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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6

Cadernos PDE

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE


NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
GÊNEROS TEXTUAIS E MÉTODO RECEPCIONAL: Uma proposta dialógica
sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea

Autora: Luciane Romanisio Francischini1


Orientadora: Dda. Maria Aparecida de Fátima Miguel2

Resumo: A pesquisa insere-se no campo de estudos sobre a formação de leitores


na realidade escolar brasileira. Constatados os altos índices de analfabetismo
funcional e os parcos números de sujeitos leitores, o artigo relata uma pesquisa-
ação baseada nos pressupostos e etapas do Método Recepcional, com vistas a um
trabalho com a leitura do gênero conto, com uma turma de 9º ano de Ensino
Fundamental, tendo como fio condutor a representação da mulher na literatura,
abordando, particularmente a temática da violência doméstica. Pelo reconhecimento
do papel da escola na capacitação e qualificação de leitores, tem-se como objetivo
contribuir para a criação do gosto pela leitura literária, a partir de diálogos temáticos
entre o gênero conto com outros da esfera literária ou de outras esferas de
circulação social, em direção ao desejável e necessário multiletramento. Na
avaliação global da proposta de implementação escolar realizada, podemos dizer
que houve um crescimento quantitativo e qualitativo na formação de leitores com a
turma em que desenvolvemos a proposta. Evidenciou-se que a visão dos alunos
sobre literatura mudou bastante, pois demonstraram a compreensão de que as
experiências humanas estão representadas na arte literária. Da mesma forma, ficou
claro que o material da literatura, mesmo sendo quase sempre ficcional, deriva de
temas plausíveis e serve para nos fazer experienciar realidades humanas, sem
incorrer, de forma real, nos contratempos de seus personagens, ao tempo em que
pensamos e repensamos nossa própria condição.

Palavras-Chave: Formação de leitores. Gêneros discursivos. Método Recepcional.


Mulher contemporânea.

1 INTRODUÇÃO
Se grande parte do conhecimento da humanidade é difundido pela escrita,
não resta dúvida que a formação de leitores competentes deve ser a principal meta
da instituição escolar como um todo, não apenas dos docentes de Língua
Portuguesa.

1
Professora do Quadro Próprio do Magistério do Paraná, participante do Programa de
Desenvolvimento Educacional – Edição 2013. Atua no Col. Estadual João Turin – EFM – Em São
Sebastião da Amoreira – PR.

2
Professora Titular no Curso de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP –
Campus de Cornélio Procópio – PR.
Nessa visão nos apoia Perini (2005), quando assinala que grande parcela dos
egressos da Educação Básica demonstra flagrante incapacidade na leitura inteligível
de textos. Esse chamado analfabetismo funcional coloca a questão da formação do
leitor como um dos problemas centrais da educação brasileira, robusto argumento
para propostas de intervenção nessa realidade.
Longe de ser apenas decodificação mecânica de símbolos, tem-se que a
leitura implica uma resposta do leitor ao que lê, um diálogo que acontece em um
certo tempo e espaço. No ato da leitura, portanto, o leitor é convidado pelo texto,
movimentando seu próprio conhecimento e experiência de vida para sua edificação
individual de significados.
Este estudo relata e discute uma proposta de intervenção escolar que teve
como conteúdo estruturante o discurso como prática social, abordando-se a
multiplicidade de gêneros discursivos das diversas esferas sociais, com ênfase na
esfera literária, nomeadamente nos contos. Tal concepção harmoniza-se com a
proposta das Diretrizes paranaenses para a disciplina de Língua Portuguesa em
relação à leitura, segundo a qual:
Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais:
jornalísticas, artística, judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana,
midiática, literária, publicitária, etc. No processo de leitura, também é
preciso considerar as linguagens não-verbais. A leitura de imagens, como:
fotos, cartazes, propagandas, imagens digitais e virtuais, figuras que
povoam com intensidade crescente nosso universo cotidiano, deve
contemplar os multiletramentos mencionados nestas Diretrizes (PARANÁ,
2008, p.71).

Na implementação escolar, ressaltou-se a ação do professor como mediador,


de provocador dos alunos, na procura do desenvolvimento de uma atitude crítica
que lhes possibilitasse a detecção do sujeito presente nos textos, bem como a
elaboração de uma resposta a esses textos. Nesse sentido, o mais alto nível de
proficiência em leitura seria atingido quando o aluno conseguisse apreender os
implícitos e as intenções nas entrelinhas do texto.
Desse modo, predominou no trabalho a abordagem de diversos gêneros
discursivos, ação defendia nas Diretrizes paranaenses para o ensino de língua
materna na atualidade. De início, o leque de gêneros foi mais amplo, para a
distinção inicial do gênero conto, nas características que o tornam ‘literário’, em
contraste aos gêneros discursivos de outras esferas. Sequencialmente, o trabalho
teve como linha condutora o conto, prevendo-se as possibilidades de diálogos com
outros gêneros.
Cientes da demanda de uma metodologia para a abordagem literária, para
uma desejável gradação dos textos em nível de dificuldade para a turma, tomamos
os pressupostos e as etapas do Método Recepcional, de Bordini e Aguiar (1988),
discutidos nos fundamentos teóricos deste estudo.
O projeto de intervenção pedagógica descrito na realidade escolar enquadra-
se na modalidade de pesquisa-ação. Sua coleta de dados é realizada com base em
interpretações de questionários, observações na sala de aula e de documentos
produzidos pelos sujeitos participantes. Conforme Thiollent (2012), a pesquisa-ação,
de cunho qualitativo, se caracteriza basicamente como um tipo de pesquisa social
empírica, idealizada e realizada para a resolução de problemas coletivos, em que
pesquisadores e participantes trabalham de forma cooperativa ou participativa. Para
o autor, “na pesquisa-ação os pesquisadores desempenham um papel ativo no
equacionamento dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação
das ações desencadeadas em função dos problemas” (THIOLLENT, 2012, p. 21).
No caso em questão, o problema coletivo focalizado é a necessidade de ampliação
da quantidade e qualidade de leitores na realidade escolar.
No intento de contemplar essa lacuna de ensino da leitura literária na
realidade escolar focalizada, buscamos: Identificar o gênero conto literário dentro da
esfera de circulação social literária, assim como diferenciá-lo em suas peculiaridades
em relação a outros gêneros de esferas não-literárias; examinar o horizonte de
expectativa dos alunos participantes da implementação escolar, em relação a seus
temas de interesse; ler e explorar gêneros variados, nos aspectos temporais e
espaciais, a partir da sondagem do horizonte de expectativa dos alunos; explorar os
diversos gêneros literários em diálogo com outros gêneros textuais de diferentes
esferas a partir do assunto Violência contra a mulher, temática introduzida como
ampliação do horizonte de expectativas; levar os alunos à percepção de diálogos
entre os textos focalizados (intertextualidade).
O público-alvo da proposta didática foi constituído de alunos do 9º Ano do
Ensino Fundamental. Mesmo cientes da necessidade de projetos para formação de
leitores em todos os níveis de ensino, a escolha desse nível de escolaridade
justificou-se também pela preparação dos alunos do 9º ano para as reflexões mais
sistemáticas sobre Literatura, no decorrer do Ensino Médio.
A organização da análise e reflexão sobre a proposta empreendida encontra-
se assim estruturada:
Na seção 2, dos Fundamentos teóricos:
Na subseção 2.1, abordamos a questão do analfabetismo funcional e a da
formação de leitores; na subseção 2.2, inserimos o trabalho na estética da recepção
como método para o ensino de literatura; na subseção 2.3, versamos sobre alguns
aspectos da teoria relativa aos gêneros textuais em sala de aula; na subseção 2.4,
discorremos a respeito da representação da mulher na literatura;
Na seção 3, descrevemos as ações empreendidas durante a proposta de
implementação do projeto na escola, bem como apresentamos os resultados e
reflexões das ações, conforme a sequência do Método Recepcional,
nomeadamente: 3.1: Determinação do horizonte de expectativa; 3.2: Atendimento ao
horizonte de expectativa; 3.3: Ruptura do horizonte de expectativa; 3.4:
Questionamento do horizonte de expectativa, e 3.5: Ampliação do horizonte de
expectativa.
Na seção 4, colocamos nossas considerações finais sobre a experiência de
intervenção como um todo.

2 REVISÃO DE LITERATURA

2.1 LETRAMENTO: MUITO ALÉM DA DECODIFICAÇÃO


Na atualidade, um dos principais problemas da educação brasileira continua
sendo a formação de leitores competentes. A esse respeito, PERINI (2005) aborda
situação a incapacidade de grande parte dos egressos da escola de ler um texto
com um mínimo de compreensão, pelo que se incluem no grupo dos chamados
analfabetos funcionais.
Na tarefa de formar o leitor proficiente, a escola deve priorizar o letramento do
aluno, objetivo concretizado quando propicia ao aluno interagir com a língua por
meio de uma variedade de textos com diferentes funções sociais. Diferencia-se o
letramento da alfabetização, esta entendida como ação mecânica, necessária para
possibilitar o domínio do código linguístico para a codificação e decodificação das
mensagens. Por outro lado, conforme Soares (1998), o conceito de letramento liga-
se à capacidade do sujeito não apenas de ler e escrever maquinalmente, mas
também de usar com eficácia a leitura e a escrita nas práticas sociais, posicionando-
se e interagindo segundo as exigências a ele postas, fazendo ouvir sua voz entre os
discursos.
O letramento de fato implica colocar o aluno em contato a leitura de textos
das diversas esferas sociais (literária, jornalística, publicitária, digital, etc). Contudo,
em acréscimo aos textos escritos e falados, as práticas discursivas devem envolver
a conexão da linguagem verbal com outras linguagens, em direção ao desejável
multiletramento, conforme proposta das Diretrizes Curriculares Estaduais para
Língua Portuguesa (PARANÁ, 2008).
Do mesmo modo que o conceito de letramento é mais amplo que o de
alfabetização, também não se compreende o texto exclusivamente dentro de seus
limites formais. Em Bakthin (1999), tem-se uma ampliação do conceito de texto que
ultrapassa a formalização do discurso verbal ou não-verbal. Tem relevância o que
antecede o texto, as condições de sua produção e elaboração, assim como o que
vem depois, na resposta ativa instituída no ato de ler. O texto é apreendido, assim,
como junção de discursos, nas vozes nele materializadas; é ato humano de uso real
da linguagem.
Por essa razão, a concepção de leitura assumida nas Diretrizes Curriculares
reflete:
(...) um ato dialógico, interlocutivo, que envolve demandas sociais, históricas,
políticas, econômicas, pedagógicas e ideológicas de determinado momento.
Ao ler, o indivíduo busca as suas experiências, os seus conhecimentos
prévios, a sua formação familiar, religiosa, cultural, enfim, as várias vozes
que o constituem (PARANÁ, 2008, p. 56)

Tal concepção clarifica o caráter individual da leitura, pelo fato de que ela se
efetiva no ato da recepção do texto pelo leitor. Como nos apoia Perfeito (2005), para
a concretização da leitura comparecem fatores linguísticos e não-linguisticos, dado
que o potencial significativo do texto precisa interatuar com o conhecimento do leitor
para ser atualizado. De igual forma, o ato dialógico da leitura acontece, então, em
um tempo e um espaço determinados. Assim, um texto leva a outro, e o leitor, ao
checar os significados do texto com seu próprio conhecimento e sua experiência de
vida, participa dessa construção de sentidos.
De modo geral, não há uma avidez natural por leitura, uma vez que leitores
não costumam se formar espontaneamente, fato que deixa a situação da leitura
inalterada. Há alguns anos se reclamava que os alunos de escolas públicas não
tinham acesso aos livros. Hoje os livros chegam às escolas, mas em muitas delas
permanecem dentro das caixas, como costuma acontecer com os livros recebidos
de programas como o PNBE (PAIVA, 2012).
A começar pela necessidade de estratégias para fazer circular o livro na
escola, igualmente se realça o imperativo de uma metodologia que conduza o
trabalho pedagógico com a leitura dos gêneros literários na escola. Como alude
Cosson (2007), mesmo que a formação de leitores de textos literários deva se dar
pela criação do gosto, para que não se perca “o saber e o sabor da literatura”
(p.107), tal trabalho não pode ocorrer, na escola, sem a obrigação da aquisição do
conhecimento exigido por qualquer área do conhecimento. Dessa forma, o trabalho
com a literatura na escola pede uma abordagem metódica, que afiance o lugar da
fruição, mas que também enseje o direcionamento necessário à eficácia do trabalho
pedagógico.
Dado o fato de que a obrigação de formar leitores é conferida quase que
somente à instituição escolar, atenta-se ao papel insubstituível do professor,
tornando-se indispensável que ele adquira uma formação teórica consistente e
principalmente um vasto repertório de leituras, de modo que ultrapasse os sentidos
propostos pelos autores de livros didáticos. Assim, o professor pode assumir sua
aula de maneira independente, colocando o livro didático na função de ferramenta
de apoio, não de ditador das interpretações dos textos literários.
Dessa forma, a proposta relatada neste artigo buscou refinar os
desdobramentos didáticos do Método Recepcional para a contemplação das
perspectivas de leitura aqui apresentadas, tomando o gênero literário conto como fio
condutor para diálogos possibilitadores da transcendência dos horizontes de
expectativa dos alunos participantes da implementação, escolhendo o tema
Violência contra a mulher. Com isso, busca-se aumentar o conhecimento para a
construção de metodologias possíveis para a formação de leitores proficientes na
abordagem dos textos literários.

2.2 UMA METODOLOGIA PARA O ENSINO DE LITERATURA A PARTIR


ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
As Diretrizes paranaenses para o ensino de Língua Portuguesa incluem a
literatura. Assim como toda arte, a literatura é uma produção humana e está
entrelaçada à vida social. Sua definição está atrelada aos períodos históricos, motivo
pelo qual uma acepção só pode ser oferecida no diálogo com outros textos e em
articulação com as questões determinadas pela conjuntura de produção, pela crítica
literária, pela cultura e pela economia, entre outros elementos (PARANÁ, 2008).
Na visão de Antônio Candido (1972), a literatura é uma arte que transforma e
humaniza o homem e a sociedade. Por isso, atribui à arte literária três funções: a
psicológica, a formadora e a social. A função psicológica permite ao ser humano o
mergulho em uma dimensão de fantasia viabilizadora da catarse, pela reflexão e
pela identificação com os indivíduos.
Referindo-se à função formadora, Candido pondera que a literatura por si só
age como instrumento educativo. Ao mostrar realidades ocultadas pela ideologia
dominante, ela colabora para o desenvolvimento da pessoa, ao fazê-la enxergar o
mundo tal como ele é. Dessa maneira, a literatura tende a formar, mas não em
conformidade com uma pedagogia oficial, muito menos como um manual de moral e
cívica, porque:
(...) é um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que
se tenciona escamotear-lhe (...) ela não corrompe nem edifica, portanto;
mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem, o que chamamos o
mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver (CANDIDO, 1972, p.
805-806).

A função social da literatura, por sua vez, remete à representação dos


diferentes segmentos da sociedade, ou seja, ao espelho da sociedade e dos tipos
humanos retratados.
Sobre o ensino da literatura, as Diretrizes Curriculares (PARANÁ, 2008)
indicam como bases teóricas a Estética da Recepção e a Teoria do Efeito, para a
formação de um leitor habilitado a sentir e expressar o significado captado na obra
literária, a fim de que o aluno tenha condições de reconhecer as subjetividades
presentes na influência mútua presente entre obra, autor e leitor, ensejada na leitura.
Sobretudo, reitera-se que o destaque deve sobrevir na dimensão estética da
literatura.
Na relação entre leitor e obra, o entendimento de mundo do autor interage
com a concepção de mundo do leitor, em um ato dialógico pelo qual o leitor alarga
seu universo, mas dilata também o universo do texto literário a partir de sua
experiência cultural. Mesmo que não se acolha qualquer interpretação, não
avalizada pelo texto, o texto pode trazer vácuos passíveis de preenchimento a partir
do conhecimento de mundo, das experiências de vida, das ideologias, crenças e
valores do leitor, como assinalam as mesmas Diretrizes.
Na preparação desta proposta de intervenção, em conformidade com os
pressupostos das Diretrizes Curriculares para a disciplina de Língua Portuguesa,
toma-se como fio metodológico o mencionado Método Recepcional, para o
desenvolvimento de desdobramentos didáticos para a leitura do gênero literário
conto em diálogo com outros gêneros. Esse embasamento parece adequado, uma
vez que possibilita a ação didática com uma diversidade de textos, necessária à
formação do leitor maduro. O leitor não nasce feito, nem o mero fato de saber ler
traz o amadurecimento. Na percepção de Cosson (2007, p. 35),
(...) crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras
progressivamente mais complexas. Portanto, é papel do professor partir
daquilo que o aluno já conhece para aquilo que ele desconhece, a fim de
proporcionar o crescimento do leitor por meio da ampliação de seus
horizontes de leitura.

A esse respeito, segundo Bordini e Aguiar (1988), autoras que delinearam o


Método Recepcional para o ensino de leitura literária, a atitude participativa do aluno
em contato com diferentes gêneros textuais é fundamental. Durante o trajeto da
leitura, a partir de obras afins ao seu horizonte de expectativas, o aluno vai entrando
em contato com textos gradativamente mais difíceis, confrontando-os com sua
expectativa inicial: “O processo de recepção textual, portanto, implica a participação
ativa e criativa daquele que lê, sem com isso sufocar-se a autonomia da obra”
(BORDINI & AGUIAR, 1988, p.85-87).
As autoras mencionam que as possibilidades dialógicas do leitor com a obra
estão relacionadas ao nível de identificação ou de distanciamento do leitor com o
texto, a partir do contexto sociocultural em que ambos, leitor e obra, se inserem.
Ratifica-se, então, que, na perspectiva da estética recepcional, a atitude do aluno-
leitor é altamente participativa, no processo de interação entre sua historicidade com
a historicidade subjacente ao texto (BORDINI & AGUIAR, 1988). Por isso, uma
metodologia para o ensino de literatura deverá pensar a obra e o leitor em uma
realidade cheia de contradições. Com base nessa interação, devem ser propostos
meios para a coordenação de esforços visando o principal interessado: o aluno e
suas necessidades enquanto leitor, numa sociedade em contínua transformação.
Nessa visão, Bordini & Aguiar (1988) defendem a presença das seguintes
etapas no planejamento de unidades para o ensino de literatura: Determinação do
horizonte de expectativas; Atendimento ao horizonte de expectativas; Ruptura do
horizonte de expectativas; Questionamento do horizonte de expectativas; Ampliação
do horizonte de expectativas. As características dessas etapas serão clarificadas
seção dos resultados e reflexões sobre a implementação na escola.
Na Produção Didática aplicada com os discentes, procuramos levar em conta
essa progressão para um trabalho sistemático com leitura literária. Contudo,
tínhamos em perspectiva que importava criar o gosto pela leitura, esquivando-nos de
uma possível austeridade de aplicação metodológica que pudesse sufocar a viva
interação do aluno com a obra literária.

2.3 GÊNEROS TEXTUAIS NA AULA DE LITERATURA: TRANSGREDIR É


PRECISO
Os estudos dos gêneros textuais já estão presentes no ensino, tanto de língua
materna como estrangeira, estando já corporificados nos livros didáticos que
chegam ao professor. Porém, como alude Marcuschi (2008), o conceito de gênero já
se fazia presente nas discussões de filósofos como Platão e Aristóteles, mas
referiam-se basicamente ao fenômeno literário. O desenvolvimento do conceito
passou também por Horácio e Quintiliano, pela Idade Média e pelo Renascimento,
chegando ao século XX. Hoje, contudo, a concepção de gênero não se restringe ao
texto literário, referindo-se a qualquer forma “relativamente estável” de enunciado
(Bakthin, 2010), seja falada ou escrita, multiplicada na mesma proporção das
diferentes necessidades comunicativas surgidas na contemporaneidade, resultando
na profusão de gêneros que temos hoje.
Como nos respalda Bakthin (2010), qualquer enunciado considerado de forma
isolada é, evidentemente, individual. No entanto, segundo o autor, cada esfera social
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
denominados por ele de gêneros do discurso. Em outras palavras, podem-se
entender os gêneros como “modelos” de textos que circulam socialmente, instituídos
em formas próprias de organização do discurso, conforme as necessidades
comunicativas. Para o mesmo autor, em cada esfera de comunicação, dão-se
diferentes práticas sociais entre os interlocutores, sendo as atividades de linguagem,
os papéis e lugares sociais definidos a partir dessas práticas sociais. Esses fatores
influenciam os gêneros quanto a seus três elementos constituintes: o conteúdo
temático, o estilo e a construção composicional
Marcuschi (2008) entende que os gêneros textuais são fenômenos históricos
sintonizados à vida social e cultural, resultantes de trabalho coletivo de classificação
e estabilização de atividades cotidianas. Desse modo, são apresentados como
entidades sociodiscursivas geradas das incalculáveis formas de ação social
produzidas pelas múltiplas situações comunicativas. Na explicação dessa noção,
pode-se conceber gêneros como “famílias” de textos que têm características
comuns, embora com muitas variações. Essa heterogeneidade tem a ver com o tipo
de suporte comunicativo, a extensão e o grau de literariedade, explicando-se a
profusão de gêneros na contemporaneidade.
Nos últimos dois séculos, Conforme Marcuschi (2008), os avanços na
tecnologia comunicacional fizeram surgir novos gêneros textuais, devido à força do
uso dessas tecnologias em sua interferência nas ações comunicativas diárias.
Assim, o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet, entre outros, vão criando ou
acolhendo novos gêneros textuais bem característicos, a exemplo de: editoriais,
telemensagens, teleconferências, videoconferências, e-mails, chats e aulas virtuais.
Em relação ao ensino, defende-se, a exemplo de Porto (2009), que o trabalho
com os diversos gêneros textuais tende a ampliar sobremaneira a competência
linguística e discursiva dos alunos. De igual forma, ensinar a partir dos gêneros
textuais aponta aos alunos as muitas formas de participação social, possíveis por
meio da linguagem.
Ainda quanto ao ensino dos gêneros em sala de aula, recomenda-se evitar
um trabalho de simples categorização, a partir de uma mentalidade normativa ou de
rotulação de textos, como se houvesse uma configuração rigorosa para cada gênero
textual. Particularmente na leitura de textos literários, foco deste estudo, torna-se
mais relevante mostrar aos alunos que não raro os literatos modificam, criam,
recriam e até subvertem os gêneros, conhecida a característica da liberdade
criadora própria da arte literária. Dessa forma, na literatura o gênero se torna lugar
de transgressão, de exploração, de enriquecimento de possibilidades, em que os
autores produzem, reproduzem ou desafiam as práticas sociais.
Segundo a classificação de Dolz e Schneuwly (2004), o gênero conto, eleito
para esta proposta de implementação na escola, diz respeito ao domínio social da
comunicação, especificamente à cultura literária ficcional e a capacidade dominante
de linguagem envolvida é a de Narrar.
2.4 QUESTÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA
A temática da representação da mulher na literatura, focalizando o tema da
violência doméstica entra nesta proposta com base no objetivo pretendido de
ampliar o horizonte de expectativa dos alunos.
No correr de séculos, o papel da mulher se restringia a obedecer e servir,
considerando-se que não tinha vontade própria e opinião, o que era reservado ao
homem. Em Zanqueta & Zolin (2010), encontra-se que a mulher vivia sob três
esferas de subordinação, a família, a Igreja e a escola. Na família, o primeiro
ambiente de convívio, ela era subserviente à vontade do pai e depois, à do marido,
este também, muitas vezes, um consorte imposto pela família. A Igreja afiançava a
sujeição da mulher com base na Bíblia, esta imbuída de uma ideologia patriarcal,
que também a associava à culpa pelo pecado original. A escola, por sua vez,
quando frequentada pelas meninas, servia apenas para repetir os valores prezados
pela família, no intento de educar boas esposas. Os meninos, pelo contrário, eram
preparados para liderar a casa e o meio social.
Segundo as mesmas autoras, apenas no século XX, a partir da década de 60,
os pensamentos feministas, defendendo a igualdade de direito entre os gêneros,
trouxeram mais liberdade às mulheres. Começaram a aparecer publicações literárias
feitas por mulheres, de maneira que as vitórias sociais das mulheres se estenderam
também para as vitórias na área literária. Desde então, as autoras femininas vêm,
aos poucos, ganhando espaço, em um território em que os grandes nomes da
literatura ainda são homens em sua grande maioria.
Como nos respalda Castello (2000, apud Zanqueta & Zolin, 2010), a presença
dominante masculina na literatura fez (e faz) com que a mulher seja representada
por meio da ótica do homem, marcada ainda pela ideologia patriarcal. Dessa forma,
a representação feminina se dá em consonância com uma visão tradicional, ou seja,
marginalizada, silenciada, oprimida e limitada à lida doméstica.
Como reportado em Lima & Tavares (2011), a partir do movimento feminista,
iniciado nos anos 60 e 70 do século XX, bastante se escreveu sobre as questões de
gênero. Costuma-se fazer a diferença entre gênero e sexo, ao se discutir essas
questões: sexo refere-se a características especificamente biológicas, ao passo que
gênero é uma expansão de sexo, aludindo a uma construção sócio-histórica que
estabelece os papéis e condutas para homens e mulheres, ou seja, o gênero é
estabelecido culturalmente. Como aponta Louro (2000, p.147, apud Lima &
Tavares, 2011), “(...) o gênero é o significado social que o sexo assume no interior
de uma dada cultura”. Dado que a Literatura reflete a História, a arte literária
também retratou, e ainda retrata, de maneira dominante, a mulher a partir da visão
do homem. Na literatura, assim como na história, a figura feminina é sempre
delimitada pelas expectativas, vontades e interesses dos grupos dominantes, lugar
privilegiado pertencente ao homem.
Desse modo, a visão feminina só pode aparecer de maneira significativa
quando a literatura é feita pela mulher. Por isso, na proposta de Produção Didática
desenvolvida para a implementação na escola enfatizou o trabalho com escritoras,
procurando-se levar os alunos à percepção de como as mulheres se retratam, em
comparação à sua retratação por escritores masculinos.
Para isso, elegemos primordialmente o trabalho de Marina Colasanti, escritora
contemporânea, cuja atuação principalmente como jornalista foi admirável para
despertar a consciência das mulheres brasileiras a respeito de sua condição. Nas
décadas de 70 e 80, quando a situação da mulher brasileira ainda era de submissão,
a atuação feminista de Colasanti nos jornais, revistas e em livros publicados por ela,
contribuiu para as mudanças de costumes no Brasil. O feminismo foi uma escolha
política da autora e suas ideias se refletiram em um intenso trabalho jornalístico e
literário, que desvela as restrições impostas às mulheres, em suas vidas, empregos
e formas de expressão artística (ALVES & RONQUI, 2009).
Em vários de seus contos, Marina Colasanti aborda várias temáticas
vinculadas à mulher, desde sua histórica sujeição até a violência física, psicológica e
simbólica contra ela praticada. O sociólogo Pierre Bourdieu, na obra A dominação
masculina (2007) denomina violência simbólica aquela representada pela:
violência suave, insensível a suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias [...] simbólicas da comunicação e do
reconhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento, ou, em última instância, do sentimento (BORDIEU, 2007,
p.7).

Pretendia-se, com o foco na obra de Marina Colasanti ensejar a reflexão


sobre o lugar da mulher na contemporaneidade, pelo entendimento de que, mesmo
com as conquistas que obteve em vários campos de atividades, ela ainda luta com
muita bravura por seus direitos, principalmente quando é vítima da violência
doméstica, quer seja sob suas formas simbólica ou física.
3 DESCRIÇÃO DAS AÇÕES, RESULTADOS E REFLEXÕES
No 2º semestre de nossa participação no Programa de Desenvolvimento
Educacional (PDE), empreendemos a construção de um material didático com
atividades de formação de leitores de literatura segundo os pressupostos do Método
Recepcional, focalizando seus desdobramentos didáticos, com base em suas cinco
etapas, a partir do gênero da esfera literária conto em diálogo com outros gêneros
da mesma ou de outras esferas. Compreendemos que a temática da representação
da mulher na literatura ficaria ainda mais enriquecida com o recurso aos gêneros
presentes em outros suportes, como vídeo e internet.
Por meio da Produção Didático-Pedagógica aplicada com os alunos,
procedemos à identificação das características gerais do gênero conto em seus
aspectos distintivos em relação a outros gêneros literários. Também foi abordada a
questão da literariedade, ou seja, das características que tornam um texto literário,
em comparação com textos de linguagem mais denotativa.
Para contemplar as diferentes etapas do Método Recepcional, valemo-nos de
questionários para a sondagem do horizonte de expectativa dos alunos participantes
da proposta de implementação na escola, em relação a seus temas de interesse.
Outra estratégia foi a leitura de contos variados, nos aspectos temporais e espaciais,
a partir da sondagem do horizonte de expectativa dos alunos, procurando atender os
temas mais apreciados por eles.
Para atender às diferentes etapas do Método, propusemos a exploração dos
contos em diálogo com outros gêneros textuais de diferentes esferas a partir da
temática sobre “A representação da mulher na Literatura e a violência doméstica”, a
ser introduzida em graus crescentes de densidade literária como ampliação do
horizonte de expectativas. Para enriquecer o diálogo, na elaboração do material
didático, articulamos o texto escrito com letras de música e vídeos.
Expomos na sequência uma síntese das ações, com seus principais
resultados em relação à competência leitora dos alunos contemplados na proposta.
Para maior clareza na exposição, optamos por descrever e discutir as atividades na
sequência das etapas do Método Recepcional.
3.1 DETERMINAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVA

Nesta etapa, Bordini e Aguiar (1988) propõem que o docente, por variados
meios, procure diagnosticar os interesses atuais dos alunos, ou seja, que faça uma
sondagem inicial para a delimitação dos horizontes de leituras ou de temas de
interesse dos alunos.
Foi aplicado aos alunos um questionário, para apreendermos seus horizontes
de expectativas frente à leitura, como forma de obtenção de dados sobre seu meio
social, de estilo de vida, lazer e outros relevantes à condução da implementação do
projeto. Antes da aplicação do questionário, lemos e comentamos as questões
juntamente com eles, com o intento de incentivá-los a responder. Frisamos que a
atividade não tinha finalidade avaliativa, solicitando que respondessem com toda a
sinceridade. Devido à extensão, o questionário foi dividido em duas partes e
aplicado em dois momentos distintos.
Outras formas de sondagem do horizonte de expectativas foram a visita à
biblioteca e a ilustração de um livro que leram ou de um filme a que assistiram.
Como a atividade foi dada como tarefa, puderam também ilustrar por meio de
colagens diversas. Com essas atividades, pretendia-se analisar os interesses e
níveis de leitura dos alunos, como forma de obtenção de subsídios para o
prosseguimento do projeto de leitura.
Os resultados do questionário reproduzido na Produção Didática realizada
foram desanimadores, mas muito desafiantes. O que nos chamou a atenção foi o
fato de que a maioria dos alunos não tem muitos livros, nem revistas em casa, e um
número menor ainda de famílias é assinante de jornal. Grande parte dos alunos lê
mais na escola, e as leituras obrigatórias dos livros didáticos ou alguma obra de
literatura solicitada por algum professor. Os discentes não têm muitos modelos de
leitores em casa e recebem pouco incentivo quanto à importância de se ler. A
maioria gasta o tempo assistindo televisão, ouvindo música, falando, jogando ou
navegando na internet, seja pelo computador ou celular. Apenas dois alunos, de
uma turma de 35, estavam lendo livros tomados de empréstimo da biblioteca.
Após a descrição das demais etapas da implementação, procuraremos dar
um fecho a essas questões nas considerações finais, desvelando os resultados
alcançados.
3.2 ATENDIMENTO AO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS
Nesta fase, são oferecidos aos alunos textos que contemplam suas
aspirações, valores e familiaridades com literatura. Além das experiências com
obras literárias do universo dos alunos, defende-se também que as estratégias de
ensino considerem o gosto do aluno.
Como a elaboração da Unidade Didática se deu anteriormente à
implementação escolar, tínhamos ciência de que sua aplicação sofreria as
adequações necessárias, a partir das atividades iniciais de determinação dos
horizontes de expectativas dos alunos. Contudo, pela vivência na instituição escolar
da intervenção, sabíamos de antemão que nossos alunos vivem em uma cultura
predominantemente visual e que o mundo digital é parte integrante da vida da
maioria deles. Quase todos têm acesso à internet pelo celular ou computador, por
meio dos quais acessam e interagem nos sites de redes sociais, como o facebook,
whatsApp e outros.
Dessa forma, para introduzir a temática da mulher e abordar sua
representação na literatura, os trabalhos foram iniciados com vídeos de propaganda
de cerveja e de chinelo, nos quais se revela uma visão da mulher sob um
estereótipo de símbolo sexual.
Nos vídeos de propaganda de cerveja, por exemplo, mostramos aos alunos
que o uso da imagem da mulher é recorrente. Outros vídeos, porém, como alguns
de propaganda de margarina mais antigos, promovem o papel da mulher como dona
de casa exemplar e incansável.
Com intensa participação da turma, o questionamento colocado em sala
abordou como a mulher é vista em cada um dos comerciais, que exibimos na TV
Pendrive. Pudemos discutir com os alunos os papéis da mulher como símbolo
sexual, de dona de casa exemplar, submissa e multifuncional (faz-tudo). Uma aluna
sugeriu que os comerciais mostram o ponto de vista masculino sobre a mulher.
Nesse sentido, o ser feminino parece nem ter opinião, é apenas um corpo.
Avançamos um pouco, dentro do horizonte de expectativas dos alunos,
apresentando a música “Piriguete” em ritmo de funk, do MC Thiago, cuja letra
reforça o lugar da mulher como objeto sexual, colocando seu corpo como valor de
troca, estigmatizando e denegrindo sua imagem.
Nesse ponto, pudemos trabalhar um pouco também a questão do gênero
textual/discursivo. Entregamos a letra de uma música relativa à próxima atividade
para os alunos, sem dizer que era a letra de uma canção e perguntamos a eles que
tipo de texto seria aquele. Seria um poema? Por quê? Quais características os
faziam pensar que se tratava de um poema? Depois que concluíram tratar-se da
letra de uma música, rodamos para eles a gravação e depois o vídeo da música
“Cotidiano” de Chico Buarque, questionando a diferença entre o gênero música
gravada (som) e de videoclipe (som e imagem).
No plano do conteúdo, discutimos como a letra da canção mostra a mulher
reduzida aos limites do lar, que todos os dias faz tudo sempre igual e vive sua vida
para servir ao marido, esperando-o todo dia no portão.
Em outra aula, pudemos fazer a distinção entre gêneros da esfera literária de
outros das outras esferas, fazendo a leitura de uma notícia de jornal ou reportagem
tratando da questão da violência doméstica contra a mulher ou de suas lutas.
Fizemos um apanhado das características formais e estilísticas da letra de música
de Chico Buarque em comparação com o texto da esfera jornalística. Os alunos
perceberam a distinção entre os aspectos conotativos e denotativos dos dois
gêneros, respectivamente.

3.3 RUPTURA DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS


Os textos e atividades de leitura desta fase já devem ter como propósito,
segundo Bordini e Aguiar (1988), abalar a certeza e hábitos dos alunos, tanto em
termos de literatura como de vivência cultural. O tema, o tratamento, a estrutura ou a
linguagem, um ou outro podem ser os mesmos, mas alguma dimensão imprevista
deve ser introduzida. As autoras alertam, contudo, que mudanças muito radicais
podem trazer rejeição da experiência literária em construção.
Iniciamos com a leitura da letra da música “Mulher - Sexo Frágil”, de Erasmo
Carlos, para depois também ouvir a gravação em áudio ou vídeo, todos disponíveis
na internet, devidamente referenciados e linkados em nossa produção didática. No
texto da canção, propusemos a discussão de quem seria o narrador, assim como
sobre a visão que tem da mulher, pois ao contrário do ideário popular, a mulher não
é vista como o sexo frágil. Procuramos os argumentos do compositor para negar
essa visão, assim como aspectos de intertextualidade com a Bíblia. Discutimos
sobre se seria uma visão positiva ou negativa da mulher.
Na sequência, propusemos a leitura da letra e audição da música “Cor de
rosa choque”, de Rita Lee e de Roberto de Carvalho, representando uma outra visão
da mulher. Pudemos nos remeter à intertextualidade pela referência a dois contos de
fadas e à Bíblia na letra da canção, mostrando como os autores dialogam com
elementos culturais da humanidade. Após ouvir a música, falamos também um
pouco do gênero conto de fadas, bem familiar aos alunos. A maioria tem ou teve
contato com essas histórias, seja nos primeiros anos do Ensino Fundamental, seja
nas releituras televisivas ou cinematográficas, fatos que mencionaram durante a
discussão.
Nessa etapa do trabalho, consideramos um salto realmente qualitativo no
trabalho a proposta a leitura de um texto um pouco mais complexo e longo, o conto
“I Love my husband” de Nélida Pinõn. Tínhamos ciência de que haveria uma ruptura
significativa no horizonte de expectativas dos alunos, mas acreditávamos que as
atividades prévias já possibilitassem esse avanço.
Lembramos aos alunos que o texto de Nélida Pinõn é de 1980 e, após
questionamentos com a turma, chegamos à conclusão de que pode ser lido como o
retrato do casamento burguês, em que a mulher costumava ser alienada. O texto é
permeado por duas vozes: a voz social, representada pelo marido, que confirma o
lugar da mulher como mãe e esposa. Essa voz é repetida pela narradora. A outra
voz é da mulher que, ao mesmo tempo, questiona esse modelo patriarcal. Na
verdade, o texto é muito irônico, porque a história mostra uma personagem feminina
que procura independência e libertação, mas, por medo da rejeição social, prende-
se àqueles padrões familiares que definem seu lugar.
Relembramos com os alunos o conceito histórico de sistema patriarcal de
família, no qual o homem é a maior autoridade e as outras pessoas da família
devem obediência a ele. Em continuação dessa etapa, fizemos uma reflexão com os
alunos sobre o lugar ocupado pela mulher na sociedade de hoje. Será mesmo que
elas conquistaram uma independência em comparação ao homem e liberdade na
sociedade ou ainda se podem perceber resquícios ideológicos do sistema patriarcal
na representação da mulher, por meio de estereótipos ou inferiorizações?
Em outra aula, fizemos a leitura do conto “Apelo”, do escritor Dalton Trevisan,
em que o protagonista se separa de sua companheira e, a princípio, gosta do fato.
Porém, com o passar dos dias percebe a falta que ela faz para o bom andamento
das coisas em casa. Discutimos com os discentes a visão da mulher que
transparece no conto, ou seja, de alguém que tem sua “utilidade” para o homem,
sem a qual as coisas desandam com o tempo.
Como no sistema patriarcal, o homem está no centro dos interesses, acaba
se sentindo dono de tudo, até da mulher. A pior consequência disso ocorre quando,
ao menor sinal de contrariedade ou mesmo sem motivo algum, a mulher sofre
violência por parte do parceiro, de maneira mais comum quando o marido é
alcoólatra.
A essa altura da implementação de nossa proposta, fizemos referência à
história da vida e luta de Maria da Penha, que sofreu violência constante por parte
do marido. Reproduzimos para leitura em classe um texto da Wikipédia, que discorre
sobre sua relação dolorosa com o ex-marido.
Além desse conteúdo, introduzimos como parte do estudo dos diferentes
gêneros e complementação dessa etapa, a leitura de trechos da Lei Maria da Penha
(BRASIL, 2006), para que conhecessem parte de seu conteúdo e das características
desse gênero da esfera jurídica. Esta foi uma leitura complementar em que se
chamou a atenção dos alunos para as expressões típicas de esfera jurídica e as
características formais de organização de uma lei.

3.4 QUESTIONAMENTO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS


Nesta etapa do Método Recepcional, fizemos com a turma uma análise sobre
o material já trabalhado, procurando determinar quais textos exigiram mais reflexão
para a descoberta dos sentidos possíveis, quanto a seus temas e construção. Ficou
evidente que os textos literariamente mais densos dão mais trabalho na busca de
seus sentidos, mas as gratificações são maiores.
Como sugerem Bordini e Aguiar (1988), este é um momento de conversar
sobre as leituras feitas anteriormente. Começamos com o básico, perguntando sobre
qual dos textos literários os alunos mais gostaram ou com qual mais se
identificaram. Os questionamentos versaram sobre se o uso da linguagem e a forma
do texto eram iguais em todas as obras lidas; qual dos textos tem uma linguagem
mais simples e direta; qual deles tem a linguagem mais complicada; qual texto
tinham achado mais criativo ou diferente de tudo o que já viram; quais eram os mais
parecidos entre si no assunto e quais eram mais parecidos entre si na forma.
Em seguida a essa discussão sobre os textos lidos antes, pedimos aos alunos
que produzissem um texto sobre as semelhanças e diferenças na representação da
mulher, nas propagandas, nas músicas e nos outros textos. Os resultados nos
supreenderam, pelo avanço percebido nos discentes em direção a uma leitura mais
crítica dos diferentes gêneros abordados em diálogo com o conto.

3.5 AMPLIAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS


Nesta etapa se esperava que os alunos tivessem adquirido a consciência de
que a leitura não é mais somente uma tarefa escolar. A experiência com a literatura
teria proporcionado alterações e aquisições em relação ao horizonte inicial de
leituras. Esperava-se que o nível de exigência tivesse aumentado, assim como a
capacidade de decifrar as matizes de uma obra de literatura.
Nesta etapa, os alunos parecem haver demonstrado a compreensão de que a
leitura não deve ser apenas uma tarefa escolar, mas uma oportunidade de ver o
mundo numa perspectiva mais abrangente. O ato de ler significa ampliar os
horizontes. A essa altura, espera-se que o aluno se torne autor de sua própria
aprendizagem, assumindo ele mesmo a continuidade do processo, num ininterrupto
enriquecimento social e cultural. Isso porque, conforme descrito por Aguiar e Bordini
(1988), o Método Recepcional evolui em uma espiral, de modo que esta última etapa
passa a ser, na verdade, a primeira de uma nova séria progressiva de elevação
cultural por meio da leitura literária.
Encerramos esse ciclo com os contos de Marina Colasanti, sobre quem
apresentamos informações biográficas, localizando seu importante papel como
jornalista e escritora na divulgação de ideias libertárias a respeito da condição
feminina.
Lemos com os alunos o conto “A moça tecelã” de Colasanti, propondo
questões para sua interpretação. Chamamos a atenção para o fato de que se trata
de um conto de fadas moderno, o que os alunos puderam comprovar, observando
os elementos mágicos presentes na obra. Exemplo disso é o detalhe de que, para
acabar com sua solidão, a moça tenha “tecido” um marido, o qual depois se revelou
um estorvo em sua vida.
Mostramos aos alunos uma possibilidade interpretativa do conto, a saber, que
a autora mostra que existe esperança e que a situação de subserviência feminina
pode ser mudada. A submissão é mantida durante um certo tempo pela moça. Mas,
no final da história, cansada de sua posição inferior e da exploração do marido, a
jovem tecelã ganha coragem de mudar seu destino, removendo o marido de sua
vida. Os discentes ficaram admirados com a temática e a maneira encantadora que
a arte da palavra encontra para prender a atenção do leitor.
Os alunos também se surpeenderam com a leitura de outros dois outros
contos curtíssimos da autora: “Porém igualmente” e “Para que ninguém a quisesse”,
os quais abordam, respectivamente a violência contra a mulher; o primeiro, a
violência física de fato e o segundo, a violência mais simbólica, visto que neste
Marina Colasanti explora o ciúme e o sentimento de poder que o homem deseja ter
sobre a mulher, a ponto de querer destituí-la de seus atrativos para outros homens.
Fizemos questão de frisar que o ciúme da parte do homem não é visto como
ridículo, porque na sua visão, ele está defendendo um direito sagrado de posse,
assunto que gerou um acalorado debate entre os alunos
Para finalizar de forma lúdica, abordamos um texto do gênero literatura de
cordel. Embora o tom humorístico predomine, o texto trata de várias das questões
da relação homem e mulher vistas nesta proposta, além de outras, a serem
comentadas com os alunos. O texto lido foi o poema de cordel “A mulher que
vendeu o marido por 1,99”, de Janduhi Dantas. Entre as várias questões que
pedimos que os alunos levantassem, surgiram, entre outros, os temas: direitos
iguais; mulher: artigo de cama e mesa; divisão do trabalho doméstico; mulheres em
serviços que homens faziam; salário mais baixo da mulher; marido alcoólatra;
referência a mulheres marcantes da vida brasileira e a desforra da mulher.
De toda a experiência da implementação, restou-nos a certeza de que a visão
dos alunos sobre literatura mudou bastante. Perceberam que as experiências
humanas estão codificadas na arte literária. Embora seja quase sempre inventado, o
material da literatura é retirado de assuntos reais de nossas vidas e serve para nos
fazer pensar e repensar nossas realidades. É nesse sentido que Bordini & Aguiar
(1988) nos apoiam dizendo:
A literatura, desse modo, se torna uma reserva de vida paralela, onde o leitor
encontra o que não pode ou não sabe experimentar na realidade. É por
essa característica que tem sido acusada, ao longo dos tempos, de
alienante, escapista e corruptora, mas é também graças a ela que a obra
literária captura o seu leitor e o prende a si mesmo por ampliar suas
fronteiras existenciais sem oferecer os riscos da aventura real (p.15).

Como nos colocou uma aluna, na literatura, nós nos colocamos no lugar dos
personagens, vivemos suas vidas, sem correr de fato os riscos que eles correm,
mas isso pode até mudar nossa vida, porque podemos visualizá-la de um ponto de
vista diferente, tomando consciência de que o que vivemos não é tudo que há para
viver e que nem tudo precisa ser do jeito que sempre foi.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Justificamos no início do estudo a ineficácia da escola na formação de leitores
competentes ou, ao menos, funcionalmente alfabetizados, ou seja, capazes de ler
de forma compreensiva um texto. Ao longo deste trabalho de mediação da leitura,
com base no Método Recepcional, percebemos que um dos caminhos possíveis
para o letramento de fato é se trabalhar a língua em seu mais alto grau de criação
estética, o gênero literário.
Para a consecução desse objetivo, assumimos o conteúdo estruturante que
toma o discurso como prática social, promovendo o diálogo do gênero conto com
gêneros de outras esferas, literárias ou não, verbais e não-verbais. Percebemos que
um trabalho de crescimento em leitura não pode prescindir da mediação do
professor, ao menos em um primeiro ciclo das etapas do Método Recepcional. Isso
requer um professor preparado, pois sem a interferência de um leitor maduro,
dificilmente o aluno conseguirá alcançar sozinho os implícitos e as intenções nas
entrelinhas do texto.
Porém, como deixam claro Bordini & Aguiar (1988), espera-se que, com o seu
amadurecimento como leitor, pelo desenvolvimento de uma crescente percepção
estética e ideológica, o sujeito/aprendiz possa ele mesmo definir a continuação do
percurso, tornando-se o agente de sua aprendizagem, nos incessantes ciclos de
crescimento sociocultural.
Em uma avaliação global da proposta de implementação escolar, nos moldes
da pesquisa-ação levada a efeito, podemos dizer que houve um crescimento
quantitativo e qualitativo na formação de leitores com a turma em que
desenvolvemos a proposta.
No mínimo, fica a certeza de que a compreensão dos alunos sobre literatura
mudou bastante. Puderam constatar que as experiências humanas estão
representadas na arte literária. Mesmo sendo quase sempre fictício, o material da
literatura provém de temas verossímeis e serve para nos fazer pensar e repensar a
realidade humana, sem incorrer em perigos reais de seus personagens.
Sem nem todos os alunos puderam ser sensibilizados com a proposta da
literatura, o que julgamos natural por fatores diversos ligados à individualidade e
outros, acreditamos haver mostrado para todos a literatura como uma arte capaz de
nos aproximar e nos distanciar de nossas vidas, pela possibilidade de colocá-la na
devida perspectiva e até de transformá-la. A escolha por este ou outros caminhos
evidentemente ficará condicionada aos pendores individuais.
Reconhecemos limitações no presente estudo, seja de tempo e até mesmo
teórico-metodológicas. No entanto, estamos certos de que a questão da formação
de leitores pela via dos gêneros literários continua sendo campo vastíssimo de
estudos de extrema relevância em um país de tão poucos leitores e apreciadores da
arte da palavra.

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