Você está na página 1de 9
INTRODUCAO A VOZ SEGUNDO CALVINO Umma voz significa isto: existe uma pessoa viva, ‘aarganta, t6rax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes, lo Calving)\“Um rei a eseuta”™ Fim um de seus tltimos © geniais escritos, Italo Calvino nos a extraordinaria figura ce “Lm rei também, ¢ claro, vozes humanas no palcio. Mas “cada voz que sabe ser ouvida pelo rei adquire um verniz frio, uma complacéncia vitrficacla”. Em i-se uma vor cortesa, adulterada, Falsa: Como quer a tradi¢io que remonta Calvino € prisioneiro de seu prop da perseguigaio © da suspeita: sempre te, 0 poder impde uma vigilancia insone. A vigilincia é, todavia, neste caso, de tipo exchusivamente auditivo. Como em um pesadelo sonoro, 0 ouvido real se ampli- fica numa percepcao tio aguda e especializada quanto impotente. O rei nio pode fazer mada: somente escutat, interceptar sons € sa sua materialidade lavras ndo contam por é ra valen fOnica, Desinteressando-se hes © timbre vocal, que ‘sons entre son: tica, mas ape Afinadas com o instrumento de morte que é tipico do poder, as ‘gargantas da Corte, de fato, no slo mais capazes de emitir a vox ‘erdacleirae inconfunlvel da vida, isto €, a vor que “poe em jogo da mente, o prazer de dar uma ee eres crane ree ‘Um belo dia, “quando no escuro uma voz de mulher se entregit a0 canto, invisivel no parapeito de uma janela apagada”, ocorre a0 rei insone ouvi-la. Ele entio se recobra, recorda-se finalmente da vida ¢ reencontra um objeto para os seus antigos desejos. A nova emogao do rei no depende certamente da cancao, jé tantas, vezes ouvida, nem da mulher que nunca vira, aponta Calvino, mas sim dessa “voz enquanto voz, como se oferece no canto” Isso que 0 atrai é *o prazer que esta voz poe na existéncia — na existéncia como voz. ~, mas esse prazer 0 conduz.a imaginar 0 modo como a pessoa poderia ser diferente de qualquer outra tanto quanto é diferente a voz"/O tei, em suma, descobre a unicidade de todo ser humano, assim como ela & manifestada \de da voz. Alids, descobre algo mais: porque “a voz ser o equivalente daquilo que a pessoa tem de mais oculto € de mais verdadeiro”, uma espécie de nticleo invisivel, mas imediatamente perceptivel, da le. Uma vez que essa voz provém do mundo dos vivos, 0 qual esta fora da logica montifera do poder, para o ouvido real abre-se um horizonte de percepeo cujo estatuto essencial é completamente oposto aquele ditado pelos jogos acisticos do palicio. Nao se trata mais de captar sons ameacadores € decifri-los, mas sim de fruir a escuta da “Vibragio de uma garganta de came”. Viva ¢ corp6rea, tinica ¢ irreproduz) simples Je sonora invengao, como de costume, 0 conto de Calvino, refletindo sobre o tema da voz, oferece uma série de 16 > que fazem implicitamente tremer um dos fundamentos losofia /Antes da entrada em cena da mulher que canta, trata ma vor. que emerge de um fundo de sinais acdsticos no sso vocal nao desempenha uma fungao especial em acao do rei entido da audigao, de fato, reduz a um puro som mesmo avras pronunciadas pelos seres humanos, Aqui surge justa- pela falsidade constitutiva dos discursos politicos, » contrario do que faz ha séculos a filosofia, concentra-se no vocdlico’ ignorando 0 semantico, No Ambito do reino, todavia, © ico mesmo, como artefato, & um sinal cle decifraga m comparagio com outros rumores do palicio, Nao somente coadunam com os ameagadores ruidos do sistema. Como no barulho de uma porta que se fec 's hd um som (0 € artificial, Nao ha vida. © que significa que, percebida pelo il aectistico entre outros, em ruido despersonalizado a ser lo e decodificado. A fonte humana dessa emiss fica politica como sistema de controle do reino. Com efeito, no conto, a vox humana, capaz de permanecer como tal sem confund espeito ao mais Sbvio dos aspectos daquela que Hannah Arend chama a condigio humana: @ unicidade que faz de cada um de nés um ser diferente de todos 0s demai unicidade seria perceptivel também pelo olhar, mas ao centrar © conto no sentido da audigao € ao col jer que canta numa janela escura, 0 escritor procede conferindo privilégio a esfera actstica e atraindo toda a nossa atengao para a voz. A fim) de que o ouvido demonstre o seu natural talento para perceber a unicidade de uma voz que, por € capaz de atestar a | unicid ‘i de cada ser humano, quem emite deve permanecer_ im /s estratégia de Calvino € precisa, A emissio fonica corresponde a a aparicao de nenhum rosto. A visio nao tem 7 insone. A vigilancia é, todavia, neste caso, de tipo exclusivamente auditivo. Como em um pesadelo sonoro, 0 ouvido real se ampli- fica numa percepeio tio aguda e especializada quanto impotente. rei nao pode fazer nada: somente escutar, interceptar sons decifrar-lhes 0 sentido, Reduzidas a sua materialidade sonora — sons entre sons ~, as palavras nao contam por sua valencia seman- tica, mas apenas por sua substincia fnica, Desinteressando-se por aquilo que elas dizem, o rei espia-lhes 0 timbre vocal, que amente, adulterado, falso, “fri” € “vitreo” como a morte. Afinadas com 0 instrumento de morte que € tipico do poder, as ‘gargantas da Corte, de fato, no so mais capazes de emitir a vor verdadeira e inconfundivel da vida, isto €, a voz que “poe em jogo a tvula, a saliva, a inflincia, a patina da vida vivida, as intencoes da mente, o prazer de dar uma forma prdpria as ondas sonoras". ‘Um belo dia, “quando no escuro uma vor de mulher se entrega a0 canto, invisivel no parapeito de uma janela apagada”, ocorre 0 rei insone ouvila. Ble entio se recobra, recorda-se finalmente da vida € reencontra um objeto para os seus antigos desejos. A nova emogao do rei nao depende certamente da cancio, jé tantas mas sim dessa “vox enquanto voz, como se oferece n Isso que o atrai € “0 prazer que esta voz poe na € existéncia como voz -, mas esse prazer conduz a imaginar 0 modo como a pessoa poderia ser diferente de qualquer outra tanto quanto € diferente a vor" /O rei, em suma, descobre a unicidade de todo ser humano, assim como ela é manifestada pela unicidade da voz. Alids, descobre algo mais: porque “a voz, poderia ser o equivalente daquilo que a pessoa tem de mais oculto ¢ de mais verdadeiro”, uma espécie de nucleo invisivel, mas imediatamente perce} da unicidade. Uma vez que essa voz provém do mundo dos vivos, 0 qual esté fora da légica mortifera do poder, para 0 ouvido real abre-se um horizonte de percepgio cujo estatuto essencial é completamente oposto aquele ditado pelos jogos actisticos do palicio. Nao se trata mais de captar sons ameagadores e decifri-los, mas sim de fruir a escuta da “vibragio de uma garganta de came”, Viva © corpérea, Gnica reproduzivel, sobrepujando com sua simples verdade sonora © estrondo inconfiivel do reino, uma mulher canta, E 0 rei 2 escuta se distrai de sua obsessiva vigila anc Extraordindrio pela invengao, como de Calvino, refletindo sobre 0 t sstume, o conto de da voz, oferece uma série de 16 izem implicitamente tremer um dos fundamentos /Antes da entrada em cena da mulher que canta, trata- voz que emerge de um fundo de sinais actisticos no Isso vocal nao desempenha uma fungao especial em outros sons e ruidos do palicio. A icentificacao do rei sentido da andicao, de fato, reduz.a um puro som mesmo ris pronunciadas pelos seres humanos. Aqui surge justa- inclamental intuico antifilosGtica de Calvino: encorajacio institutiva dos discursos p io do que faz ha séculos a filosofia, concentra-se no (? ignorando o semdntico. No Ambito do reino, todavia, © lunam com os ameacadores ruidos do Iho de uma porta que se fecha, nessas vozes ha um som ial. Nao ha vida. O que significa que, percebida pelo le esti: no centro do poder, a voz. humana se transforma acdstico entre outros, em rukdo despersonalizado a set 1 geral da actistica politica como sistema de controle no. n efeito, no conto, a voz humana, capaz de permanecer confundir-se com os ruidos ¢ de revelar assim aquilo mente humano, vem de um lugar que esti fora da revelagao nao tem nenhum cariter surpreendent diz respeito 20 mais Ghvio dos aspectos caquel como que € pe politic pe que Hannah Arendt chama a condigio humana: a unicidade que faz de cada um de nés um ser diferente de todos os demas “Aquela voz certamente vem de uma pessoa tinica, inimitivel como qualquer pessoa", observa pontualmente Calvino. Tal unic ia perceptivel também pelo ‘© conto no sentido da audigao € ao colocar a mulher que canta num escura, 0 escritor procede conferindo privilégio esfera € atraindo toda a nossa atengao para a voz. A fim de que 0 ouvido demonstre 0 seu natural talento para perceber le de uma voz que, por si s6, € capaz de at unicidadg de cada ser humano, quem a emite deve permanecer ) invisivel /A estratégia de Calvino € precisa, A emissio fonica nao cortesy aqui a aparicio de nenhum rosto. A visto nao tem 7 lhar, mas ao centrar ”

Você também pode gostar