Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cadernos PDE
1 INTRODUÇÃO
Se grande parte do conhecimento da humanidade é difundido pela escrita,
não resta dúvida que a formação de leitores competentes deve ser a principal meta
da instituição escolar como um todo, não apenas dos docentes de Língua
Portuguesa.
1
Professora do Quadro Próprio do Magistério do Paraná, participante do Programa de
Desenvolvimento Educacional – Edição 2013. Atua no Col. Estadual João Turin – EFM – Em São
Sebastião da Amoreira – PR.
2
Professora Titular no Curso de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP –
Campus de Cornélio Procópio – PR.
Nessa visão nos apoia Perini (2005), quando assinala que grande parcela dos
egressos da Educação Básica demonstra flagrante incapacidade na leitura inteligível
de textos. Esse chamado analfabetismo funcional coloca a questão da formação do
leitor como um dos problemas centrais da educação brasileira, robusto argumento
para propostas de intervenção nessa realidade.
Longe de ser apenas decodificação mecânica de símbolos, tem-se que a
leitura implica uma resposta do leitor ao que lê, um diálogo que acontece em um
certo tempo e espaço. No ato da leitura, portanto, o leitor é convidado pelo texto,
movimentando seu próprio conhecimento e experiência de vida para sua edificação
individual de significados.
Este estudo relata e discute uma proposta de intervenção escolar que teve
como conteúdo estruturante o discurso como prática social, abordando-se a
multiplicidade de gêneros discursivos das diversas esferas sociais, com ênfase na
esfera literária, nomeadamente nos contos. Tal concepção harmoniza-se com a
proposta das Diretrizes paranaenses para a disciplina de Língua Portuguesa em
relação à leitura, segundo a qual:
Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais:
jornalísticas, artística, judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana,
midiática, literária, publicitária, etc. No processo de leitura, também é
preciso considerar as linguagens não-verbais. A leitura de imagens, como:
fotos, cartazes, propagandas, imagens digitais e virtuais, figuras que
povoam com intensidade crescente nosso universo cotidiano, deve
contemplar os multiletramentos mencionados nestas Diretrizes (PARANÁ,
2008, p.71).
2 REVISÃO DE LITERATURA
Tal concepção clarifica o caráter individual da leitura, pelo fato de que ela se
efetiva no ato da recepção do texto pelo leitor. Como nos apoia Perfeito (2005), para
a concretização da leitura comparecem fatores linguísticos e não-linguisticos, dado
que o potencial significativo do texto precisa interatuar com o conhecimento do leitor
para ser atualizado. De igual forma, o ato dialógico da leitura acontece, então, em
um tempo e um espaço determinados. Assim, um texto leva a outro, e o leitor, ao
checar os significados do texto com seu próprio conhecimento e sua experiência de
vida, participa dessa construção de sentidos.
De modo geral, não há uma avidez natural por leitura, uma vez que leitores
não costumam se formar espontaneamente, fato que deixa a situação da leitura
inalterada. Há alguns anos se reclamava que os alunos de escolas públicas não
tinham acesso aos livros. Hoje os livros chegam às escolas, mas em muitas delas
permanecem dentro das caixas, como costuma acontecer com os livros recebidos
de programas como o PNBE (PAIVA, 2012).
A começar pela necessidade de estratégias para fazer circular o livro na
escola, igualmente se realça o imperativo de uma metodologia que conduza o
trabalho pedagógico com a leitura dos gêneros literários na escola. Como alude
Cosson (2007), mesmo que a formação de leitores de textos literários deva se dar
pela criação do gosto, para que não se perca “o saber e o sabor da literatura”
(p.107), tal trabalho não pode ocorrer, na escola, sem a obrigação da aquisição do
conhecimento exigido por qualquer área do conhecimento. Dessa forma, o trabalho
com a literatura na escola pede uma abordagem metódica, que afiance o lugar da
fruição, mas que também enseje o direcionamento necessário à eficácia do trabalho
pedagógico.
Dado o fato de que a obrigação de formar leitores é conferida quase que
somente à instituição escolar, atenta-se ao papel insubstituível do professor,
tornando-se indispensável que ele adquira uma formação teórica consistente e
principalmente um vasto repertório de leituras, de modo que ultrapasse os sentidos
propostos pelos autores de livros didáticos. Assim, o professor pode assumir sua
aula de maneira independente, colocando o livro didático na função de ferramenta
de apoio, não de ditador das interpretações dos textos literários.
Dessa forma, a proposta relatada neste artigo buscou refinar os
desdobramentos didáticos do Método Recepcional para a contemplação das
perspectivas de leitura aqui apresentadas, tomando o gênero literário conto como fio
condutor para diálogos possibilitadores da transcendência dos horizontes de
expectativa dos alunos participantes da implementação, escolhendo o tema
Violência contra a mulher. Com isso, busca-se aumentar o conhecimento para a
construção de metodologias possíveis para a formação de leitores proficientes na
abordagem dos textos literários.
Nesta etapa, Bordini e Aguiar (1988) propõem que o docente, por variados
meios, procure diagnosticar os interesses atuais dos alunos, ou seja, que faça uma
sondagem inicial para a delimitação dos horizontes de leituras ou de temas de
interesse dos alunos.
Foi aplicado aos alunos um questionário, para apreendermos seus horizontes
de expectativas frente à leitura, como forma de obtenção de dados sobre seu meio
social, de estilo de vida, lazer e outros relevantes à condução da implementação do
projeto. Antes da aplicação do questionário, lemos e comentamos as questões
juntamente com eles, com o intento de incentivá-los a responder. Frisamos que a
atividade não tinha finalidade avaliativa, solicitando que respondessem com toda a
sinceridade. Devido à extensão, o questionário foi dividido em duas partes e
aplicado em dois momentos distintos.
Outras formas de sondagem do horizonte de expectativas foram a visita à
biblioteca e a ilustração de um livro que leram ou de um filme a que assistiram.
Como a atividade foi dada como tarefa, puderam também ilustrar por meio de
colagens diversas. Com essas atividades, pretendia-se analisar os interesses e
níveis de leitura dos alunos, como forma de obtenção de subsídios para o
prosseguimento do projeto de leitura.
Os resultados do questionário reproduzido na Produção Didática realizada
foram desanimadores, mas muito desafiantes. O que nos chamou a atenção foi o
fato de que a maioria dos alunos não tem muitos livros, nem revistas em casa, e um
número menor ainda de famílias é assinante de jornal. Grande parte dos alunos lê
mais na escola, e as leituras obrigatórias dos livros didáticos ou alguma obra de
literatura solicitada por algum professor. Os discentes não têm muitos modelos de
leitores em casa e recebem pouco incentivo quanto à importância de se ler. A
maioria gasta o tempo assistindo televisão, ouvindo música, falando, jogando ou
navegando na internet, seja pelo computador ou celular. Apenas dois alunos, de
uma turma de 35, estavam lendo livros tomados de empréstimo da biblioteca.
Após a descrição das demais etapas da implementação, procuraremos dar
um fecho a essas questões nas considerações finais, desvelando os resultados
alcançados.
3.2 ATENDIMENTO AO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS
Nesta fase, são oferecidos aos alunos textos que contemplam suas
aspirações, valores e familiaridades com literatura. Além das experiências com
obras literárias do universo dos alunos, defende-se também que as estratégias de
ensino considerem o gosto do aluno.
Como a elaboração da Unidade Didática se deu anteriormente à
implementação escolar, tínhamos ciência de que sua aplicação sofreria as
adequações necessárias, a partir das atividades iniciais de determinação dos
horizontes de expectativas dos alunos. Contudo, pela vivência na instituição escolar
da intervenção, sabíamos de antemão que nossos alunos vivem em uma cultura
predominantemente visual e que o mundo digital é parte integrante da vida da
maioria deles. Quase todos têm acesso à internet pelo celular ou computador, por
meio dos quais acessam e interagem nos sites de redes sociais, como o facebook,
whatsApp e outros.
Dessa forma, para introduzir a temática da mulher e abordar sua
representação na literatura, os trabalhos foram iniciados com vídeos de propaganda
de cerveja e de chinelo, nos quais se revela uma visão da mulher sob um
estereótipo de símbolo sexual.
Nos vídeos de propaganda de cerveja, por exemplo, mostramos aos alunos
que o uso da imagem da mulher é recorrente. Outros vídeos, porém, como alguns
de propaganda de margarina mais antigos, promovem o papel da mulher como dona
de casa exemplar e incansável.
Com intensa participação da turma, o questionamento colocado em sala
abordou como a mulher é vista em cada um dos comerciais, que exibimos na TV
Pendrive. Pudemos discutir com os alunos os papéis da mulher como símbolo
sexual, de dona de casa exemplar, submissa e multifuncional (faz-tudo). Uma aluna
sugeriu que os comerciais mostram o ponto de vista masculino sobre a mulher.
Nesse sentido, o ser feminino parece nem ter opinião, é apenas um corpo.
Avançamos um pouco, dentro do horizonte de expectativas dos alunos,
apresentando a música “Piriguete” em ritmo de funk, do MC Thiago, cuja letra
reforça o lugar da mulher como objeto sexual, colocando seu corpo como valor de
troca, estigmatizando e denegrindo sua imagem.
Nesse ponto, pudemos trabalhar um pouco também a questão do gênero
textual/discursivo. Entregamos a letra de uma música relativa à próxima atividade
para os alunos, sem dizer que era a letra de uma canção e perguntamos a eles que
tipo de texto seria aquele. Seria um poema? Por quê? Quais características os
faziam pensar que se tratava de um poema? Depois que concluíram tratar-se da
letra de uma música, rodamos para eles a gravação e depois o vídeo da música
“Cotidiano” de Chico Buarque, questionando a diferença entre o gênero música
gravada (som) e de videoclipe (som e imagem).
No plano do conteúdo, discutimos como a letra da canção mostra a mulher
reduzida aos limites do lar, que todos os dias faz tudo sempre igual e vive sua vida
para servir ao marido, esperando-o todo dia no portão.
Em outra aula, pudemos fazer a distinção entre gêneros da esfera literária de
outros das outras esferas, fazendo a leitura de uma notícia de jornal ou reportagem
tratando da questão da violência doméstica contra a mulher ou de suas lutas.
Fizemos um apanhado das características formais e estilísticas da letra de música
de Chico Buarque em comparação com o texto da esfera jornalística. Os alunos
perceberam a distinção entre os aspectos conotativos e denotativos dos dois
gêneros, respectivamente.
Como nos colocou uma aluna, na literatura, nós nos colocamos no lugar dos
personagens, vivemos suas vidas, sem correr de fato os riscos que eles correm,
mas isso pode até mudar nossa vida, porque podemos visualizá-la de um ponto de
vista diferente, tomando consciência de que o que vivemos não é tudo que há para
viver e que nem tudo precisa ser do jeito que sempre foi.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Justificamos no início do estudo a ineficácia da escola na formação de leitores
competentes ou, ao menos, funcionalmente alfabetizados, ou seja, capazes de ler
de forma compreensiva um texto. Ao longo deste trabalho de mediação da leitura,
com base no Método Recepcional, percebemos que um dos caminhos possíveis
para o letramento de fato é se trabalhar a língua em seu mais alto grau de criação
estética, o gênero literário.
Para a consecução desse objetivo, assumimos o conteúdo estruturante que
toma o discurso como prática social, promovendo o diálogo do gênero conto com
gêneros de outras esferas, literárias ou não, verbais e não-verbais. Percebemos que
um trabalho de crescimento em leitura não pode prescindir da mediação do
professor, ao menos em um primeiro ciclo das etapas do Método Recepcional. Isso
requer um professor preparado, pois sem a interferência de um leitor maduro,
dificilmente o aluno conseguirá alcançar sozinho os implícitos e as intenções nas
entrelinhas do texto.
Porém, como deixam claro Bordini & Aguiar (1988), espera-se que, com o seu
amadurecimento como leitor, pelo desenvolvimento de uma crescente percepção
estética e ideológica, o sujeito/aprendiz possa ele mesmo definir a continuação do
percurso, tornando-se o agente de sua aprendizagem, nos incessantes ciclos de
crescimento sociocultural.
Em uma avaliação global da proposta de implementação escolar, nos moldes
da pesquisa-ação levada a efeito, podemos dizer que houve um crescimento
quantitativo e qualitativo na formação de leitores com a turma em que
desenvolvemos a proposta.
No mínimo, fica a certeza de que a compreensão dos alunos sobre literatura
mudou bastante. Puderam constatar que as experiências humanas estão
representadas na arte literária. Mesmo sendo quase sempre fictício, o material da
literatura provém de temas verossímeis e serve para nos fazer pensar e repensar a
realidade humana, sem incorrer em perigos reais de seus personagens.
Sem nem todos os alunos puderam ser sensibilizados com a proposta da
literatura, o que julgamos natural por fatores diversos ligados à individualidade e
outros, acreditamos haver mostrado para todos a literatura como uma arte capaz de
nos aproximar e nos distanciar de nossas vidas, pela possibilidade de colocá-la na
devida perspectiva e até de transformá-la. A escolha por este ou outros caminhos
evidentemente ficará condicionada aos pendores individuais.
Reconhecemos limitações no presente estudo, seja de tempo e até mesmo
teórico-metodológicas. No entanto, estamos certos de que a questão da formação
de leitores pela via dos gêneros literários continua sendo campo vastíssimo de
estudos de extrema relevância em um país de tão poucos leitores e apreciadores da
arte da palavra.
REFERÊNCIAS
ALVES, R. C. dos S.; RONQUI, A. S. A representação da violência contra a mulher
em alguns contos de Marina Colasanti. Ipotesi, Juiz de Fora, v.13, n.2, p.127-133,
jul./dez, 2009.
______. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010.