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Morwena

Foram tempos sombrios aqueles anos da peste negra. Mamãe me obrigava a


usar um pedaço de pano amarrado ao rosto e a passar minhas tardes ajoelhada na
igreja de nossa vila, rezando até que meus magros joelhos sangrassem enquanto
ela esfregava, torcia e pendurava sem parar, montes de roupas vindas do
monastério, onde monges apavorados pela possibilidade de serem contagiados pela
doença maldita, trancavam-se em suas celas que eram limpas e esfregadas toda
manhã pela mesma mulher que lavava suas roupas, com água benta, toda tarde:
minha pobre mãe.
Meu pai arrastava seu corpo magro e curvado aos campos de feno e trigo de
seu senhor antes mesmo do nascer do sol. As costas mal cobertas por um camisa
velha e rasgada tinham por companhia uma foice que era apoiada no ombro
enquanto ele ia, com o rosto coberto por um trapo muito branco, alvejado e limpo,
puído pelas inúmeras vezes que minha mãe o esfregou e benzeu com um pouco da
água benta que usava para lavar as roupas dos padres, toda manhã. Nenhum deles
havia adoecido e ela, na esperança de que aquele pequeno pedaço de pano pudesse
afastar a peste de meu pai e de mim, lavava-os toda noite, antes mesmo de continuar
seus muitos afazeres em nossa pobre casa. Aqueles dois pequenos pedaços de
pano, rasgados furtivamente por ela, da barra de uma das batinas mais velhas,
bentas com aquela água tão poderosa, eram tudo para ela. Eram muito pequenos e
só puderam servir para dois de nós três. Ela, não usava nenhum. Dizia que não
precisava, pois, todos os dias tocava em objetos e água sagrada: nada poderia lhe
proteger mais.
Naquela tarde, já cansada de rezar, fugi para os campos dourados que
cercavam a cruz da estrada e, sem aquele pedaço de pano que me sufocava, fiquei
sob o sol, dormindo até ouvir um cantar suave ao longe: “ Não atravesse os campos
de feno, os campos de feno, não atravesse os campos de feno, enquanto desce o
sol vermelho- sangue, fantasmas deslizam nos rolos de feno, no campo de feno, no
campo de feno, fantasmas deslizam nos rolos de feno ,no brilho sinistro do sol , não
atravesse o campo de feno...”
Olhei para todos os lados, mas não vi nada. Subi numa árvore para poder
olhar mais distante do que a minha pequena estatura de uma criança de dez anos
me possibilitasse enxergar, mas não havia nada. Um arrepio gelado tomou conta de
mim quando as palavras de minha mãe me bateram a memória: “ Cuidado com as
fadas que habitam nos campos e nas florestas, elas são seres mentirosos, vão lhe
prometer felicidade mas só o que querem é levar crianças para serem seus servos
no mundo da magia. Não ouça as fadas. Elas são pequenos demônios disfarçados,
prontas para enganar crianças ingênuas como você.” Desci da árvore apavorada e,
agarrada ao trapo bento que antes cobria minha boca, corri para casa, deixando para
trás o sol que se punha; vermelho como sangue.
Cheguei em casa quase sem ar, a noite já caia e a escuridão tomava conta
de tudo. Entrei e estranhei o fato de que mamãe não estivesse à beira do fogão de
lenha e que o pequeno trapo miraculoso de meu pai se encontrasse caído ao lado
do fogo, largado lá, descuidado e ainda sujo da poeira dos campos.
Silenciosamente levantei a cortina, amarelada de tantos anos de uso, que
separava a cama de meus pais do resto da casa e encontrei ali a maior escuridão do
mundo: meu pai e minha mãe abraçados, num silêncio sepulcral, manchas inchadas
e negras começavam a despontar no pescoço dela e ele, tinha todos os dedos do pé
direito enegrecidos como se fossem uma bolha só, do qual escorria um líquido verde
e mal cheiroso. Lembrei-me de já ter sentido este odor em casa: meus pais haviam
escondido isso de mim por dias a fio. Talvez fosse por isso que ela me obrigava a
ajoelhar-me por horas em frente ao altar de Santa Madalena e rezar, enquanto eles
trabalhavam para garantir nossa pequena casa e comida simples e pouca que
conseguíamos pagar. Minha mãe me olhou e suspirando pediu que eu me afastasse
da cama, vá bem longe disse ela, não há mais nada a ser feito, a não ser rezar por
nossas almas ..
Encolhi-me chorando do lado de fora da porta sem saber o que fazer. A noite
foi fria, longa e escura e eu sabia que assim seria o resto de minha vida sem meus
pais. Eu precisava fazer alguma coisa. Quando sol nasceu , fui ao monastério pedir
ajuda para aqueles a quem minha mãe serviu por tantos anos mas, não consegui
nem ao menos que me abrissem a porta, responderam lá de dentro que rezariam por
suas almas. Fui à casa do senhor de meu pai mas, ele me respondeu que já havia
pago o que ele lhe devia pela semana trabalhada. Perdida e sem esperanças me
arrastei chorando pelos campos de feno em direção à vila. O sol vermelho - sangue
já ia se pondo quando, cansada de chorar, sentei -me em uma pedra à beira de um
riacho e ali ouvi novamente o canto das fadas.
Desta vez as vozes pareciam estar cantando bem perto de mim: - “Não
atravesse o campo de feno, o campo de feno, não atravesse o campo de feno,
enquanto desce o sol vermelho – sangue. Fantasmas deslizam nos rolos de feno, no
campo de feno, no campo de feno, fantasmas deslizam nos rolos de feno, no brilho
sinistro do sol. Não atravesse o campo de feno, o campo de feno, o campo de feno,
fantasmas deslizam nos rolos de feno, no brilho sinistro do sol. O Ceifeiro atravessou
o campo de feno, o campo de feno, o campo de feno, o Ceifeiro atravessou o campo
de feno e afundou o sol vermelho – sangue. ”
- Você deve fazer um sacrifício, e obterá seus favores.
Uma voz feminina e rouca sussurrou estas últimas palavras em meu ouvido.
Não a vi mas, ouvi claramente o que ela me disse: - “ Você deve fazer um sacrifício”.
Quando me levantei entendi o que ela me propunha e aceitei, para salvar meus pais.
Caminhei para dentro do campo de feno, em direção ao sol vermelho-sangue e me
encontrei com o Ceifeiro; a morte na forma de uma pequena foice de mão que ela
havia deixado ao meu lado na última vez que descansei.
Desde então, caminho pelo campo de feno, cantando a mesma canção que
ela cantava. Por algum tempo ainda, há muito tempo atrás, pude ver meu pai se
arrastar mais cansado e velho pelos mesmos campos de seu senhor enquanto minha
mãe, lá na vila, em sua vida protegida por aquele que ela acreditava ser seu
Salvador, rezava toda noite. Até que os vi serem levados, um e depois o outro, ao
cemitério da vila, cobertos por um dos lençóis brancos dos monges: sem nada, como
viviam.
Eu , permaneço, me arrasto, presa num infinito de cantos e sóis vermelho -
sangue. Crianças vão e vem, em diferentes roupagens e eu ainda consigo afastar-
me delas mas, o tempo não para e esse permanecer tem me enfraquecido. Continuo
a cantar avisando-as sobre o ceifeiro : “Não atravesse o campo de feno, o campo de
feno, não atravesse o campo de feno, enquanto desce o sol vermelho – sangue.
Fantasmas deslizam nos rolos de feno, no campo de feno, no campo de feno,
fantasmas deslizam nos rolos de feno, no brilho sinistro do sol. Não atravesse o
campo de feno, o campo de feno, o campo de feno, fantasmas deslizam nos rolos
de feno, no brilho sinistro do sol. O Ceifeiro atravessou o campo de feno, o campo
de feno, o campo de feno, o Ceifeiro atravessou o campo de feno e afundou o sol
vermelho – sangue. ”
Ele está por perto novamente e, dessa vez, não terei mais forças para afastá-
las da pequena foice pois, só a morte de uma delas, será a minha liberdade. A
tentação de por fim ao meu sofrimento é enorme ! Anos e anos e tantos anos que já
nem sei, presa nesse campo de feno. As casas que eu vi serem construídas já
viraram pó, o monastério está em ruínas, nada do que eu fui sobrou.
E então, num momento de distração, não a vi chegando. Ela se sentou ao
meu lado, na mesma maldita pedra, a beira do riacho e chorou. Seu coração tinha a
dor mais pura do mundo e eu , a troca mais podre. Deixei a foice que carregava por
muitos anos , delicadamente colocada a seus pés e disse:
- Você deve fazer um sacrifício e obterá os seus favores...

Capitulo 1

Anne descansou a mão, segurando a caneta tinteiro dourada, gasta pelo


tempo, ao lado dos papeis em que havia rascunhado a história de Morwena. Não
sabia porque tantas mulheres más saiam de sua imaginação, não sabia também se
eram mesmo más ou a vida havia as deixado assim.
Morwena havia nascido em um final de semana quando Ana estava em casa
, sozinha , assistindo a uma série de televisão: “ Os mortos e os vivos”. A música de
um dos episódios tocou sua imaginação de escritora e deu a Marwena a chance de
falar : “Do not cross the hayfield, the hayfield, the hayfield; do not cross the hayfield,
when sinks the red- blood sun, for ghosts glide from the hayricks, in the hayfield, in
the hayfield, for ghosts glide from the hayricks, in the eerie glow. Do not cross the
hayfield, the hayfield, the hayfield, for ghosts glide from the hayricks, in the eerie
glow. Riper crossed the hayfield, the hayfield, the hayfield, Riper crossed the hayfield
and sank the red-blood sun.”
Ao início tão boa, ao final uma vilã. Anne se perguntava muito porque todas
elas eram assim. Seria o destino de toda mulher? Nascer doce, doar-se a todos e
depois desaparecer em meio a tantas exigências do mundo? Ser dócil, inteligente,
linda, sedutora, inteligente, educada, perfeita? No fim todas se revoltam ou, desistem
de ser.
Naquela noite, especialmente, Ana queria desaparecer desse mundo e
trocaria de lugar com Morwena sem pestanejar, se ela sussurrasse em seu ouvido:
“ Você deve fazer um sacrifício.´ e ela nem precisaria que a outra atendesse ao seu
desejo, porque afinal, desejar morrer, ela o que ela queria naquele momento mas,
sua crença não a permitia que o fizesse por si própria: pegar a faca na cozinha e
ver seu próprio sangue escorrendo por sua mãos não era uma opção: ela sabia o
que ocorreria depois, ficar presa, como Morwena, em uma infinito de nada ,
carregando a mesma dor, pela eternidade.
Decidiu que a eternidade seria um período muito longo para chorar pelo último
da lista de namorados que a haviam decepcionado e, tampando cuidadosamente a
caneta preciosa que havia ganho de seu avô numa das visitas aos antiquários da
cidade, levantou e dirigiu-se ao banheiro.
Olhou-se no espelho e pensou que não era feia: tinha os cabelos castanhos
lisos e comuns mas, seus olhos eram diferentes: havia uma alvura intensa onde se
deitavam as pupilas verdes. As sardas sobre o nariz davam-lhe um tom antiquado,
um ar de menina de um tempo passado. E era assim que Ana se sentia: de um tempo
passado.
Adorava andar por cidades com construções antigas, ouvir músicas de um
tempo diferente, comprar objetos em antiquários e roupas em brechós como se
pudesse absorver toda a história que elas continham. Sim, Ana era antiquada, Vivia
no século XXI mas, não estava nele.
Ajeitou o lenço de seda pura marrom e laranja que segurava seus cabelos
presos em um rabo de cavalo no topo da cabeça, passou seu batom rosado com
cuidado, colocou um pouco de rímel nos cílios e para finalizar, um pouco de perfume
adocicado em seus pulsos. Olhou para a calça jeans que usava e decidiu que, iria
colocar aquilo que gostava, não importava o que suas amigas iriam dizer.
Subiu as escadas até seu quarto e revirou o guarda roupa em busca da saia
preta rodada , que descia até os joelhos e destoava imensamente da saia de suas
amigas: justas e curtíssimas. Um par de sapatos preto e branco, com ponta fina e
salto altíssimo, completaram o traje juntamente com uma blusa justa de crochê
finíssima feita com toda a paciência do mundo, em um ponto todo rebuscado, pela
avó da moça. Ou eu deveria dizer mulher? Afinal ela já estava com 27 anos !
O jantar com as amigas havia sido recusado muitas vezes. Ana queria ficar
sozinha e chorar todas as suas dores e decepções amorosas mas, Morwena havia
salvo sua noite e ao invés de lhe sussurar : “ Você deve fazer um sacrifício e obterá
seus favores” a havia feito ver que a vida é um infinito de tentativas e, para sermos
felizes, precisamos fazer alguns sacrifícios. O sacrifício de Ana seria sair de casa e
ter que explicar mil vezes a última falha dela, teria que contar mais uma vez porque
não aceitou o que Jonas tinha proposto a ela: que morassem juntos sem se casar.
Antes ela já havia explicado sobre Pedro que nunca se lembrava de levar-lhe uma
lembrancinha, Ademir que nunca lhe pagava um jantar, Paulo que tinha a mania de
vira-se para o lado e dormir sem lhe dar um carinho após o sexo e Carlos que nunca
a elogiava . As amigas diziam que ela queria alguém que não existia e por isso estava
sozinha: de novo!
As amigas chegaram atrasadas, como sempre. Ana já havia se acostumado
a isso. Algumas delas já eram colegas de faculdade, outras haviam sido recolhidas
pelo caminho na sala de professores da escola onde ela trabalhava afinal, ser
somente uma escritora não lhe rendia dinheiro suficiente para as contas que dividia
com os pais aposentados.
- Meu Deus Ana, hoje você está um personagem de Hitchcock ! Direto dos
anos 50 ! Qual o nome do filme mesmo meninas?
Rosemary, sua melhor amiga desde o primeiro dia da faculdade, a pessoa
que a acolheu nos corredores da vida, gritou enquanto Anne trancava a porta de
casa e descia as escadas da varanda indo em direção ao carro enquanto as outras
quatro mulheres a esperavam e discutiam sobre o nome do filme.
- “Janela indiscreta”. Respondeu Jackie, uma professora de artes na
academia de cinema de Nova York, nascida e criada na Inglaterra mas que havia
vindo aos EUA acompanhando seu pai que era cônsul em Nova York e também um
pequeno nobre inglês. Elas se conheceram na faculdade, em um evento sobre Artes
Britânicas e desde então tinham muito em comum, com exceção da conta bancária.
As duas outras eram colegas de trabalho. Ana , Rosemary, Lily e Maryane
lecionavam na mesma escola : Literatura, História, Biologia e Matemática. Jackie foi
introduzida no grupo por Anne e mantida ali por Anne também, já que Rosemary não
gostava muito da “ princesa” que ela dizia ter sotaque e pose de nobreza.
- Obrigada Jackie mas eu já ia lembrar. – Disse Rosemary irritada enquanto
arrancava o carro.
A escolha do restaurante não foi um consenso. Rosemary tinha uma
personalidade forte e não mudava de opinião quando decidia algo. Anne achou o
lugar muito barulhento e mal arrumado. Uma cantina italiana não era o que ela queria
naquela noite. De personalidades tão distintas uma pessoa não entenderia como
podiam ser tão amigas. Talvez fosse esse fator que as unia tanto. Uma completava
a outra. A timidez, seriedade, elegância, doçura e inteligência de Anne completavam
a simpatia, segurança, auto- estima, espírito aventureiro e coragem da amiga. Se
alguém que não as conhecesse chegasse à mesa em que se sentavam diriam que
Jackie era sua melhor amiga, nunca Rosemary.
- E então Anne, mais um para a lista de imperfeitos? Coitado do Jonas! –
Disse Rosemary em um tom jocoso.
- Não comece Rosemary, você me conhece, sabe que não vou abrir mão de
meus sonhos. – Anne respondeu a amiga enquanto tomava uma taça de um vinho
especial escolhido por Jackie.
- Mas Anne, vocês já estavam há dois anos juntos! Já dormiam juntos, não é?
Ou você vai querer me convencer que quer casar virgem?
- Rose... Você sabe que já dormi com muitos homens, não me importo com
isso! Só não quero abrir mão de casar-me na igreja, com tudo que tenho direito. Não
vou abrir mão disso para fazer uma experiência! Então ficamos como estamos! Ele
lá na casa dele e eu na minha! Mas ele não quis me agradar, então paciência, um
homem que não faz algum sacrifício para ficar com a mulher que ama não me
merece. Ponto. Caso encerrado. Vamos falar de outra coisa? – Anne segurou as
lágrimas para não mostrar às amigas o quanto estava acabada, decepcionada com
o homem que achou que seria seu para sempre, ela sabia que se chorasse, as
colegas da escola iriam contar a ele e, ela iria ter que enfrentar seu olhar de pena no
intervalo das aulas. Ela sempre soube que não era ele, mas quis insistir na ideia de
que poderia ser. Agora, ao invés de correr para o campo de futebol, para encontra-
lo no final das aulas, iria correr para longe dali, até o ano acabar e ter um pouco de
paz.
Jackie quebrou o silencio que manteve desde a saída brusca de Rosemary
depois do episódio do nome do filme: “Rose, você tem sonhos? Tem sim, você me
disse uma vez que sonha em conhecer a Irlanda, Inglaterra e Escócia! Pois bem, seu
sonho é tão valido quanto o de Anne! Cada uma de nós aqui tem seus sonhos, por
mais antiquados que possam ser!
- Eu sonho em voar de planador! - Maryane disse, abrindo os braços e fingindo
voar.
- E eu sonho em ser uma cantora de sucesso! Vou começar agora mesmo!
Me acompanha Maryane?
Lily e Maryane levantaram e foram ao palco, tudo que Anne e Jackie jamais
fariam, cantar com a máquina de karaokê. Rosemary aplaudiu e assoviou com muito
entusiasmo as duas enquanto Anne e Jackie se entreolharam e balançando a cabeça
com um sinal de “ não acredito” , seguiram Rosemary nas palmas.
O vinho e a conversa animada das amigas a ajudaram a esquecer a dor que
carregava no peito e a noite foi passando lenta e gostosa. Muitos risos, muitas
paqueras, muitos olhares até que alguns homens vieram até a mesa delas e as
convidaram para ir dançar em um outro local da cidade. Anne esquivou-se do
convite, não era hora ainda de se aventurar em outra relação. Mesmo com a
insistência das amigas da escola ela não foi. O vinho já lhe subia a cabeça e juntando
isso ao coração partido e homens seriam todos os ingredientes necessários para o
início de mais um relacionamento desastroso.
- Quem vai levar você para casa Anne? Venha conosco! – Rosemary insistiu
mais uma vez.
- Chamarei um táxi mais tarde, antes vou terminar esta garrafa de vinho. –
Anne já havia se acostumado ao barulho do lugar, ou talvez fosse o efeito calmante
do vinho, só queria ficar ali mais um pouco.
Uma voz saiu do meio da barulheira: “Podem ir, eu fico com ela.” Era Jackie
salvando a amiga. – Estou cansada, amanhã bem cedo tenho que encontrar meu pai
para resolvermos alguns problemas. Ficamos aqui e a ajudo a terminar a garrafa de
vinho e depois chamamos um taxi. Pode ser?
Anne agradeceu a gentileza da amiga mais nova e disse para a mais velha
que fosse sem se preocupar. Os oito animados se foram abraçados uns aos outros
e rindo. Lá de longe, na porta do restaurante, Rosemary acenou chacoalhando o
corpo inteiro, seus cabelos ruivos e encaracolados estavam colados na testa devido
ao suor, o vestido apertado ao corpo e curto subiu e ela apressou-se em puxá-lo
para baixo o que fez os seios quase saltarem para fora do vestido. Um dos rapazes
a puxou pela mão e eles se foram.
- Ai Anne, não sei como vocês duas podem ser tão amigas! – Jackie enchia a
taça enquanto ria.
- Ela sempre foi minha ancora, minha realidade, sem ela viveria num mundo
de sonhos. Quando me enfurno nos livros e esqueço que existe um mundo aqui fora,
ela me tira de lá, preciso dela e por isso, aguento suas chatices e loucuras! – Anne
levantou a taça e propôs um brinde: “ Á Rosemary e sua ... sua... sua alta auto-
estima”
As duas brindaram e riram muito. Quando a garrafa secou, chamaram um taxi
e se foram.
Jackie morava no caminho da casa dos pais de Anne e por isso dividiram a
corrida. O motorista parou em frente ao apartamento de Jackie, um prédio antigo em
frente ao Central Park, um lugar privilegiado e de alta classe. Anne tinha uma ponta
de inveja dela. Tinha tudo e era linda. Uma “ rosa inglesa” como diriam os escritores
românticos. Era alta e magra, os cabelos loiros cacheados faziam a moldura para
olhos azuis e uma pele perfeita, todas sabiam que ela era muito rica, mas ela nunca
se mostrava superior a ninguém. Talvez o fato de ter sido criada por estranhos, já
que sua mãe havia morrido quando ela nasceu, a fizesse se tornar uma pessoa que
era tão sofisticada mas ao mesmo tempo tão simples.
- Anne, tenho uma ideia, porque você não fica comigo hoje? Tem estado tão
quente e amanha podemos aproveitar a piscina na cobertura. Quem sabe isso lhe
ajude a ficar mais animada. O que você acha? – Jackie sugeriu com um sorriso nos
lábios. Ela gostava de Anne e de seu jeito romântico e sonhador, estar com ela era
como estar com uma amiga brincando de chá com bonecas.
Anne sentiu-se tentada a aproveitar novamente o luxo da casa da amiga mas,
lembrou-lhe de que não havia trazido roupas nem objetos de higiene, ao que a outra
lhe respondeu prontamente: - Ora, eu lhe empresto as roupas e tenho muitas
escovas de dente, de todas as cores, azuis e rosas, para convidados inesperados
de todos os sexos ! – as duas riram do comentário malicioso da “ princesa”, pagaram
o taxista e subiram enganchas uma a outra com as pensas moles pelo efeito do vinho
e rindo de tudo, especialmente da dificuldade de Jackie em colocar a chave na
fechadura.
Depois de várias tentativas conseguiram entrar e enquanto jogavam seus
sapatos para qualquer lado, entorpecidas bela bebida, Jackie ainda conseguiu
explicar à amiga:
- Amanha sairei bem cedo para me encontrar com meu pai mas, não se
incomode, pode ficar à vontade. Vou pedir que Rosy prepare seu café e o leve em
seu quarto quando você pedir, ok?
Por mais que a ideia fosse maravilhosa e esse fosse um dos sonhos da
menina que habitava em Anne ela não achou certo que a empregada tivesse que a
servir como uma nobre e prontamente respondeu que não era necessário, tomaria o
café da manhã na cozinha.
- Ora Anne, não vou discutir com você agora, meu sono é maior que isso.
Você decide onde vai tomar seu café. Volto ao meio dia para almoçarmos e depois:
piscina e um pouco de sol. Boa noite, nos vemos amanhã. – Jackie foi se segurando
na parede até a porta de seu quarto, a abriu, jogou um beijo para a companheira de
noitada, empurrou a porta e desapareceu para dentro de seu “ covil ” – era assim
que Jackie chamava seu quarto, lugar onde quebrava inúmeros corações pois a lista
de namorados que vinham e iam e depois “ sumiam no mundo a curtir a dor da perda
de tão maravilhosa criatura” era enorme. Anne sempre ria quando lembrava da
maneira como Jackie explicava seus relacionamentos amorosos e desdenhava dos
homens que frequentemente a perseguiam, a tinham e depois sumiam. O silencio
profundo que a envolveu naquele momento fez com que ela imaginasse que a amiga
havia desmaiado em sua cama sem nem tirar o vestido branco de renda francesa
pois, depois do barulho da batida da porta não ouviu mais nada vindo do quarto da
outra.
Entrou no quarto que ela já conhecia de outras visitas, tirou a blusa de crochê
com cuidado para não rasgar nenhum dos precisos fios de seda, o restante das
roupas e, lembrou-se de que a amiga não havia lhe emprestado nenhuma roupa de
dormir. Encheu a banheira enorme do quarto de visitas com sais de banho
estrangeiros e muito perfumados que estavam à disposição, agua quentinha, acedeu
velas aromáticas, apagou a luz e tomou um banho demorado na penumbra.
Dormiu um pouco e sonhou Depois de secar-se com as toalhas que pareciam
ser as mais fofas do universo, jogou- se na cama coberta por lençóis de algodão
puro, enfeitados por um delicado bordado de fio de seda azul claro e dormiu feliz,
sentindo-se em seu mundo, em seu ambiente.

Capitulo 2

Anne abriu os olhos e percebeu uma nesga de luz entrando pela cortina do
quarto e batendo em seu rosto, esticou-se como uma gata feliz e levantou para
fechá-la. Quando olhou em volta se deu conta de que aquilo não era seu e uma
sensação de culpa tomou conta dela: seus pais sempre haviam feito tudo que podiam
por ela e não era justo com eles que ela gostasse tanto desse luxo mas, a maciez
dos lençóis foi mais forte e ela correu novamente para debaixo das cobertas macias
e continuou seu sono imperial.
Já eram dez horas da manhã quando ela resolveu abandonar os lençóis da
cama com a cabeceira fenomenal feita de jacarandá marrom queimado e torneada
a mão por algum exímio carpinteiro no século XVII. As peças de arte que essa
mansão incrustada na cobertura do Imperial Gardens possuía, concorreria com
qualquer mansão na velha Europa, com seus anos de vantagem. Jackie colecionava
objetos de todos os tipos: uma ânfora grega sobre a penteadeira e um espelho com
moldura de prata no estilo medieval davam o acabamento a uma mesa de
marchetaria russa no canto do quarto. As inúmeras peças se espalhavam pelo
apartamento, simplesmente fazendo parte da decoração ou ainda largadas
displicentemente em qualquer canto, como se tivessem sido recolhidas em uma feira
de usados em qualquer feira por aí. Anne sabia de onde vinham e de qual período
histórico eram porque sempre perguntava a amiga quando percebia uma diferente
mas, não sabia de todos, pois eram muitos e alguns eram guardados em um cofre
mantido em segredo. Anne sabia que ele existia em um quarto do apartamento pois,
a amiga o havia mencionado mas, ela nunca o viu pois esse quarto era
constantemente trancado. Entretanto, o que mais chamava a atenção de qualquer
um que conhecesse o apartamento do pai de Jackie era que esse parecia ser muito
mais valioso que aquele, em termos de móveis, objetos de arte, lugar, tamanho. O
homem levava uma vida muito confortável sim, mas, sua única filha o vencia em
todos os quesitos de riqueza e luxo: mimos, pensavam todos.
Anne acreditava que uma das razões para Rosemary se afastar de Jackie foi
essa: esse apartamento cheio de riquezas espalhadas casualmente, como se nada
valessem, por todo canto. Houve um tempo em que as três tinham uma amizade
mais próxima, mas no primeiro dia em que Rosemary pisou no apartamento algo se
rompeu. Uma falta de harmonia e um estranho campo elétrico parecia se formar
quando as duas se encontravam, faíscas eram o que parecia sair dos olhos de
Rosemary, como um animal sempre preparado para atacar. Anne questionou a
amiga muitas vezes e a perguntava porque não se sentia mais à vontade com Jackie
e ela a respondia somente que não sabia...
Um dia, depois de tanto insistir Rosemary lhe respondeu nervosa : - Ora Anne,
como você acha que me sinto vendo tantos objetos históricos de valor inestimável
para todos nós, trancados em um apartamento e sendo usados como enfeites e
quinquilharias por uma mulher quando deveriam estar em um museu, sendo
apreciados por todos nós meros mortais ! Quem ela pensa que é? Uma deusa?
Anne se satisfez com a resposta, não concordou, mas a velha amiga era uma
historiadora incansável e, achou que isso realmente a incomodava. Assim, decidiu
que seria amiga das duas mas não as obrigaria a estarem muito tempo juntas. Nunca
mencionou isso para Jackie , deixou-a pensando que eram ciúmes por ter que dividir
a atenção da amiga, afinal, as duas só se conheceram no último ano da faculdade,
e isso fazia somente um ano ao passo que Rosemary esteve com ela desde o
primeiro dia da graduação ; era como uma anjo protetor com seu sorriso incansável,
bondade, força, coragem e luz.
Jackie carregava uma áurea de mistério, um sorriso malicioso, sua força era
diferente, parecia sempre pronta a defender-se ao passo que Rosemary estava
sempre pronta para defender ao outro, a luz de Jackie vinha de seu conhecimento
de tudo, do seu poder de sedução, da sua elegância e também, de seus diamantes.
Enrolou-se no lençol e se dirigiu ao quarto da amiga para pegar uma roupa
emprestada, passou pelo quarto, banheiro e foi parar no closet. Tudo isso junto
parecia ser maior que a parte superior de sua casa. As paredes, móveis, cortinas,
carpet, quase tudo em seu quarto era branco. O banheiro era inteiro de mármore
branco, somente as torneiras douradas se diferenciavam. O closet seguia o mesmo
estilo e no meio dele um enorme sofá rosa claro, estilo francês que poderia
facilmente ter pertencido à rainha Maria Antonieta em Versailles.
Certa vez Anne tinha perguntado a Jackie porque gostava tanto da cor branca,
uma vez que não era somente em seu quarto que essa cor predominava, mas
também em suas roupas. Jackie a respondeu que não tinha um pingo de pureza em
sua história nem em sua alma por isso, o branco a fazia crer que estava, de alguma
maneira, mais perto da pureza, da luz.
Anne sabia da história de sofrimento da amiga, tendo perdido a mãe quando
era bebê e sido criada em colégios internos, sozinha. Disse que seu pai levou anos
para a perdoar por ter sido a causa da morte da mãe mas, ela nunca considerou a
amiga uma má pessoa e achava que a história de vida de ser humano não define o
seu caráter. Era muito triste ver a amiga sentindo-se tão mal então, nunca mais tocou
no assunto.
Escolheu a roupa mais simples que encontrou. Jackie tinha o gosto sofisticado
e sensual. Anne era romântica e tradicional. Olhou , olhou , abriu várias portas e
gavetas. Numa delas encontrou um tipo de gorro , daqueles usados por esquiadores,
que tapam quase que todo o rosto, deixando somente os olhos de fora. Ela sabia
que Jackie gostava de esquiar mas achou estranho que aquela peça de roupa fosse
tão velha e tão bem guardada em um pacote com sachês contra traças. Anne pensou
que devia ser mais um dos tantos objetos de valor histórico que Jackie possuía e
não deu importância a ele. Escolheu um maiô vermelho que estava escondido no
fundo da gaveta e uma saída de praia branca e preta, em estilo quimono feita da
mais pura seda. O toque do tecido parecia seduzir por si só, parecia a carícia de um
homem desejoso que desliza as mãos no corpo da mulher desejada. Anne sentiu
uma excitação estranha, como se a peça exalasse a energia do sexo. Saiu daquele
transe rapidamente e deixou o quarto, sentindo-se um pouco mal por ter remexido
os objetos da amiga.
Foi até a cozinha e sentou-se no mármore verde da bancada da pia,
balançando as pernas como uma criança. Rosy, uma velha senhora com cabelos
grisalhos e óculos grossos que mostravam sua dificuldade em enxergar, já a
conhecia e gostava muito da moça. Estendeu-lhe uma taça de suco de laranja e foi
preparar dois ovos mexidos como de costume. Ela já sabia que era só isso que Anne
comia ao acordar.
- Jackie pediu para avisar que chegará atrasada, a uma da tarde. Vocês vão
almoçar no terraço. Levarei o almoço para vocês lá meninas. Certo? Agora coma e
me diga o que você quer comer quando ela chegar. – a velha senhora, que se
encontrava de pé em frente a moça, sorriu para Anne enquanto entregava o prato
com os ovos e esperava uma resposta.
Anne desceu da bancada, sentou á mesa branca em estilo provençal, que era
claramente outra das peças maravilhosas do apartamento, e disse a Rosy que não
queria lhe incomodar, comeria o mesmo que Jackie.
- Black pudding senhorita? Tem certeza? Eu acho isso nojento mas, lady
Jackie adora !
- Black pudding de novo Rosy? Da ultima vez que estive aqui foi o que ela
comeu! Um enorme sanduíche de morcela de sangue! – Anne respondeu retorcendo
a boca.
- Não é morcela aqui nessas paredes, somos ingleses lembra? – As duas
riram da situação, da palavra e de Jackie com seu gosto estranho.
- Nesse caso vou dispensar o Black pudding, um hambúrguer bem caprichado
seria ótimo para mim. Vou jantar com meus pais e não quero comer muito no almoço.
Obrigada.
Anne levantou-se e ia levar seu prato até a pia mas, a empregada a deteve e
praticamente arrancou o prato e taça de suas mãos: - Lembre-se, você é uma lady!
Eu sirvo, você comanda. Já ouvi lady Jackie lhe dizer isso milhares de vezes, se
você quer ser respeitada seja forte e saiba comandar.
Pega de surpresa pelos ensinamentos da senhora, Anne ficou sem saber o
que dizer e foi saindo da cozinha com as palavras ressoando na mente. Na porta,
parou, virou-se lentamente para Rosy e com as mãos postas uma sobre a outra em
frente ao corpo, levantou os ombros e o queixo e disse em voz solene:
- Malpassado Rose. Está bem explicado? espero não ser decepcionada por
seus serviços ao preparar tão fino menu.
Ao dizer isso ela saiu correndo e gargalhando da cozinha enquanto a senhora
a chamava de menina endiabrada e sem classe. – Ah que bom se nós fossemos
meninas ainda, poderíamos as três juntas brincar na piscina a tarde inteira sem nos
preocupar com trabalho, amores, disputas, dinheiro.
Anne deitou-se à beira da piscina ainda rindo de Rose e de si mesma e,
olhando o céu azul e sem nuvens que a cobria sentiu-se pequena frente à imensidão
que a rodeava, mas preparada para as aventuras e desafios que a vida pudesse lhe
trazer.
Uma ideia lhe veio à mente e ela correu até o escritório do apartamento a
procura de papel e caneta. Outra mulher iria nascer: Carmem.
Capítulo três

Anne delineou a história de Carmem, construiu a personagem na mente, seus


temores, sua personalidade. Todas eram mulheres feridas e fortes que, de alguma
maneira enfrentavam a vida e a morte: mais frequentemente a morte.
Ela não sabia porque, mas, era como se elas a perseguissem e fosse sua
missão contar suas histórias. Tinha a sensação de que lhes ditavam suas vidas,
conviviam com ela até que tudo estivesse no papel e só iriam embora quando
houvessem explicado o porquê de seus atos, talvez uma maneira de se livrar da dor
que carregavam, ou da dor que haviam infligido a alguém. Talvez um aviso para ter
precaução, talvez um pedido de desculpas. Anne sentia que as ouvia e até mesmo
podia vê-las, mesmo sem fechar os olhos.
Quando contava isso a alguém, todos riam e automaticamente ligavam essas
sensações ao fato dela ter muita imaginação. Para todos ela criava as histórias e
não as ouvia sendo ditadas em sua mente. Anne preferia deixar que acreditassem
nisso e ela mesma também tentava acreditar nessa explicação porque assumir que
as ouvia contando suas vidas seria admitir que não era ela quem criava os contos,
ela somente os escrevia e, além disso, estaria louca ouvindo vozes e vendo
fantasmas.
Somente as duas amigas mais próximas, Rosemary e Jackie, a ouviam
atentamente quando ela lhes falava sobre essa sensação e não riam dela ou
tentavam convencê-la que que estava imaginando tudo aquilo. As duas a fitavam em
silêncio e a deixavam falar tudo o que queria e, quando ela terminava, mudavam de
assunto como se nada tivesse sido dito.
- Quem é agora Anne? Outra mulher maldita te contando sua história?
Anne assustou-se com a chegada da amiga, estava tão absorta levando
Carmem naquela estrada que até podia sentir os solavancos, os cheiros, os ruídos
que envolviam a personagem que lhe falava ao ouvido.
Jackie jogou-se no sofá preto do escritório, largou a bolsa de lado, os sapatos
altíssimos de verniz vermelho de outro, soltou os cabelos loiros que estavam presos
em um coque sério no alto da cabeça e deitou com as pernas levantadas:
- Desculpe o atraso. Meu pai segurou-me no escritório para assinar vários
documentos e resolver um problema. Você já almoçou?
- Que horas são? Perco a noção do tempo quando começo a escrever! –
Anne ficou envergonhada e confusa.
- Já são quatro horas! Rosy disse que bateu na porta mas você não
respondeu, devia estar em transe, sempre fica assim quando escreve, desliga do
mundo! Ai, esses sapatos estão me matando, é a primeira vez e a última que os uso!
Me alcance o lixo Anne, que é onde eles vão ficar! – Jackie encolheu e esticou os
dedos do pé enquanto apontava para a lixeira que se encontrava do lado da mesa
onde Anne escrevia.
Anne olhou para a amiga e pensou que aqueles sapatos deveriam valer uma
pequena fortuna para uma professora como ela e lembrou que ambas calçavam o
mesmo número.
- Pode deixar que eu jogo no lixo lá de casa! – Anne largou a caneta e levantou
para pegar os sapatos no chão e experimentá-los. Sorriu para Jackie e andou para
lá e para cá imitando a pose decidida e forte da amiga que riu.
- Ficaram ótimos em você que tem pés bem mais jovens que os meus! Bons
tempos aqueles em que uma mulher que usava sapatilhas tinha seus pés mais
valorizados que agora que somos obrigadas a usar essa invenção infernal que é o
salto fino, seduzir com um prego que se mete em nossos calcanhares! Eu nunca
valsaria até o amanhecer com esses saltos!
Anne sempre foi atenta com as palavras que ela usava e também com as que
outras pessoas lhe dirigiam, talvez um vício de quem trabalha com palavras e se
alimenta delas e, achou estranho o discurso da amiga que só era dois anos mais
velha que ela , nunca tinha sido vista com sapatilhas em nenhuma festa e muito
menos tinha o estilo de quem dançava valsas até o amanhecer mas, Anne
imediatamente compreendeu que ela deveria estar falando de quando era criança
na Inglaterra afinal, valsar parecia ser uma coisa que nobres ingleses fazem !
- E então, não vai me contar de sua mais nova amiga? – Jackie sentou no
sofá com as pernas encolhidas sobre ele e abraçando-se em uma almofada de
veludo azul royal.
- Seu nome é Carmem e ela é dos anos 1990. - Anne falou aquilo já sabendo
a resposta que viria da amiga.
- Até que enfim alguém mais moderna! – Jackie disse levantando os braços
em tom de agradecimento e depois murmurou algumas palavras enquanto abaixava
a cabeça e desfazia o sorriso, transformando-o em dor. Anne poderia jurar que
foram: - De velharia já chega eu nesse círculo de mulheres malditas...
- Não entendi Jackie.
- Não foi nada mas, se quiser ganhar o sapato pode me contar o que já
escreveu, ou melhor, o que ela lhe contou!
Anne percebeu que a amiga não queria lhe contar o que havia dito e, como
não queria entristecer mais a outra pegou o papel rabiscado e começou a ler.

Carmem

Aquele ônibus lotado e o som daquela língua me tirava o ar. Depois de


uma hora de espera sentada no banco de madeira daquela rodoviária empoeirada
eu estava agora rodeada de pessoas estranhas penduradas como macacos dento
de uma jaula quente naquela estrada que só subia e subia contornando a montanha.
Eu, no meio de tudo isso, sentia um forte enjoo e o mau cheiro que parecia sair dos
caixotes com galinhas e as cabras amarradas que os meus companheiros de viagem
carregavam. Digo parecia porque tudo naquele ônibus velho fedia a mofo, suor,
fezes, urina; a um tipo de sujeira tão encalacrada no espaço confinado que
dividíamos e que grudava em tudo e todos que passavam por ali. Não sei se ele
vinha dos animais, dos humanos, da máquina corroída pela ferrugem ou se já havia
se instalado ali a tanto tempo a ponto de um se tornar o outro: o cheiro podre vinha
daquilo que me cercava ou era eu com minha alma morta quem espalhava o cheiro
podre ali naquela manhã de verão na Colômbia.
Sentada perto da janela tentava olhar e admirar as paisagens que se abriam
a cada curva mas, o vidro engordurado e cheio de respingos de barro não me
permitiam tal deleite. Tentei encostar a cabeça nele e dormir um pouco até que a
mulher baixa, despenteada e desdentada que sentava ao meu lado e que carregava
uma criança de aproximadamente três anos, que chorava aos berros em seu colo
enquanto ela tentava abrir a blusa para lhe oferecer o seio movendo-se de lá para
cá, me deu uma enorme cotovelada no rosto e me tirou do torpor daquele momento.
Notei que uma senhora de cabelos brancos e rosto muito enrugado e que
sentava na fileira do outro lado do corredor, conversava com a criança no colo da
moça ao meu lado em um tom doce, tentando lhe acalmar. Falavam em uma língua
que não era o espanhol, talvez um tipo de dialeto local. Fiz um sinal para a senhora
e, com o espanhol terrível que aprendi nos anos em que morei na fronteira com o
Uruguay, perguntei se elas não preferiam sentar juntas. Minha intenção era afastar-
me daqueles gritos, do cheiro de suor e cabelo sujo da mulher e de urina e fezes que
a criança exalava. Queria sair da prisão em que me via ao lado da janela e vi nesta
“boa ação”, minha chance de escapar, na esperança de respirar melhor.
Levantei e, com muita dificuldade, devido a velocidade do ônibus e as curvas
fechadas da montanha, consegui sair do canto e me sentar na poltrona em que a
senhora estava antes.
Ao meu lado direito, cruzando o pequeno corredor, eu tinha agora a velha que
tomara a criança no colo e a acalmava beijando-lhe a bochecha pálida e afagando
seus cabelos negros enquanto a mulher abria a blusa e depois entupia a boca da
criança com seu seio. Uma visão tão estranha e meio animal para mim, uma mulher
de meia idade, sem filhos nem irmãos. Aquela criança segurando o peito murcho da
mãe, pendurada a ele num frenesi de fome não me trazia nenhum sentimento
maternal, só mais nojo daquilo tudo que me cercava. Filhos não são a continuação
de nossas vidas, são o fim dela, em gotas se esvaindo, quando deixamos de viver
as nossas vidas para viver as deles, manter as deles, cuidar das deles.
Eu parecia ouvir o som inquisidor da voz de minha mãe me perguntando: “O
que você vai fazer lá neste lugar? Não há nada lá! Você sempre odiou espanhol!
Briga comigo até por causa de seu nome! Foi seu pai quem escolheu de uma ópera
que ele assistiu ! Para que gastar dinheiro com isto? Você precisa de um carro novo!
Precisa sair e arrumar um namorado!
Odeio mesmo, é verdade. O som me engasga, irrita, enerva, afronta, enoja.
Faz nascer um sentimento de raiva, uma maldade marginal, uma sensação de morte.
Um grito que vem pelo estômago e é sufocado na garganta, uma força maligna que
desce pelos braços até os dedos das mãos que querem sufocar aqueles que o
produzem. Inexplicável e assustador mas, minha natureza pacífica briga com estes
sentimentos todos e não os deixa florescer. Me canso muito, é verdade. Minhas
forças se esvaem depois de certo tempo e preciso me recolher ao silêncio ou tenho
medo de mim mesma, do que posso falar ou fazer.
Mas, no meio deste sentimento todo, um lugar estava encravado em meus
sonhos. Ele estava ali, no meio de um país que não tinha nada a me oferecer como
a turista que sou : sem galerias de arte, sem museus, nem palácios ou castelos, com
uma história que nunca me chamou a atenção e com uma pobreza característica dos
países latinos. O ônibus no qual eu subia a montanha era o extrato disso tudo: se
ele estivesse descendo, eu teria certeza de que estava me dirigindo ao inferno...
A primeira parada não demorou muito. Esperei que o caixote no qual nos
espremíamos esvaziasse, mas, as únicas que se livraram daquele suplício foram a
mãe, a criança e a velha as quais eu havia cedido meu lugar. Tentei voltar para ele
já que, de onde estava, não conseguia enxergar nada das paisagens e do precipício
que nos acompanhava pelo lado direito da estrada. No banco em que eu estava
sentada só conseguia ver a parede seca da montanha enquanto sentia o odor do
homem bêbado que se sentava na janela ao meu lado mas, dois rapazes que
estavam em pé se jogaram por sobre o banco assim que as mulheres saíram e eu
tive que me contentar em ficar onde estava: era aquilo ou ficar em pé.
Continuamos subindo enquanto minha náusea só aumentava. Não podíamos
abrir os vidros por causa da poeira que se formava lá fora devido ao tempo seco e
as curvas fechadas da estrada de terra só contribuíam para aumentar meu mal-estar.
Tentei novamente fechar os olhos e dormir mas, os amortecedores estourados do
ônibus e os buracos do caminho não poupavam minhas costas fazendo todos nós
pularmos como uma carga solta e sem valor dentro dele. Mesmo assim, continuei
com meus olhos fechados para tentar melhorar o enjoo que eu sentia e que
aumentava a cada curva da jornada.
Fechar os olhos melhorou a sensação de que tudo o que havia em meu
estômago havia se instalado em minha garganta mas, deixou meus pensamentos e
devaneios tomarem conta de meu cérebro e eu voltei a questionar minha própria
decisão de fazer esta viagem.

Anne levantou os olhos do papel e olhou para Jackie que a fitava


desconcertada com lágrimas escorrendo dos olhos.
- Jackie? Porque está chorando?
- Por ela. Sei como é sentir-se assim, sufocada e presa em uma situação...
- Ah, chega disso! Vamos comer alguma coisa, esse seu sufoco deve ser
fome! – Anne percebeu que deveria distrair a amiga que, por algum motivo, estava
muito sensível a tudo naquele dia em particular. Anne não conseguia parar de pensar
que ela estava muito estranha pois nunca se mostrara tão fragilizada, parecia
cansada e desistindo de algo. Estendeu a mão para a moça que ainda se encolhia
no sofá e a puxou com força, obrigando-a a levantar.
- Você também me prometeu um mergulho naquela piscina linda lá fora, não
importa que horas sejam! Vamos, vamos! – Saiu puxando a amiga até o quarto e
ordenou a ela que trocasse de roupa enquanto ela iria pedir a Rosy que levasse seus
lanches para a piscina. – Você tem quinze minutos para colocar um biquíni e me
encontrar no terraço! Ouviu princesa? – Apontou o dedo indicativo para a amiga que
a respondeu com uma mesura perfeita: - Sim, minha senhora!
Capitulo quatro

Já era quase meia noite quando Jackie deixou Anne em casa. As duas amigas
se despediram e combinaram de se encontrar no fim de semana. Ambas estavam
com uma semana bem ocupada. Anne teria sua última semana de aula antes das
férias de verão e Jackie disse que iria ajudar um conhecido a organizar um leilão de
antiguidades.
Antes de dormir fez mais algumas anotações sobre a história de Carmem pois
sabia que se não o fizesse não conseguiria descansar, sua personagem não a
deixaria em paz. Assim fez um trato com a “nova amiga” e escreveu mais um pouco,
ainda sem entender como a narrativa iria terminar.
Quando ia saindo para a escola, na manhã seguinte, pegou a agenda onde
fazia as anotações de seus contos porque tinha certeza de que Carmem não iria se
calar por completo e ela iria precisar escrever um pouco para silencia-la por mais
algum tempo. Assim ela ia administrando sua vida real e a vida com suas amigas
imaginárias.

Convite
Escola
Rosemary não quer que vá

- vai Inglaterra vender casa


- encontar fantasma varias vezes
- se apaixona por primo Jackie – fantasma- que é a cara de um antepassado
- - volta – kjckaie se revela

- ela se funde com fantasma que descobriu quem era JacKie


- acorda no século ......
Pai da mãe Scarlet era nobre foi morto e ela fuigiu como empregada para EUA
-
- fantasma acorda no século XXI e, vai embora da casa,
-
- ela se olha

Jackie é Scarlet – tem a adaga de Osiris


Rosemary é arsinueth – trocou nome, consegue matar Scarlet que lhe dá algo
para salvar Anne!!!!
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Anne se apaixona por fantasma

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