiro, de 150 a 200 mil réis. Veja Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 447.
234 Walsh. Notices, vol. 2, pp. 321-22. Eltis observou que “durante 1831 e 1832 houve, sem dúvida, poucas
importações, em parte por causa da saturação do mercado criada pelos maciços influxos de 1829 e
1830, e em parte porque os traficantes não sabiam quão rigorosa seria a aplicação da lei”. David Eltis.
The Direction and Fluctuation of the Transatlantic Slave Trade, 1821-1843: A Revision of the 1845
Parliamentary Paper. In: H. A. Gemery e J. S. Hogendorn (eds.). The Uncommon Market: Essays in
the Economic History of the Atlantic Slave Trade. New York: Academic Press, 1979, p. 280. Note-se,
entretanto, que na fonte mencionada na nota 235, abaixo, há indicações de um abrupto aumento nos
preços de escravos no Rio de Janeiro em 1830-1831.
235 Dados de documentos não-publicados da Saint John del Rey Mining Co., coletados por Douglas Cole
Libby, que gentilmente os tornou disponíveis para mim em carta de 31 de outubro de 1979.
236 O Universal (Ouro Preto), 23 de setembro de 1835, citado por Sena. Compra e Venda, p. 5.
237 Curtin. The Atlantic Slave Trade, p. 240. Segundo Curtin, durante os vinte e sete anos de 1817 a 1843,
o British Foreign Office monitorou 1.308 navios negreiros chegados no Brasil, transportando 517.300
escravos. Foram identificados os portos de destino final de 491.000 destes escravos.
142 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 4.1 - Brasil: Importações de escravos africanos,
1801-1851, por períodos
Período Escravos importados Média anual
Mauricio Goulart estimou que somente o Rio de Janeiro importou, neste perí-
odo, 940.000 escravos, e Mary Karasch sugere um número mínimo de 895.949 cati-
vos. Karasch usou, para os anos de 1817 a 1843, a estimativa elaborada por Curtin,
que foi recentemente revista e aumentada em 30%, por David Eltis. Incorporando
a revisão de Eltis, o número mínimo de escravos africanos importados apenas atra-
vés do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, ultrapassa um milhão
de indivíduos.238 Esta, e não os supostamente “sub-utilizados” escravos de Minas
Gerais, foi a fonte da mão de obra para a decolagem do setor cafeeiro.
O tráfico atlântico e o início da grande lavoura cafeeira estão intimamente
interligados em mais de uma maneira. Muitos plantadores importantes, como
Vergueiro, de São Paulo, eram ou tinham sido grandes negociantes de escravos, e
pelo menos um – Souza Breves, do Rio de Janeiro – tinha suas próprias instalações
portuárias e importava diretamente da África para suas grandes propriedades. Até
mesmo em Minas Gerais encontram-se exemplos de agricultores que obtiveram
seu capital inicial através do tráfico negreiro.239
A historiografia tem dado muita ênfase ao fato de algumas famílias terem
migrado, no final do século XVIII e início do XIX, de áreas mineradoras de Minas
Gerais para a fronteira agrícola no Rio de Janeiro, na Mata Mineira e em São Paulo,
onde eventualmente formaram o núcleo pioneiro da plantocracia cafeeira.240 Nisso,
238 Karasch. Slave Life, pp. 105-06; Eltis. The Direction and Fluctuation, p. 289.
239 Dean. Rio Claro. p. 48; Francisco de Paula Ferreira de Rezende. Minhas Recordações. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 343; Taunay. História do Café, vol. 8, pp. 267, 270.
240 Viotti da Costa. Da Senzala a Colônia, pp. 60-61; Amaral. História Geral, vol. 3, pp. 90-91; Stein.
Vassouras, p. 21; Ferreira de Rezende. Minhas Recordações, pp. 369, 390-98 passim. Para as migrações
de mineiros, principalmente das regiões do sul da província para várias regiões de São Paulo, veja
Mario Leite. Paulistas e Mineiros, Plantadores de Cidades. São Paulo: Edart, 1961, especialmente a
segunda parte, O Grande Refluxo, pp. 163-257.
Além dos traficantes, dos tropeiros e dos comboieiros eram também impor-
tantes nessa tarefa os comissários no Rio de Janeiro, que “proviam mercadorias
e créditos e, logicamente, assumiam a função de fornecer escravos dos mercados
litorâneos para seus clientes do interior.”242
241 Viotti da Costa e Amaral simplesmente listam os nomes de um pequeno número de famílias mineiras
que se tornaram cafeicultores proeminentes nos vales do Paraíba fluminense e mineiro. Algumas
destas famílias, como os Leite Ribeiro e os Monteiro de Barros, tinham ligação com a mineração.
Outras, como a família Werneck, não vieram de áreas mineradoras e aparentemente adquiriram seus
capitais no comércio. Veja: Gardner. Viagens. pp. 447-48; Ferreira de Rezende. Minhas Recordações,
pp. 369-70; Stein. Vassouras, p. 21.
242 Stein. Vassouras, p. 18, 73-75. Os itálicos são meus. Além de João Francisco Junqueira, Stein também
menciona como negociantes de escravos vários membros da proeminente família mineira que
congregava os Leite Ribeiro, os Ferreira Leite e os Teixeira Leite.
144 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Outro estudo sobre a região do Vale do Paraíba descreve o surgimento da grande
lavoura cafeeira como resultante da convergência de dois fluxos migratórios: “Os
cafeeiros e os escravos partiram da costa (Rio de Janeiro) em direção ao interior, os
empresários (...) migraram do interior em direção à costa, sendo em sua maioria,
nativos de Minas Gerais”.243
Os dados demográficos disponíveis sustentam a ideia de que a província era
uma forte importadora líquida de escravos durante a primeira metade do século
XIX. Entre 1819 e 1872, como mostra a tabela 4.2, a população servil de Minas
cresceu rapidamente, comparada às outras províncias brasileiras.244
No início desse século (na verdade desde o século XVIII), Minas Gerais já
possuía a maior população escrava da colônia, depois império. Esta posição foi
reforçada pelo rápido crescimento observado nas décadas seguintes, entre 1819 e
1872, quando a participação mineira na população escrava total do Brasil cresceu
de 15,2% para 24,7%.
Durante o mesmo período, a população escrava mineira cresceu à uma taxa
quase 2,5 vezes maior que a média nacional, superada apenas pelas taxas do Rio de
Janeiro e do Rio Grande do Sul. Em termos absolutos, o incremento do contingente
escravo de Minas só foi igualado pelo do Rio de Janeiro, sendo ambos quase o triplo
daquele observado em São Paulo, e cinco vezes maior do que o de qualquer outra
província brasileira. Na época do censo, Minas Gerais tinha, sozinha, mais escravos
do que todas as dez províncias situadas ao norte da Bahia, mais Goiás, Mato Grosso
e Paraná somados.
Entretanto, a simples comparação da população escrava em dois pontos no
tempo, não é suficiente para avaliar o volume das importações ocorridas no inter-
valo entre eles. Uma população cresce (ou diminui) pela interação de dois fatores:
o crescimento natural (o saldo entre nascimentos e mortes, que pode ser positivo
ou negativo) e o saldo das migrações (que também pode ser positivo ou negativo).
Quando simplesmente constatamos que a população cresceu, os dois componentes
estão misturados, e para sabermos o que é crescimento (ou declínio) natural e o
que é imigração (ou emigração) temos de separá-los. No caso de uma população
243 Orlando Valverde. La Fazenda de Café Esclavista em el Brasil. Cuadernos Geográficos 3 (Universidad
de los Andes, Venezuela, 1965), p. 10. Pedrosa. Zona Silenciosa, p. 132, registra o emprego de índios
“domesticados” na preparação de terras para plantio na Zona da Mata mineira. Slenes concorda que a
disponibilidade de trabalho barato foi importante para o início da expansão do café, mas aponta para
a oferta africana, ao invés de escravos redundantes de Minas. Veja Slenes. The Demography, p. 198.
244 Os anos de 1819 e 1872 foram escolhidos por serem os dois únicos anos para os quais são disponíveis
números confiáveis das populações escravas de todas as províncias.
Tabela 4.2 - Brasil: Crescimento da população escrava, por províncias, 1819 -1872
Províncias População População Taxa média Crescimento % %
escrava em escrava em anual de absoluto do Brasil do Brasil
1819 1872 crescimento 1819 -1872 em 1819 em 1872
146 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Para separar os dois componentes, estimamos o tráfico líquido de escravos de
Minas Gerais, nos períodos 1808-1819 e 1819-1873, usando uma adaptação do
método dos sobreviventes intercensitários, utilizado pelos demógrafos para o cál-
culo de migrações. Seria altamente desejável ter dados populacionais que permi-
tissem separar o impacto do tráfico internacional, que permaneceu ativo até o iní-
cio dos anos 1850, do efeito do tráfico interprovincial, que ganhou importância
depois dessa época. Infelizmente, não há dados seguros sobre a população escrava
de Minas na metade do século.
245 Como descrito no apêndice B, adotamos a hipótese de que todo o tráfico ocorreu no ponto médio
do período em foco. Os números das tabelas 4.3.1 e 4.3.2 foram comparados com o conjunto de
estimativas que resulta da hipótese alternativa de que a quantidade total importada foi uniformemente
distribuída ao longo de todo o período, isto é, que as importações de cada ano foram iguais à média
do período todo. As razões entre a primeira (T1) e a segunda (T2) estimativas são: para r (taxa de
crescimento interno, por mil) = 10, T1/T2 = 1,007; para r = 0, T1/T2 = 1; para r = - 10, T1/T2 = 1,017;
para r = - 20, T1/T2 = 1,060; para o período 1819-1873. No período 1808-1819, com os valores de
r listados na mesma ordem, os valores de T1/T2 são respectivamente: 0,995, 0, 1,005, e 1,012. Fica
claro que a diferença entre as duas hipóteses de distribuição do tráfico no tempo é desprezível. O
modelo alternativo também é descrito em detalhe no apêndice B.
148 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Gráfico 4.1 - Minas Gerais 1808-1819: Trade-off entre crescimento interno e tráfico
100
80
60
Escravos importados (mil)
40
20
r* = 11,41
0
-20
-40
-60
-40 -30 -20 -10 0 10 20 30 40
Taxa de crescimento interno
Gráfico 4.2 - Minas Gerais 1819-1873: Trade-off entre crescimento interno e tráfico
1.200
1.000
800
Escravos importados (mil)
600
400
200
r* = 15,26
0
-200
-400
-600
-40 -30 -20 -10 0 10 20 30 40
Taxa de crescimento interno
Portanto, a província teria sido uma grande importadora líquida, nos dois
períodos, mesmo com uma população escrava internamente estável ou razoavel-
mente crescente. Na verdade, dados os valores absolutos de sua população escrava,
até mesmo para ser um pequeno exportador de cativos, Minas Gerais teria que ter
sido um verdadeiro criatório de escravos, um autêntico breeding state.
246 O modelo é o mesmo utilizado para as estimativas das tabelas 4.3.1 e 4.3.2. As taxas implícitas são
obtidas tomando como dados os valores de T (exportações líquidas) e resolvendo as equações para r,
a taxa de crescimento interno da população.
247 A taxa bruta de crescimento da população escrava nos Estados Unidos foi computada a partir de dados
dos censos, reproduzidos por Claudia Dale Goldin. Urban Slavery in the American South, 1820-1860. A
Quantitative History. Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 67. Como o tráfico internacional de
escravos para os Estados Unidos já estava fechado há mais de dez anos, e as manumissões eram muito
poucas, esta taxa é também a taxa de crescimento interno, e é muito próxima à taxa de crescimento
natural.
150 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Em nenhuma outra sociedade escravista do Novo Mundo, a população escrava
foi demograficamente autossustentável. No Caribe Britânico, a taxa de crescimento
natural variou entre – 20 e – 50 por mil por ano durante o século XVIII, segundo
registros contemporâneos.248 No século XIX, depois da abolição do tráfico, em
1807, esta taxa tornou-se menos negativa em algumas colônias, mas na grande
maioria dos casos a transição para o crescimento positivo não se completou sob o
regime da escravidão.249
A população escrava de Cuba caiu de 370.553 em 1860, para 287.620 em 1871,
logo antes da Lei Moret entrar em vigor, apesar da importação de 49.532 africanos
entre 1861 e 1864, os últimos anos do tráfico escravo cubano. No meado do século,
a taxa de declínio foi estimada entre 30 e 50 por mil por ano.250 Na Martinica, colô-
nia francesa no Caribe, a taxa de declínio natural foi de 11,1 por mil por ano, de
1835 até a abolição, em 1848.
As matrículas de escravos realizadas na Jamaica entre 1817 e 1832 mostram
taxas de declínio natural variando de 0,7 a 4,8 por mil por ano. Deve-se observar,
entretanto, que em 1817 o tráfico atlântico para as colônias inglesas do Caribe já
havia terminado havia dez anos, de modo que todos os africanos vivendo na ilha
já tinham ultrapassado o seasoning period, fase crítica durante a qual ocorriam as
maiores taxas de mortalidade. Segundo uma das maiores autoridades nesse campo,
“mesmo sem uma taxa solidamente estabelecida, o fato do declínio natural é con-
firmado também em outras ilhas do Caribe.”251
O quadro não era diferente no continente. No Suriname a taxa de declínio natu-
ral foi de 13,2 por mil por ano entre 1830 e 1863, quando foi abolida a escravidão
248 Philip D. Curtin. Epidemiology and the Slave Trade. Political Science Quarterly 83 (June 1968), p. 214.
249 A única exceção é o caso de Barbados, que alcançou a sustentabildade logo após o fim do tráfico
africano para as colônias inglesas do Caribe, em 1807. Sua população escrava cresceu de 71.286 em
1815, para 80.861 em 1833. Segundo Curtin, havia uma clara relação negativa entre o volume de
importações de africanos e a taxa de crescimento natural das populações escravas do Novo Mundo:
“a parcela africana da população apresentava o maior desequilíbrio entre os sexos, as mais altas taxas
de morbidade e as mais altas taxas de mortalidade, era ela que deprimia a taxa de crescimento da
população como um todo”. No início do século XIX, Barbados era uma economia estagnada, que
tinha virtualmente cessado de importar escravos mesmo antes da abolição legal do tráfico. Curtin.
Epidemiology, p. 215.
250 Knight. Slave Society in Cuba, pp. 53, 63, 86 e 172-176. A Lei Moret emancipou os filhos de mulher
escrava e os escravos sexagenários em Cuba e Porto Rico. Foi assinada em 4 de Julho de 1870, mas,
devido a oposição dos donos de engenho, só se tornou efetiva algum tempo depois.
251 Cohen e Greene (eds.). Neither Slave nor Free, p. 337; Higman. Slave Population in Jamaica, p. 102;
Curtin. Epidemiology, p. 124. Em todos os casos onde a fonte não diz explicitamente o contrário,
assumimos que as manumissões eram desprezíveis.
252 A taxa para o Suriname foi computada a partir de dados em Cohen e Greene (eds.). Neither Slave, p.
336; e a da Guiana Inglesa é dada por Curtin. Epidemiology, p. 216.
253 Slenes. The Demography, pp. 363-65.
254 Ver nota 249, acima.
152 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
nas igrejas, e sim em cemitérios nas fazendas, ou no próprio campo, não deixando
rastro de seus óbitos.
Eschwege estimou, por volta de 1820, que a taxa de declínio natural da popula-
ção de escravos mulatos em Minas se situava em torno de 21,9 por mil por ano, e a
dos escravos pretos (que eram em sua maioria africanos) em um nível muito mais
alto, atingindo 39,5 por mil por ano. A taxa de declínio natural da população cativa
total da província seria, então, igual a 37,2 por mil por ano.255 Herbert Klein, por
outro lado, parece ter se convencido de que a população escrava de Minas tinha
um crescimento natural positivo e, baseado em dados para um único ano (1814),
concluiu que a taxa de crescimento natural era de 0,5 por mil por ano.
Esta estimativa é, no mínimo, suspeita. Além de se basear, sem nenhuma crí-
tica, em uma fonte pouco confiável, parece não se dar conta do problema mencio-
nado acima, do subregistro das mortes dos cativos. Nas estimativas de Klein, a taxa
bruta de mortalidade dos escravos (32,9) é menor do que a dos negros e mulatos
livres (34,3); e apenas ligeiramente mais alta do que a da população branca (27,4).
As taxas brutas de natalidade por mil pessoas, são 36,6; 41,7 e 33,4; para brancos,
negros e mulatos livres e escravos, respectivamente. Dado o grande desequilíbrio
entre os sexos na população escrava, as taxas apresentadas por Klein implicam que
as mulheres escravas eram mais férteis do que as brancas e as mulatas e negras
livres. Usando as razões de sexo registradas para 1808 e as taxas brutas de natali-
dade de Klein, obtemos taxas de natalidade por mil mulheres de 91,9, 82,4 e 74,3
para escravas, negras e mulatas livres, e brancas, respectivamente. Com as razões
de sexo observadas em 1821, essas taxas seriam 82,9, 80,7 e 75,1, com os grupos na
mesma ordem.256
É perfeitamente razoável sugerir que Minas Gerais importou cerca de 400 a
500 mil escravos durante as primeiras sete décadas do século XIX, em termos
líquidos. Se, como parece ter sido o caso, a grande maioria destas importações
ocorreu enquanto o tráfico atlântico ainda estava aberto, então Minas terá sido,
sem dúvida, a principal província importadora de africanos no século XIX, com
255 Eschwege. Notícias, p. 741. A taxa provincial é o somatório das taxas específicas de cada grupo
multiplicadas pela participação do grupo na população total. Em 1821, 13,3 por cento dos escravos
mineiros eram mulatos e 86,7 por cento eram pretos. Em outros escritos Eschwege revela perfeita
consciência da sub-enumeração dos óbitos dos escravos.
256 Herbert Klein. Nineteenth-Century Brazil, em Cohen e Greene (eds.). Neither Slave nor Free, pp. 314-
316. A taxa de natalidade por mil mulheres é dada por: (razão de sexo + 1) multiplicada pela taxa
bruta de natalidade. A razão de sexo é definida como o número de homens dividido pelo número de
mulheres. As razões de sexo de 1808 e 1821 estão em População da Província de Minas Gerais. Revista
do Arquivo Público Mineiro. Ano IV (1899), pp. 294-296.
154 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Entretanto, até a década de 1870, o volume dessas transferências não parece
ter sido tão grande quanto se costumava acreditar. O censo de 1872 revelou que
somente 18.513 escravos nascidos no Norte e no Nordeste estavam vivendo nas
províncias do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Este número
representava apenas 3,6% dos escravos nascidos nas onze províncias situadas ao
norte de Minas. O fluxo do Sul era ainda menos importante: de um total de 86.858
escravos nascidos no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, somente
1.569 (1,8%) residiam no Sudeste.259
Rio de Janeiro e São Paulo foram os principais importadores. O setor cafeeiro
fluminense se encontrava estagnado, mas apenas para manter sua força de traba-
lho estabilizada no nível do meado do século, foi necessário um grande volume
de importações. Em São Paulo, a expansão do café gerou uma forte demanda por
Americana, aparentemente a transição estava ainda mais avançada. Várias fontes relatam que na
metade da década de 60, eram empregados quase exclusivamente trabalhadores livres na agricultura
do Ceará e que o trabalho assalariado estava também sendo utilizado em escala crescente no Rio
Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Maranhão. Vejam-se: Perdigão Malheiro. A Escravidão no Brasil,
p. 460; Aureliano Cândido Tavares Bastos. A Província. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2ª. ed., 1937,
p. 245; Herbert Huntington Smith. Brazil: The Amazons and the Coast. New York: Scribner’s Sons, 1879,
p. 444, 470; Peter L. Eisenberg. The Sugar Industry of Pernambuco. Modernization without Change,
1840-1910. Berkeley: University of California Press, 1974; Peter L. Eisenberg. Abolishing Slavery: The
Process on Pernambuco’s Sugar Plantations. Hispanic American Historical Review 53 (4) (December
1972); John H. Galloway. The Sugar Industry of Pernambuco during the Nineteenth Century. Annals
of the Association of American Geographers 58 (2) (June 1968); John H. Galloway. The Last Years of
Slavery on the Sugar Plantations of Northeastern Brazil. Hispanic American Historical Review 51 (4)
(November 1971); Manuel Correia de Andrade. A Terra e o Homem no Nordeste. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1963; Roger L. Cunniff. The Great Drought: Northeast Brazil, 1877-1880. Tese de doutorado,
University of Texas, 1970; Jaime B. G. Reis. Abolition and the Economics of Slaveholding in North East
Brazil. Boletin de Estudios Latinamericanos y del Caribe 17 (1974); Jaime B. G. Reis. Brazil: The Peculiar
Abolition. Ibero-Amerikanishes Archiv N. F. Jg 3 H.3 (1977); Jaime B. G. Reis. From Banguê to Usina:
Social Aspects, Growth and Modernization in the Sugar Industry of Pernambuco, Brazil, 1850-1920. In:
K. Duncan and I. Rutledge (eds.) Land and Labor in Latin America. Cambridge: Cambridge University
Press, 1977; Jaime B. G. Reis. The Impact of Abolitionism in Northeast Brazil: A Quantitative Approach.
In: V. Rubin and A. Tuden (eds.). Comparative Perspectives on Slavery in the New World Plantation
Societies. Annals of the New York Academy of Sciences, volume 292. June 1977.
259 “População em relação à nacionalidade brasileira”. Tabelas provinciais 4 e 5. Recenseamento de 1872.
Como explicado abaixo, há grandes erros de agregação nas tabelas provinciais do censo que registram
a província de nascimento dos habitantes. Nos casos de Minas Gerais e São Paulo usamos as tabelas
paroquiais e corrigimos a agregação, mas para as outras províncias tivemos que usar as tabelas
provinciais. Os dados sobre o local de nascimento dos escravos não são suficientes, é claro, para
descrever o tráfico interprovincial, mas podem oferecer insights valiosos. Outro problema sério é que
não podemos detectar as transferências interprovinciais de escravos nascidos na África. É também
difícil determinar a precisão das informações prestadas ao censo: muitos escravos residentes em Minas
e São Paulo e registrados como nascidos no Rio de Janeiro, podem ter sido nordestinos comprados
no mercado do Rio. De qualquer maneira, mesmo se contiverem muitos erros, as estatísticas de local
de nascimento mostram que o Sudeste não foi invadido por escravos nordestinos, pelo menos até o
Censo do Império.
260 A população escrava do Rio de Janeiro aumentou apenas de 293.554, em 1850, para 306.425 escravos
em 1872. Em São Paulo, o aumento foi de 117.731 em 1854 para 156.612 em 1874, e no Espírito Santo
de 11.819, em 1857, para 22.659 em 1872. Usando uma taxa de crescimento interno de – 10 por mil
por ano, estimamos que essas províncias importaram, em termos líquidos, 79.415, 66.696 e 13.471
escravos, respectivamente, nos períodos mencionados. As fontes são as mesmas da tabela 4.2. Robert
Slenes está certo ao concluir que o tráfico de longa distância não foi muito intenso antes da década de
70, mas sua estimativa de que o conjunto do Sudeste importou somente 110.000 escravos nos anos
1850-1872, é provavelmente muito baixa, a menos que Minas Gerais tivesse perdido cerca de 50.000
escravos no período, o que é totalmente improvável. Veja Slenes. The Demography, pp. 136-38. O caso
mineiro é discutido abaixo.
261 Usando o mesmo procedimento anterior, estimei que Pernambuco exportou 24.637 escravos, em
termos líquidos, entre 1845 e 1872. Dados para a população escrava baiana por volta da metade
do século não foram encontrados, mas os registros de local de nascimento do censo mostram que
mais escravos nascidos na Bahia viviam fora de sua província de nascimento do que aqueles nascidos
em qualquer outra província, enquanto que somente um pequeno número de escravos nascidos em
outras províncias vivia na Bahia. No início da década de 50, a perda de escravos para o Centro-Sul
já estava causando alarme na Bahia. Em 11 de agosto de 1854, um projeto de lei foi apresentado à
Câmara dos Deputados pelo representante baiano João Maurício Wanderley, visando proibir o tráfico
interprovincial de escravos. Embora apoiado por deputados de várias províncias nordestinas, o projeto
foi derrotado pela oposição do Sudeste. É interessante observar que, em sua defesa do projeto,
Wanderley afirmou que os senhores de engenho do norte ainda não tinham começado a vender
seus escravos nessa época. Os escravos exportados para o sul eram originários de áreas urbanas e de
pequenas fazendas, “onde o trabalho poderia ser feito por homens livres”. Conrad. The Destruction,
pp. 65-67.
262 As únicas estimativas que conheço da população escrava de Minas para o período entre a década
de 1820 e o censo são, com exceção de algumas observações casuais em relatos de viajantes, as
de Tomaz Pompeo de Souza Brazil, para 1864, e de Sebastião Ferreira Soares, para 1865. Ambas
são reproduzidas em Perdigão Malheiro. A Escravidão, vol, 2, pp. 150-51, e não são mais do que
chutes, que o Censo de 1872 demonstrou estarem grosseiramente errados. As estimativas do Padre
Pompeo, contudo, foram recentemente usadas por dois autores norte-americanos para sustentar
algumas conclusões ousadas sobre migrações de escravos no período pós-1850. Baseados nesses
números, Thomas Merrick e Douglas Graham concluíram que “até 1864, a velha região nordestina
ainda detinha aproximadamente metade do número total de escravos do país, e mais do que a região
cafeeira do Sudeste. Por volta de 1872, essas posições relativas tinham mudado abruptamente, com
o Sudeste abrangendo quase 60 por cento da população escrava, e o Nordeste somente 32 por cento.
Portanto, o auge das transferências inter-regionais de escravos no Brasil ocorreu nos anos 1860 e
início da década de 70”. Merrick and Graham. Population and Economic Development, pp. 65-66. Esses
autores ignoraram a forte advertência sobre a precariedade das estimativas, na mesma página em
156 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Observadores contemporâneos tenderam a enfatizar as exportações de escravos
de algumas regiões mineiras, mas outras fontes indicam o contrário. As inferências
que podem ser feitas a partir dos dados populacionais incompletos existentes para
a década de 1850 e do censo de 1872 sugerem que a província como um todo era
uma importadora líquida, ou uma exportadora líquida insignificante de escravos.
As condições econômicas eram muito variadas dentro do “mosaico mineiro” e o
padrão do tráfico era, consequentemente, bastante complexo. Alguns locais esta-
vam perdendo escravos para outras partes da província e para outras províncias,
enquanto outras regiões mineiras os estavam importando, através de fontes tanto
intraprovinciais como interprovinciais.263 Embora difícil de ser fixado com pre-
cisão, o impacto líquido das transferências sobre o conjunto da província parece
ter sido pequeno. Durante esse período, encontramos, pela primeira vez, referên-
cias a exportações de escravos de Minas. Sebastião Ferreira Soares registra que um
pequeno número de escravos mineiros foi enviado ao mercado do Rio de Janeiro
durante os anos 50.264
Em São João del Rei, em 1867, o Capitão Richard Burton foi informado que
os escravos eram um “elemento em rápido declínio”, tendo sido “principalmente
vendidos aos distritos agrícolas do Rio de Janeiro.” Em Diamantina, disseram-lhe
que os cativos “estavam sendo negociados para as províncias cafeeiras”, e que os
mineradores arruinados estavam muito animados com a perspectiva da imigração
que obtiveram os números. Se estivessem corretas, elas implicariam em que pelo menos 360.000
escravos teriam mudado de província no curto período de oito anos entre 1864 e 1872. O Nordeste
teria perdido, em termos líquidos, 287.000 cativos, enquanto as quatro províncias do Sudeste teriam
ganho mais de 300.000. Pernambuco e Bahia teriam exportado, respectivamente, 153.000 e 108.000
escravos, e Minas Gerais, sozinha, teria recebido um contingente líquido de 154.000 escravos. Essas
implicações devem ser comparadas, por exemplo, com o fato de que em 1873 Minas Gerais tinha
somente 8.578 escravos nascidos em outras províncias, ou com as estimativas recentes de que, em
todo o período de 1850-1888, o tráfico de escravos entre o Centro-Sul e o resto do país não envolveu
mais do que 200.000 indivíduos. Veja Slenes. The Demography, pp. 136-38 e Klein. The Internal Slave
Trade, p. 98. No cálculo das transferências que seriam decorrentes dessas estimativas, usamos a taxa
de crescimento interno de – 12,8 por mil por ano para o conjunto do Brasil, que está implícita nas
populações escravas de 1.715.000 em 1864 (estimativa de Pompeo) e 1.546.880 em 1872 (censo).
263 Tomei emprestada de John Wirth a caracterização de Minas como um mosaico de áreas econômicas
diversificadas e fracamente articuladas entre si. O reconhecimento de que as condições locais
variavam entre as regiões mineiras e que havia um ativo tráfico de escravos entre elas não significa
concordar que essas transferências fossem um fluxo unidirecional das áreas não-cafeeiras para as
áreas cafeeiras.
264 Sebastião Ferreira Soares. Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e Carestia dos Gêneros
Alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977, p. 135. Segundo Ferreira Soares,
“pelo menos 305 escravos” foram enviados todos os anos de Minas e do Rio Grande do Sul para o Rio
de Janeiro.
265 Burton. Explorations, vol. 1, pp. 114-15, vol. 2, pp. 104, 260.
266 Veja a tabela 4.5, abaixo.
267 Essa situação – uma crise econômica localizada, causada por acontecimentos em mercados externos,
em virtude da qual escravos teriam ficado sem ocupação – constitui um caso muito incomum no
cenário econômico mineiro do século XIX. Como mostraremos no capítulo 5, a economia provincial
(com exceção do setor cafeeiro) era quase inteiramente voltada para mercados locais, não sendo,
portanto, vulnerável a flutuações nos mercados internacionais. A natureza quase autárquica das
unidades produtivas e seu relativo isolamento dos mercados davam a elas condições de reter seus
escravos, independentemente do que acontecesse no resto do mundo. A fragilidade da região
diamantina em relação ao mercado internacional de gemas, agravada por seu envolvimento na
cotton famine da Inglaterra, causada pela guerra civil dos Estados Unidos, foi, portanto, uma situação
conjuntural e atípica.
268 Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, p. 26. A fonte não especifica que estes trabalhadores
desempregados eram escravos. É muito improvável que um grande número de escravos fosse
usualmente empregado no cultivo de algodão, que era predominantemente uma cultura camponesa
(veja o capítulo 5). Entretanto isto pode ter se modificado durante a bolha causada pela cotton
famine, a exemplo do que aconteceu nas províncias nordestinas. A afirmação de que escravos foram
transferidos dos distritos algodoeiros em retração no norte de Minas para as zonas cafeeiras de São
158 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Há também evidencias de que, na segunda metade da década de 1860, escravos
mineiros estavam sendo contratados para trabalhar em plantações de café de São
Paulo. O Dr. J. McFaden Gaston, da Carolina do Sul, que visitou aquela província
em 1865 como scout para uma possível imigração de Confederados desenganados,
foi informado, por um importante fazendeiro, que turmas de escravos de Minas
podiam ser contratadas para a derrubada das matas e formação de novos cafezais.
Outro agricultor o informou que escravos mineiros eram alugados ao preço de 40
a 60 dólares por ano.269 Isto é confirmado pelo relatório de João Pedro Carvalho de
Moraes, em 1870, sobre a questão do trabalho na cafeicultura paulista, que informa
que alguns dos empreiteiros de formação de cafezais eram mineiros que tinham
migrado com seus escravos.270
Em sua monografia sobre o município cafeeiro paulista de Rio Claro, Warren
Dean localizou contratos “para o plantio de mais de um milhão de pés por emprei-
teiros que, juntos, introduziram 332 escravos no município”, entre 1864 e 1878.271
Não é claro, entretanto, que esses escravos eram originários de áreas não-cafeeiras
de Minas. A afirmação de Dean, de que eles foram trazidos de “regiões menos
favorecidas, como a área central de Minas Gerais”, é contrariada pela observação do
Dr. Gaston, segundo a qual, “esses negros tinham sido, até então, empregados em
fazendas de café que tinham deixado de ser lucrativas naquela região [Minas].”272
Outras evidências sugerem que, apesar desses depoimentos, Minas Gerais não
poderia ter sido uma exportadora líquida de escravos, mesmo modesta, nesse perí-
odo. Estimativas baseadas em dados sobre a população escrava de 27 municípios
mineiros (cerca de metade do total da província) em meados da década de 1850 e
no censo de 1872 mostram um saldo líquido altamente favorável à província (con-
trariamente à prática usual na literatura sobre comércio, estamos usando o termo
“favorável” para designar um excesso das importações sobre as exportações).
Esta é uma estimativa parcial, que reflete tanto o tráfico interprovincial como
também os fluxos intraprovinciais, entre os próprios municípios mineiros. É bem
provável, conforme sugerido por outras evidências discutidas abaixo, que o ganho
líquido total da província fosse menor do que a soma das importações líquidas
Paulo e da Zona da Mata encontra-se em Daniel de Carvalho. Notícia Histórica sobre o Algodão em
Minas. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Comércio, 1916, p. 18.
269 Gaston. Hunting a Home, pp. 125, 193.
270 Moraes. Relatório apresentado ao Ministério da Agricultura, p. 69.
271 Dean. Rio Claro, pp. 35, 55. 205.
272 Dean. Rio Claro, p. 35; Gaston. Hunting a Home, p. 125.
273 A economia do Sul de Minas estava muito saudável nessa época. O principal produto de sua agricultura
comercial era o fumo, cujas exportações para outras províncias cresceram de 134.270 arrobas, em
1844-45 para 282.090 arrobas, em 1867-68, num salto de 210%. As exportações de queijos, outro
artigo importante da região, embora não exclusivo dela, cresceram, no mesmo período, de 395.202
para 545.401 unidades.
160 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Como já foi mencionado acima, o valor crítico da taxa de crescimento interno
(r*) é definido como o valor limite além do qual o saldo líquido do tráfico mudaria
de sinal (transformando o município de importador em exportador, ou vice-versa).
Assim, por exemplo, se o valor crítico para Queluz é r* = 35,6, isso significa que,
dados os plantéis inicial e final, este município teria sido um exportador líquido
de escravos no período se, e somente se, sua população escrava estivesse crescendo
internamente a uma taxa mais alta do que 35,6 por mil por ano.274
Os valores de r* podem, portanto, ser usados para avaliar a confiabilidade da
direção dos fluxos estimados do tráfico. Estes valores mostram que, mesmo man-
tendo reservas com relação aos números estimados, podemos ter bastante confiança
com respeito à separação dos municípios entre importadores ou exportadores de
escravos. Podemos admitir uma razoável margem de erro na taxa de crescimento
interno adotada na estimativa, ou uma ampla variação dessa taxa entre os muni-
cípios, sem que isso acarrete mudanças significativas nos sinais dos seus saldos
migratórios líquidos.
Assim, por exemplo, se a taxa real divergir da adotada (– 10 por mil por ano),
mas se situar em qualquer ponto do intervalo entre – 8 a – 12 por mil por ano (uma
variação de 20% para cada lado da taxa adotada), isso poderia provocar a rever-
são do sinal de, no máximo, um saldo líquido municipal. Da mesma forma, uma
variação da taxa real de 50% para cada lado da taxa adotada (entre – 5 e – 15 por
mil por ano) poderia inverter os sinais dos saldos líquidos de, no máximo, cinco
municípios. As estimativas sugerem que houve uma considerável movimentação de
escravos dentro das fronteiras provinciais, mas não indicam um padrão claramente
perceptível. Os três municípios cafeeiros incluídos (Mar de Espanha, Ubá e Pomba)
eram fortes importadores líquidos, mas outros dezesseis municípios localizados
fora da região de grande lavoura cafeeira, incluindo a maioria dos antigos distritos
mineradores incluídos na tabela também o eram.
Outro conjunto importante de dados são as estatísticas de província de nas-
cimento versus local de residência (paróquia), registradas pelo censo de 1872. A
primeira surpresa desses dados é o pequeno número de escravos africanos recen-
seados em Minas. À primeira vista, dadas as maciças importações de africa-
nos feitas pela província antes de 1851, este número – apenas 27.946 indivíduos
– sugeriria que Minas estaria exportando africanos durante o terceiro quartel do
século. Entretanto, há fortes motivos para suspeitar desses dados. Como o tráfico
274 O valor de r* é obtido fazendo T = 0 na equação Pt = Po (1+r) t + T (1+r) t/2, e resolvendo para r.
275 As palavras do futuro primeiro ministro, Gladstone, em 1850, definem bem a atitude e o humor do
governo britânico com relação ao assunto: “Temos um tratado com o Brasil, que foi quebrado por
ele todos os dias, nos últimos vinte anos. Tentamos garantir o direito dos emancipados; conseguimos
fazer com que os brasileiros declarassem ser crime a importação de escravos no Brasil. Este tratado
foi repetidamente violado e temos pleno direito de exigir seu cumprimento e, se temos o direito de
exigí-lo, temos o direito de fazê-lo na ponta da espada, em caso de recusa. Temos agora pleno direito
de ir até o Brasil e exigir a emancipação de todos os escravos importados desde 1830 e, diante de
uma recusa, guerrear contra ele até o extermínio”. William Ewart Gladstone, citado por W. D. Christie.
Notes on Brazilian Questions. London and Cambridge: Macmillan and Co., 1865, pp. 81-82. Gladstone
se refere, é claro, à convenção anglo-brasileira de 1826, que proibia o tráfico de africanos a partir de
1830. A palavra emancipados está em português no original.
276 Sobre a falsificação das idades dos escravos africanos, veja, por exemplo, Conrad. The Destruction,
pp. 215-16. Para estimar a taxa de mortalidade dos africanos, usamos a equação apresentada no item
2 do apêndice B, com Po e Pt significando, neste caso, as populações inicial e final de escravos nascidos
na África. O número de africanos sobreviventes em 1872 é dado pelo censo (138. 560). Para gerar o
limite inferior da taxa, supusemos que não havia nenhum escravo africano em 1819: isto produz uma
taxa bruta de mortalidade (desprezando as manumissões) de 62 por mil por ano. Assumindo que os
africanos constituíssem 20% da população escrava de 1819, a taxa de mortalidade estimada sobe para
66 por mil por ano. É claro que quanto maior for a população africana inicial (mantendo constante o
número de sobreviventes, ou população africana final) mais alta será a taxa de mortalidade resultante.
Robert Slenes concluiu que as taxas de mortalidade entre os escravos no Brasil foram provavelmente
162 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Os dados sobre a província de residência dos escravos nascidos no Brasil reve-
lam que apenas 11.563 (3,3%) dos escravos nascidos em Minas residiam em outras
províncias. Na mesma data havia 8.578 cativos nascidos em outras províncias
vivendo em Minas Gerais (2,3% dos escravos residentes em Minas). Esses números
sugerem que a província pode ter tido um saldo ligeiramente desfavorável no trá-
fico com seus vizinhos nos anos anteriores ao censo.277
mais altas no início do século XIX do que mais tarde no mesmo século, mas não dramaticamente. Mesmo
considerando que, pelas razões já mencionadas, a taxa de mortalidade africana era certamente mais
alta do que a dos crioulos, as taxas implícitas calculadas acima são exageradamente altas, indicando
erro ou fraude no número de africanos registrado pelo censo. Slenes. The Demography, pp. 354-63; e
Higman. Slave Population, p. 109.
277 A fonte desses números são as tabelas paroquiais de Minas Gerais. Os dados sobre o local de
nascimento do censo devem ser usados com cuidado. As tabelas provinciais contêm enormes erros. A
tabela “Província de Minas Gerais. População em relação à Nacionalidade Brasileira”, na parte 9, vol.
2, p. 1.084, por exemplo, registra somente 793 escravos nascidos em outras províncias e vivendo em
Minas Gerais.
278 A maioria dos escravos mineiros no Rio de Janeiro (2.992 de 3.704) estava em áreas cafeeiras, e o
mesmo ocorria com os escravos fluminenses residentes em Minas (2.182 de 3.757).
279 Robert Slenes apresenta uma visão semelhante, embora menos incisiva, concluindo que “está claro
que nenhuma redistribuição maciça da população escrava ocorreu no Centro-Sul durante as décadas
de 50 e 60”. Não podemos, entretanto, compartilhar de sua afirmação de que “a grande maioria dos
escravos mineiros em 1872 eram residentes de seu município de origem”. O censo registrou apenas a
província de nascimento dos escravos, e não o município. Ver Slenes. The Demography, pp. 142-43. Os
itálicos são meus.
164 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
A maioria dos municípios com números relativamente altos de escravos minei-
ros – como São João da Boa Vista, Mococa, Batatais, Mogi-mirim, Franca e Caconde
se localizava nesta região. Os primeiros povoadores de todos estes lugares tinham
sido mineiros e todos eram áreas de forte imigração mineira. Outros locais com
grandes contingentes de escravos de Minas, como Rio Verde, Botucatu e Sorocaba
(na região da Sorocabana) ou São Carlos do Pinhal (na região da Paulista) eram
também áreas de colonização mineira. Outros ainda, como Itatiba, Taubaté, Belém
do Descalvado e Brotas, não eram fruto de colonização mineira, mas eram focos
de imigração relativamente intensa de mineiros livres. Somente em Campinas (347
escravos mineiros) e Limeira (113 escravos mineiros) encontramos contingentes
relativamente grandes de escravos mineiros não associados a uma grande popula-
ção de mineiros livres.280 No conjunto da província de São Paulo, a correlação, por
regiões, entre a presença de escravos mineiros e a de mineiros livres era bastante
alta (r = 0,72), sendo ainda maior (r = 0,84), por municípios, na zona da Mogiana.
Por outro lado, estudos sobre a região cafeeira paulista mostram que, nesse
período, o recrutamento de mão de obra para o café foi feito principalmente em
fontes intraprovinciais, especialmente através da transferência de escravos das
áreas urbanas para as rurais, e da pequena lavoura para a grande lavoura.281 Warren
Dean verificou que, em Rio Claro, “até bem tarde na década de 1860, o suprimento
de escravos continuou vindo de municípios próximos.”282 As importações interpro-
vinciais nesse período foram de importância secundária no recrutamento de mão
de obra para a cafeicultura paulista, e em particular, aquelas originárias de Minas
Gerais, foram totalmente insignificantes. Em Campinas, que nessa época era o cen-
tro da região cafeeira paulista e o mercado de escravos mais ativo da província, uma
280 As maiores concentrações de escravos mineiros estavam em São João da Boa Vista (onde os mineiros
representavam 27,8% da população escrava), Rio Verde (23,4%) e Mococa (16,0%). Nestes municípios,
os mineiros livres eram 26,8%, 21,1% e 26,8% da população livre, respectivamente. Nos casos de
Campinas e Limeira, os escravos de Minas eram parcelas sem importância da população escrava total
dos municípios (2,5% e 3,7%, respectivamente). A fonte desses dados é o censo de 1872. Sobre a
colonização de pioneiros mineiros em São Paulo, veja Pierre Monbeig. Pionniers et Planteurs de São
Paulo. Paris: Librairie Armand Colin, 1952, pp. 116-20; e Leite. Paulistas e Mineiros, Plantadores de
Cidades, 2ª. parte, O Grande Refluxo, pp. 165-257.
281 Veja Samuel H. Lowrie. O Elemento Negro na População de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal
48. São Paulo (junho de 1938), pp. 13-15. Sebastião Ferreira Soares, importante economista contem-
porâneo, argumentou que a realocação de mão de obra escrava da pequena lavoura para as planta-
ções de café no Rio de Janeiro e São Paulo, no período imediatamente posterior ao fim do tráfico afri-
cano, foi a principal causa da forte inflação nos preços dos alimentos observada no período. Ferreira
Soares. Notas Estatísticas, p. 137.
282 Dean. Rio Claro, p. 54.
166 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
nascidos em Minas e, consequentemente, a maior parte dos escravos de fora da
província (57,2%) residia em áreas não-cafeeiras.
Tabela 4.7- Local de nascimento dos escravos residentes em Minas Gerais em 1873,
por região de residência
Região de residência Local de nascimento Porcentagem de nascidos em
8 7
9
6 5
4 1
2
3
286 Só nas décadas de 70 e 80, quando a erosão da escravidão se acelerou nas províncias do Norte e do
Sul, é que surgiram largas discrepâncias entre as taxas provinciais de alforria. No Nordeste, além das
razões já mencionadas, o processo foi fortemente estimulado pela longa seca de 1877-1880. Parece
haver consenso entre os autores recentes sobre a predominância das manumissões de mulheres. As
explicações oferecidas variam de ligações afetivas entre senhores e escravas, pretensas vantagens das
168 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Os dados do censo confirmam as conjecturas feitas acima. As diferenças entre
as províncias não são muito grandes, mas são perfeitamente consistentes com o que
sabemos sobre o tráfico interprovincial desse período. A porcentagem de escra-
vos na faixa etária mais produtiva (11 a 40 anos), tanto dos homens quanto do
total, é nitidamente maior nas províncias de Minas Gerais e de São Paulo, e em
ambas está acima da média nacional. Nas províncias do Norte e do Nordeste e nas
demais (incluindo o Município Neutro) essas porcentagens são menores e estão
abaixo da média nacional. No caso do Rio de Janeiro, outro grande importador,
a parcela do grupo de 11-40 anos é surpreendentemente baixa. A falsificação das
idades dos africanos pode ser a resposta: Todos os africanos importados entre 1831
e 1851 (a grande maioria dos quais teria menos de 40 anos em 1872) eram ilegais,
e um número ignorado, mas presumivelmente grande, deles teria sido declarado
ao recenseador como tendo mais de quarenta anos. Essa fraude foi praticada em
todos os lugares, mas no Rio de Janeiro, que possuía, de longe, o maior contingente
africano, ela certamente distorceu a distribuição etária mais do que nas outras
províncias.
As razões de masculinidade nas províncias do Norte e Nordeste, e nas demais,
são muito mais baixas que as de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, indicando que,
de fato, aquelas províncias estavam exportando cativos para o Sudeste nos anos
anteriores ao censo. A razão de masculinidade dos escravos africanos ainda reflete,
pelo menos em parte, a época do tráfico internacional, confirmando a grande dis-
paridade entre os sexos que se verificava naquele tráfico.
À luz dessa análise é, mais uma vez, muito difícil acreditar que Minas tenha
sido um exportador líquido de escravos, e muito menos um grande exportador.
Possuía as mais altas porcentagens de escravos de ambos os sexos na faixa etária
mais produtiva, e todos os outros indicadores estavam acima das médias do país,
com exceção da razão de masculinidade dos escravos nascidos na África.287
mulheres para a compra de sua liberdade, principalmente nas áreas urbanas, até o seu menor valor
de mercado. Além de outras evidências discutidas pelos autores mencionados abaixo, deve-se notar
que os dados populacionais mostram uma consistente preponderância de mulheres sobre homens
na população livre de cor, durante todo o período da escravidão. Veja: Slenes. The Demography, pp.
484-550; Klein. The Internal Slave Trade, p. 116; Karasch. Slave Life, pp. 490-528, e Stuart B. Schwartz.
The Manumission of Slaves in Colonial Brazil, Bahia 1648-1745. Hispanic American Historical Review
54 (4) (Novembro de 1974). No local indicado acima, Klein faz referência a outros estudos locais que
chegaram à mesma conclusão.
287 A razão de masculinidade dos escravos africanos em Minas era apenas ligeiramente inferior à média
nacional, diferentemente de algumas províncias nordestinas (como Ceará e Sergipe) onde as mulheres
africanas escravas excediam os escravos africanos homens em números absolutos, deixando pouca
dúvida quanto à sua exportação. A possibilidade de pequenas exportações de africanos não pode ser
descartada, contudo, principalmente em vista da alta razão de masculinidade dos africanos em São
Paulo.
170 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
para estimar um limite máximo do número de escravos alugados ou contratados
para trabalhar nas plantações de café de outras províncias. Em toda a província
de Minas, os escravos ausentes eram apenas 2.886, dos quais 1.776 eram homens e
1.110 eram mulheres. Dada a natureza das tarefas envolvidas na abertura de novos
cafezais, principalmente o pesado trabalho da derrubada de matas virgens, é muito
pouco provável que as mulheres fossem empregadas em quantidade significativa
nessas tarefas.
Entre os escravos homens ausentes, 87,3%, ou 1.551 indivíduos, tinham ida-
des entre 15 a 50 anos, a faixa etária compatível com esse tipo de trabalho. Esse
contigente constituia cerca de 0,4% da população escrava mineira da época e pode
ser considerado o número potencial máximo de escravos contratados para o setor
cafeeiro fora de Minas.
O número real era certamente bem menor, por diversos motivos. Em primeiro
lugar, estes escravos estavam fora de suas paróquias de residência, mas não neces-
sariamente do seu município ou da província. Era uma prática comum dos pro-
prietários alugar ou emprestar, escravos para parentes ou amigos nas vizinhanças,
mas há indicações de que muitos senhores eram relutantes em alugá-los para luga-
res distantes. Além disso, é provável que muitos dos escravos que estavam fora de
suas paróquias não tivessem nada a ver com o café. O governo e os empreiteiros
de obras públicas normalmente usavam escravos alugados para uma variedade de
trabalhos, principalmente para a construção e manutenção de estradas. No final da
década de 1860 e no início da década de 1870, escravos foram largamente empre-
gados na construção das primeiras ferrovias de Minas. As companhias inglesas de
mineração, impedidas desde 1843, pelo Brougham Act, de comprar escravos, eram
também grandes usuárias de mão de obra servil alugada.288
E, é claro, os escravos poderiam estar fora de suas paróquias de residência por
outros motivos além dos mencionados acima: eles poderiam estar acompanhando
seus donos em alguma viagem, ou trabalhando em tropas. Em vista de tudo isso,
está claro que apenas uma fração insignificante de escravos mineiros poderia ter
sido contratada para trabalhar em plantações paulistas de café nesse período.
288 Sobre o trabalho de escravos na construção de estradas em Minas, e a relutância de seus senhores
em alugá-los para trabalhar em distritos distantes, veja Falla... pres. Bernardo Jacinto da Veiga, 1839,
p. 37 e Falla...pres. Bernardo Jacinto da Veiga, 1840, p. 14. Sobre escravos trabalhando na construção
da ferrovia D. Pedro II, veja John Codman. Ten Months in Brazil, p. 76. Já mencionamos acima que
o discurso de Lord Brougham na Câmara dos Lordes, em 2 de agosto de 1842, deixa claro que as
companhias inglesas que operavam em Minas Gerais eram um dos alvos explícitos da medida proposta.
172 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
tinham atingido 31 mil toneladas em 1871-72 foram reduzidas a 2,6 mil toneladas
em 1878-79.291
A região Sul também tinha seus problemas. Lá, a escravidão estava concen-
trada no Rio Grande do Sul e a maior parte de sua mão de obra servil estava
empregada na indústria do charque. Apoiada por um extenso setor pecuário, e
estimulada pela crescente demanda da região cafeeira (o charque era um item
básico na dieta dos escravos das plantations), a indústria expandiu-se rapida-
mente no terceiro quartel do século, mas por volta do fim da década de 1870
viu-se envolvida em uma grave crise. Economicamente, ela não conseguia com-
petir com os saladeros do Rio da Prata, e politicamente era incapaz de obter pro-
teção tarifária de um governo imperial dominado pelos barões do café. As char-
queadas entraram em rápido declínio, do qual nunca mais se recuperariam.292
O resultado disso tudo foi a intensificação do fluxo de escravos para o Sudeste.
Uma estimativa recente de Robert Slenes situa as importações médias dessa região
em mais de 11 mil por ano, de 1873 a 1881, mais que o dobro da média anual veri-
ficada entre 1850 e 1872. Slenes também demontrou que os cativos continuaram
chegando do Nordeste em números crescentes, e o impacto da Grande Seca foi
claramente detectado por ele no mercado escravo de Campinas, na forma de um
aumento imediato nas vendas de escravos originários das províncias afetadas pela
estiagem. O tráfico por via terrestre da região Sul para as províncias cafeeiras tam-
bém ganhou nova importância na década de 1870.293
As avaliações sobre o papel desempenhado por Minas no tráfico interno nesse
período variam largamente: alguns autores apresentam a província como um grande
291 Gavin Wright. Cotton Competition and the Post-Bellum Recovery of the American South. Journal of
Economic History 34 (3) (Set. 1974), p. 611; Cunniff. The Great Drought, p. 81. Ver também Eisenberg.
The Sugar Industry; Andrade A Terra e o Homem; Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, pp. 45-
46; John Casper Branner. Cotton in the Empire of Brazil. The antiquity, methods and the extent of its
cultivation, together with statistics of exportation and home consumption. Department of Agriculture.
Miscellaneous. Special Report nº. 8. Washington: Government Printing Office, 1885, p. 48, e John
Casper Branner. The Cotton Industry in Brazil. Popular Science Monthly, vol. 40 (1891), pp. 666-674.
Além do Nordeste, a cotton famine da Inglaterra também gerou booms de produção de algodão em
São Paulo e em Minas Gerais. O surto paulista foi estudado por Alice Piffer Canabrava em sua tese de
cátedra na USP em 1951, publicada como O Desenvolvimento da Cultura do Algodão na Província de
São Paulo, 1861-1875. São Paulo: Martins, 1951. O caso mineiro é analisado brevemente no capítulo
5, adiante. Bales são a unidade usada nos Estados Unidos para medir quantidades de algodão, desde
os tempos coloniais até hoje. 1 bale = 250 pounds = 113,4 quilos = 7,72 arrobas.
292 Sobre a ascensão e queda da indústria de charque e da escravidão no Rio Grande do Sul, veja Fernando
Henrique Cardoso. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata
do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.
293 Slenes. The Demography, pp. 124, 136-38, 188-90, 196.
294 Viotti da Costa. Da Senzala à Colonia, p. 132; Klein. The Internal Slave Trade, p. 98; Dean Rio Claro,
pp. 56-57. O imposto que foi suprimido em São Paulo havia sido criado em 1871 e taxava em 200
milréis cada escravo que entrasse na província.
295 Conrad. The Destruction, p. 131.
296 Theodoro Sampaio. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. Bahia: Editora Cruzeiro, 1938, p.
105. Este relato é mencionado por John Wirth. Minas Gerais, p. 20, como evidência de exportações de
cativos do norte de Minas para a zona cafeeira. Ele está equivocado: Sampaio, que subia o rio, da Bahia
para Minas, estava se referindo a Carinhanha, uma localidade baiana, perto da fronteira mineira. A.
Scott Blacklaw. Slavery in Brazil. South American Journal and Brazil and River Plate Mail (6 de julho,
1882), p. 9.
174 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
tinha enfrentado forte oposição nos círculos traficantes do Rio, e indicam que antes
de sua entrada em vigor, pelo menos a Zona da Mata tinha sido uma grande impor-
tadora. O presidente José Francisco Neto não deixa dúvida de que a província era
importadora, alertando para o fato de que “se a execução fosse retardada, a estatís-
tica da população escrava, que no fim de 1876 era de 289.919, ascenderia a propor-
ções incalculáveis; a lavoura no futuro sofreria as consequências de uma importa-
ção em grande escala”. No relatório seguinte, do presidente Meira de Vasconcelos,
o diretor da Fazenda Provincial relata que, diante do início da cobrança da taxa,
“em poucos dias viu-se a repartição a meu cargo abarrotada de reclamações e con-
sultas, que afluiam principalmente das coletorias colocadas nas zonas próximas e
limítrofes das províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, e dos próprios comerciantes
de escravos”.297
Os dados coletados por Robert Slenes não sustentam a posição de que Minas
tenha exportado qualquer quantidade considerável de escravos para São Paulo neste
período. Uma grande amostra de vendas no mais importante mercado daquela pro-
víncia, nos anos de 1875, 1877, 1878 e 1879, revela que, de todos os escravos cuja
origem provincial era conhecida, somente 1,6% (35 indivíduos) vieram de Minas
Gerais, enquanto 53,5% eram do Nordeste, e 21,2% das províncias do Sul. Slenes
também localizou evidências de que “um número substancial” dos escravos que
chegou ao porto do Rio de Janeiro “estava, na verdade, a caminho de Minas Gerais
e São Paulo. Suas próprias estimativas colocam Minas como uma das províncias
mais importadoras no período de 1873-1887.298
Existem mais dados sobre a população escrava e seus movimentos para as déca-
das de 1870 e 1880 do que para qualquer período anterior, permitindo uma análise
mais minuciosa do tráfico interno. A partir desse período dispomos, pela primeira
297 Segundo o Presidente José Francisco Neto, sua regulamentação da Lei n. 2.716, que estabelecia o
gravame, e o início de sua cobrança suscitou “vivíssima oposição em um dos órgãos da imprensa da
Corte. Muitas reclamações apresentaram-me os comerciantes, alegando prejuízos que lhes impunha a
execução do Regulamento, tendo sido feitas as transações no pressuposto de que lei só teria execução
em julho”. Relatório…pres. José Francisco Netto, 4 de maio de 1881, pp. 19-20. No relatório seguinte,
o diretor da Fazenda Provincial registrou novamente que “grande foi a celeuma levantada na imprensa
e fora dela contra o ato patriótico que (...) mandou por em execução o imposto de dois contos de réis
(...) sobre cada escravo que viesse residir na província (...). Quiseram enxergar os traficantes de carne
humana não só excesso e abuso de poder no referido ato, mas sobretudo surpresa. Relatório...pres.
Meira de Vasconcellos, 7 de agosto de 1881, Anexo 4, Diretoria da Fazenda, pp. 80-81.
298 Slenes. The Demography, pp. 600, 627-28, 660. Slenes tem, entretanto, reservas sobre as generalizações
baseadas no mercado de Campinas, o qual, devido ao seu tamanho, pode ter atraído uma parcela
desproporcional do tráfico de longa distância. Em mercados paulistas menores, a parcela de escravos
de outras partes do Sudeste pode ter sido maior. Suas estimativas sobre as importações mineiras são
discutidas abaixo.
Tabela 4.10 - Minas Gerais: População escrava, por regiões, 1873 - 1886
Regiões População escrava % sobre o total da província % Livres
1873 1880 1884 1886 1873 1880 1884 1886 1873
Metal.-Mantiqueira 95.401 63.160 51.820 49.436 24,9 19,5 17,3 17,3 24,7
Mata 100.776 100.248 106.939 104.360 26,3 30,9 35,8 36,4 16,9
Sul 81.511 71.682 63.982 61.270 21,3 22,1 21,4 21,4 19,0
Oeste 33.711 29.806 24.440 23.152 8,8 9,2 8,2 8,1 10,1
Alto Paranaíba 18.493 11.616 10.443 9.998 4,8 3,6 3,5 3,5 5,2
Triângulo 7.966 9.436 5.921 5.522 2,1 2,9 2,0 1,9 2,1
São Franc.-M. Claros 7.983 8.325 7.574 7.411 2,1 2,6 2,5 2,6 4,9
Paracatu 2.639 1.714 1.587 1.548 0,7 0,5 0,5 0,5 1,9
Jequit.-Mucuri-Doce 34.160 28.551 26.225 23.794 8,9 8,8 8,8 8,3 15,2
Minas Gerais 382.640 324.538 298.931 286.491 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
176 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
exagera as perdas das áreas exportadoras e subestima os ganhos das áreas impor-
tadoras de cativos.
Foram exercícios enganosos desse tipo que levaram alguns autores a concluir,
e proclamar, que a escravidão estava desaparecendo nas regiões não-cafeeiras da
província, pois todas elas pareciam estar perdendo escravos para a zona da grande
lavoura plantacionista de café.299 Para evitar esse erro primário, recorremos, mais
uma vez, à técnica dos sobreviventes intercensitários para estimar as transferências
líquidas de escravos de cada município.
Desde a aprovação da Lei Rio Branco, em 28 de setembro de 1871, todos os
filhos de mães escravas nasciam livres. Como consequência, o crescimento natural
da população escrava, que já era negativo, tornou-se ainda mais negativo (a taxa
bruta de natalidade tornou-se igual a zero) e a taxa de crescimento natural tornou-
-se idêntica à taxa bruta de mortalidade.
Nas estimativas para o intervalo 1873-1880, usamos, para todos os municípios,
a taxa de mortalidade de 23 por mil por ano, computada por Slenes para a zona
central de São Paulo no mesmo período. Não há razão para supor que os padrões
de mortalidade da amostra de Slenes diferissem significativamente daqueles de
Minas Gerais: a distribuição etária dos escravos era razoavelmente similar, as duas
populações estavam expostas ao mesmo ambiente nosológico e tinham padrões de
vida semelhantes.
A mortalidade de 23 por mil, por ser inferior às taxas prevalecentes no mesmo
período em vários países da Europa ocidental e do norte, pode parecer muito baixa,
mas deve-se ter em mente a singularidade da estrutura etária da população em
questão. Após 1871, não havia mais nascimentos de escravos e a idade mínima
dos cativos (que era de dois anos em 1873) cresceu até atingir nove anos em 1880,
ficando assim eliminados da população os segmentos etários com as maiores taxas
específicas de mortalidade.300
Estimamos o total de alforrias na província no período 1873-1880 em 7.700, e
adotamos a hipótese de que elas eram proporcionais à população escrava de cada
299 Veja por exemplo, Conrad. The Destruction, tabela nº. 12 no anexo, p. 293. A maior parte dos municípios
listadas por Conrad como mining municípios não mais o eram por quase um século, e alguns daqueles
listados como sendo localizados em Central Minas, como Paracatu, Rio Pardo e Januária, são tão
centrais em Minas como são o Alaska e o Maine nos os Estados Unidos.
300 As estimativas para a região central de São Paulo, e um breve levantamento das estimativas contem-
porâneas da taxa de mortalidade escrava, podem ser encontrados em Slenes. The Demography, pp.
341-46. Scott Blacklaw reporta que, em 1882, dados referentes a oito províncias revelaram uma taxa
de declínio (englobando mortes e alforrias) de 25/1000 por ano. Blacklaw. Slavery in Brazil, p. 10.
301 Pelo menos parte das alforrias de cada município – aquelas com recursos do Fundo Imperial de
Emancipação – eram grosso modo proporcionais à sua população escrava, pois as cotas do fundo eram
distribuídas em proporção ao número de escravos existentes. A proporcionalidade das manumissões
resultantes não era exata porque havia variações no preço de compra dos escravos alforriados.
Experimentei maneiras alternativas de distribuir as manumissões estimadas entre os municípios e o
impacto sobre as estimativas de tráfico líquido foi mínimo. A alforria representava um vazamento tão
pequeno que o ganho de refinar a metodologia das estimativas nesse particular é desprezível.
178 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Oeste e o Jequitinhonha, mantinham grandes plantéis (tabela 4.10). A Zona da Mata
era o maior importador líquido, mas cinco outras regiões também tiveram saldos
positivos de importações de escravos, como mostra a tabela 4.11.
No nível dos municípios, os resultados mostram uma divergência ainda maior
com esta visão. A importação de escravos não estava, de forma nenhuma, associada
exclusivamente com a cultura cafeeira: dos trinta e quatro importadores líquidos,
somente seis eram distritos cafeeiros consolidados e em poucos outros, ao longo
da fronteira com São Paulo, esse cultivo estava apenas começando. A maioria dos
importadores estava localizada fora da zona de plantations.
Outras evidências disponíveis para o mesmo período apontam para um cenário
semelhante.
A legislação determinou que, a partir da matrícula de 1873, fossem registrados
os “movimentos” da população escrava, tais como mortes, alforrias ou mudanças do
município de domicílio. Segundo estes registros, entre setembro de 1873 e junho de
1881, 64.718 escravos entraram nos municípios mineiros enquanto outros 58.782
partiram dos mesmos, deixando, portanto, um saldo positivo de 5.936 importações
pela província.302
Como a matrícula dos escravos em seus municípios de residência valia como
prova legal de propriedade, os compradores de escravos de fora de seus municí-
pios tinham motivos óbvios para registrar as entradas dos cativos em seu domicí-
lio, mas, segundo fontes oficiais, por falta de motivação e de sanções adequadas,
os vendedores muitas vezes não se incomodavam em registrar as saídas. Por essa
razão, o saldo positivo registrado de entradas sobre saídas pode inflar o total real
das importações líquidas de Minas Gerais.303
302 As entrada e saídas dos municípios encontram-se no Relatório Agricultura. Ministro Henrique d’Ávila,
10 de maio de 1883, p. 10. Cinco municípios (5,6% do total) não relataram os dados. Nenhuma
tentativa foi feita para corrigir essa omissão. Infelizmente os registros dos municípios individuais não
sobreviveram.
303 Sobre a sub-declaração das saídas de escravos dos municípios, veja o Relatório da Seção de Estatística
Anexa à 3ª Directoria da Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 10 de maio
de 1883. Pode-se ficar tentado a ajustar os dados de entrada e saída assumindo, como fez Slenes,
que o percentual de sub-declaração em cada província era o mesmo do conjunto do país. No Brasil
inteiro os dois fluxos deveriam necessariamente coincidir, mas o número de entradas relatadas no
período de 1873-1882 excede o das saídas relatadas em 3,9%. Usando esse coeficiente para ajustar
as importações líquidas mineiras, o número seria reduzido a 4.143 escravos. No entanto, essa
tentação deve ser evitada, pois os dados para outros períodos mostram que essa hipótese está
longe de ser segura. Os registros sugerem que, durante a década de 80, enquanto em todo o Brasil
as saídas ainda eram fortemente sub-reportadas, nas principais províncias cafeeiras as entradas é
que eram sub-declaradas. Tomados por seu valor de face, ou com a hipótese de que as saídas eram
incompletamente relatadas, os registros implicariam que as três províncias principais cafeeiras seriam
todas exportadoras líquidas de escravos, o que não é plausível. É verdade que foi somente depois de
1880 (devido à severa taxação das importações interprovinciais em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo) que os importadores dessas províncias passaram a ter um forte motivo para evitar o registro,
mas os dados para Minas Gerais apresentados no texto incluem o primeiro semestre de 1881, quando
a taxa já estava em vigor.
180 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
ainda incompletas, elevaram o número de escravos matriculados em Minas em
1873 para 356.254.304
As duas estimativas aqui apresentadas indicam saldos líquidos de importações
favoraveis a Minas, mas relativamente modestos. Isto não significa, entretanto, que
o envolvimento total da província no tráfico interprovincial nesse período fosse
necessariamente pequeno: nos dois casos o resultado líquido obtido é compatível
com fluxos de importações e de exportações de qualquer tamanho absoluto. Na
realidade, há vários motivos para supor uma participação bruta muito maior do
que aquela sugerida pelos saldos líquidos.
As regiões da província eram fracamente integradas e as comunicações entre
elas eram notoriamente deficientes. Seria muito mais conveniente para algumas
áreas negociar escravos com outras províncias do que com outras regiões de Minas,
exatamente como faziam com outras mercadorias. Desde os tempos coloniais, o
vale do São Francisco tinha relações comerciais mais intensas com a Bahia e com
Pernambuco do que com o resto da província. O mesmo era verdadeiro para a zona
de Paracatu com relação a Goiás, e para as regiões mais meridionais com relação
às vizinhas províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro. A Zona da Mata, em espe-
cial, era fortemente ligada à capital imperial desde a abertura do Caminho Novo.
304 Os primeiros resultados da Matrícula de 1873 foram publicados em Directoria Geral de Estatística.
Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Illm. e Exm. Sr. Conselheiro Dr. João Alfredo Corrêa
de Oliveira, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império pelo Diretor Geral Interino
Dr. José Maria do Couto, em 30 de abril de 1875. Rio de Janeiro: Typ. de Pinto Brandão e Comp.,
1875. Essa fonte apresenta os números para 51 municípios mineiros e declara não dispor daqueles
referentes a Sabará, Baependí, Curvelo, Conceição, Cristina, Diamantina, São Sebastião do Paraíso,
São João del Rei, São José del Rei, Minas Novas, Pium-í, São Romão, Serro, Tamanduá, Muriaé, Guaicuí
e Boa Esperança. Entretanto, além dos municípios citados pela fonte, são também omitidos os dados
referentes a Bonsucesso, Monte Alegre, Ouro Fino e São José do Paraiso. Nos anos seguintes foram
feitas sucessivas correções oficiais, a última das quais, publicada no Relatório de 1884 do Ministro da
Agricultura, atribuiu a Minas o registro, ainda deficiente, de 356.254 escravos na Matrícula de 1873.
Relatório apresentado à Assembléa Geral na primeira sessão da décima nona legislatura pelo Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas, João Ferreira de Moura
(1884). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1885, p. 372. Diferentemente de outras províncias, nunca
foram publicados dados individuais completos para os municípios mineiros, nem as desagregações
por sexo, idade e ocupação. Alguns dados municipais publicados são flagrantemente errados e alguns
são copiados do censo, revelando artifícios dos agentes responsáveis para encobrir seus atrasos e
suas inadimplências. Os dados do recenseamento para Minas Gerais também são deficientes, como
apontei várias vezes neste trabalho. Mas o mais incompleto número do censo (370.459) é maior que o
resultado mais atualizado da Matrícula. A estimativa de Slenes está em The Demography, pp. 616, 700-
01. Na p. 660, nota 16, ele admite ter dúvidas sobre a mesma, reconhecendo que ela “pode exagerar
a importância da migração de escravos para Minas”. Nas pp. 609-10, Slenes apresenta uma outra
estimativa sobre o tráfico líquido para Minas, usando os registros de entradas e saídas dos municípios
entre 1873 e 1885. Seu ajustamento nos dados, usando um coeficiente nacional de sub-registro das
saídas jjá foi criticado na nota 303 acima.
182 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Em algumas delas, como a Mata, o Oeste e o Alto Paranaíba, os preços médios atin-
giam quase o dobro daqueles do Norte e do Nordeste. Nestas regiões era mais alto
do que em São Paulo, e consideravelmente mais alto que no Rio de Janeiro. Mesmo
na região de Paracatu, que tinha o índice mais baixo de Minas, o preço médio era
mais alto do que no Nordeste.
Embora sejam necessárias pesquisas mais aprofundadas, em vista desses dados
e dos outros argumentos apresentados acima, não seria surpreendente descobrir
que algumas áreas de Minas, especialmente a zona cafeeira, estavam importando
nessa época um número considerável de escravos nordestinos ao invés de adqui-
ri-los de fontes intraprovinciais, enquanto outras regiões mineiras poderiam estar
exportando cativos para fora da província. Este padrão mais complexo de tráfico
poderia, incidentalmente, ajudar a explicar as avaliações conflitantes de alguns
autores sobre a posição de Minas no tráfico interno na década de 1870.
Tabela 4.12 - Preço médio dos escravos comprados pelo Fundo Imperial de
Emancipação, por regiões do Brasil, províncias selecionadas e regiões de Minas,
1875 -1880
Escravos Preço médio Índice Índice Índice Índice
comprados (milréis) BR = 100 MG = 100 SP = 100 NE = 100
Brasil 4.569 764 100 78 80 121
184 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
quais eram os municípios cafeeiros. Assim, mesmo não sendo possível conseguir
níveis mais altos de mensuração (cardinal ou ordinal) das variáveis “produção
de café” e “migração de cativos”, podemos classificar os municípios, por um lado,
como cafeeiros ou não-cafeeiros e, por outro, como importadores ou exportadores
de escravos, com bastante segurança. Daí decorre que o coeficiente de contingên-
cia (C), que permite medir o nível de associação ou de relação entre conjuntos de
atributos, é uma medida particularmente apropriada para o problema em foco.307
Computamos três coeficientes de contingência para medir a associação entre
o cultivo de café e o e a posição no tráfico de escravos: o primeiro inclui todos os
71 municípios mineiros (entre 1873 e 1880 a fusão de Montes Claros e Guaicuí eli-
minou um dos 72 municípios existentes no Censo), o segundo inclui apenas os 63
municípios “estáveis no intervalo de 25%” e, finalmente, o terceiro inclui somente
os 58 “estáveis no intervalo de 50%”. Nos três casos, o coeficiente C é muito baixo,
indicando fraca correlação entre os atributos (cafeeiro/não-cafeeiro) e (importa-
dor/exportador de escravos).
307 Na classificação dos municípios como cafeeiros e não-cafeeiros seguimos Laerne. Brazil and Java, p.
118. Sobre o conceito e a computação do coeficiente de contingência veja, por exemplo, Sidney Siegel.
Nonparametric Statistics for the Behavioral Sciences. New York: McGraw-Hill, 1956, pp. 196-202.
308 Na primeira definição incluímos Sabará, que não foi listado no censo, mas sediava a Saint John del Rey
Mining Company (Morro Velho), e certamente tinha escravos empregados na mineração. As fontes
desses dados encontram-se no capítulo 2.
186 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
A DÉCADA DE 1880
Em dezembro de 1880, a Assembléia Provincial de Minas Gerais, temendo que
a excessiva concentração de escravos no Centro-Sul pudesse alienar o apoio do
resto do Império à instituição servil, aprovou uma lei impondo severas restrições
às importações de escravos de outras províncias. Cada escravo trazido para Minas
passou a ser taxado em dois contos de réis (mais do que o preço de mercado de
um jovem adulto do sexo masculino), além de serem aumentados o imposto já
existente sobre vendas de cativos e a taxa de licenciamento para comerciantes de
escravos.309
Uma medida semelhante havia sido adotada pela província do Rio de Janeiro
algumas semanas antes, e São Paulo fez o mesmo em janeiro do ano seguinte. Essa
ação conjunta – uma clara manifestação de compromisso de longo prazo com o
regime – fechou simultaneamente os três maiores mercados provinciais compra-
dores de escravos e parece ter congelado definitivamente a distribuição regional
da população servil brasileira.310 Depois de 1881, segundo Slenes, “virtualmente
nenhum escravo entrou nos dois portos (Santos e Rio) consignado para venda”.311
No longo prazo, entretanto, a legislação antitráfico da “trindade negra” saiu
claramente pela culatra: em vez de fortalecer o compromisso da nação com a
309 Lei Provincial nº 2.716, de 18 de dezembro de 1880. O artigo décimo desta lei elevou para dois contos
de réis a taxa cobrada pela “anotação da mudança do escravo procedente de outra província com
transferência de domínio”, que já existia desde 1871.
310 Análises sobre a adoção dessas leis contra o tráfico interprovincial em Minas Gerais, Rio de Janeiro
e São Paulo podem ser encontradas em Conrad. The Destruction, pp. 170-74 e Toplin. The Abolition,
pp. 88-91. Esses autores, bem amparados por evidências contemporâneas, concordam que a principal
motivação desta legislação era impedir a drenagem da população escrava nordestina, e que ela
implicava em um sacrifício no curto prazo para prolongar a vida da instituição. O correspondente
residente do jornal Observer, do Ceilão (concorrente brasileiro no mercado de café), escreveu em
1882, que “parece pouco generoso supor que o verdadeiro objeto que os legisladores tinham em
mente fosse o prolongamento do prazo para a extinção da escravidão”, mas “há uma forte evidência
circunstancial de que foi isso que aconteceu”. Blacklaw. Slavery in Brazil, p. 9. Outro observador
contemporâneo, C. F. van Delden Laerne, observou que a motivação dessas leis foi que “as pessoas
pensaram ter percebido uma tentativa, por parte das províncias do norte (...) de transferir seus
escravos para as províncias cafeeiras, com o intuito de – sem prejudicar seus próprios interesses –
insistir na emancipação dos escravos tão logo a desova fosse efetivada”. Laerne. Brazil and Java, p.
85. No mesmo lugar o autor informa que a Bahia e o Ceará também cobravam taxas de 800 a 1.000
mil réis, respectivamente, sobre as importações interprovinciais durante 1881-82. Estas taxas eram
certamente inócuas, visto que ambas as províncias eram fortes exportadoras. Toplin afirma que uma
fonte de apoio para essa legislação, em São Paulo, vinha de cafeicultores que já tinham escravos
suficientes para suas necessidades e esperavam que, reduzindo a oferta, a lei aumentaria o valor de
seus plantéis, propiciando-lhes um bônus extra no caso de abolição com indenização aos proprietários.
311 Slenes. The Demography, p. 123.
Tabela 4.15 - Preço médio dos escravos comprados pelo Fundo Imperial de
Emancipação, por regiões e províncias selecionadas, 1875 - 1888
Escravos comprados 1875 - 1880 1883 - 1885 1885 - 1888
e preços médios Escravos Preço Escravos Preço Escravos Preço
comprados médio comprados médio comprados médio
Nordeste 100 49 78
Sul 100 35 62
Rio de Janeiro 100 73 72
São Paulo 100 75 58
Minas Gerais 100 71 63
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
312 Em Minas Gerais, os preços dos escravos, medidos pelo custo médio de emancipação, aumentaram
no período 1880-82, em relação a 1875-80, em cinco regiões, e cairam ligeiramente nas quatro
restantes. Os dados são do Relatório Agricultura, Ministro José Antonio Saraiva, 1881, pp. 27-29.
Deve-se observar que não há razão para esperar que o preço em qualquer região de Minas devesse
ter reagido às leis antitráfico em qualquer direção definida. As áreas exportadoras perderam seus
clientes paulistas e fluminenses, mas ganharam um mercado cativo dentro de Minas Gerais. As zonas
importadoras perderam seus fornecedores nordestinos, mas tinham agora a oferta mineira quase
completamente represada dentro das fronteiras provinciais.
188 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Essa tendência foi acentuada nos anos seguintes. Nessa época, devido à cres-
cente pressão abolicionista, já havia um pessimismo generalizado sobre o futuro
da escravidão, e os preços de escravos estavam caindo em todas as regiões do país,
mas os custos médios das emancipações mostram que essa queda foi mais lenta no
Centro-Sul. Em 1883-85, os escravos comprados pelo Fundo em São Paulo, Minas
e no Rio de Janeiro ainda custaram duas vezes mais do que aqueles libertados no
resto do país.313
No último período, especialmente após 1887, a instituição já estava em ruínas.
Grandes números de escravos começaram a abandonar as fazendas em direção às
cidades, onde eram protegidos pela população urbana, em grande parte já conver-
tida ao abolicionismo. Curvando-se ao inevitável, os senhores de escravos começa-
ram a conceder alforrias em massa. Todos sabiam que a abolição final era iminente.
Nesta situação caótica, é muito pouco provável que os custos das emancipações
pudessem refletir qualquer coisa além da desordem que reinava nos mercados de
escravos.
Em Minas Gerais, a lei de 1880 interrompeu efetivamente as importações de
escravos. Nenhuma receita jamais foi arrecadada pelo imposto sobre as importa-
ções interprovinciais por ela determinado. As legislações paulista e fluminense,
por seu lado, parecem ter encerrado as exportações mineiras para essas províncias.
Mercados menores permaneceram abertos nas províncias vizinhas de Goiás, Mato
Grosso e Espírito Santo, que podem ter importado um pequeno número de escra-
vos de Minas após 1880.
Os dados de entrada e saída de escravos mostram que, entre junho de 1881 e
junho de 1884, as saídas registradas dos municípios mineiros excederam as entra-
das registradas em apenas 717 indivíduos. Já mencionamos que nesse período as
saídas podem ter sido subregistradas, mas, em qualquer hipótese, o fluxo de trans-
ferências foi insignificante. Para todos os efeitos práticos, a população escrava pro-
vincial mineira tornou-se “fechada” na década de 1880.314
Assim, como se poderia prever, durante o período de 1880 a 1884, houve uma
intensificação do tráfico intraprovincial de cativos. A zona cafeeira e as outras
áreas importadoras tinham sido privadas de suas fontes externas de abastecimento,
enquanto os mercados paulista e fluminense tinham sido fechados para as regiões
313 Uma análise bem-feita e bem documentada sobre a evolução da confiança (sanguinity) dos
proprietários de escravos na instituição, nas décadas de 70 e 80, encontra-se em Slenes. The
Demography, pp. 234-62.
314 Breve Notícia do Estado Financeiro das Províncias, informação nº. 4, tabela nº. 3, sem número de
Entre 1873 e 1880 foram criados vários novos municípios em Minas Gerais.
Para manter a comparabilidade territorial das regiões, a população dos municípios
criados durante o período foi agregada de volta aos municípios aos quais seu terri-
tório pertencia em 1873. Alguns desses novos municípios foram constituídos por
partes desmembradas de diferentes municípios existentes em 1873. Nesses casos
tivemos de utilizar clusters de municípios, o que reduziu o número de unidades de
análise para 67. Os clusters são explicitados na tabela desagregada por municípios,
no Apêndice B.
página. Os dados de entrada e saída são do Relatório Agricultura, Ministro Henrique d’Avila, 1882, p.
10; e Relatório Agricultura, Ministro João Ferreira de Moura, 1884, p. 372. Robert Toplin apresenta
evidências de que após a lei de 1881 houve algum tráfico ilegal de escravos para o Oeste de São Paulo,
mas não dá nenhuma indicação de seu volume. Toplin. The Abolition, p. 91.
315 Dos 8.089 escravos que entraram nos municípios mineiros, a cada ano, entre 1873 e 1880, um número
não determinado, mas provavelmente considerável, veio de fora da província, enquanto que todas as
12.636 entradas anuais médias, em 1881-84, tiveram sua origem em outros municípios de Minas. As
fontes dos dados são as mesmas da nota 314.
190 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
O padrão do tráfico não foi significativamente diferente daquele observado no
período anterior. A Mata continuou a ser o principal importador mas, com exceção
do Triângulo, as perdas das regiões exportadoras foram pequenas em relação às
suas populações escravas. No nível de agregação usado na tabela 4.16, as estima-
tivas parecem indicar um padrão bastante assimétrico de tráfico, no qual a área
cafeeira sugava os escravos de quase todas as outras regiões. Entretanto, a análise
desagregada por municípios revela, novamente, que não foi assim tão simples. De
fato, quase todos os municípios cafeeiros foram importadores líquidos e a Zona da
Mata absorveu quase 70% das importações líquidas. Mas 21 municípios fora dessa
região também foram importadores líquidos. Vários outros mantiveram popula-
ções escravas grandes e estáveis, e dez deles aumentaram seus plantéis de cativos,
em termos absolutos.
Os sinais dos saldos líquidos estimados dos municípios são muito estáveis nesse
período também. Nos dois últimos períodos em análise (1880-84 e 1884-86), não
há possibilidade de divergência entre as taxas reais e as taxas adotadas nas estima-
tivas, porque usamos as taxas de crescimento interno observadas no conjunto da
província (–20,34 por mil em 1880-84 e –21,03 por mil em 1884-86). Resta ainda,
naturalmente, a possibilidade de variações dessas taxas entre os municípios.316 A
tabela B.5: Estabilidade dos saldos municipais do tráfico, 1880-1884, no Apêndice
B, mostra entretanto, que essas flutuações poderiam reverter os sinais dos saldos
líquidos de apenas um pequeno número de municípios.
Flutuações de 25% para cima ou para baixo na taxa usada nas estimativas (de
–15,3 por mil a –25,4 por mil) poderiam reverter no máximo os sinais de sete
municípios. Aumentando o intervalo de variação para 50% (–10,2 por mil a –30,5
por mil) traria para dentro da zona de instabilidade mais dez municípios. Portanto,
usando a terminologia adotada acima, temos, no período 1880-84, 60 municípios
(89,5% do total) “estáveis no intervalo de 25%”, e 56 (74,6% do total) “estáveis no
intervalo de 50%”.
316 Como a população escrava de Minas Gerais tornou-se fechada depois de 1880, não foi necessário
usar uma taxa de crescimento natural da população escrava estimada exógenamente. Computamos
a taxa implícita de crescimento interno para o conjunto da província, fazendo T = 0 na equação
Pt = P0 (1 + r)t + T(1 + r)t/2 e resolvendo para r. Assumimos que ela era uniforme através dos municípios.
Não são disponíveis dados de manumissão para os municípios individualmente. Seria ocioso, portanto,
estimar o total provincial das alforrias e depois alocá-lo proporcionalmente às populações escravas
municipais, como fizemos para o período 1873-1880. Em outras palavras, como assumiríamos, de
qualquer forma, que tanto a taxa de mortalidade como a taxa de manumissão eram iguais em todos
os municípios, podemos simplesmente aceitar que a taxa de crescimento interno (que inclui os dois
vazamentos) era uniforme.
317 Esses municípios são: Alfenas, Cabo Verde, Caldas, Jaguari, Ouro Fino, São José do Paraíso, São
Sebastião do Paraíso, Muzambinho, Jacui e Guaxupé. Nas estimativas de tráfico, os três últimos estão
agregados em outros municípios.
192 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Depois de 1884 observa-se uma queda brusca no volume do tráfico intrapro-
vincial. Os escravos continuaram a ser transferidos em todas as direções através da
província, mas agora em números bem menores. Além das perspectivas políticas
sombrias do regime escravista, esse foi um período de queda nos preços do café e
de desaceleração da expansão do setor. Na Mata as importações líquidas em 1884-
86 pouco passaram de um quarto do nível atingido nos quatro anos anteriores.
Entre junho de 1884 e junho de 1885, foram registradas apenas 4.989 entra-
das de escravos no conjunto dos municípios mineiros, apenas um terço da média
anual registrada nos três anos precedentes.318 A arrecadação do imposto sobre
vendas de escravos caiu do valor médio de 295 contos de réis nos anos fiscais de
1879-80 a 1882-83, para 160 contos em 1883-84, e 117 contos em média no biênio
1884-85 /1885-86.319
318 Relatório Agricultura, Ministro Antonio da Silva Prado, 1885 (publicado em 1886)
319 Falla... pres. Antonio Gonçalves Chaves, 1º de agosto de 1884, Anexo B (Directoria da Fazenda
Provincial). Apêndice nº 17, e Relatório...pres. Manoel do Nascimento Machado Portela, 13 de abril
de 1886, Anexo B (Directoria da Fazenda Provincial).
C = coeficiente de contingência.
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
194 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
MANUMISSÃO E O APEGO DOS MINEIROS À ESCRAVIDÃO
A análise apresentada neste capítulo demonstra que Minas Gerais manteve um
vínculo forte e obstinado com o regime escravista durante todo o século XIX. Sua
grande população escrava não era constituída por sobras da época da mineração, e
não exerceu o papel de reservatório de mão de obra para a expansão do setor cafe-
eiro no Sudeste brasileiro.
Não se trata apenas de constatar que Minas Gerais não foi um exportador de
cativos: muito ao contrário, a evidência empírica mostra que, ao longo do século, a
província foi um ativo importador que adquiriu, em termos líquidos, consideravel-
mente mais escravos do que qualquer outra província brasileira. Na verdade, se as
estimativas do tráfico atlântico atualmente disponíveis estiveram corretas, Minas
só fica abaixo de Cuba como destino final dos africanos que cruzaram o oceano no
século XIX.320
A cronologia das importações mineiras é extremamente importante. O maior
influxo ocorreu enquanto o tráfico africano ainda estava aberto, ou seja, numa
época em que o setor minerador estava definhando e o setor cafeeiro ainda estava
na sua infância, e nenhum deles empregava mais do que uns poucos milhares de
escravos. Mesmo depois da metade do século, quando a grande lavoura atingiu sua
maturidade, o café não é capaz de explicar, por si só, nem o volume nem o padrão
do tráfico mineiro de escravos.
Segundo nossas estimativas os distritos cafeeiros foram os principais impor-
tadores de cativos entre 1873 e 1886, e no mesmo período a porcentagem da
população escrava da província residente na região cafeeira, aumentou de 21,5%
para 31,0%. Entretanto, os mesmos números demonstram que a grande maioria
dos escravos de Minas permaneceu fora da zona de plantations. Longe de esta-
rem “ansiosas para ver seu fim”, as áreas onde a grande lavoura exportadora não se
implantou permaneceram apegadas ao regime servil, mantiveram um contingente
cativo numeroso, e um grande número de municípios não cafeeiros continuaram a
ser importadores ativos até os anos finais. Em contraste com as regiões brasileiras
onde a escravidão estava sendo realmente descartada, os preços dos escravos em
todas as regiões mineiras se mantiveram entre os mais altos do Brasil, em níveis
comparáveis aos observados nas áreas de plantation, até os dias finais do regime.
A afirmação de que os escravos foram maciçamente transferidos da mineração
para a cultura do café, está errada nas duas pontas da jornada. É óbvio que o setor
minerador já não dispunha, desde a virada do século, de escravos excedentes que
320 Segundo Curtin, Cuba importou 616.200 africanos entre 1801 e 1865. Curtin. The Atlantic Slave Trade,
p. 40.
321 Thomas Merrick e Douglas Graham, baseados em sua própria imaginação, afirmaram que “a
manumissão se tornara claramente mais extensa no Nordeste (e no velho estado minerador de
Minas Gerais) do que no Rio de Janeiro e São Paulo.”. Merrick and Graham. Population and Economic
Development, p. 70. Não apresentam nenhum dado, fonte ou referência em apoio a essa afirmativa.
196 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 4.22 - Brasil: Alforrias de escravos, por províncias, 1877-1881
Províncias Taxa anual de alforria 1 % alforriada
1877 1878 1879 1880 1881 1873 -1885 2
Amazonas 7,7 6,1 7,2 14,4 69,8 *
Ceará 12,2 13,1 10,9 13,5 31,8 *
Rio G. do Sul 10,2 10,9 13,9 15,9 18,0 47,1
Município Neutro 20,6 19,0 26,0 33,5 33,3 32,2
Pará 17,8 18,1 16,0 19,5 20,4 25,4
Santa Catarina 8,2 11,2 19,7 30,1 14,5 24,5
Paraná 13,1 22,6 20,5 36,9 18,7 20,4
Mato Grosso 3,7 13,2 12,1 25,6 8,3 13,6
Piauí 12,7 9,5 10,2 15,5 11,8 13,3
Rio G. do Norte 9,9 10,7 10,3 12,7 10,1 12,4
Goiás 6,6 6,7 5,4 12,9 5,8 12,2
Pernambuco 5,4 5,0 6,5 8,7 8,4 11,4
São Paulo 3,9 3,5 3,7 4,7 5,6 9,8
Espírito Santo 5,2 5,9 7,1 8,2 7,4 9,6
Bahia 11,8 10,1 10,5 11,5 16,9 9,2
Sergipe 9,2 5,8 5,7 7,6 6,7 8,8
Alagoas 6,2 5,5 5,4 10,1 6,9 8,7
Maranhão 9,3 7,8 10,7 10,2 11,2 7,4
Rio de Janeiro 4,5 3,9 5,1 5,5 5,8 6,9
Paraíba * * * * * 6,2
Minas Gerais 3,9 3,0 3,2 5,2 5,1 5,0
198 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Capítulo 5 - Uma Economia Vicinal
N
os capítulos anteriores argumentamos que a Minas Gerais do século XIX
não pode ser descrita nem como uma economia mineradora nem como
uma economia cafeeira. Mostramos que estes dois setores desempenharam
papéis relativamente modestos na vida econômica da província como um todo e,
em particular, que não se pode atribuir a eles a grande população escrava existente
em Minas, nem seu crescimento nesse período. O que foi então a economia pro-
vincial no oitocentos? O que mantinha ocupado seu vasto contigente de escravos?
Quais eram as atividades econômicas de sua grande população livre?
Neste capítulo tentamos responder a estas questões. Argumentamos que em
Minas, excetuado o setor cafeeiro da Zona da Mata, a produção para exportação
era a exceção e não a regra. O grosso da economia mineira era a antítese da grande
lavoura monocultora e exportadora organizada em plantations. Ao longo de todo o
século essa economia era constituída principalmente por estabelecimentos agríco-
las e pecuários que produziam basicamente para seu próprio consumo e vendiam
seus excedentes dentro da própria província ou no mercado brasileiro interno,
sobretudo para a cidade do Rio de Janeiro. As mercadorias enviadas para fora de
Minas eram alimentos básicos, animais vivos, queijos e outros derivados da pecu-
ária bovina e suína, fumo e algumas manufaturas simples como panos de algodão
grosseiro. Todos esses itens eram largamente consumidos dentro da província e, na
maioria dos casos, as quantidades exportadas eram desprezíveis em comparação
com a produção e o consumo provinciais desses artigos.
199
A propriedade rural típica de Minas Gerais, embora frequentemente incluisse
grandes extensões de terra, e algumas vezes uma grande força de trabalho escravo,
em nada se parecia com a grande lavoura exportadora. Faltavam-lhe quase todas as
características definidoras de uma plantation, ou sejam, a concentração monocul-
tora, a disciplina e o método quase-fabril de trabalho e administração e, acima de
tudo, a orientação exportadora da grande lavoura.
As fazendas mineiras eram, bem ao contrário, unidades autossuficientes, espa-
lhadas por um vasto território, isoladas dos grandes mercados internacionais e,
em algumas regiões, apenas parcialmente integradas na economia monetária. Sua
tecnologia era bastante rudimentar e sua produção extremamente diversificada
internamente. Geralmente incluía produtos “coloniais” historicamente associados
à plantation exportadora, como o açúcar e o algodão, mas em Minas esses artigos
eram cultivados quase exclusivamente para consumo dentro da própria província.
Ainda mais distantes do paradigma da plantation estavam o sítio, a roça e a fazenda
de gado, os quais, juntos com a fazenda diversificada e polivalente, continuaram
a ser o cerne da vida econômica de Minas mesmo durante o período da expansão
do café. Resumir a história econômica de Minas do século XIX como uma mera
transição da mineração para o café é um erro grosseiro. Caracterizar a província
como uma província cafeeira é concentrar o foco no apêndice, e ignorar a essência
dessa economia.
200 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Durante a fase ascensional do ciclo de ouro a sociedade mineira era mais urba-
nizada do que qualquer outra região da América portuguesa e uma considerável
parte de sua população estava engajada em uma atividade não-agrícola especiali-
zada. As grandes distâncias que separavam os centros mineradores da costa e de
outras áreas já colonizadas, e os altos preços das necessidades mais básicas, gera-
ram um forte estímulo para o surgimento de uma oferta local. A diversificação da
economia regional foi, portanto, concomitante com a expansão da mineração e
representou, inicialmente, uma resposta à demanda gerada pelos setores urbanos
e mineradores.324 O declínio da mineração, no terceiro e quarto quartéis do século
XVIII, intensificou o processo de diversificação e conduziu a economia regional
em direção a um crescente isolamento dos mercados externos, à medida em que a
queda da produção de ouro reduzia progressivamente sua capacidade de importar.
Essa tendência está claramente refletida na arrecadação dos direitos de entra-
das. Esses impostos de importação sobre as mercadorias que entravam em Minas
Gerais eram divididos em duas grandes categorias: “as fazendas secas, que incluíam
todos os itens não-comestíveis estavam sujeitas a uma taxa fixa de 1.125 réis por
arroba, e os molhados (alimentos e bebidas) que pagavam 750 réis por cada carga
de duas até três arrobas de peso”.
Como essas alíquotas permaneceram fixas de 1714 em diante, a receita arreca-
dada reflete basicamente o volume físico das importações. A arrecadação também
era afetada, é claro, pela composição da pauta, que evoluiu no sentido da queda na
participação dos artigos molhados e do aumento das fazendas secas, que consis-
tiam principalmente em manufaturados europeus, mais dificilmente substituídos
pela produção local. Então, como a alíquota das fazendas secas era mais alta do que
dos molhados, a receita registrada dos direitos de entrada subestima o declínio da
quantidade física das importações.325
Em 1818-19, foram arrecadados 183.834 mil réis de direitos de entradas, indi-
cando que o volume das importações tinha apresentado alguma recuperação com
324 Sobre a diversificação precoce da economia mineira, ver Zemella. O Abastecimento, pp. 206-08; Singer.
Desenvolvimento Econômico, pp. 202-05; Maxwell. Conflicts and Conspiracies, pp. 87-90. Singer é
especialmente enfático ao criticar o empenho de “muitos historiadores em apresentar a economia de
Minas, no século XVIII, como sendo de quase mono-produção de ouro e pedras preciosas, datando
o surgimento das atividades agrícolas no solo mineiro apenas do fim da mineração, como atividade
substitutiva desta. Esta distorção na análise dos fatos históricos permeia toda a historiografia
brasileira e se explica pelo menosprezo com que eram encaradas as atividades de subsistência pelos
contemporâneos, cujos depoimentos chegaram até nós”.
325 A citação é de Maxwell. Conflicts and Conspiracies, pp. 84-85. Sobre os direitos de entrada, ver
também Boxer. The Golden Age, pp. 189-90.
202 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
e feriados, quando seus proprietários, fazendeiros da vizinhança, se reuniam para
a missa.327
No final do século XVIII, Minas Gerais tinha se tornado autossuficiente na
produção de alimentos e começou a exportar o excedente, principalmente para o
mercado urbano do Rio de Janeiro, mas também para a Bahia e Pernambuco. Os
viajantes do início do século XIX frequentemente encontravam tropas de mulas
carregadas de artigos mineiros a caminho dessas províncias. Ao Rio de Janeiro
eram enviados fumo, toucinho, pano de algodão, queijos, gado vacum, porcos em
pé, galinhas, couros e solas, milho, feijão, vários alimentos processados e muitas
manufaturas simples, além do café, que se destinava ao mercado externo. Para a
Bahia e Pernambuco, descendo o rio São Francisco, as exportações eram de farinha
de mandioca, feijão, milho, toucinho, carne seca, couro e rapaduras.328
As importações, que vinham principalmente do Rio de Janeiro, consistiam
basicamente de sal, tecidos e manufaturas européias, matérias primas (ferro, cobre,
chumbo, estanho) e alimentos de luxo, como vinhos e outras bebidas, azeitonas
e azeite de oliva, vinagres e presuntos – e, é claro, muitos escravos. Nenhum item
básico da dieta mineira era importado. A província era totalmente autossuficiente na
produção de seus alimentos.329
No setor manufatureiro o escopo da substituição de importações foi muito mais
limitado, mas, mesmo assim, a resposta foi bastante impressionante, para a época
e o lugar. Em vários lugares apareceram fundições de ferro, que começaram a pro-
duzir substitutos locais para as ferramentas agrícolas e de mineração anteriormente
importadas. Seu desenvolvimento foi de tal ordem que, quando a Coroa suspendeu
a proibição sobre a produção colonial de ferro, ela estava apenas se curvando diante
de um fato consumado.330
Ainda mais importante foi a vasta indústria têxtil, apoiada por um extenso
cultivo do algodão. Considerada pelas autoridades metropolitanas como uma das
327 Todos os viajantes do século XIX deixaram descrições da sonolenta vida urbana de Minas no período.
Veja, por exemplo, Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 140-41, 270; e Viagem às Nascentes,
vol. 1, p. 160.
328 Veja Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 118, 120, 148, 187; vol. 2, pp. 236, 241-48; Pohl. Viagem,
vol. 1, p. 190; vol. 2, p. 44; Eschwege. Notícias, pp. 748-49. As exportações de Minas Gerais no século
XIX são analisadas adiante, neste capítulo.
329 A única listagem detalhada das importações de Minas Gerais no começo do século XIX, que conheço,
é referente a 1818-19, e foi publicada por Eschwege em Notícias, p. 747. Veja também Pohl. Viagem,
vol. 1, p. 190; Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 187, vol. 2, pp. 236 e 241-48.
330 Zemella. O Abastecimento, p. 254.
O Vice-rei alertava que “deviam considerar que uns povos compostos de tão
más gentes, em um país tão extenso, fazendo-se independentes, era muito arris-
cado a poderem algum dia dar trabalho de maior consequência.”333 A tenaz oposi-
ção da metrópole às fábricas têxteis não impediu o crescimento da indústria têxtil
doméstica. No início da década de 1800, sua produção era grande bastante para
suprir a massa da população mineira e ainda exportar para as províncias vizinhas o
331 Martinho de Mello e Castro. Instrução para o Visconde de Barbacena, Luiz Antônio Furtado de
Mendonça, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais. Revista Trimensal de História
e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, n. 21, abril de 1844, pp. 19 e 47.
332 Relatorio do Marquez de Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando o Governo a Luiz de
Vasconcellos e Souza, que o succedeu no vice-reinado. Revista Trimensal de História e Geographia ou
Jornal do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, n. 16, janeiro de 1843, p. 457.
333 Relatório do Marquez de Lavradio, p. 458.
204 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
que pareceu a um observador contemporâneo “uma quantidade colossal” de panos
grosseiros de algodão.334
As principais linhas do desenvolvimento de Minas Gerais na segunda metade
do século XVIII são, portanto, bastante claras. A direção da mudança foi da mine-
ração para a agricultura, do urbano para o rural e, acima de tudo, de um alto grau
de especialização no ouro e dependência de fontes externas de abastecimento para
uma crescente diversificação, autossuficiência e crescimento baseados principal-
mente no mercado interno.
Os registros fiscais da capitania nos permitem construir uma medida da intro-
versão da economia mineira nesse período. Os já mencionados direitos de entradas
são um indicador do volume das importações. Os dízimos eram tributos cobrados
sobre uma ampla lista de produtos agrícolas e outros bens e serviços, com uma
única alíquota, de 10% sobre seus valores.335 Sua arrecadação, fornece, portanto,
uma medida do nível da atividade econômica doméstica. A razão entre os dois
indicadores (dízimos divididos por entradas) mostra a evolução da importância
relativa da produção interna versus importações.336 O persistente crescimento do
índice por toda a segunda metade do século XVIII indica claramente o movimento
em direção à autossuficiência e ao isolamento.
334 Spix e Martius. Viagem, vol. 1, p. 118. O desenvolvimento da indústria têxtil de algodão mineira no
século XIX é descrito mais adiante. As evidências aqui apresentadas devem ser comparadas com
a citação abaixo, de Celso Furtado, que ilustra o estado deplorável da pesquisa sobre a história
econômica de Minas: “Este conjunto de circunstâncias tornava a região mineira muito mais propícia
ao desenvolovimento de atividades ligadas ao mercado interno do que havia sido até então a região
açucareira. Contudo, o desenvolvimento endógeno, isto é – com base em seu próprio mercado – da
região mineira, foi praticamente nulo. É fácil compreender que a atividade mineratória haja absorvido
todos os recursos disponíveis na etapa inicial. É menos fácil explicar, entretanto, que, uma vez
estabelecidos os centros urbanos, não se hajam desenvolvido suficientes atividades manufatureiras
de grau inferior, as quais poderiam expandir-se na etapa subsequente de dificuldades de importação”.
Furtado. Formação Econômica, p. 86.
335 O dízimo compreendia a décima parte de todos os produtos da agricultura e da pecuária e dos
rendimentos de qualquer emprego, ofício ou negócio. Boxer. The Golden Age, p. 189.
336 A fonte dos dados é Maxwell. Conflicts and Conspiracies, pp. 147-48. As séries das receitas do dízimo
e das receitas das entradas foram suavizadas tomando-se suas médias móveis de três anos e em
seguida os dízimos foram divididos pelas entradas. Essa razão foi denominada “indice de introversão”.
Por construção, valores crescentes do índice significam que a podução doméstica se tornava mais
importante em relação às importações. Deve ser notado que, embora a arrecadação do dízimo seja
uma medida direta do produto nominal, a receita das entradas é apenas um índice das importações.
Portanto, a razão entre essas duas grandezas não mede o grau de abertura da economia. Os valores
do índice de introversão não carregam, em si, nenhum significado específico, apenas sua tendência é
significante.
70
60
50
40
30
20
1750 1755 1760 1765 1770 1775 1780 1785 1790 1795 1800
Fonte: Maxwell. Conflicts and Conspiracies, pp. 147-48. Veja a nota 336 para a definição do índice.
337 Para uma análise da economia e da política de Minas durante a primeira república (1889-1930), que
destaca sua diversificação e crescimento interno, e desenfatiza o papel do setor cafeeiro, veja Amilcar
Martins Filho. Minas e São Paulo na Primeira República Brasileira: a ‘Política Café com Leite’ (1900-
1930). Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 1978.
206 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
de chá, trigo, centeio, cevada, uvas para vinho, bichos-da-seda, cochonilhas, lhamas,
alpacas, camelos e dromedários e, como se poderia prever, resultaram, sem exce-
ção, em completos fracassos.338 Minas Gerais manteve seu caráter não-exportador.
O surgimento da lavoura do café, e seu rápido crescimento após a metade do
século não mudaram esse panorama. A área cafeeira foi desde o começo, e per-
maneceu por todo o império, um enclave plantacionista-exportador, que teve um
impacto bastante reduzido sobre o cerne da economia da província. Inferir, a par-
tir do tamanho absoluto do setor cafeeiro, que Minas Gerais era uma economia
exportadora, ou rotulá-la de “província cafeeira”, é uma generalização equivocada,
baseada em informação incompleta e superficial sobre a economia provincial.
A grande e crescente participação do café nas exportações totais de Minas tam-
bém tem sido invocada para arguir o peso dessa atividade no cenário mineiro, mas
na verdade o que os números revelam é a pequena importância das exportações no
conjunto da economia provincial. A parte não-cafeeira de Minas, que compreen-
dia, nas últimas décadas do império, cerca de 96% do território, 79% dos escravos
e mais de 80% da população livre, gerou bem menos de 30% das exportações no
período 1850-1888.339
Ao longo deste capítulo usaremos o termo exportação para designar todos os arti-
gos enviados para mercados fora da província. As exportações incluem, portanto,
tanto as vendas para outras províncias como as vendas para outros países. Importação,
por seu lado, se refere a todos as mercadorias trazidos de fora da província, sejam elas
originadas em outras províncias ou em outros países. Da mesma forma, os termos
interno e doméstico se referem sempre a Minas Gerais, e não ao Brasil.
A evolução das exportações não-cafeeiras é mais representativa do comporta-
mento exportador de Minas do que o desenvolvimento das exportações de café,
porque reflete a história da maior parte da economia provincial. O valor per capita
das exportações não-cafeeiras foi muito baixo durante todo o século. Seu cresci-
mento foi lento e inconstante em termos nominais e, em termos reais, apresentou
uma queda significativa ao longo do período estudado. Em dólares americanos as
exportações não-cafeeiras per capita diminuíram de 2,70 em 1819 para 1,71 em
1888.340 No caso de alguns produtos importantes, como porcos vivos e panos de
80
70
60
50
40
30
20
10
1884-1885
1875-1876
1878-1879
1881-1882
1869-1870
1872-1873
1860-1861
1863-1864
1866-1867
1851-1852
1854-1855
1857-1858
1845-1846
1848-1849
1839-1840
1842-1843
1888
Fonte: Aristóteles Alvim. Confrontos e Deduções, pp. 80-83
Private Operation of Railways in Brazil. New York: Columbia University Press, 1932, pp. 183-84.
341 Veja a Tabela 5.6, adiante.
208 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Para os observadores contemporâneos era perfeitamente claro que Minas não
era nem uma economia exportadora, nem uma economia de plantation. Sua ima-
gem como “província cafeeira” é uma criação dos historiadores do século XX. Louis
François de Tollenare, que viveu no Brasil de 1816 a 1818, expressa com precisão
esse ponto de vista, ao observar que,
a província mais interessante é a de Minas Gerais, que conta um milhão
de habitantes, fornece poucos gêneros para o comércio, mas produz
muitos para o consumo interno ... Concebe-se que não é só a extração de
(...) ouro que ocupa toda aquela população, e sim a pequena lavoura, que
nós europeus, acostumados a não ver nos produtos da América senão
açúcar café e algodão, desdenhamos.342
342 Louis François de Tollenare. Notas Dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil
em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1956, p. 315.
343 Saint-Hilaire. Viagem pelas províncias, vol. 2, p. 154, vol. 1, p. 86.
344 Algumas boas corografias, focalizando ou incluindo Minas Gerais no século XIX, são: Manuel Ayres
de Casal. Corografia Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Editora
Cultura, 1943 (originalmente publicada em 1817); José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Memórias
Históricas do Rio de Janeiro e das Províncias anexas à jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1948 (originalmente publicadas em 1822), vol. 8, tomo 2; J. C. R. Milliet de
A descrição que James Wells faz de São José, no coração da província, é típica
de muitos lugares de Minas, em 1873: “Não há, na verdade, nenhuma exportação
de excedentes, pois quase toda a produção é consumida localmente; alguns artigos
Saint Adolphe. Diccionário Geográfico, Histórico e Descriptivo do Império do Brasil. 2 vols. trad. Caetano
Lopes de Moura. Paris: J. P. Aillaud, 1845; H. G. F. Halfeld und J. J. von Tschudi. Die Brasilianische
Provinz Minas Gerais. Erganzungsheft Nr. 9 zu Peterman’s Geograhischen Mitteilugen. Gotha: Justus
Perthes, 1862. Para a década de 1870, veja José Joaquim da Silva. Tratado de Geographia Descriptiva
Especial da Província de Minas Geraes. Rio de Janeiro: Typografia Universal de E. e H. Laemmert, 1878.
Também muito informativo é o relatório sobre o “Estado moral e material dos diversos municípios da
província”, inserido na Falla... pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59. Os livros de Saint-Hilaire,
Spix e Martius, Pohl, Burton e Wells, listados na bibliografia, não são em formato corográfico, mas são
também muito ricos em informações sobre a economia de Minas no século XIX.
345 Deputado provincial Batista Pinto, citado por Miguel Costa Filho. A Cana de Açúcar em Minas Gerais.
Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1963, p. 216.
210 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
simples, tais como morins e estampados baratos, xales coloridos, pólvora, balas, sal,
algumas ferragens, bacalhau e vinho, são importados de Barbacena, mas o misté-
rio é saber de onde vêm os meios para pagar por eles”. A ausência de exportações,
entretanto, não significava uma prostração da economia local. Muito pelo contrá-
rio, aparentemente havia fartura e prosperidade, pois Wells registrou que “todos os
artigos de consumo local são baratos: galinhas gordas custam cerca de 8 d. e uma
dúzia ovos se compra por 1 d.; milho, legumes e verduras, e peixes de água doce são
extremamente baratos”.346 Mais para o interior, na bacia do São Francisco, o mesmo
autor comentou que mesmo o comércio interno era muito limitado:
todos produzem as mesmas coisas e sabem que, se a produção exceder
a demanda dos pequenos mercados locais, os preços deixam de ser
remunerativos. Se a colheita foi ruim, aqueles que, por sorte, têm algum
excedente disponível, são beneficiados pelos preços altos; se foi boa,
armazenam o feijão, o milho, a farinha, etc, para a estação seguinte; mas
recebem pequena recompensa por seus excedentes, já que todo mundo
está na mesma condição e não precisa de comprar ou trocar.347
O problema do transporte era, de fato, uma séria limitação para Minas Gerais.
Até bem tarde no século XIX, as principais saídas para a exportação da província
eram as acidentadas trilhas do período colonial. A única alternativa para a tropa de
212 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Fora da região cafeeira o transporte ferroviário só teve início no final dos anos
setenta. A construção teve um ritmo relativamente rápido durante a década de
1880, mas, nos últimos anos do Império, a rede ferroviária mineira ainda era extre-
mamente pequena em relação ao território provincial. Em 1883, a linha tronco da
Pedro II tinha atingido Carandaí, já bem além da fronteira do café. Em 1884, o
tráfego foi aberto até Queluz, e a construção continuou no rumo norte em direção
ao interior mineiro, alcançando Ouro Preto em 1889. A Estrada de Ferro Oeste
de Minas partiu da D. Pedro II na estação de Sítio, perto de Barbacena, rumando
para oeste, em direção a São João del Rei (1881) e Oliveira (1889). O Sul foi servido
inicialmente pela Minas and Rio Railway, inaugurada em 1884, que começava em
Cruzeiro, na fronteira com São Paulo, e chegava até Três Corações, e depois por
um ramal da E. F. Mogiana, que atingiu Poços de Caldas em 1886. Outra extensão
da Mogiana servia o Triângulo Mineiro, inaugurando o tráfego para Uberaba em
1889.350
Fica claro, portanto, que o preâmbulo da história ferroviária de Minas refletiu
a bipolaridade da economia provincial. Na Mata, o avanço dos trilhos foi alavan-
cado pela vigorosa expansão da plantation exportadora: a zona cafeeira, que não
ocupava mais do que 4% do território mineiro, detinha 55% da extensão ferroviária
total de Minas em 1884, 60% em 1887, e 50% em 1889.
No resto da província o desenvolvimento foi mais lento e muitas vezes determi-
nado por critérios não-econômicos. Comentando sobre os resultados da D. Pedro
II na região central de Minas, um engenheiro ferroviário salientou, em 1885, que
a escassez de tráfego nesta seção da linha já tinha causado consideráveis prejuízos
à companhia, e previu que sua subsequente extensão para o interior mineiro, em
construção na época, “reduziria grandemente, por muitos anos, os lucros da ferro-
via, pois o insignificante volume de tráfego terá de ser feito com um considerável
excesso de despesas sobre receitas”.351
350 As notas sobre os primórdios da malha ferroviária mineira são baseadas em Iglésias. Política
Econômica, pp. 161-67; Wells. Exploring and Travelling, vol. 2, pp. 331-43; Hastings Charles Dent. A
Year in Brazil. With notes on the abolition of slavery, the finances of the Empire, religion, meteorology,
natural history, etc. London: Kegan Paul, Trench and Co., 1886., pp. 267-72; Ricketts (Consul). British
Consulat Rio de Janeiro. Foreign Office. Miscellaneous Series, vol. 82, n. 58. Reports on Subjects of
General and Commercial Interest. Brazil. Report on the Province of Minas Geraes. 1887, p. 13; Falla...
pres. Gonçalves Chaves, 1884, pp. 93-99; Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1883, p. 75; e Relatório...
pres. Sá e Benevides, 1869, p. 23.
351 Wells. Exploring and Travelling, vol. 2, pp. 332-22. No capítulo 3 já mencionamos que as perspectivas
de tráfego de outra estrada de ferro não-cafeeira, a Minas and Rio Railway, eram também vistas com
grande pessimismo pelos contemporâneos.
352 Falla...pres. Antonio Gonçalves Chaves, 1883, pp. 37-38. A palavra doméstico está em itálicos no
original.
353 Ricketts. Report on the Province of Minas Geraes.
354 Breve Notícia do Estado Financeiro das Províncias. Tabela n°. 3, sem número de página. Para calcular
os valores per capita usamos os dados de população das províncias, agora estados, do recenseamento
de 1890.
214 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 5.4 - Brasil: Receita total e per capita dos governos geral e provinciais,
por províncias, 1886-87
Tabela 5.5 - Brasil: Valor das exportações per capita, por regiões,
1869-1873 e 1879-1882 (médias anuais, em milréis)
1869 - 1873 1879 - 1882
Exportação Índice Exportação Índice
per capita Centro-Sul = 100 per capita Centro-Sul = 100
Norte 38,0 57,9 71,2 101,2
Nordeste 21,2 32,3 15,6 22,2
Sul 39,7 60,5 26,8 38,1
Centro-Sul exceto Minas 65,6 100,0 70,3 100,0
Minas Gerais 8,5 12,9 11,9 16,9
216 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 5.7 - Minas Gerais: Valor das exportações, 1818-1884,
por produtos, em contos de réis correntes
Valor total das exportações 1.673,5 1.887,9 2.332,8 2.721,0 15.545,6 40.316,6 31.536,6
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
Tabela 5.8 - Minas Gerais: Participação dos produtos no valor total das exportações,
1818-1884, em porcentagens
Valor total das exportações 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
218 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
A composição das exportações mineiras lança ainda mais luz sobre a estrutura
da economia regional. A grande variedade da pauta de exportações não é senão o
espelho da grande diversidade da economia da província, pois, como já ressaltamos
anteriormente, tudo que se exportava era também consumido pelos mineiros. Ou,
dito de forma mais direta, os mineiros exportavam aquilo que consumiam.
As listas indicam uma agricultura, uma pecuária e uma manufatura extrema-
mente diversificadas. A pecuária não só comercializava grande quantidade de bois,
porcos e galinhas, mas também um imenso volume de derivados processados,
como queijos e toucinho, além de couros, bestas muares, cavalos, cabras, ovelhas e
lã, esses últimos em pequena escala.
O setor agrícola produzia café e fumo, largamente consumidos internamente
e exportados em grande quantidade. O açúcar e o algodão eram objeto de grande
consumo doméstico, mas só eram exportados em quantidades ínfimas. Essas duas
commodities são, sem sombra de dúvida, os dois maiores ícones da escravidão no
Novo Mundo, e sua peculiar situação em Minas Gerais será tratada adiante. A agri-
cultura era também responsável, como mostra a tabela 5.9, por uma imensa gama
de alimentos processados ou in natura, que eram parte da dieta cotidiana das popu-
lações mineiras, e eram também exportados em pequenas quantidades.
A tabela 5.10 arrola uma grande variedade de artigos manufaturados, que
engloba desde itens simples, de processamento de produtos agrícolas e extrativos,
de fabricação caseira, até produtos metalúrgicos de fabrico mais complexo. A lista
contém artigos medicinais, madeiras e artefatos de madeira, manufaturas têxteis,
produtos metalúrgicos, material de transporte, couros e artigos de couro, utensílios
diversos e materiais de construção.
Além dessas mercadorias, Minas exportava, e consumia internamente, uma
infinidade de outros itens que, por não estarem sujeitos ao imposto de exportação,
não aparecem nos registros das aduanas. Entre estes, podemos citar, por exemplo e
por curiosidade, botas, botas de montar, calçados de homens ou senhoras, sapatos
de cordovão, chinelos rasos, chinelos de talão, freios de ferro, esporas de prata, de
ferro e de latão, cabeçadas, rédeas e cilhas para aparelho de sela ou selim, cabelos e
crinas, malas, peneiras de taquara, violas, pitos ou cachimbos, canudos de pitar de
barro, e “oratórios de santos com imagens de pedra mármora polida”. Esses artigos,
juntamente com os cerca de um a dois milhões de varas de pano de Minas que eram
exportadas anualmente, e somados com o imenso consumo doméstico que se fazia
de todos eles, configuram um setor manufatureiro, simples e pré-industrial, mas
355 No ano comercial de 1818-19, 85,5% do gado, 100% dos porcos, 97,7% do toucinho e 99,9% dos queijos
que Minas exportou, foram despachados através de registros localizados no sudeste da província, na
zona da Mata ou na zona Sul. No final do período (1881-82) essas regiões exportaram: 96,2% do gado,
99,9% dos porcos, 99,1% do toucinho e 100% dos queijos.
356 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 2, p. 263. Spix e Martius, Viagem, vol. 2, pp. 174-75, também
indicam que, no sertão, a mão de obra para a criação de gado era fornecida pelos “membros da
família”. Não se deve inferir que não havia escravos nessa área. Muitas fazendas eram grandes e
diversificadas, e tinham numerosos escravos, como atesta o próprio Saint-Hilaire. Veja, por exemplo,
as páginas. 283 e 286 do trabalho mencionado acima.
220 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Uma pequena quantidade de gado em pé era enviada à Bahia, mas o principal
objeto de comércio eram os couros, porque o alto custo do sal tornava inacessível à
maioria dos fazendeiros até mesmo a produção de carne seca.
Tabela 5.11 - Minas Gerais: Valor das exportações de animais e derivados não
manufaturados da pecuária, 1818-1884, em contos de réis correntes
Total dos produtos pecuários 925 1.050 1.266 1.349 4.021 6.940 7.902
Pecuária s/ o total (%) 55,3 55,6 54,3 49,6 25,9 17,2 25,1
Pecuária s/ o total não-café (%) 56,3 68,9 70,1 68,4 70,0 79,2 81,7
Fontes, notas e metodologia: veja o Apêndice C.
No Alto Rio Grande as fazendas de gado eram muito mais diversificadas: cria-
vam bovinos e porcos para o mercado do Rio de Janeiro, e carneiros, cuja lã era
tecida em teares domésticos. Queijos e toucinho também eram produzidos em
grande quantidade. As fazendas eram geralmente extensas e possuiam escravos,
mas os fazendeiros não eram ricos: suas casas eram modestas e os plantéis de cati-
vos eram pequenos. Os proprietários e seus filhos trabalhavam lado a lado com os
vaqueiros que, nessa área, eram geralmente escravos. Apesar de serem mais orien-
tadas para o mercado que suas similares do norte, essas fazendas se caracterizavam
por um alto grau de autossuficiência: exportavam apenas parte da produção, e usa-
vam essas receitas para adquirir os artigos que não podiam produzir, principal-
mente escravos, sal e uns poucos produtos manufaturados.357
357 Uma descrição detalhada dessa área no início do século XIX está em Saint-Hilaire. Viagem às Nascentes,
vol. 1, especialmente pp. 69-81, 89, 116, 118-19, e Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais
e a São Paulo, especialmente pp. 68-69, 75, 84, 90, 92, 94, 98, 102-04. Vale a pena notar que seu
testemunho contradiz frontalmente o mito, muito difundido, da incompatibilidade entre escravidão e
criação de gado. Para excelentes comentários sobre essa questão e informações sobre outras regiões
do Brasil, veja Jacob Gorender. O Escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978, pp. 414-22.
Durante a primeira metade do século foi essa região que concentrou a produ-
ção mineira de fumo para exportação. Os principais exportadores eram Baependi,
Cristina, Aiuruoca, Campanha e as áreas circunvizinhas. Na segunda metade, o
cultivo comercial tinha se expandido para muitas partes da Mata, especialmente
Pomba e Rio Novo. A maior parte das exportações consistia de fumo em rolo, mas
Especificamente sobre o Rio Grande do Sul, veja Spencer Leitman. Slave Cowboys in the Cattle Lands
of Southern Brazil, 1800-1850. Revista de História (São Paulo) 5 (1975), pp. 167-77.
358 Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 293; vol. 2, p. 153; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 248, 304; Saint-Hilaire.
Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 374-75; Saint-Hilaire. Viagem às Nascentes, vol. 1, p. 142.
359 Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59.
222 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
havia também uma pequena indústria de cigarros que exportava para o Rio de
Janeiro.360
Apesar do considerável volume exportado, a produção de fumo não era um
grande empregador de mão de obra. Supondo que a produtividade por trabalhador
em Minas Gerais fosse comparável à observada nos Estados Unidos no século XVII
e no início do século XVIII, a produção da quantidade exportada não exigiria mais
do que 1.200 trabalhadores em 1819, 3.200 na década de 1840 e 5.100 nos anos
1880.361
Alguns produtores de fumo, especialmente na região Sul operavam em grande
escala, utilizavam escravos e eram grandes exportadores. Como regra geral, entre-
tanto, em Minas, assim como na vega cubana e em vários outros lugares da América,
o fumo não era cultivado em plantations, mas sim como um cash crop de pequenos
lavradores. Os baixos requisitos de capital, os cuidados intensivos exigidos pela
planta e a possibilidade de utilizar trabalho feminino e infantil faziam do fumo um
produto muito adequado para o cultivo em unidades de agricultura familiar.362
Outra característica notável da economia mineira no século XIX é que, em
nítido contraste com o paradigma da economia primário-exportadora, os produ-
tos exportados eram o excedente do consumo local. Com exceção do setor cafe-
eiro, nenhum cultivo objetivava primordialmente a exportação. Mesmo os setores
360 Saint-Hilaire. Segunda Viagem, pp. 120-21; Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59; Ferreira
Soares. Notas Estatísticas, pp. 65-67; Burton. Explorations, vol. 1, pp. 68, 94; Ricketts. Report, p. 6.
361 A média de diversas estimativas de produtividade apresentadas por Lewis Gray para o século XVII
e início do século XVIII nos Estados Unidos é de 1.580 libras, ou 717 quilos por trabalhador. Em
muitos casos as estimativas contemporâneas indicam que, como no Brasil, os trabalhadores também
produziram consideráveis quantidades de milho. Há várias razões para acreditar que as produtividades
provavelmente não eram muito diferentes nos dois lugares. Como mencionado acima, nos dois casos,
o tabaco era plantado em associação com o milho. Arados não eram empregados nessa cultura nos
Estados Unidos até depois do período colonial. O cultivo era feito com a enxada como no Brasil. Os
métodos de adubação eram os mesmos. A preparação das folhas não era mais avançada nos Estados
Unidos nessa época: assim como o americano, o tabaco brasileiro era air-cured e, de fato, como Gray
indica, o processo brasileiro de cura era considerado superior. Finalmente várias das estimativas de
produtividade referem-se claramente ao tabaco cultivado em pequenas fazendas, como era o caso em
Minas. Veja Lewis Cecil Gray. History of Agriculture in the Southern United States to 1860. Gloucester,
Mass.: Peter Smith, 1958, vol. 1, pp. 215-19.
362 Segundo a descrição dada em Franklin Knight. Slave Society in Cuba, pp. 5-6, a vega de tabaco cubana,
antes da revolução do açúcar, deve ter sido muito parecida com a fazenda de fumo mineira. Eram
pequenas, com poucos escravos e os proprietários trabalhavam lado a lado com os cativos. Para o
caso mineiro ver a descrição de Saint-Hilaire, do sul de Minas, nos lugares mencionados na nota 358
acima. Para outras evidências de que o cultivo de tabaco era pequena lavoura e empregava mão de
obra escrava veja Elemento Servil. Parecer e Projecto de Lei apresentado à Câmara dos Srs. Deputados
na secção de 16 de agosto de 1870 pela Commissão especial nomeada pela mesma Câmara em 24 de
maio de 1870. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1870, p. 51.
363 Sobre essa ilação veja, por exemplo, Antonio Barros de Castro. A Herança Regional no Desenvolvimento
Brasileiro. In: Antonio Barros de Castro. Sete Ensaios sobre a Economia Brasileira. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 1971, especialmente p. 68; e Celso Furtado. Formação Econômica do Brasil.
224 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
era indipensável na alimentação das mulas e, portanto, no funcionamento do sistema
de transportes, e também como ração de cavalos, porcos e galinhas. 364
Era a produção desses artigos, juntamente com os já citados algodão, fumo e
mamona (cujo azeite era universalmente usado em lamparinas, para iluminação),365
além do fabrico de algumas manufaturas simples, também para consumo local – ou
seja, a produção das necessidades cotidianas de sua grande população – que consti-
tuía a atividade do grosso da força de trabalho provincial, escrava ou livre.
364 Todos os viajantes são pródigos em detalhes sobre a dieta mineira. Alguns descreveram quase todas
as refeições que fizeram. Para uma amostra de descrições, que cobrem dos anos 1810 aos anos 1870,
e registram semelhanças notáveis, veja Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, p. 186; Burmeister.
Viagem, p. 253; Burton. Explorations, vol. 1, pp. 104-05; Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 186.
365 Sobre o uso universal de óleo de mamona para iluminação, como medicamento emético e purgativo,
e o cultivo da mamoneira em Minas, ver: Spix e Martius. Viagem, vol. 2, pp. 140-41; Pohl. Viagem, vol.
1, pp. 237-40, vol. 2, pp. 287, 305; Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 237-28, vol. 2, p. 36.
366 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 204-07. A única maneira de dar uma idéia adequada da
disseminação do cultivo de mantimentos básicos em Minas é remeter o leitor a todos os relatos dos
viajantes, todas as corografias e toda a literatura descritiva mencionada. Como um pobre substituto,
veja a seção sobre a fazenda mineira abaixo.
367 Saint-Hilaire. Viagem pelo Distrito dos Diamantes, pp. 186, 207; Viagem às Províncias, vol. 1, p. 230;
Spix e Martius. Viagem, vol. 1, p. 293; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 297-312, 342, 362.
368 Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 256, 259-61, 272, 274, 281.
369 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 289, 337-39; vol. 2, pp. 16, 98: 216 passim, Spix e
Martius. Viagem, vol. 2, pp. 141, 148-50; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 297-312, 342, 362.
226 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
algodão um trabalhador podia cuidar da mesma área em milho e feijão.370 Por essa
razão, o algodão era extremamente adequado como um cash crop em uma agricul-
tura camponesa. Na região de Minas Novas, mesmo no auge do surto algodoeiro,
esse artigo era cultivado principalmente por agricultores que não possuiam escra-
vos ou tinham plantéis muito pequenos. Não havia plantadores ricos nessa área.371
Em 1812 havia somente mil escravos em todo o termo, que constituíam apenas
4,1% de sua população.372
Décadas mais tarde, Richard Burton observou que, em Minas, o algodão era
uma “lavoura de pobre”373 Nos anos 1870, James Wells visitou uma das maiores
fábricas têxteis da província e registrou que ela “recebia algodão cru, sem benefi-
ciamento, entregue na porta do estabelecimento por sitiantes que o cultivavam em
pequenas roças no vizinho vale do Rio das Velhas.”374
A revolta dos escravos no Haiti criou a primeira cotton famine na Inglaterra
e abriu grandes oportunidades no mercado mundial de algodão. Em 1790, ano
imediatamente anterior a ela, a colônia francesa era o maior produtor do mundo,
e detinha 24% do mercado inglês. O colapso desta oferta e a avidez da demanda
inglesa, em plena revolução industrial, geraram uma alta sustentada do preço que
se manteve em níveis sem precedentes por mais de duas décadas, oferecendo forte
estímulo a outros produtores, entre eles o Brasil. No período 1816-1820 o país tinha
se tornado o segundo maior exportador do mundo, com 28% do mercado inglês,
abaixo apenas dos Estados Unidos, que detinham 49%, acima da Índia, que tinha
14,1% e do Caribe Britânico, com 9%. Foi capaz de manter a segunda colocação
até 1826-1830, mas com uma participação declinante, por não conseguir competir
com a produção norte-americana, que nessa época já se tornara completamente
hegemônica, com quase 70% das importações inglesas.
370 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 339-40. Pohl. Viagem, vol. 2, p. 302, também apontou a
facilidade do cultivo de algodão, mas observou o emprego de escravos.
371 Para evidências de que o algodão era principalmente uma cultura camponesa no início do século
XIX, veja: Spix e Martius. Viagem, vol. 2, pp. 166-67; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 272, 342; Saint-Hilaire.
Viagem às Províncias, vol. 1, p. 350, vol. 2, pp. 17, 41, 128, 159, 199, 216. Os mesmos autores também
indicam algum emprego de escravos em alguns lugares.
372 Spix e Martius. Viagem, vol. 2, pp. 166-67.
373 Burton. Explorations, vol. 1, p. 106.
374 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 124. Para outras evidências de que o algodão não era
geralmente uma cultura de plantation em outras partes do Brasil, veja: Branner. Cotton in the Empire,
p. 36; Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, p. 47; Andrade. A Terra e o Homem, pp. 150-55, e
Cuniff. The great Drought.
375 Sobre a evolução do mercado internacional de algodão e a participação brasileira nesse período
veja Gray. History of Agriculture, vol. 2, p. 693. Segundo Gray, nesse período o algodão brasileiro era
considerado o segundo melhor do mundo, só inferior ao produto egípcio em termos de qualidade e
comprimento da fibra. Informações sobre o comércio algodoeiro de Minas Novas, sua importância nas
exportações mineiras, seu conceito entre os comerciantes ingleses de algodão, as rotas comerciais,
etc., podem ser encontradas em Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 120, 148; vol. 2, pp. 140-150,
164; Saint-Hilaire. Viagens às Províncias, vol. 2, pp. 16, 199. Sobre a participação do algodão nas
exportações mineiras, veja as tabelas 5.6, 5.7 e 5.8, acima.
228 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
O boom de exportação de algodão mineiro teve vida extremamente curta.
Começou, segundo Saint-Hilaire, por volta de 1808, e no final da década de 20
já estava completamente encerrado. As razões dessa abrupta queda são claras. O
enorme crescimento da produção norte-americana, bem como das exportações
do Egito – que por suas características competia mais diretamente com o produto
brasileiro – deprimiu os preços no mercado internacional, tornando o algodão
mineiro inframarginal. De quase 35 centavos de dólar por libra em 1818, o preço
do algodão despencou para cerca de 11 centavos em 1825. Entre 1829 e 1831 per-
maneceu abaixo de 10 centavos por libra e, depois de uma curta recuperação (para
cerca de 15 centavos, nos meados dos anos trinta), retomou a tendência declinante,
chegando a 5 centavos em 1842 e 1844. Entre 1845 e 1860 oscilou entre 5 e 12 cen-
tavos por libra.376
A região Nordeste conseguiu manter o volume de suas exportações pratica-
mente inalterado até os anos 1860, mas o algodão de Minas, muito onerado pelos
custos de transporte, ficou inteiramente excluído do mercado internacional.377 O
argumento, sugerido por Luís Amaral, de que a queda das exportações mineiras foi
causada pela substituição do cultivo do algodão pelo de café durante os anos 1820,
não tem sustentação lógica nem empírica.
Como vimos no capítulo 3, nos anos 1820, o cultivo do café era totalmente
incipiente. Até o final dessa década, as exportações de café não passavam de uns
poucos milhares de arrobas, que empregavam umas poucas centenas de escravos.
Além disso, o algodão e o café não competiam nem por terras, nem por capitais, e
nem por mão de obra. O algodão era uma cultura camponesa, de pobre, não exigia
capital, e não utilizava trabalho escravo. Ao longo de todo o século, a produção
comercial de café ocorreu quase exclusivamente (mais de 99%) nas zonas da Mata e
Sul, enquanto a produção de algodão para o mercado externo acontecia na metade
norte, especialmente na região de Minas Novas. Algodão e café, em Minas Gerais,
nunca competiram por nenhum insumo ou fator de produção.378
376 Estes são os preços de exportação do algodão americano de fibra curta, dados por Gray. History of
Agriculture, vol. 2, p. 697. Os preços do algodão brasileiro possívelmente diferiam um pouco, mas a
tendência era a mesma.
377 As exportações brasileiras de algodão oscilaram sem uma tendência definida entre 12 mil e 17 mil
toneladas desde o início da década de 1820 ao final dos anos 1850. Veja Stein. The Brazilian Cotton
Manufacture, p. 198.
378 Luis Amaral. História Geral da Agricultura, vol. 2, p. 235. Ele se baseia no comentário de Daniel de
Carvalho, Notícia Histórica, p. 17, de que é “curioso” notar o contraste entre a queda das exportações
algodoeiras e o aumento nas de café. Antonio de Castro, em Sete Ensaios, p. 45, repete esse erro sem
críticas.
379 Estado Moral, em Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59.
380 Burmeister. Viagem, p. 169, 234.
381 Silva. Tratado de Geographia, pp. 234-5; Relatório...pres. Rebello Horta, 1879, pp. 47-48; Falla...pres.
Gonçalves Chaves, 1883, pp. 37-38.
230 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
seguinte, para tornar-se, provavelmente, uma das principais atividades manufatu-
reiras do Brasil durante a primeira metade do século XIX.
Mesmo no auge do boom exportador de algodão, uma grande parte da produ-
ção era manufaturada localmente e Minas já era um grande exportador de tecidos.
A queda do preço internacional do algodão bruto estimulou ainda mais a manu-
fatura local . Em 1836 um observador registrou que “nas partes mais remotas da
província de Minas não vale a pena colher o algodão para exportação (...) sua fiação
e o fabrico de panos grosseiros, para consumo doméstico e para exportação para o
litoral torna-se, portanto, quase uma questão de necessidade”.382
Uma grande quantidade de pano e outros produtos têxteis de algodão eram
exportados, desde o século XVIII até, pelo menos, o final da década de 1860, espe-
cialmente para o Rio de Janeiro, de onde era distribuído para uma grande área.
Pano de Minas era uma marca forte, e o produto tinha mercados em várias pro-
víncias. Era largamente consumido nas fazendas de café do Vale do Paraíba flu-
minense: podia ser encontrado rotineiramente no comércio local de Vassouras e,
nos inventários post-mortem de alguns fazendeiros do município encontram-se
grandes estoques desse produto. Seu uso era tão comum que “encontrar fiapos do
‘algodão de Minas’ em algum lugar, era sinal certo de que escravos tinham estado
na vizinhança”. Os autores de dois manuais de agricultura recomendavam o tecido
mineiro para vestuário dos escravos. Carlos Augusto Taunay, em seu Manual do
Agricultor Brasileiro, publicado em1839, prescreve que “seria para desejar… que
tudo quanto se consome em uma fazenda saísse dela, e mesmo o pano de algodão
de que se vestem os pretos. Todavia, nem todos os fazendeiros têm as comodidades
de mandarem fiar e tecer em casa o pano de seu uso; mas os tecidos de algodão
de Minas são baratos e próprios para a escravatura”. O Padre Antonio Caetano
da Fonseca, vigário da Freguesia de São Paulo do Muriaé, proprietário de terras
e de escravos, também redigiu um manual de orientação agrícola, o Manual do
Agricultor dos Generos Alimentícios, publicado em 1863, no qual recomendava
que “cada escravo deveria receber anualmente duas camisas, duas calças de pano
grosso de Minas e dois casacos de lã.” Segundo observadores contemporâneos, o
mercado do pano de Minas chegava até o extremo sul do Império, e até mesmo a
Buenos Aires nos primeiros anos do século. Saint-Hilaire anotou que, em 1816,
382 Johann Jakob Sturz. A Review, Financial, Statistical and Commercial of the Empire of Brazil and its
Resources, together with a suggestion of the expediency and mode of admitting Brazilian and other
foreign sugars into Great Britain for refining and exportation. London: Effingham Wilson, 1837, pp.
112-13.
383 Stanley Stein. Vassouras, pp. 85, 180-81; C. A. Taunay. Manual do Agricultor Brazileiro. Rio de Janeiro:
Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve Comp., 1839, p. 10; Antonio Caetano da
Fonseca. Manual do Agricultor dos Generos Alimentícios ou Methodo da Cultura Mixta desses Gêneros
nas Terras Cansadas. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1863, p. 103; Augusto de Saint
Hilaire. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia/ EDUSP, 1974, p. 75;
Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 120, 148, 187.
232 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
panos de algodão, cobertores, colchas e toalhas que são consumidos localmente ou
exportados para o Rio”.384
Apesar do grande volume das exportações, o grosso da produção doméstica
de pano era consumido localmente. Em 1828, o tecido artesanal produzido e con-
sumido dentro da província foi estimado em 5,3 milhões de metros,385 enquanto
outros 2,1 milhões foram exportados, apenas para o Rio de Janeiro. A produção total
da província atingiu, portanto, segundo esta estimativa, pelo menos 7,4 milhões de
metros de pano de algodão, não contando outros produtos têxteis como toalhas,
cobertores, linha e outros, além de tecidos de linho e de lã, para os quais não temos
dados. Para avaliar o significado desse número, basta notar que ele é quase o dobro
da produção total de todas as fábricas têxteis brasileiras quarenta anos mais tarde,
em 1866, e bem superior à produção de todas as fábricas mineiras desse setor no
início da década de 1880. A produção mineira de 1828 foi equivalente a quase 20%
da média anual de importações brasileiras de tecidos ingleses de algodão nos cinco
anos de 1827 a 1831.386 A manufatura doméstica de algodão cresceu continuamente
durante a primeira metade do século. Doze dos vinte e oito municípios cobertos
pelo levantamento incompleto citado acima são arrolados como produtores têxteis,
incluindo vários não citados por fontes anteriores.387
Os primeiros viajantes registraram que o pano de Minas tinha a reputação de
ser forte e durável, mas observaram que era um tecido grosseiro, adequado somente
para o consumo dos escravos e dos camponeses pobres. Existem, entretanto, evi-
dências de que isso mudou com o passar do tempo: fontes posteriores indicam uma
considerável diversificação e registram o fabrico de panos de melhor qualidade,
que eram usados na confecção de roupa de baixo e roupas para homens. Algumas
fontes chegam a afirmar que a produção de alguns lugares competia em qualidade
com os melhores panos importados. Quando o Conselho da Província se reuniu,
em 1831, alguns deputados se vestiam com o pano de Minas. Mais tarde, Martinho
384 Saint-Hilaire. Viagem ao Distrito, p. 75, e Viagem às Províncias, vol. 2, pp. 84, 212, 216. Ver também,
vol. 1, pp. 230, 337; vol. 2, pp. 73, 98, 199 e Pohl. Viagem, vol. 1, pp. 201-02, 229. As técnicas da
indústria têxtil doméstica são descritas por Carvalho. Notícia, pp. 22-25.
385 Sturz. A Review, p. 111.
386 Branner. Cotton, p. 41; Ricketts. Report, p. 8; Sturz. A Review, pp. 104-05. De acordo com essa última
fonte, entre 1827 e 1831 o Brasil importou uma média anual de 40,7 milhões de metros de tecido
de algodão da Inglaterra. De acordo com Branner, que cita um relatório oficial, a produção total de
algodão industrial no Brasil em 1866 foi de 3.944.600 metros.
387 Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59. Os municípios arrolados como produtores de
tecido de algodão são: Queluz, Piranga, Barbacena, Sabará, Três Pontas, Aiuruoca, São João del Rei,
Oliveira, Caldas, Pium-i, Araxá e Montes Claros.
388 Silva. Tratado, pp. 56-77, passim; Iglésias. Política Econômica, p. 106; João Dornas Filho. Aspectos da
Economia Colonial. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1959, p. 169; Carvalho. Notícia, pp. 21-22.
389 Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, p. 4.
390 Tavares Bastos. A Indústria Manufatureira e as Tarifas Protetoras. In: Cartas do Solitário, p. 432.
391 Visconde de Taunay. A Marcha das Forças. São Paulo: Weisflog Irmãos, s.d., p. 105, citado por Dornas
Filho. Aspectos da Economia Colonial, p. 169.
392 Relatório...pres. Andrade Figueira, 1869, p. 37, citado por Iglésias. Política Econômica, p. 107.
393 Burton. Explorations, vol. 1, pp. 133-34, 157. A expressão passe-temps está em francês no original.
394 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, pp. 100, 104, 131.
234 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
informações valiosas. Na rubrica “profissões manuais”, a categoria de “operários em
tecidos” é certamente uma denominação vaga, por não discriminar trabalhadores
fabris de artesãos, ou assalariados de autônomos. Mas indica, com certeza que os
indivíduos recenseados nesta categoria eram produtores de tecidos. Como se pode
ver na tabela 5.16, a distribuição desses “operários” entre as províncias era extre-
mamente desigual, e Minas detinha, sozinha, mais indivíduos classificados como
trabalhadores têxteis, do que todas as outras províncias somadas.
O censo não especifica que as mais de 70 mil pessoas que tinham esta ocupação
em Minas Gerais trabalhavam na manufatura doméstica de algodão, mas essa é a
única possibilidade. Em 1873, o setor têxtil industrial mineiro tinha, no máximo,
três fábricas que, conjuntamente, não empregavam mais do que umas duzentas
pessoas. Assim, em Minas, a quase totalidade dos “operários em tecidos” estava
necessáriamente produzindo pano artesanal. Isso sugere que, apesar de já existirem
vários estabelecimentos têxteis fabris em outras províncias, a província mineira
continuava sendo um empório importante de tecidos para os pobres e escravos e,
embora não tenhamos obtido dados concretos para o restante da década, provavel-
mente o pano de Minas continuava sendo exportado em larga escala. Em Minas,
como no resto do país, essa era uma ocupação sobretudo de gente livre, mais pre-
cisamente, de mulheres livres.
Tanto em Minas, como nas outras províncias, as pessoas livres representavam
mais de 90% dessa categoria ocupacional e, entre estas mais de 90% eram do sexo
feminino. Isso está perfeitamente alinhado com as observações de cronistas da
primeira metade do século, sugerindo que a composição da força de trabalho da
manufatura têxtil se manteve basicamente inalterada.
395 O Recenseamento de 1872 arrolou 614. 945 mulheres livres com idades entre 11 e 60 anos. As 282.765
listadas como “sem profissão” certamente incluíam mulheres fora das idades ativas, mas também
incluíam muitos milhares em idade de trabalhar. Lembre-se ainda que a fiação era um trabalho e
mesmo um desenfado comum entre pessoas muito idosas ou muito jovens.
236 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 5.18 - Brasil e Minas Gerais, por regiões: Operários em tecidos, 1872
Regiões Operários em tecidos Municípios Total de
Livres Escravos Total c/ operários municípios
396 Silva. Tratado, pp. 41, 56-177 passim. Os municípios citados como produtores de tecido doméstico são:
Queluz, Barbacena, Bonfim, São João del Rei, São José del Rei, Lavras, Oliveira, Pitangui, Bonsucesso,
Tamanduá, Campo Belo, Formiga, Pium-i, Araxá, Patrocínio, Bagagem, Uberaba, Paracatu, Passos,
Sabará, Aiuruoca e Pará.
397 Carvalho. Notícia, pp. 21-22.
398 Iglésias. Política Econômica, pp. 106-08; Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, pp. 212-15.
399 Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1883, p. 41; Ricketts. Report, p. 8.
400 Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1883, pp. 40-44; e Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1884, p. 72.
401 Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1884, p. 74.
238 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
188 mil metros, cerca de 3% da produção provincial de 6,2 milhões de metros.
Provavelmente toda essa exportação consistia de pano artesanal.402
Não há dúvida a respeito do emprego de escravos nas primeiras fábricas, mas
sem uma pesquisa mais aprofundada não é possível determinar a extensão de sua
utilização no início da fase fabril da indústria têxtil mineira.403 O trabalho escravo
participava da manufatura doméstica mas, aparentemente, não tanto nas fábri-
cas instaladas nos anos setenta e oitenta. O único caso seguro é o da fábrica São
Sebastião, que, como mencionado acima, utilizava extensamente o trabalho de
ingênuos.404 Entretanto, tudo indica que as fábricas se apropriaram de outra fonte
de trabalho de facto compulsório, talvez até mais barato e mais cruel que o pró-
prio trabalho escravo: todas os seis estabelecimentos que tiveram a natureza de sua
força de trabalho explicitada registraram o emprego de crianças, órfãos e “meninos
desvalidos”.405
402 Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1883, pp. 38, 30-33; Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, p. 72.
403 Veja Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, pp. 35, 51, 53, 55, 61.
404 Veja a nota 402, acima. De acordo com a lei Rio Branco, ou do Ventre Livre, de 28 de setembro de
1871, ingênuos eram os filhos de mães escravas nascidos a partir daquela data. Não eram escravos,
mas, quando atingiam a idade de 8 anos os senhores de suas mães tinham a opção de entregá-los
ao Estado ou utilizar seu trabalho até completarem 21 anos. Para todos os efeitos o trabalho dos
ingênuos era tão compulsório como o dos outros escravos;
405 Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1883, pp. 41-44 e Falla...pres. Gonçalves Chaves, 1884, pp. 72-74.
406 Sobre isto veja toda a literatura de descrição e viagem mencionada neste capítulo. Por exemplo, veja:
Spix e Martius. Viagens, vol. 1, pp. 279; vol. 2, p. 194; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 284-85; Saint-Hilaire.
Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 122, 327-28; Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59;
Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 202.
240 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
As estimativas disponíveis do número de engenhos em Minas são incompletas e
pouco confiáveis, mas não deixam margem a nenhuma dúvida. O número de enge-
nhos era enorme, e a atividade era disseminada por todo o território. A estrutura
e a escala da produção de cana e derivados em Minas eram diferentes de outras
regiões produtoras, mas mesmo assim a comparação do número de unidades é
impressionante.
A Bahia tinha somente 869 engenhos em 1875. Em Pernambuco, o mais impor-
tante produtor brasileiro, seu número nunca chegou a dois mil no século XIX.
Durante os anos 1860, a província tinha 1.672 engenhos que produziam, em média,
33,4 toneladas de açúcar cada um. Na safra de 1860, Cuba tinha 1.318 engenhos,
com uma produção média de 391,3 toneladas por engenho.407
Diferentemente do Nordeste, e mesmo das províncias do Rio de Janeiro e de São
Paulo, em Minas nunca existiu um setor de monocultura açucareira. Os engenhos
de cana não eram, como em várias outras partes do Brasil e da América, estabeleci-
mentos especializados na produção de açúcar, mas sim, em geral, apenas um entre
os vários equipamentos da fazenda diversificada, como a roça de milho, a tenda do
ferreiro, o engenho de farinha, ou o curral de gado. Eram muito numerosos, mas,
em geral, pequenos, e muitos não produziam açúcar, concentrando-se no fabrico
de rapadura e de cachaça.
Eram muito atrasados tecnologicamente, “the simplest expression of a
mill”, nas palavras de Richard Burton. A maioria era tocada por bois e durante a
primeira metade do século todos ainda empregavam cilindros verticais de madeira.
A primeira moenda com cilindros horizontais revestidos de ferro só foi instalada
em 1843. Com o desenvolvimento da indústria metalúrgica, os cilindros de ferro,
movidos por força hidráulica – “engenhos de água” – tornaram-se mais comuns.
Em 1867, o mesmo Burton registrou que as antigas moendas verticais de madeira
eram “cada vez mais obsoletas”, mas não tinham desaparecido.408
Os engenhos mineiros não precisavam ser eficientes porque não estavam com-
petindo com ninguém, nem mesmo entre si. A produção de açúcar era consumida
407 Nas grandes regiões exportadoras de açúcar, a concorrência eliminava os engenhos pequenos e
ineficientes. Os dados são de: Costa Filho. A Cana de Açúcar, p. 348; Eisenberg. The Sugar Industry
in Pernambuco, p. 15, 124; Manoel Moreno Fraginals. The Sugarmill: The Socio-Economic Complex of
Sugar in Cuba 1760-1860, trad. Cedric Belfrage. New York: Monthly Review Press, 1976, p. 84. Para
uma discussão sobre o tamanho dos engenhos mineiros veja o capítulo Microengenhos, de Costa
Filho, pp. 347-56.
408 Burton. Explorations, vol. 2, pp. 40-41; Costa Filho. A Cana de Açúcar, pp. 246-47. Sobre a tecnologia
do açúcar em Minas e sua evolução veja o capítulo de Costa Filho, Tecnologia, pp.237-249.
409 Para depoimentos sobre a natureza local da produção de açúcar em Minas em diferentes anos ao
longo do século XIX, veja Spix e Martius. Viagem, vol. 1, p. 279; Saint-Hilaire. Viagem às Províncias,
vol. 1, pp. 327-38; Falla...pres. Quintiliano José da Silva, 1846, pp. 28-59; Burmeister. Viagem, p. 334;
Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. 202; Ricketts. Report, p. 6.
410 Veja as fontes na nota 407, acima.
242 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
província. Vários outros foram projetados, mas não foram construídos antes do fim
do Império.
Entre todos que efetivamente entraram em operação nesse período, somente
o de Rio Branco se credenciou, pela capacidade instalada, a receber o incentivo
governamental de garantia de juros sobre o capital investido. Os outros eram técni-
camente modernos, mas de dimensões modestas. Aracatí, Piranga e Vau-açu dei-
xaram de funcionar poucos anos depois de sua inauguração e o próprio Rio Branco
teve problemas financeiros desde o começo.411
É muito interessante notar que mesmo a instalação dos engenhos centrais
não mudou o caráter não-exportador da indústria açucareira mineira. Em 1885,
quando a Assembleia Provincial debatia uma emenda que isentava de impostos
o açúcar exportado e aumentava a taxação sobre o importado, um parlamentar
observou que as duas medidas eram inteiramente inócuas. “Não temos exportação
de açúcar”, disse o deputado Barbosa da Silva, acrescentando que se havia impor-
tação, esta era insignificante.412 No mesmo ano, o presidente da província relatou à
Assembleia que
a exportação deste produto é de pequena escala.Temos apenas funcio-
nando o Engenho Central Rio Branco, e os outros pequenos engenhos
dos fazendeiros, que já são tributados conforme o motor, unicamente
produzem para o consumo da província. Entende o diretor da Fazen-
da que o imposto sobre os engenhos centrais deve recair sobre a sua
produção anual, pois que, na provável hipótese de que seja também
consumida somente na província, ficarão esses mesmos engenhos sem
contribuição alguma.413
A INDÚSTRIA DO FERRO
O ferro era um dos produtos mais essenciais tanto para os agricultores como
para os mineradores. No início da colonização todo o suprimento necessário tinha
que ser importado da Europa, chegando a Minas com preços exorbitantes, por causa
dos altos custos de transporte e das pesadas taxas de importação. Pode parecer
411 Todas as informações sobre os engenhos centrais mineiros usadas aqui são de Costa Filho. A Cana de
Açúcar, pp. 377, 385-86.
412 Deputado provincial Antonio Joaquim Barbosa da Silva, citado por Costa Filho. A Cana de Açúcar, pp.
216-17.
413 Falla...pres. Alves de Brito, 1885, p. 22.
414 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 340-41. Para exemplos de pequenas fundições observadas
pelos primeiros viajantes nas fazendas espalhadas por toda Minas, veja Saint-Hilaire. Viagem às
Nascentes, vol. 1, p. 134; Viagem, vol. 2, p. 283.
415 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 342.
416 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 342.
244 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
mercados locais.417 Pohl e Freireyss também registraram muitas fundições peque-
nas em vários lugares.418
Após seu retorno à Europa, no início dos anos vinte, Eschwege se vangloriava
de que, graças a seus esforços, “o fabrico de ferro tinha se desenvolvido em toda a
província (...) Cerca de trinta fundições tinham se estabelecido, cada uma das quais
produzia de 100 a 400 arrobas por ano.”419
A maior parte das fundições era pequena, mas algumas atingiram uma dimen-
são considerável. As Forjas do Girau, perto de Conceição, tinham oito fornos e
empregavam 25 trabalhadores quando foi visitada por Saint-Hilaire. Vinte anos
mais tarde ainda estavam muito prósperas, “produzindo toda espécie de imple-
mentos usados no país”, de acordo com Gardner. A produção era de 100 arrobas
por dia e todos os equipamentos eram movidos a água. O proprietário tinha pla-
nos para dobrar a capacidade da planta.420 A fábrica do Bonfim, fundada em 1815,
entre Diamantina e São João Batista, foi descrita como o mais belo estabelecimento
industrial de toda a província. Tinha uma força de trabalho de 80 pessoas e produ-
zia “ótimos machados, enxadas, facas e ferraduras”, que eram comercializados nas
regiões de Diamantina e Minas Novas.421
As fundições mais importantes da década de 1810 foram a Real Fábrica de
Ferro do Morro do Pilar, fundada em Conceição, pelo Intendente dos Diamantes,
Ferreira Câmara, e a Fábrica Patriótica ou Fábrica de Ferro do Prata, construída em
Congonhas do Campo, por Eschwege. Os projetos dessas duas empresas revelam
concepções diferentes sobre a economia mineira, e o contraste entre seus destinos
oferece insights interessantes sobre a província.
Câmara tinha mercados externos em mente: sua fábrica foi projetada com a
intenção de abastecer não somente Minas Gerais, mas também os arsenais do Rio
de Janeiro e da Bahia e até mesmo exportar para outros países. Essas considerações
foram determinantes na definição da localização e da escala da planta. O plano
incluia a abertura de um canal que, ligando a fábrica ao rio Doce, permitiria o
escoamento da produção até o litoral, e daí para o mundo.
417 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 230-40, 247, 250, vol. 2, p. 21.
418 Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 436-37; Freireyss. Viagem, p. 150.
419 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 442. Ver também seu Notícias e Reflexões, pp. 757-58.
420 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 249-50; Gardner. Viagem, pp. 399-400. Saint-Hilaire
afirma que as Forjas do Girau se localizavam perto de Itabira, enquanto Gardner as coloca perto de
Conceição.
421 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 2, pp. 235-37; Saint-Adolphe. Diccionario, vol. 1, p. 151.
422 As fontes para a história da fábrica de ferro do Morro do Pilar são: Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2;
Eschwege. Notícias, p. 757; Spix e Martius. Viagem, vol. 2, pp. 91-92; Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 369-72;
Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 259-63; Marcos Carneiro de Mendonça. A Economia
Mineira no século XIX. Primeiro Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora da UMG, 1957.
423 Eschwege. Pluto Brasiliensis, pp. 436-444.
424 Sobre a Fábrica do Prata ver: Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 418-38; Eschwege. Notícias, p.
757; Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 368-69; Saint-Hilaire. Viagem ao Distrito, pp. 170-72.
425 Mendonça. A Economia Mineira, pp. 133-34; Halfeld und Tschudi. Die Brasilianische Provinz, p. 22;
Dornas Filho. O Ouro das Gerais, pp. 188-209.
246 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Ao visitar a Saint John del Rey, em Morro Velho, em 1867, Ricard Burton obser-
vou que as cabeças de pilão importadas da Inglaterra eram quatro vezes mais caras
e que nenhuma durava mais que as revestidas com “chapas de ferro de Minas”,
fornecidas por Monlevade.426 A produção da província foi estimada, em 1815, em
cinco mil arrobas de ferro, que supriam mais de 70 por cento do seu consumo
total.427
Segundo uma memória produzida por Monlevade, a pedido do presidente da
província, em 1853, somente na área entre Ouro Preto e Itabira, existiam “84 ofici-
nas onde se funde o ferro, sem contar as numerosas tendas onde se elabora o ferro
comprado nas fábricas, as quais, entre forros e cativos, empregam ao menos duas
mil pessoas e produzem anualmente de 145 a 150 mil arrobas de ferro [2.175 a
2.250 toneladas]”.428 Em 1864, o número de fundições foi calculado em 120, produ-
zindo 1.550 toneladas, e em 1876, estimou-se que eram 110, com uma produção de
três mil toneladas.429 Em 1883 foram arroladas, “no centro da província”, 75 fábricas
de ferro, que produziam entre 1.500 a 1.600 toneladas por ano.430
Toda a produção mencionada por Monlevade era consumida dentro de Minas,
“em parte já reduzido a obras, e o restante é vendido e disseminado por toda a pro-
víncia, principalmente ao norte e ao oeste”. Ou seja, seu mercado abrangia toda a
região central, onde se localizava a maioria das fundições, mas, “ao sul ele chega até
Barbacena, onde se vende em concorrência com o ferro estrangeiro”, afirma o fran-
cês, que prossegue dizendo que era a produção local que atendia às necessidades
dos mineiros: “quase se pode afirmar que se não houvesse no país essa produção de
ferro barato para suprir a mineração de ouro e diamantes, a agricultura, etc., etc.,
estaria esta província quase abandonada”.431
Escravos eram extensamente empregados em todas as fundições, grandes ou
pequenas. Metade dos trabalhadores das Forjas do Girau eram cativos. Em Bonfim,
426 Burton. Explorations, vol. 1, p. 255. A expressão chapas de ferro está em português no original. Burton
visitou a siderúrgica de Monlevade e a descreveu nas páginas 298, 304-306, do mesmo volume.
427 O cálculo se deve a Eschwege, citado em Dornas Filho. O Ouro das Gerais, p. 172.
428 João Antônio de Monlevade. Memória anexa ao Relatório que ao Ilmo. e Exmo. Sr. Desembargador
José Lopes da Silva Viana, muito digno 1º. Vice-Presidente da Província de Minas Gerais, apresentou
ao passar-lhe a Administração, o Presidente Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. Ouro Preto:
Typographia do Bom Senso, 1854. Anexo S3, p. 1.
429 Dornas Filho. O Ouro das Gerais, p. 206; Dent. A Year in Brazil, p. 264.
430 Iglésias. Política Econômica, p. 97.
431 Monlevade. Memória, p. 1; Mendonça. A Economia Mineira, pp. 133-34; Carvalho. Formação Histórica,
p. 27.
A FAZENDA MINEIRA
Durante o século XIX a grande maioria dos mineiros vivia e trabalhava no
campo. Isso é especialmente verdade no que diz respeito aos escravos: a única dis-
tribuição conhecida desta população por situação de domicílio (urbano ou rural),
mostra que no último ano do regime escravista somente 4,9 % dos cativos mora-
vam nas cidades e vilas da província.437
432 Saint-Hilaire. Viagem às Províncias, vol. 1, pp. 249-50; vol. 2, pp. 235-37.
433 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 421-22, 428; Freireyss. Viagem, p. 150.
434 Pohl. Viagem, vol. 2, pp. 369-72; Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 351, 356, 358. A citação é do
mestre fundidor alemão Schonewolf, que trabalhou no Morro do Pilar, reproduzida por Eschwege.
Dados sobre as despesas da fábrica, também fornecidos por Eschwege, permitem identificar, pelo
menos, 70 escravos entre a força do trabalho normal da empresa.
435 Dornas Filho. O Ouro das Gerais, pp. 205, 208-09. Sobre o emprego de escravos por Monlevade veja
também Suzannet. O Brasil em 1845, p. 126; e Burton. Explorations, vol. 1, pp. 298, 304-06.
436 Iglésias. Política Econômica, p. 97.
437 Os dados são da Matrícula dos escravos do Império, determinada pela Lei de 28 de setembro de 1885,
encerrada em 30 de março de 1887, anexa ao Relatório apresentado à Assembleia Geral da Terceira
Sessão da Vigésima Legislatura, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas, Rodrigo Augusto da Silva. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888. São
Paulo, com 4,6%, Pará, com 4,7%, e Minas Gerais, com 4,9%, eram as províncias com as menores
porcentagens de escravos com residência urbana. Esses números provavelmente exageram a
ruralização da população escrava em períodos anteriores. Em várias sociedades escravistas houve uma
248 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Havia uma grande variedade de tipos de estabelecimentos rurais, que iam
desde propriedades camponesas rústicas (compreendendo um casebre e uma roça
de subsistência), a sítios ou situações (propriedades familiares trabalhadas pelos
membros da família, algumas vezes com a ajuda de uns poucos escravos),438 até
grandes fazendas, que podiam abranger até centenas de milhares de acres e cente-
nas de escravos. No próximo capítulo examinaremos rapidamente o modo de vida
da população camponesa, aqui estamos interessados nas fazendas porque era nelas
que vivia a maioria dos escravos. Embora sua dimensão variasse muito, as fazendas
possuiam, em geral, grandes extensões de terra. Já vimos que o tamanho médio das
fazendas mineiras de café era de 591,2 hectares, ou 1.491 acres e, aparentemente, as
fazendas não-cafeeiras eram ainda maiores.
Não existem dados sistemáticos sobre isso, mas encontramos nos relatos dos
viajantes constantes referências a propriedades com mais de 50 mil acres. Na região
oeste da província, Saint-Hilaire notou que as fazendas frequentemente tinham de
oito a dez léguas de comprimento (sic). A fazenda da Jaguara, perto de Santa Luzia,
tinha mais do que 400 mil acres, e a fazenda de Pompeu, na região de Pitangui,
atingia mais de um milhão.439
Havia também muita variação no tamanho dos plantéis de escravos. No começo
do século essa variação apresentava um padrão regional claro. Nas regiões sul e
sudoeste da província as fazendas tinham poucos escravos: em grande parte des-
sas regiões o povoamento era esparso e os habitantes eram relativamente pobres:
“aqueles que possuem de oito a dez escravos são considerados ricos”. A vasta região
norte era uma zona predominantemente pecuária e também possuia poucos escra-
vos. Os grandes plantéis estavam concentrados no centro de Minas Gerais. Mas
mesmo naquelas regiões onde a população cativa era mais rarefeita encontravam-se,
redução da população escrava urbana nos últimos anos do regime servil. As crescentes demandas
da agricultura drenaram os cativos para o campo, enquanto nas cidades eles eram substituídos em
diversas funções por mão de obra livre. Para o principal debate sobre o declínio da escravidão urbana
nos Estados Unidos, veja Goldin. Urban slavery in the American South, e Richard C. Wade. Slavery in
the Cities. The South 1820-1860. London, Oxford and New York: Oxford University Press, 1964.
438 As duas palavras significam literalmente “lugar”. Esta nota era, óbviamente, voltada para o leitor não-
brasileiro.
439 Saint-Hilaire. Viagem às Nascentes, vol. 1, pp. 118-19, 217, 229; Wells. Exploring and Travelling,
vol. 1, p. 258; Burton. Explorations, vol. 2, p. 23. Em 1860, o tamanho médio das fazendas no Sul dos
Estados Unidos era de 399 acres, e no país todo, 202 acres. Em Pernambuco, em 1850, as plantations
(engenhos) de cana de açúcar de um município típico tinham 2.871 hectares em média, enquanto as
fazendas não açucareiras tinham somente 350 hectares. Gray. History of Agriculture, vol. 1, p. 530;
Eisenberg. The Sugar Industry, pp. 129-30.
440 Sobre as diferenças regionais entre as propriedades e seus plantéis de escravos, veja Saint-Hilaire.
Viagem às Nascentes, vol. 1, pp. 76-79. Para exemplos de fazendas importantes, com muitos escravos
em áreas pouco povoadas, veja o mesmo livro, vol. 1, pp. 88, 118-19, 132-34, 165, 167, 181; e Viagem
às Províncias. vol. 2, p. 286.
441 Pierre Dennis. Le Brèsil au XXe Siècle. Paris: Librarie Armand Colin, 1909, pp. 6-7.
442 Pohl. Viagem, vol. 2, p. 287. Para outras fazendas descritas por esse autor, veja: vol. 1, p. 217-18, vol.
2, pp. 229, 375.
250 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
No mesmo período, no outro extremo de Minas, Spix e Martius visitaram uma
fazenda onde se minerava ouro e se produzia uma quantidade “colossal” de milho,
além de mandioca, farinha, feijão, sabão e alguma cana de açúcar. Um pequeno
engenho produzia aguardente e melado, que eram parcialmente vendidos aos vizi-
nhos. Seiscentas cabeças de gado abasteciam “a economia doméstica” com carne,
leite, queijos e couros. A propriedade era inteiramente autossuficiente e, em sua
opinião, seus muitos escravos pareciam “saudáveis e alegres”. Em outro trecho,
Martius comentou que
As fazendas isoladas estão privadas de todo auxílio dos centros mais
habitados. Cada fazendeiro rico vê-se, portanto, forçado a prover por si
mesmo às necessidades de sua casa, mandando ensinar ofícios aos seus
escravos. Em geral encontram-se, nestas fazendas, oficinas com todos
os operários, como sapateiros, alfaiates, tecelões, serralheiros, ferreiros,
pedreiros, oleiros, caçadores, mineiros, lavradores, etc., bem como as
ferramentas necessárias para esses trabalhos.443
252 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
No meado dos anos setenta, James Wells descreveu a pequena fazenda onde se
hospedou enquanto trabalhava no projeto de uma estrada de ferro. O estabeleci-
mento tinha vários escravos e era moderadamente próspero. “No final das contas”,
pensava Wells, “existem muitos lugares e muitas vidas piores do que as da velha
fazenda Mesquita e dos seus moradores afáveis e simples.” Não obstante,
seus trabalhos não podem ser considerados ocupações lucrativas; eles
apenas permitem uma subsistência simples; não há aluguéis, impostos
ou salários a pagar, e o pequeno excedente da produção da fazenda, ou
a venda ocasional de um boi, proporcionam os meios suficientes para
a compra das poucas necessidades básicas que a fazenda não produz,
como uma peça de pano estampado ou de roupa branca, chapéus, alguns
utensílios de ferro para a cozinha, ou para o contrato de um carpinteiro
para consertar algum estrago na carruagem da família – o carro de boi.
Todas as excelentes descrições que Wells deixou sobre diversas fazendas enfati-
zam, sem exceção, que seus excedentes eram comercializados em mercados locais,
e são especialmente valiosas porque a literatura de viagens desse período é muito
escassa.448
Algumas outras propriedades parecem ter sido ainda mais diversificadas do
que essas já descritas. A fazenda da Jaguara, por exemplo, combinava uma ampla
variedade de culturas com a pecuária, engenhos de açúcar, curtumes, tecelagem de
algodão e mineração. A produção de seus quinhentos escravos não era exportada, e
sim consumida no próprio estabelecimento ou vendida a varejo na vizinha cidade
de Sabará.449
448 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, pp. 163-65. Para outras descrições de unidades rurais, incluindo
pequenas fazendas e pequenas propriedades agrícolas familiares, veja vol. 1, pp. 105, 125-27, 134,
160-61, 202, 209, 224, 258, 275-76, 301-02, 315-16.
449 Carvalho. Estudos e Depoimentos, p. 67; Dornas Filho. Tropas e Tropeiros, pp. 94-95.
450 Tudo indica que os dados ocupacionais do censo têm muitas deficiências, mas são os melhores
disponíveis. A matrícula de 1873 também apresenta uma distribuição das populações escravas
provinciais por ocupação, mas os dados para Minas Gerais nunca foram publicados. Além disso, a
confiabilidade dos números dessa matrícula para todas as outras províncias é muito questionável.
Em São Paulo, por exemplo, todos os escravos foram registrados como trabalhadores agrícolas,
trabalhadores especializados ou diaristas. Não havia um único trabalhador doméstico e nenhum
escravo foi incluído na categoria “sem ocupação”. Ao mesmo tempo, a distribuição etária dos
matriculados mostra que 25.473 cativos estavam abaixo dos 6 anos de idade, e 51.518 abaixo dos
13 anos. Absurdos semelhantes estão presentes nos dados para outras províncias. A matrícula de
1887 tem uma distribuição ocupacional muito sumária, na qual há algumas óbvias inconsistências.
Há também considerável suspeita de que houve muita evasão nesse último registro, tornando seus
dados incompletos. A matrícula de 1873 está reproduzida em Slenes. The Demography, pp. 695-96, e
a matrícula de 1887 está no Relatório Agricultura, Ministro Rodrigo Silva, 1888.
451 Conrad. The Destruction, pp. 65, 300; Slenes. The Demography, p. 79. Embora esses autores não
sejam responsáveis pelos erros do censo, algumas inconsistências evidentes deveriam tê-los alertado
do problema. Os quase 280 mil escravos agrícolas dados pela tabela provincial significariam que
virtualmente todos os escravos entre 11 e 60 anos estavam empregados nesse setor. Os 326.142
escravos com ocupação declarada implicariam que quase todos os escravos com mais de 6 anos
tinham uma ocupação específica incluindo quase 35 mil pessoas com seus sessenta, setenta e oitenta
anos, ou mais.
254 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Tabela 5.24.1 - Minas Gerais: Distribuição ocupacional da população escrava,
por regiões, 1873 (número de escravos por grupo ocupacional)
A correta agregação dos dados das paróquias mineiras, apresentada nas tabelas
5.24.1 e 5.24.2, a seguir, revela uma estrutura ocupacional inteiramente diferente
daquela obtida na tabela provincial, mostrando que em Minas os escravos estavam
muito mais uniformemente distribuídos entre as ocupações. Essas tabelas tam-
bém mostram que eram muito pequenas as diferenças percentuais dos principais
grupos ocupacionais entre as regiões da província, especialmente entre as regiões
452 A imagem de Minas do século XIX como uma ilha econômica foi sugerida por Carvalho. Formação
Histórica, p. 54.
453 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, p. LX.
256 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
final do período colonial.454 O padrão de vida da população era baixo, por critérios
atuais, mas não mais baixo do que em outras partes do Brasil, e provavelmente mais
alto do que na maioria. Não há qualquer evidência de que tenha se deteriorado ao
longo do século. O comentário de Richard Burton pode ser considerado represen-
tativo de muitas outras avaliações contemporâneas do padrão de vida dos minei-
ros: “não existe pobreza, muito menos miséria; não existe riqueza, muito menos
opulência”.455
454 Entre 1819 e 1890 a população total de Minas aumentou a uma taxa de 2,3% ao ano, enquanto a
população brasileira cresceu a apenas 1,6% por ano. Os números para 1890 são do recenseamento
daquele ano.
455 Burton. Explorations, vol. 2, p. 62.
U.
B. Philllips escreveu, certa vez, que o plantation system “era menos depen-
dente da escravidão do que a escravidão dele; e se manteve em escala con-
siderável (...) apesar da destruição da escravidão.456 Ele estava se referindo
especificamente ao sul dos Estados Unidos, mas idênticos pontos de vista sempre
foram sustentados a respeito de todas as regiões escravistas do Novo Mundo. Os
historiadores se acostumaram tanto a associar o trabalho compulsório com a plan-
tation monocultora e exportadora, que a simples menção da escravidão no Novo
Mundo lhes traz à mente a ilha-fábrica de açúcar do Caribe, a plantation de algo-
dão do Old South, a fazenda de café e o engenho do Brasil.
Em Minas Gerais, um sistema escravista de grande porte – um dos maiores da
história da escravidão moderna – sobreviveu e se expandiu por longo tempo em
áreas onde a plantation exportadora nunca existiu. E sua extinção não se deu por
morte natural: a instituição foi politicamente derrotada por forças situadas além do
controle dos senhores de escravos mineiros.
Por que Minas se agarrou tão tenazmente à escravidão, por tanto tempo? Foi
um caso sui generis, que em seu exotismo desafia uma explicação? Acredito que
não. Na verdade, o caso mineiro desafia apenas a teoria de que a plantation expor-
tadora e o regime escravista precisavam caminhar o tempo todo de mãos dadas, e
que o último não poderia sobreviver sem a primeira.
Teremos, então, que procurar a resposta no love to domineer, de que nos falava
Adam Smith,457 numa postura mental enraizada, ou algum estilo de vida profun-
damente sedimentado? Fatores culturais sempre desempenham um papel na vida
das instituições, mas a questão claramente envolve algo mais fundamental do que
ideologia ou preconceito.
456 Ulrich Bonnell Phillips. The Slave Economy of the Old South. Selected Essays in Economic and Social
History, edited by Eugene D. Genovese. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1968, p. 245.
Como veremos adiante, Phillips estava equivocado: o fim da escravidão significou o aniquilamento da
plantation algodoeira no Sul dos Estados Unidos.
457 Adam Smith. The Wealth of Nations. New York: The Modern Library, 1937, p. 365.
259
Se assim não fosse, como poderíamos explicar que estrangeiros estranhos à
nossa cultura tenham se rendido tão facilmente a um sistema que diziam repudiar
éticamente, e tenham tantas vezes redescoberto a peculiar institution? Considere,
por exemplo, as companhias mineradoras inglesas: organizadas como empre-
sas capitalistas, não vieram a Minas com o intuito de empregar trabalho escravo.
Como chegaram a esta situação aparentemente bipolar, de capitalistas e escravistas,
“modernas” e “arcaicas”, uma ética na Europa e outra no trópico? O que fazia os
britânicos despirem sua plumagem abolicionista quando atravessavam o Equador?
Pensem em Spix e Martius: como é que esses cientistas esclarecidos e cultos viram-
-se, de repente, na “dolorosa” contingência de “ter que comprar um jovem negro?”458
Como veremos adiante, a questão não é moral, e “não tem relação com o vício
ou a virtude, mas com a produção”.459 A escravidão era necessária, do ponto de vista
da classe proprietária, porque não havia uma oferta voluntária de trabalho assala-
riado. Durante todo o século existia muita gente, mas, para desespero dos emprega-
dores potenciais, braços de aluguel eram cronicamente escassos. O camponês livre
aceitava trabalhos eventuais, como os de camarada de tropa, roçador de mato ou
campeiro. Mas nunca o de trabalhador do eito. Não podia ser persuadido a traba-
lhar para um patrão, de forma permanente, “com constância e em combinação”.460
No começo do século, o barão de Eschwege, homem estrangeiro, instruído, e
aspirante a empresário capitalista, justificou sua conversão ao sistema escravista:
No início não foram comprados escravos porque eu, ainda imbuído da
mentalidade européia, acreditava que somente homens livres deveriam
ser empregados na fábrica. A consequência de minha atitude foi que os
anos se passaram sem que fosse possível treinar um único fundidor ou
aprendiz (...) tão logo aprendiam o trabalho, os operários sumiam (...) Eu
não tinha meios de fazê-los ficar (...) Finalmente, cheguei à conclusão de
que era absolutamente necessário comprar escravos (...) Daí em diante
pude operar muito melhor (...) É virtualmente impossível, no Brasil,
fazer uma indústria prosperar quando se tem que depender de homens
livres.461
260 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
No mesmo período, Saint-Hilaire observou que “ninguém queria ter um traba-
lho permanente, mesmo leve, por dinheiro”, e sua própria experiência ensinou-lhe
que o empregador tinha “que suportar o aborrecimento de ser servido por escravos
ou colocar-se à mercê dos homens livres”. O dono da fundição do Bonfim lhe disse
que,
[quando] começou as operações queria somente homens livres como
trabalhadores, mas não conseguiu levar esse projeto adiante. Os
homens livres e pobres têm, nessa região, meios muito fáceis de viver
sem trabalhar, e por isso não se submetem ao duro trabalho das forjas.
Somente adiantando dinheiro, dando-lhes roupas e tratando-os quase
como iguais, conseguia manter uns poucos na fábrica.
Na fábrica de ferro do Morro do Pilar, o francês observou que “nada é tão difícil
quanto reter trabalhadores livres”. Com uma força de trabalho livre de cerca de 100
jornaleiros, a empresa registrou mil ausências por mês, ou seja, uma taxa de absen-
teísmo de quase metade dos dias de trabalho.462
Pohl também relatou, de Oliveira, que os habitantes “preferiam o dolce far niente
ao trabalho, ao qual somente podiam ser persuadidos, em caso de necessidade, com
muitas súplicas e bom dinheiro”.463 Spix e Martius notaram que o principal pro-
blema enfrentado pela Fábrica do Prata era a “repugnância da classe pobre em se
dedicar a ocupações fixas”.464
Várias décadas mais tarde a situação não tinha se modificado. Fazendo o levan-
tamento para uma estrada de ferro, nos anos 1870, James Wells enfrentou o mesmo
problema todas as vezes que tentou recrutar trabalhadores. Uma vez engajados, os
camponeses eram, “em geral, sujeitos sérios, confiaveis e esforçados, que trabalha-
vam duro, do raiar do dia até o pôr do sol”. Mas,
a dificuldade é convencê-lo a aceitar, pois ele não trabalhará por um
salário, a não ser compelido pela falta de um dinheirinho para comprar
algo indispensável para si ou sua família; do contrário, ficará balançando
na rede, pitando seu cigarro, dedilhando seu violão, ou dormindo, e dirá
que está muito ocupado, e que talvez possa vir, quem sabe, se Deus quiser,
na próxima semana ou na outra...
462 Saint-Hilaire. Viagem às Nascentes, vol. 1, pp. 124, 163; Viagem às Províncias, vol. 2, pp. 237, vol.1, pp.
263.
463 Pohl. Viagem, vol. 1, p. 219.
464 Spix e Martius. Viagem, vol. 1, pp. 368-69.
465 Wells. Exploring and Travelling, vol. 1, pp. 168, 103, 267. As expressões muito ocupado e se Deus
quiser estão em português no original.
466 Citado por Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, pp. 55, 61.
467 Eschwege. Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 422-23. Itálicos no original.
468 Os relatos não são unânimes sobre essa questão. Alguns viajantes registraram fortes reclamações
sobre preços que consideraram exorbitantes.
262 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
país livre (...) todo homem é tão bom quanto seu vizinho.”469 Burton descreveu um
encontro com um grupo de matutos: “Apareceram alguns caipiras e ficaram olhando
nossas coisas, mas não aceitaram comer conosco, nem qualquer outra coisa, a não
ser fogo paras seus cigarros, e nós nos comportamos com a mesma formalidade.
Tinham me recomendado tratá-los com agrado e gravidade. Ao anoitecer todos
desapareceram, com um toque no chapéu, no mais profundo e triste silêncio”.470
Os camponeses não possuíam “nem mesmo uma colher de ferro ou um garfo”
e eram “tão inúteis como se não existissem,” observou Wells. “Eles nada tem para
vender, nem meios para comprar coisa alguma; seu pouco trabalho é gasto no cul-
tivo de uns poucos vegetais, na pesca e na construção de uma choça (...) No entanto,
são o mais independente dos povos, orgulhosos de seu direito de não fazer nada, o
que fazem com a maior competência.”471
Assim como a tradição e o preconceito são invocados para justificar o apego
da classe proprietária ao regime servil, uma explicação “cultural” é geralmente
proposta para a aversão do campesinato pelo trabalho contínuo e supervisionado.
Diz-se com frequência que a escravidão degradava o trabalho, e que o camponês
livre, recusando-se ao trabalho assalariado, estaria tentando dissociar-se da ima-
gem do escravo.
A associação entre algumas formas de trabalho, especialmente o trabalho no
eito sob estrita supervisão, e o status servil era indubitavelmente forte na cultura
brasileira, como em qualquer outra cultura escravista. Mas não é possível aceitar
isso como a causa da rejeição do trabalho assalariado pelo camponês livre, a menos
que se esteja preparado para acreditar que ele e sua família pudessem viver de orgu-
lho apenas. Valores não crescem no vácuo: para surgir e sobreviver precisam ser
econômicamente viáveis, devem estar ancorados na realidade concreta. A auto-es-
tima não pode suplantar um estômago vazio.
A HIPÓTESE DE WAKEFIELD
Garantir um fluxo de trabalho barato para os capitalistas nas novas colônias da
Austrália colocava-se como um problema crucial para a política colonial britânica
na primeira metade do século XIX. As soluções adotadas nos primeiros séculos
da construção do império – a servidão de europeus e a escravidão de africanos
472 Os principais livros de Wakefield sobre este tema são A Letter from Sydney, the Principal Town of
Australasia. Edited by Robert Gouger. Together with an Outline of a System of Colonization. London:
Joseph Cross, Simpkin and Marshall e Effingham Wilson, 1829; England and America. A Comparison
of the Social and Political State of Both Nations. New York: Harper and Brothers, 1834, reprinted: New
York: Augustus M. Kelley, 1967; e A View of the Art of Colonization, with present reference to the British
Empire. London: John W. Parker, 1849, reprinted: New York: Augustus M. Kelley, 1969. O primeiro, A
Letter from Sydney, foi escrito e publicado enquanto cumpria pena de três anos na prisão de Newgate,
pelo rapto de uma jovem herdeira. Wakefield nunca tinha estado na Austrália.
473 Victor Riqueti de Mirabeau, marquis de Mirabeau. L’Ami des Hommes, ou Traité de la Population
(1756). O comentário está em Karl Marx. Capital, a Critique of Political Economy, vol. I, p. 766. Todas
as citações de Marx neste trabalho são da edição New York: International Publishers, 1967.
474 Citado por Gavin Wright. The Political Economy of the Cotton South. New York: W. W. Norton, 1978,
pp. 112-13. Veja também, Benjamin Franklin. Observations concerning the Peopling of Countries.
Philadelphia, 1751, citado por Joseph Schafer. Was the West a Safety Valve for Labor? The Mississipi
Valley Historical Review XXIV (Dec. 1937).
264 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Uma formulação completa e extraordinariamente clara da mesma tese foi publi-
cada, em 1798, pelo bispo e economista brasileiro José Joaquim da Cunha Azeredo
Coutinho:
O trabalho exposto às inclemências do tempo é sempre obrigado pela
força; ou seja de um estranho, ou seja da fome; daí vem que entre as nações
em que há muitas terras devolutas e poucos habitantes relativamente,
onde cada um pode ser proprietário de terras, se acha estabelecida, como
justa, a escravidão. Tais são as nações da África, da Ásia e da América: e
entre as nações em que há poucas ou nenhumas terras devolutas e sem
proprietários particulares, se acha estabelecida a liberdade, assim como
na maior parte das nações da Europa; mas esta chamada liberdade não é
devida às luzes ou a maior grau de civilização das nações: é, sim, devida
ao maior ou menor número de habitantes relativamente ao terreno que
ocupa esta nação; por isso vemos que a Dinamarca, a Hungria, a Polônia
e a Rússia (nações sem dúvida mais iluminadas que os reformadores da
França e que querem ser de todo o mundo), vão dando a liberdade aos
seus escravos à proporção que a sua população se aumenta relativamente
às suas terras, assim como praticou a França nos princípios do século
XIV (...) O homem que só tem o seu braço, se vê obrigado pela fome a
pedir ao proprietário que o deixe cultivar a terra de que ele é proprietário,
para do trabalho do seu braço viverem ambos; logo, um tal trabalhador
é livre só de nome, mas, na realidade, escravo da força da fome, pois que,
ainda que lhe seja livre o mudar de amo, por não dizer de senhor, a sua
condição, contudo, é sempre a mesma, e muito inferior à de seu amo:
um vive no meio da abundância, do luxo e da moleza, o outro rebentado
com trabalho, exposto a todas as inclemências do tempo para ter o
absolutamente necessário para sustentar a vida (...)475
475 José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Análise sobre a Justiça do Comércio do Resgate dos
Escravos da Costa da África. In: Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho (1794-1804).
São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1966, pp. 255-56. Esse trabalho foi publicado em Londres, em francês,
em 1798, e só foi publicado em português em 1808, em Lisboa.
266 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
todos. A noção era tão difundida que fica claro que não era uma tese que tivesse
autor ou dono, mas apenas senso comum, um conhecimento empírico corriqueiro.
Mas foi Wakefield quem sistematizou essa ideia trivial, fazendo dela a base de uma
teoria geral da escravidão.
Na busca das raízes do problema que estudava, entendeu que era essencial
“determinar as causas da reinvenção da escravidão por todas as nações da Europa
moderna que se envolveram com a colonização”.479 Rejeitou as teorias raciais,
morais e religiosas, então em voga, e concluiu que a escravidão não deve ser atri-
buída “à maldade do coração humano”, pois suas causas “não são morais, e sim
econômicas – elas não se relacionam nem com o vício nem com a virtude, mas com
a produção”. “A escravidão não existe para agradar aos corações dos homens cruéis,
mas para encher os bolsos daqueles que sem ela seriam pobres e insignificantes”.480
As circunstâncias em que a escravidão aflora são aquelas
em que um homem acha difícil ou impossível conseguir que outros
homens trabalhem por salários, sob seu comando. São circunstâncias (...)
que impedem a combinação e a constância do trabalho, e as quais todas
as nações civilizadas, conseguiram neutralizar (...) por meio de algum
tipo de escravidão. Até hoje no mundo, o trabalho nunca foi empregado
em qualquer escala considerável, com constância e em combinação,
exceto por um dos dois meios: ou por um contrato ou por alguma forma
de escravidão.481
268 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
mulheres e crianças – teria ficado sem um único criado que lhe arrumasse a cama,
ou lhe buscasse água do rio”.486
Neste contexto, Wakefield não tinha dúvida de que “uma autorização para obter
escravos na África seria muito benéfica (...) para estas colônias, e que, se a Austrália
se tornasse independente amanhã, essa gente encontraria uma maneira de estabele-
cer a escravidão, apesar de todos os saints”.487 Wakefield, como outros economistas
clássicos, considerava o capital uma relação social: sem o trabalho, ele é inútil. “Em
tal estado de coisas, é impossível preservar o capital. Enquanto Mr. Peel estava sem
trabalhadores seu capital se dissipou”488
A dispersão dos trabalhadores e sua transformação em proprietários, era vista
por ele com grande preocupação. A colonização deveria ser um processo civiliza-
tório, o que exigia que as colônias fossem réplicas perfeitas da sociedade metropo-
litana. Permitir que proletários se transformassem em landlords, significava girar
para trás os ponteiros da história e da civilização. Para que uma colônia tivesse
qualquer chance de “prosperar”, para não se transformar em uma comunidade de
“meros arranhadores de terra”489, era imperativo impedir o surgimento de uma yeo-
manry, uma classe de pequenos proprietários rurais independentes. Teria que ser
criada, a qualquer custo, uma classe de proletários – gente pobre, sem terra, que
aceitasse trabalhar sob o comando da classe proprietária.
No passado, e em várias regiões ainda esparsamente povoadas no tempo de
Wakefield, o problema foi resolvido através da escravidão ou de alguma outra forma
de coerção direta sobre os trabalhadores. “O que fez do Lord (…) um gentleman
rico, bem educado e agradável? Foi o suor, o sangue e as lágrimas dos escravos, seus
e do seu pai, na Jamaica! Se a escravidão nunca tivesse existido, ele teria sido, no
andar normal da carruagem, um pequeno fazendeiro das Antilhas, semi-alfabeti-
zado talvez, mas certamente inadequado como membro da sociedade civilizada”.490
Mas na Inglaterra de 1834, ano da abolição da escravidão no império, era
impossível sugerir a restauração desse regime, ainda que fosse nos confins da
Terra. Caminhos mais sutis teriam de ser encontrados. A alternativa proposta por
486 Wakefield. England and América, p. 217. Marx. Capital, vol. I, p. 766. Marx cita Wakefield erradamente,
dizendo que Mr. Peel importara 3.000 trabalhadores.
487 Wakefield. A Letter, pp. 38-39. Como vimos no capítulo 2, saints era o apelido dos abolicionistas
ingleses nos séculos XVIII e XIX, especialmente dos militantes pela abolição do tráfico.
488 Wakefield. England and América, p. 218.
489 Wakefield. England and America, p. 226.
490 Wakefield. A Letter, p. 35.
270 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
se tornem proprietários até que outros tenham chegado para tomar seus lugares (...)
então o trabalho livre poderia tomar o lugar do trabalho escravo, e os senhores de
escravos e de terras poderiam libertar seus escravos sem prejuízo (...)”.492
Em 1839, 1840 e 1841, Herman Merivale, professor de Economia Política em
Oxford, e depois Subsecretário Permanente para as Colônias, dedicou grande parte
de suas conferências na universidade à discussão dessas ideias.493 Além de concor-
dar, em linhas gerais, com as teses principais de Wakefield, Merivale acrescentou a
elas alguns refinamentos. Em primeiro lugar observou que, embora a ocupação dis-
persa ocorra em todas as colônias onde há terras livres, a consequente escassez de
trabalho assalariado não terá a mesma importância para todas. Como muitos auto-
res posteriores, Merivale não acreditava que a escravidão pudesse ser dissociada da
grande lavoura exportadora. Apenas “naquelas colônias onde a principal atividade
consiste em cultivar produtos básicos para mercados externos” é que seria crucial
conseguir um grande suprimento de “trabalho combinado” e, portanto, somente
nessas colônias surgiria a escravidão. Nas demais, “aquelas que não apresentavam
vantagens específicas para a produção (...) de artigos de valor para o mercado
externo,” a terra livre também bloquearia a oferta de trabalho assalariado, mas,
como esses lugares não tinham interesse para a empresa capitalista, não haveria
uma grande demanda por trabalho e, consequentemente, a sociedade de pequenos
fazendeiros independentes provavelmente seria deixada em paz.494
Merivale também sugeriu que podemos verificar a hipótese de Wakefield,
observando o que ocorre depois da abolição, e para ilustrar isso dividiu as colônias
inglesas, onde a escravidão tinha sido abolida recentemente, em três grupos. No
primeiro grupo a transição foi suave e a libertação dos escravos não trouxe muita
mudança. Eram colônias como Barbados, Antigua, St. Vincent e Dominica, onde
“a terra estava quase toda ocupada, a população extremamente adensada, o cultivo
era antigo e o capital acumulado”. Elas foram menos prejudicadas do que quaisquer
outras pelo impacto imediato da emancipação, pois os negros não tinham outro
recurso senão continuar trabalhando. Não havia nenhuma terra desocupada da
qual pudessem se apropriar, nenhum modo independente de obter sua subsistên-
cia. “Na pequena ilha de Antigua, densamente povoada (...), os senhores rejeitaram
voluntariamente o apprenticeship system, e permitiram que seus escravos passassem
272 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
social entrará em colapso (...) Mas, argumentam alguns, é realmente necessário
para o bem-estar das Índias Ocidentais e para a felicidade dos negros, que o vasto
excedente que é atualmente exportado continue a ser produzido? Não emancipa-
mos nossos escravos com o objetivo de que estas ilhas-fábrica continuem a flores-
cer, mas sim para criar uma população livre, moralizada e satisfeita. Que as grandes
plantations se arruínem, se preciso for – a perda será amplamente compensada
pelo estabelecimento de um grande número de pequenos proprietários, cada um
se mantendo através de seu próprio trabalho, e as turmas de escravos, tangidas no
passado sob o chicote dos feitores, darão lugar a uma yeomanry independente (...)
Não pode haver, receio, ilusão maior que essa (...) Cada negro poderá ser capaz de
sustentar-se com razoável conforto mas, sem a ajuda do capital, não conseguirá
produzir excedentes” (surplus wealth).498
Em dezembro de 1849, dez meses depois da publicação do terceiro livro de
Wakefield, o filósofo, ensaísta e historiador escocês Thomas Carlyle, um dos maio-
res expoentes do pensamento conservador do século XIX, publicou um artigo que
teve profundo impacto nos dois lados do Atlântico.499
Carlyle atacou tão violentamente a abolição e os direitos dos negros, expressou
um racismo tão virulento e investiu com tanta fúria contra a própria idéia de liber-
dade, que provocou uma resposta indignada do grande filósofo liberal John Stuart
Mill, em um debate que se tornou histórico.500
Nos Estados Unidos, como previu Stuart Mill, o artigo tornou-se uma carti-
lha do mal, e consolidou o escocês como ídolo dos escravocratas, especialmente
de George Fitzhugh, o mais interessante pensador do campo escravista, que bus-
cou nele muito da inspiração para seu clássico Cannibals All!, or Slaves without
Masters.501
Masters. Cambridge: Belknap Press, 1973. Fitzhugh é também autor de Sociology for the South, or The
Failure of Free Society (1854), outro dos textos mais importantes escritos em defesa da escravidão
moderna. Veja Eric L. McKitrick (ed.) Slavery Defended: the views of the Old South. Englewood Cliffs:
Prentice-Hall, 1963.
502 Rueful, dreary, desolate, abject, distressing, dismal, são os adjetivos que Carlyle usa nesse artigo
para qualificar a ciência econômica. Alguns são sinônimos entre si, e todos têm sentidos muito
próximos. Significam doleful, ful of grief, lamentable, pitiable, abominable, detestable, gloomy, bleak,
dreadful, horrifying, e um monte de outras coisas ruins. Em português querem dizer lamentável,
deplorável, abominável, medonho, desprezível, abjeto, angustiante, aflitivo. Dismal, o xingamento
que se tornou um apelido para a ciência econômica, pode ser traduzido como sombrio, lúgubre,
soturno, desastroso ou desalentador. A expressão dismal science foi aplicada à ciência econômica por
oposição a gay science, ou “ciência alegre”, como era chamada a arte da poesia. Ao contrário do que
é frequentemente afirmado, a antipatia de Carlyle pela economia nada tem a ver com as sombrias
projeções de Malthus sobre a população e os prospectos da humanidade, mas sim com sua repulsa
pelo liberalismo e o igualitarismo analítico da economia clássica, “que enxerga na oferta e na demanda
o segredo do universo”. Carlyle abominava o laissez faire: não era a mão invisível que deveria reger
a história, mas a mão forte dos líderes, dos superiores e predestinados ao comando. São dele as
principais formulações da “Teoria do Grande Homem”, segundo a qual a história é conduzida pelos
heróis, como ilustra em seu On Heroes, Hero-Worship, and The Heroic in History. Também não aceita
a igualdade entre os atores econômicos e sociais, implícita na lei do mercado. Para ele, há que haver
outras leis regulando as relações sociais, hierarquizando as pessoas e as raças. A ciência econômica
rebaixa a missão dos líderes, ao atribuir ao mercado o papel regulador. “Declarar que negros e brancos
(...) são independentes um do outro, num pé de perfeita igualdade, e subordinados unicamente à lei
da oferta e da demanda, como quer a dismal science, contradiz os fatos mais palpáveis”. Não foi por
acaso que seu ataque mais hidrófobo contra a ciência de Smith, Ricardo e Mill ocorreu no “Occasional
Discourse”. Foi aí que Carlyle se deparou com uma situação concreta, na qual dois anátemas – o
abolicionismo de Exeter Hall, e a odiada lei da oferta e da demanda – entraram em conluio para gerar
uma abominação ainda maior: uma subversão da ordem “natural”, que permitiu ao negro impor sua
vontade ao branco. Isso só poderia gerar, como gerou, uma explosão de insultos.
503 Quashee é uma designação genérica dos negros das Índias Ocidentais Britânicas. Todas as citações
seguintes de Carlyle são do artigo mencionado acima.
274 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
“As Índias Ocidentais estão carentes de trabalho, como seria de esperar nes-
tas circunstâncias, em que um negro, trabalhando meia hora por dia, com a ajuda
do sol e da terra, pode ter quanta abóbora quiser. [Assim] é bem provável que
ele resista a pegar no trabalho pesado (...) O sol forte se oferece de graça, a terra
fértil quase de graça nessas regiões despovoadas ou semi-povoadas – isto é a sua
“oferta”, e meia hora diária aplicada a ela produzirá abóbora, que é sua “demanda”.
O homem branco não consegue trabalhar nesse clima tropical e “seu vizinho negro,
rico em abóboras, não tem pressa alguma em ajudá-lo. Mergulhado em abóbora até
as orelhas, sorvendo seus sucos sacarinos, e muito à vontade no meio da Criação,
ele pode escutar a demanda do menos afortunado homem branco e só atendê-la na
hora que quiser”.
Irritado com o poder de barganha dos negros, acusa-os de chantagear os anti-
gos donos. “Aumenta o salário, massa,504 aumenta mais, que sua colheita não pode
esperar; mais alto ainda – até que nem a safra mais opulenta possa cobrir tais
salários! No Demerara, (...) enquanto a maior parte da cana apodrece, os gentle-
men negros, entrincheirados com suas abóboras, estão todos em greve, até que a
‘demanda’ suba um pouco”.
“Se a demanda é tão alta, e a oferta é tão inadequada (na verdade, igual a zero,
em alguns lugares), então que se aumente a oferta, que se tragam mais negros
para o mercado de trabalho, e o salário cairá, diz a ciência”. Mas Carlyle, como
Wakefield e Merivale, sabia que enquanto a terra fosse livre e a subsistência tão
fácil, isso não resolveria nada. “Se pudermos fazer que os africanos que já estão
lá desistam de suas abóboras, e trabalhem para viver, teremos africanos bastantes.
Se os novos africanos, depois de trabalhar um pouco, se entregarem às abóboras,
como os outros, de que adiantaria?” Só criaria uma Irlanda negra na Jamaica.505
Segundo Carlyle, cavalos, negros e irlandeses não tinham desenvolvimento mental
para desejar nada além da mais reles subsistência. Um cavalo sempre prefere capim
e liberdade a aveia e trabalho no arado. Por isso esses tipos sub-humanos só traba-
lhariam forçados pelo chicote.
A visão de um campesinato feliz e independente, produzindo sua subsistên-
cia em suas próprias terras, era ofensiva aos olhos do articulista. Como comen-
tou Stuart Mill, “que os negros possam levar a vida com tão pouco trabalho, é um
escândalo aos seus olhos, pior do que sua escravidão anterior. Algo que tem de ser
504 Massa, corruptela de master, é como os escravos chamavam os senhores nos países de língua inglesa.
505 Carlyle. Occasional Discourse, p. 672
276 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
dará para seu dono os dias de trabalho prescritos. O Estado tem muita terra ociosa,
mas o Estado, religiosamente, não lhe dará nenhuma em outros termos. O Estado
quer açúcar dessas terras, e está decidido a tê-lo”.509
Se a supressão da terra não resolver, que seja obrigado então por meios mais
diretos. “Se Quashee não ajudar a produzir as especiarias, ele vai fazer de si nova-
mente um escravo (...) e, já que outros métodos não funcionam, será obrigado a
trabalhar, com um benéfico chicote (...) Vocês não são escravos agora, nem eu
quero, se puder ser evitado, vê-los novamente escravos, mas decididamente vocês
terão de ser servos para aqueles que nasceram mais inteligentes que vocês, servos
dos brancos – que nasceram para ser seus senhores. Isto, podem tem ter certeza
meus amigos negros, é e sempre foi a Lei do Mundo, para vocês e para todos os
homens: os mais estúpidos serem servos dos mais capazes.”
“Já se ouve falar do negro adscripti glebae, que parece um arranjo promissor
(...) parece que os negros holandeses em Java já são um tipo de adscritos, seguindo
o modelo dos antigos servos da Europa, obrigados, por autoridade real, a prestar
tantos dias de trabalho por ano (...) Em qualquer lugar dos domínios britânicos
onde existir um homem negro, e não puder ser extraída dele uma quantidade justa
de trabalho, uma lei como esta, à falta de outra melhor, deveria se aplicar a este
homem negro”.510
Apesar do menosprezo com que sempre se refere a Wakefield, Karl Marx acha-
va-o importante bastante para merecer uma discussão detalhada, e dedicou à sua
teoria um capítulo inteiro do Capital.511
O inglês estava certo, escreveu Marx, mas o que ele estava assistindo nas colô-
nias não era nada de novo, nem era algo peculiar às sociedades coloniais. Ele ape-
nas tinha diante de seus olhos uma reprise do processo histórico que antecede e
prepara a instalação do capitalismo: o processo de acumulação primitiva, ou ori-
ginal. “O sistema capitalista pressupõe a completa separação dos trabalhadores de
toda a propriedade dos meios de produção. Tão logo a produção capitalista esteja
instalada, ela não somente mantém essa separação, mas a reproduz em uma escala
continuamente crescente. O processo, portanto, que abre o caminho para o sistema
capitalista não pode ser outro senão o aquele que retira do trabalhador a posse
de seus meios de produção; um processo que transforma, por um lado, os meios
278 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
colônias eles sequer se instalassem nelas. Sua colonização sistemática nada mais
era do que uma enclosure preventiva, que permitiria atalhar o processo histórico,
transferindo para as colônias uma estratificação capitalista já pronta, queimando
um estágio que na Europa demorou séculos para ser cumprido.
Marx escreveu pouco sobre os modos de produção pré-capitalistas, e não era
nenhum expert em escravidão. A teoria da acumulação primitiva, que é uma de suas
principais contribuições para a história do capitalismo, foi, sem dúvida, inspirada
por Wakefield, que a antecipou em várias décadas.516 Apesar da maneira desres-
peitosa com que o trata, Marx declarou que “a teoria de Wakefield é infinitamente
importante para o correto entendimento da moderna propriedade fundiária”517, e
o considerava “o mais notável economista inglês da década de 1830”, segundo o
filósofo e historiador do pensamento econômico, H. O. Pappe518
Na virada do século XX foram publicados mais dois importantes trabalhos na
linha da hipótese de Wakefield. Um deles foi Le Basi Economiche della Costituzione
Sociale, em 1893, pelo economista italiano Achille Loria.519 Neste livro, Loria des-
creveu os estágios pelos quais todas as sociedades deveriam passar, e sustentava que
a forma de apropriação da terra não só explica a evolução dos tipos de coerção, mas
também determina toda a organização econômica de todas as sociedades.
“Uma longa peregrinação intelectual através dos campos da sociologia me
convenceu que as formas assumidas pela estrutura econômica (...) são o produto
de fatores intimamente relacionados com o estágio histórico de produtividade e
de ocupação territorial”. Depois de descrever os estágios que todas as sociedades
devem, necessariamente, atravessar, ele conclui que “a estrutura econômica é, por-
tanto, o resultado natural e necessário da existência, ou da supressão do acesso à
terra, conjugado com métodos rigorosamente correspondentes ao grau histórico de
produtividade e de ocupação do território520
516 Marx escreveu uma série de artigos sobre a guerra civil americana para o New York Tribune e o Vienna
Presse, mas suas pautas quase nada tinham a ver com a escravidão. Veja: Karl Marx and Frederick
Engels. The Civil War in the United States. New York: International Publishers, 1974. Seus comentários
sobre escravidão, dispersos pelos Grundrisse, carecem de originalidade, sendo inteiramente baseados
nos escritos de Hinton Rowan Helper e Frederick Law Olmsted. Veja, por exemplo, Karl Marx.
Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy (1857). New York: Vintage Books, 1973,
pp. 275, 278, 295, 319, 325, 326, 471, 514, 525, 527, 563, 604, 610, 735, 778, 785, 833, 845.
517 Marx. Grundrisse, p. 278.
518 H. O. Pappe. Wakefield and Marx. Economic History Review, 2nd. series. IV (1951), p. 89.
519 Achille Loria. Le Basi Economiche della Costituzione Sociale (1893). As citações neste trabalho são da
4ª. edição, Torino: Fratelli Bocca, 1913.
520 Loria. Le Basi, pp. 1-4.
280 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
No ano de 1900, o antropólogo holandês Herman Nieboer publicou um impor-
tante estudo, que renovou o interesse pela hipótese de Wakefield e Merivale. Nesse
livro, Nieboer procurou determinar as causas da escravidão como um industrial
system, isto é, um sistema no qual ela constitui a base da organização da economia,
diferentemente de outras situações, nas quais o trabalho compulsório tem uma
importância secundária, como, por exemplo, a escravidão doméstica, a escravidão
militar, etc.522
A vida social de todas as nações da antiguidade foi baseada na escravidão
e, em muitas colônias, ela sobreviveu até bem tarde no século XIX. Por
outro lado, nas nações civilizadas de hoje, todas as operações produtivas
são executadas pelo trabalho livre. Onde está a diferença? Porque a
escravidão e a servidão declinaram gradualmente ao longo da história
européia, de tal modo que no final da Idade Média já tinham, em grande
medida, deixado de ser significativas? Estes problemas só poderão
ser resolvidos se soubermos quais são as condições necessárias para
o sucesso da escravidão como um sistema industrial, e quais são as
condições inversas, sob as quais o trabalho escravo será substituído pelo
trabalho livre.523
522 H. J. Nieboer. Slavery as an Industrial System. Ethnological Researches. The Hague: Martinus Nijhoff,
1900. As citações neste trabalho são da 2ª edição revista, de 1910, reimpressa em New York: Burt
Franklin, 1971.
523 Nieboer. Slavery, p. xvi.
282 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Durante a primeira metade do século XX, a hipótese de Wakefield-Merivale-
Nieboer não teve maior destaque na literatura da escravidão, mas foi mantida viva
por estudiosos holandeses, especialmente antropólogos e etnólogos, como J. J.
Fahrenfort526 e H. Hoetink, para os quais o trabalho de Nieboer continuou sendo
uma referência, e um objeto de debate.
Também podem ser encontradas referências ocasionais a ela nos trabalhos de
alguns historiadores do primeiro escalão. U. B. Phillips leu o livro de Nieboer, e
escreveu que “relativamente à oferta de trabalho, as condições iniciais no novo
mundo da América eram diferentes daquelas da Europa moderna, mas similares às
da Ásia e da Europa em tempos primitivos. O antigo problema do trabalho renasceu
nas colônias de plantation, porque a terra era abundante e livre, e os homens não
trabalhariam voluntariamente como assalariados, empregados por outros homens,
quando poderiam facilmente trabalhar com independência, para si mesmos. Havia
uma grande demanda por trabalho nas propriedades coloniais e, quando se tornou
claro que os homens livres não viriam trabalhar como alugados, desenvolveu-se
uma demanda por trabalho servil”.527 Max Weber também leu Nieboer, e o cita em
sua General Economic History. Lewis Gray dedicou uma pequena seção de sua cele-
brada History of Agriculture, de 1932, à discussão da “relação entre a economia do
trabalho escravo e a oferta de terra”, e remete o leitor ao trabalho de Loria.528
Em seu famoso Capitalism and Slavery, de 1944, Eric Williams discutiu breve-
mente as teorias de Wakefield e Merivale. Em From Columbus to Castro, reproduz
um interessante memorando, escrito por Charles Grey, Lord Howick, que era um
abolicionista importante, e em cujo governo (primeiro ministro) ocorreu a aboli-
ção no Império Britânico.
O grande problema a ser resolvido na formulação de qualquer projeto para
a emancipação dos escravos nas nossas colônias, é encontrar um meio de
induzi-los, quando livres do medo do feitor com seu chicote, a exercer o
trabalho contínuo e regular que é indispensável para manter a produção
de açúcar (...) A incapacidade dos planters para pagar altos salários parece
fora de qualquer dúvida, mas mesmo se fosse diferente, a experiência de
526 J. J. Fahrenfort. Over vrije en onvrije arbeid (On volunary and Compulsory Labour). Mensch en
Maatschappij, 1943. Não li este artigo, por ser escrito em holandês.
527 Ulrich Bonnell Phillips. The Economic Cost of Slaveholding in the Cotton Belt. Political Science
Quarterly, XX (June 1905).
528 Gray. History of Agriculture, vol. I, p. 475-76. Gray relata que George Tucker, em seu Progress of the
United States, fez a curiosa previsão de que a escravidão nos Estados Unidos estaria moribunda
quando a densidade populacional atingisse 66 habitantes por milha quadrada!
529 Eric Williams. Capitalism and Slavery. Chapel Hill: North Carolina University Press, 1944; e Eric
Williams. From Columbus to Castro. The History of the Caribbean, 1492-1969. New York: Harper and
Row, 1973, pp. 328-29.
530 Willemina Kloosterboer. Involuntary Labour since the Abolition fof Slavery. A Survey of Compulsory
Labour Throughout the World. Leiden, Netherlands: E. J. Brill, 1960.
531 Kloosterboer. Involuntary, p. 1.
284 CRESCENDO EM SILÊNCIO: A INCRÍVEL ECONOMIA ESCRAVISTA DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XIX
Se a necessidade de coerção era fruto da existência de recursos abertos, então
deveríamos constatar que a abolição legal do regime escravista significaria o fim do
trabalho compulsório somente naquelas sociedades onde os recursos relevantes já
tivessem sido apropriados no momento da emancipação. Nos outros casos, ali onde
após a abolição persistia uma situação de recursos abertos, deveria ser encontrada
uma permanência do trabalho compulsório, em alguma modalidade alternativa.
Com esta hipótese, Kloosterboer examinou os períodos pós-abolição em diver-
sas sociedades escravistas, no Caribe, na África, na Ásia, na América Latina e nos
Estados Unidos (o Brasil não foi incluído). Os resultados de seu levantamento
confirmam, com algumas qualificações, a tese de Nieboer. A hipótese se sustenta,
mas não funciona automaticamente, e requer mediação política. “O impulso para a
abolição partiu de grupos não diretamente envolvidos com a escravidão. Os senho-
res de escravos eram violentamente contrários à abolição e, sendo derrotados, não
levou muito tempo até que criassem novas formas de trabalho compulsório”.532
A escravidão e as diversas formas de coerção não têm vinculação nenhuma com
o sistema colonial, com mercantilismo ou exportações, não se referem a qualquer
época determinada, e não são algo antigo ou superado. A coerção surge sempre que
determinados projetos de sociedade (onde há uma classe de não-trabalhadores)
chocam-se com determinadas condições objetivas (os trabalhadores têm ou podem
vir a ter o controle dos meios de produção). A coerção sempre tem a participação
do estado. Quando a expropriação não é completa, o estado interfere a favor da
classe proprietária. Um caminho alternativo à coerção é controlar dos meios de
produção ou, na linguagem da teoria de Nieboer, criar artificialmente a situação de
recursos fechados, expropriando, como ocorreu nas enclosures.
Kloosterboer elaborou um longo catálogo de metamorfoses da escravidão, e
demonstrou sua associação com os recursos abertos. Encontrou grande variedade
de modalidades de trabalho coercitivo, como prestação compulsória de serviços,
sistemas de barracão ou armazém, servidão por dívida (debt peonage, debt slavery),
contract labour, indentured labor, travail engagé, e vários outros instrumentos de
coerção, como a imposição de vagrancy laws (leis de vadiagem ou de vagabunda-
gem), cobrança de impostos em moeda (para obrigar os trabalhadores a abando-
nar a subsistência e se integrar na economia monetária), ou coerção simplesmente
baseada na violência e no terror. Em vários casos a violência não foi dirigida dire-
tamente contra os trabalhadores, mas contra seus meios de subsistência, como em