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A FAMÍLIA E O DIREITO NO MUNDO LÍQUIDO

As velhas instituições como o Direito sofrem diversas transformações para


adaptar-se ao mundo líquido. O Direito de Família é um dos campos que vem sofrendo
mais a ação dos novos imperativos de gozo impostos aos indivíduos, mas que ainda sofre
de claustrofobia dentro do Direito Civil que ainda resiste a iluminação dos princípios
constitucionais desde 1988 pois são eles que estabelecem os limites que garantem a
realização da liberdade, da justiça e da solidariedade.
As relações afetivas da sociedade contemporânea são líquidas, elas se
estabelecem e se liquefazem apenas enquanto forem consideradas lucrativas. O lucro
de uma relação afetiva é o nível de felicidade que ela proporciona ao indivíduo, cada vez
mais narcisista no caráter. O modelo familiar típico da modernidade líquida é a família
eudemonista, ou seja, a família feliz. O que quer dizer isto?
Que a família pode assumir qualquer configuração com vistas a felicidade de seus
membros: heteroafetiva, homoafetiva, anaparental, monoparental, socioafetiva,
poliamorista.
Então, eu lanço como hipótese o seguinte: Se ela pode possuir qualquer forma
ou estrutura é porque ela também pode se desfazer tão rápido quanto se formou, o que
mostra que ela possui um caráter instrumental, portanto seus membros têm também
um caráter instrumental, podendo ser descartados se não cumprir o seu propósito de
fazer o outro feliz.
Ademais, no contexto hiperindividualista em que vivemos, os sujeitos evolvidos
numa relação afetiva também se envolvem numa relação consumerista, onde toda
contrariedade ou prejuízo psicológico tende a ser superdimensionado a fim de
encontrar compensação pecuniária do outro. Ou seja: aquele a quem se ama com amor
profundo e verdadeiro hoje, pode ser aquele contra quem se exigirá indenização por
abandono afetivo, amanhã, por exemplo.
Assim, se estabelece uma equivalência entre afeto e dinheiro, algo que Freud já
havia descoberto na clínica com seus pacientes: dinheiro sempre está relacionado a
amor, nem sempre de maneira positiva (FREUD, 1909).
É por isso que se faz necessário um Direito capaz de promover a qualidade dos
relacionamentos familiares e garantir a dignidade da pessoa humana, exigindo que os
doutrinadores estudem para não serem doutrinados pelos tribunais, mas um estudo
sério, longe do legalismo e do estreitismo das escolas, rumo a uma transdisciplinaridade,
a partir da interdisciplinaridade.

Amor líquido e religiosidade


Uma característica de todo grupo social é que ele é mais forte que o indivíduo
que o compõe, de modo que se este desaparecer, nem por isso o grupo desaparece. No
atual contexto de modernidade líquida a descartabilidade das mercadorias é aplicada
também para o campo das relações afetivas, segundo a ética do custo/benefício como
mostra Bauman (2004). Um grupo religioso nesse contexto tende a ter um caráter
eudemonista e instrumental também, pois se ele não promove a felicidade e o bem-
estar de seus membros, não há razão para continuar nele.
Este é um fato característico desses tempos: a religiosidade cresce juntamente
com o narcisismo dos indivíduos; não se abre mão de admitir a dependência a um ser
maior que os indivíduos, mas também não se abre mão dos deveres que esta
hipostatização tem para com o crente: a mesma sociedade que cultua o eu, é a mesma
que cultua DEUS.
Por outro lado, se um indivíduo não serve para ser "amado" por aumentar os
custos socioafetivos de se conviver com ele, pode ser descartado sem provocar
nenhuma culpa por parte do grupo. Claro que sobra também para "Deus". Se este não
for o “Pai que nos falta” um Pai provedor que nos apazígua a insegurança e a angústia
de viver sem certezas e nem estabilidades, então troca-se de "Deus", porque “FALTA
ALGO A ESTE PAI!"
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2004.
FREUD, Sigmund. “Observações sobre um caso de neurose obsessiva [‘O homem dos
ratos’], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910).
In: Obras completas, volume 9. Tradução Paulo César de Souza. — 1 a ed. — São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ROUDINESCO. Elisabeth. A família em desordem. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003.
SPENGLER. Fabiana Marion. “O direito de família de encontro à constituição”. In: Direito
em debate. Ano XII nº 22, jul. /dez. 2004, p. 101-122.
LUCAS. Doglas Cesar; GHISLENI, Pâmela Copetti. O amor e o direito pertencem a
“idiomas” distintos: uma crítica à juridicização do afeto. In: Revista Brasileira de
Sociologia do Direito. v. 4, n. 3, p. 106-131, set./dez. 2017.

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