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ESQUISITAS E DESMIOLADAS: O NARRADOR, O ADULTÉRIO E A REPRESENTAÇÃO

FEMININA NO CONTO MACHADIANO

STRANGE AND CRAZY: THE NARRATOR, THE ADULT AND FEMALE


REPRESENTATION IN THE MACHADIAN SHORT HISTORY

Antonio Marcos Vieira Sanseverino*

RESUMO

No presente ensaio, a partir da leitura de dois contos de Machado de Assis, é analisada e discutida a
representação feminina no conto realista, de um lado, e uma teoria do gênero elaborada de forma alegórica,
de outro. Dona Paula traz um elemento singular na ficção novecentista, uma senhora viúva, mais velha como
protagonista de uma história de adultério. Academias do Sião, uma alegoria, apresenta a história que ilustra
um problema: por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? Como ponto de articulação entre
diferentes modalidades de conto, o foco recai sobre a posição do narrador, que, mesmo estando na terceira
pessoa, pode ser caracterizado como parte da elite patriarcal burguesa, masculino.

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Realismo. Alegoria. Gênero. Narrador.

ABSTRACT: In the present essay, from two short stories by Machado de Assis, the female representation
in the realistic story, on the one hand, and an allegorically elaborated theory of the genre is analyzed
and discussed. Dona Paula brings a singular element in fiction of Nineteen Century, a widowed lady,
older as the protagonist of a story of adultery. Academies of Siam, an allegory, presents the story that
illustrates a problem: why are there feminine men and masculine females? As a point of articulation
between different modalities of short story, the focus falls on the position of the narrator, who, even being
in the third person, can be characterized as part of pratiarchal and bourgeoise elite, masculine.

KEYWORDS: Machado de Assis. Realism. Allegory. Genre. Narrator.

Introdução

Esquisita e desmiolada é o modo como o narrador de Trio em lá menor caracteriza Maria


Regina. A protagonista gosta de dois homens ao mesmo tempo. É um narrador, que, mesmo estando na
terceira pessoa, se apresenta e procura compartilhar seu espanto perante um comportamento feminino
aparentemente inaceitável. Machado de Assis em seus contos, especialmente a partir de Papéis Avulsos
(1882), se volta para a história de mulheres esquisitas.

Dona Benedita, Dona Camila, Dona Paula são mulheres respeitáveis, da elite fluminense, que
expõem a complexidade do lugar da mulher na sociedade brasileira do século XIX. Dona Severina
não é da elite, não tem condições financeiras para ter ao menos um vestido com mangas, mas se torna
respeitável aos olhos de Inácio, um adolescente fascinado com os braços dessa senhora de 30 anos. Maria
Olímpia (traída), Mariana (da revolta à acomodação), Rita (adúltera) – chamadas pelo primeiro nome
– são outras mulheres de elite, ou em ascensão, que vivem os conflitos do casamento. Maria Regina,
por sua vez, ambiciona casar, mas vive presa a uma imaginação vetusta, o sonho de um homem ideal.
Genoveva é uma mulher pobre que jura fidelidade a Deolindo Venta-Grande, marinheiro que parte para
sua primeira viagem, mas ela acaba traindo esse juramento e se junta com um meirinho português.

*
Professor Associado de Literatura Brasileira, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras (UFRGS). Pesquisador
Produtividade em Pesquisa CNPq. Este trabalho faz parte da parte do pós-doutorado junto ao Departament of Portuguese
and Brazilian (Brown University), com bolsa concedida pela CAPES.
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Outro caso interessante é de Marocas, uma ex-prostituta. Esse passado é revelado pela voz de um homem,
que conta ao seu interlocutor que a aparente mulher respeitável, a D. Maria de Tal, tinha a mais baixa
e, para ele, inominável profissão feminina. Aí se cristaliza um temor masculino, de que, por trás da
aparência controlada das senhoras, se esconda uma prostituta.

Essas são algumas personagens dos contos machadianos, a partir de 1882, que desvelam as tensões
vividas dentro dos limites da vida doméstica e do casamento. Nesse conjunto, ainda que incompleto,
através de uma forma realista, parece haver uma ambição de colecionar vários casos, talvez histórias sem
data, que sejam capazes de mostrar a diversidade de conflitos vividos pelas mulheres no Brasil do século
XIX, na transição (nunca concluída) de uma sociedade patriarcal para a ordem burguesa. O cotidiano do
Rio de Janeiro é o universo que serve de cenário para esses vários papéis avulsos.

Junto com o conto realista, há também uma expressão alegórica presente em diversos momentos
da ficção machadiana: Na arca, Segredo do Bonzo, Sereníssima República, Igreja do Diabo, Apólogo,
Viver, O cônego e a metafísica do estilo... No presente ensaio, o interesse recai sobre As Academias do
Sião, pois aparentemente temos aí a ilustração de um debate sobre gênero. Depois retomaremos sua
análise, mas agora interessa partir da pergunta chave do conto: “por que é que há homens femininos e
mulheres masculinas?”2 Para ilustrar a tese, a narrativa apresenta a troca de almas entre um rei e sua
principal concubina.Aconstrução da imagem alegórica se articula com um sentido abstrato que é atribuído
a ela. A relação arbitrária é condicionada por um sistema que impõe o nexo entre imagem e sentido. Na
alegoria barroca, o termo de mediação é a morte. Na alegoria moderna, a mercadoria, colocada como
falsa universalidade. Na alegoria “brasileira”, unida a essa mediação moderna da mercadoria, parece que
lidamos com o patriarcalismo, de um lado, e com a escravidão, de outro, como mediadores de um sentido
cristalizado na imagem alegórica. De que modo isso aparece em Academias?

Tanto nos contos realistas, quanto alegóricos, há ainda outro ponto de articulação, um narrador
muito atuante, que se apresenta em primeira pessoa mesmo nos contos que se voltam para uma terceira
pessoa. O arbítrio e a ironia não existem enquanto movimentos genéricos, ou universais, mas localizados
na voz de um narrador que tenta definir e impor um sentido à história narrada para seus interlocutores.
A corrosão irônica revela uma posição em falso e ambivalente. É possível, pelas pistas por ele deixada
no discurso, caracterizá-lo na condição masculina, letrada e de elite. Este narrador apresenta histórias
supostamente inusitadas no contexto fluminense, as quais tende a arbitrar um sentido ou uma moralidade.
Destacam-se aí, no entanto, pontos cegos que revelam mais significados do que aquele atribuído nas
explicações e comentários.

A posição do narrador no conto machadiano funciona como ponto de aproximação entre contos
realistas e alegóricos. Nos dois casos, temos um narrador que se apresenta e interrompe o relato para explicar,
esclarecer ou interpelar o leitor. Esses índices que trazem descontinuidade para a narrativa são reveladores
do arbítrio narrador e da ambivalência de sua posição. Além disso, há um movimento esquisito que faz com
que o conto realista tenha procedimentos alegóricos, enquanto o alegórico traga procedimentos realistas de
construção da personagem. Nas Academias do Sião, Kinara é construída como se fora um personagem realista,
com alta complexidade e densidade psicológica. Em Dona Benedita: um retrato, D. Benedita é exemplo do
microrealismo machadiano3 , capaz de expor o conflito da personagem através do simples olhar que ela lança
para o roidinho de barata numa chinela. O conto acaba, no entanto, com uma imagem fantástica, quando a fada
que presidiu o nascimento da mulher revela o sentido de sua existência.

2
As citações e as referências aos contos machadianos aparecem sem referência de data no presente artigo,
pois elas foram retiradas da edição digital. Procura-se, no entanto, sempre indicar o título do conto.
3
Microrrealismo é utilizado por Eugênio Gomes (1982) para caracterizar a “exploração do pormenor” na

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Vale se ater um tanto mais nesse conto que narra um tempo da vida de Dona Benedita, a partir do
aniversário de 42 anos. Ela mora longe do marido, em missão no norte do país, mas nunca vai visitá-lo,
pois compra a passagem do paquete e logo desiste da viagem. A falta de vontade e o afinco aos desejos

Uma noite, volvendo D. Benedita este problema, à janela da casa de Botafogo, para onde se mudara
desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente uma claridade opaca, espécie de luz
coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro à janela. Nesse quadro apareceu-lhe
uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos,
porque morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita: e de um gesto
sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sen¬tido:
Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à figura
quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a
fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como um
suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio. (Machado de Assis, 1989, p. 323)

Essa figura pode ser uma alucinação ou pro¬jeção fantasiosa da personagem, ou ainda um fato
fantástico que rompe com a verossimilhança do conto. O elemento estranho é, de todo modo, um eixo
possível de interpretação da narrativa, pois a fada define e fixa caráter e destino de D. Benedita. Os traços
da imagem alegó¬rica (figura vaga e transparente; trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos
definidos, voz de criança...) materializam de modo integral um conceito, Veleidade. Ela é uma fantasia
projetada no céu, a se desfazer sem se definir, que carateriza a falta de vontade, a incapacidade de se
decidir que redunda no movimento volúvel de um desejo imediato a outro, sem que haja realização. Essa
figura revela à personagem sua identidade, em que se apaga como indivíduo, na medida em que vive sob
o domínio de uma força incoercível.

A ambiguidade entre exterior e interior cria uma fluida indistinção entre mulher e alucinação. O
exterior torna-se projeção de uma imagem mágica que explica o caráter do indivíduo. Nesse caso, Dona
Benedita, incapaz de agir, não tem condições de superar seus impasses: não viaja para encontrar o marido
e, depois, viúva, não decide casar-se. A alegoria caracteriza sua incapacidade de qualquer transformação.
O tempo lhe é exterior, ela não se constitui como um sujeito. Envelhece, mas permanece sempre idêntica
a si mesma. Dissolve-se enquanto personagem para se abstrair em conceito, veleidade. D. Benedita não é
jovem, nem de condição marginal, não supera provas em busca do ideal; ao contrário, é uma senhora de
elite, mulher comum, já mais velha, com dois filhos, presa em sua condição limitadora. A vida cotidiana
é uma rotina vazia, em que o tempo é preenchido de modo descontínuo e arbitrário.

A leitura desse conto ficaria incompleta se não falássemos de Eulália, que sofre uma tristeza máscula,
própria dos resolutos. Ela é objeto de interesse de Leandrinho, filho de D. Maria dos Anjos. O projeto de
casamento é reforçado pelo cônego e, em certo momento, pela própria mãe. Eulália, no entanto, não se
desespera, diz apenas que não quer casar e lida astuciosamente com sua mãe, pois sabe que os planos maternos
nunca chegavam à realização. Ela casa com o namorado de quem gosta, um oficial da marinha, e constrói sua
história. Sem fugir ao destino reservado às mulheres de elite (casamento e maternidade), ela consegue compor
sua história no vazio deixado pela ausência do pai e pela veleidade da mãe.

Assim, de um lado, a alegoria da Veleidade, identidade da mulher; de outro, a relevância da


mulher comum, sem idealização, que interessa à literatura por sua condição humana singular, seja a

prosa machadiana, através da qual revelaria “as dissimulações do espírito e da alma humana” (p. 369)
imediatos são mostrados em todos os atos da mulher, dos mais comezinhos, como um livro iniciado com
entusiasmo para ser logo deixado de lado, até uma amizade esquecida sem outra razão do que a mudança
de gosto. Ao final, ela fica viúva e, corte¬jada, não sabe se casa de novo ou não.

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própria D. Benedita, seja Eulália. Há um salto de um registro realista para outro fantástico, o que salienta
a descontinuidade entre ambos. Trata-se de falha risível, porém amarga, já que releva a condição precária
de um indivíduo dominado por uma força que, desconhecida, se reverte em magia. De todo modo, aquela
mulher retratada (realismo) encarna a própria veleidade (alegoria).

Quem faz a mediação é um narrador em terceira pessoa, que se apresenta aos leitores num diálogo
em primeira pessoa. Interrompe a narrativa, comenta, avalia, interpela à própria personagem.

Um dos pontos mais obscuros desta curiosa história é a pressa com que as relações se travaram, e
os acontecimentos se sucederam. Por exemplo, uma das pessoas que estiveram em Andaraí, com D.
Benedita, foi o oficial de marinha retratado no cartão particular de Eulália, 1º tenente Mascarenhas,
que o conselheiro Beltrão proclamou futuro almirante. Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha
fardado; e D. Benedita, que amava os espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os
outros moços à paisana, que o preferiu a todos, e lho disse. (Grifo meu)

Esse é um dos muitos comentários do narrador. Em um outro, ele chega a interpelar D. Benedita
justamente por não saber do namoro escondido de Eulália. Na presente citação, ele mostra o início da
amizade entre duas famílias, simulando não saber do plano de Eulália para aproximar seu pretendente, o
oficial da marinha, e sua mãe. O tom irônico chama a atenção, inclusive, para a farda, como instrumento
de sedução da futura sogra. O gesto do narrador, interrupção do enredo, é uma constante no conto e
culmina na aparição fantástica da fada que presidiu casamento de D. Benedita.

No presente ensaio, vamos debater, então, duas formas do conto machadiano, realista e alegórico,
mas sem perder de vista a ambivalência, como D. Benedita, em que as fronteiras ficam borradas. Nosso
ponto de chegado é a outra ambivalência, a do narrador dos contos. Ele se mostra realista pelo esforço em
captar o conflito social que se apresenta na vida cotidiana de mulheres comuns. Ao mesmo tempo, ele se
revela arbitrário, no esforço de definir (e, às vezes, de moralizar) o sentido do conflito apresentado. Esse
gestus, no sentido brechtiano (cf. Benjamin, 1985, p. 81), revela o conflito social presente nesse olhar
masculino, do homem letrado (e moderno) preso a uma sociedade patriarcal e, assim, escandalizado com
uma possível igualdade das mulheres.

Dona Paula: a adúltera austera e pia

A leitura do conto no jornal em que foi publicado traz uma surpresa. No caso, “Dona Paula”
apareceu na Gazeta de Notícias, na primeira e segunda páginas, em 12 de outubro de 1884. A diferença
relevante, em relação à edição em livro, é uma epígrafe, um trecho de uma cantiga de amigo do Cancioneiro
Vaticano. Trata-se de um poema de João Zorro:

Per ribeira do rio


Vi remar o navio,
E sabor hei da ribeira!
CANCIONEIRO DA VATICANA, 753.

O trecho mostra o lamento da mulher que vê o amado partir enquanto ela fica à margem. A
leitura da epígrafe encaminha uma interpretação do conto. No caso, o narrador adere ao ponto de vista
de Dona Paula. No processo de subjetivação, na sua relação com o casamento, o marido desaparece no
esquecimento, nenhuma vez é nominado na narrativa. O que se apresenta é a nostalgia do amor adúltero,
um tempo irrecuperável, que aparece enquanto restos de trinta anos antes. No tempo presente, na margem
da atualidade, ela olha para o passado em que se foi, como na voz da cantiga.

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A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas,
de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das
paixões. (Grifo meu)

A senhora “austera e pia” do presente da narração olha nostalgicamente para seu passado, para o
amor apaixonado. Talvez por induzir uma interpretação, pelo nexo com as cantigas de amigo, a epígrafe
tenha sido retirada. Afinal, não há nessa senhora saudade do marido morto, apenas do amante perdido.
Ao ser recuperada, no entanto, a epígrafe ajuda a entender um pouco melhor o conflito dessa senhora, que
defende o casamento da sobrinha, mas sabe que o melhor da experiência amorosa está fora dele.

Dona Paula, um nome, uma saudade do amor adúltero e nenhuma explicação da origem. Vamos a
ela. O conto abre com essa senhora chegando à casa da sobrinha, Venancinha, que chorava muito depois
da briga com o marido, Conrado, que ameaçou se separar dela. Dona Paula se dispõe a resolver o conflito,
indo conversar com o marido. No escritório, ao conversarem, ele não somente se mostra irredutível, como
ainda declara que “não tinha dúvida de que eram namorados”. Dona Paula, apesar disso, pacientemente
consegue um meio termo, um plano de recuperação do casamento, levando Venancinha para morar com
ela na Tijuca, por alguns meses. Nesse momento, o conflito dela aparece, quando ela ouve o nome do
suposto namorado, Vasco Maria Portela. Era o nome de seu antigo amante, agora um velho diplomata,
morando na Europa, cujo filho estava envolvido com Venancinha.

Na Tijuca, D. Paula percebia o amor da sobrinha pelo jovem Vasco, mas não conseguia uma
confissão. Com a visita de Conrado, as coisas começam a mudar, o “terror de perder o marido foi o
principal elemento da restauração”. Logo depois Venancinha vê o possível amante e se abre para a tia. No
desabafo, a sobrinha conta em detalhes suas experiências amorosas, não mais do que um prólogo intenso,
e a história finaliza com a insone D. Paula, tentando recuperar seu passado. A cena do desabafo, ponto
máximo de tensão, põe a nu o conflito dessa senhora tão intrigante.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ela lhe
arrancou. [...] D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida
e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da
sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo.
Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um
perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases
severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo
cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que
forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

Dona Paula está inclinada sobre a sobrinha para ouvir sua narração, vida nos olhos e boca aberta,
bebendo “as palavras da sobrinha” como se fosse um cordial, um tônico, em busca de nova energia.
Pela narração da sobrinha, a velha senhora ganha um ar “tão jovem”. Ela consegue unir, mesmo que
de modo momentâneo, as lembranças da cabeça aos afetos do coração. O narrador nos indica que não
se trata de hipocrisia ou encenação: “D. Paula enganava-se a si mesma”. A construção da frase revela
sua duplicidade. D. Paula, apaixonada, ardente e curiosa, engana D. Paula, a senhora austera e pia que
se propõe a restaurar o matrimônio da sobrinha. A mulher precisa se dividir em duas para se relacionar
com os homens na sociedade patriarcal. No casamento, a moça sonsa e submissa ao marido. No universo
proibido e astutamente guardado em segredo, a mulher se entrega ao desejo erótico.

Nesse gesto de Dona Paula, revela-se, então, um conflito central na posição da mulher no século
XIX, no Brasil. Para as mulheres de elite, não há vida fora do casamento, que, enquanto instituição, dá
guarida para o reconhecimento e a aceitação social. Já vimos a relevância do tema em Dona Benedita,
preocupada em casar bem a filha. De certo modo, esse senso comum, pragmático e cotidiano, é sintetizado
por outra personagem machadiana. Em Quincas Borba, D. Fernanda, aconselha sua jovem amiga, Maria

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Benedita, sobre relacionamentos amorosos:

“ – Virgem Santíssima! Que blasfêmia! Duas blasfêmias, menina; a primeira é que não se deve
amar a ninguém como a Deus – segunda é que um marido, ainda sendo mau, sempre é melhor
que o melhor dos sonhos.”

D. Fernanda eleva a preceito religioso a regra de que a mulher só tem vida quando se casa com
um homem, quando tem um marido. Na linguagem comum, esposa e mulher aparecem como sinônimos.
Especificamente, na tautologia, a mulher ser realiza enquanto esposa. O amor recíproco, a paixão ou o
afeto são componentes acidentais, enquanto o casamento é condição necessária para realização feminina.
O temor de D. Paula, em relação à sobrinha, é similar ao D. Fernanda, pois ela sabe que o reconhecimento
social da mulher se dá através do casamento. Por isso, para a solteira, é necessário casar; para a casada,
é necessário manter o casamento, mesmo que seja necessário sacrificar uma paixão. A cuidadosa D.
Paula conseguiu preservar o casamento e viver sua paixão em segredo. Desde o início do conto, quando
encontra a sobrinha chorando, D. Paula faz questão de fechar as portas para que as escravas não vejam
seu choro, não possam divulgar seu segredo. A própria confissão de Venancinha se dá no espaço interior
da casa, a portas fechadas, um lugar para guardar a intimidade e o segredo femininos.

Voltando ao gesto de D. Paula, que se embriaga com as palavras da sobrinha, a ponto de se


abandonar à fruição da narrativa, a dimensão recalcada vem à tona e revela uma necessidade feminina
que não encontra satisfação da vida rotineira do casamento, no espaço institucional. Em outra dimensão,
também se revela a surdez masculina, no caso específico, a incapacidade de Conrado, do marido, que não
consegue compreender sua mulher:

Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher
nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga
de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das
portas do vício. (Grifo meu)

Ele diz para D. Paula que Venancinha é “uma cabeça de vento”, entre outras coisas. A velha senhora
ouve com paciência, usa os próprios termos de Conrado, para persuadi-lo à reconciliação, mas certamente sabe
da importância e da intensidade da paixão da sobrinha. Ela se propõe a escutá-la, e, na confissão, Venancinha se
mostra muito diferente dessa sonsa desenhada pelo marido. Vale destacar que, para o marido, a vida da mulher
se restringe ao casamento, enquanto paz doméstica e projeção pública. Apenas com dissimulação e segredo é
possível conseguir a experiência de outras esferas da vida, mas as duas partes ficam separadas. Deste modo,
Dona Paula age dentro do esperado pelo sobrinho, mas sabe que isso faz parte da encenação necessária que
envolve o exercício social dos papéis de homem e de mulher.

Outro aspecto relevante, pelo ponto de vista masculino, desse Conrado, assim como seu
homônimo de “Capítulo dos Chapeus”, é que a mulher é alguém sem profundidade, sem capacidade de
compreensão, um ser frágil e superficial. Em outros termos, os papéis estão postos: ao homem, a cabeça,
e a vida pública; a mulher, a vida doméstica, o cuidado do lar. No caso do conto, o gesto de D. Paula
suspende essa divisão mostrando outra faceta feminina, mais complexa, recalcada pela relação de poder.
O desejo feminino, recalcado no casamento, passa de uma geração a outra.

Vale notar como a linguagem do narrador faz uso de termos retirados do discurso político para
falar do casamento. Por exemplo, o narrador mostra como o “terror de perder o marido”, o silêncio
de Conrado, pode mais do que o desterro para a restauração. Apresenta ainda D. Paula como general
inválido, permitindo ver sua vida como longa campanha militar. O conto, no entanto, não é uma alegoria
da vida pública. Transformá-lo em alegoria seria devolvê-lo à esfera masculina dos “assuntos sérios”.
Trata-se ao contrário de revelar o quanto há de importância e complexidade na esfera da vida privada.

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Mais diretamente, há uma disputa de poder que se coloca no núcleo da instituição do casamento, em que
a mulher é silenciada na posição de esposa, como alguém incapaz de ter vida interior complexa.

D. Paula encena uma divisão insolúvel. Ela tem um segredo que não pode revelar a ninguém. As
esferas do casamento e do adultério, bem-sucedido, são separadas. Uma isolada da outra. Não é possível
que o conflito venha à tona, que seu desejo amoroso possa ser narrado a outra pessoa. Nem mesmo a
sobrinha. Não se trata de máscara que recobre a interioridade, mas de cisão e de recalque do desejo.
O discreto narrador do conto faz questão de declarar que não se trata de cálculo, dando ainda maior
relevância a uma experiência que, autêntica, foge ao controle de D. Paula.

Exercendo seu poder para regular o corpo feminino, a ideologia dominante criou uma série
de mitos culturais que atendem à forma masculinista de desejo: a reificação da criança e da
adolescente; a mulher infantilizada como sinônimo de “ser feminino”; a invisibilidade das
mulheres de meia idade e idosas; a sexualidade das mulheres da classe trabalhadora e as
mulheres de cor como sendo facilmente negociáveis; e dispositivos similares “(Ferreira-Pinto,
2004, p. 35, tradução minha)4

Assim como Dona Benedita, mulher de meia idade, Dona Paula, mulher idosa e respeitável,
ganha protagonismo no conto machadiano. Como mostra Cristina Ferreira-Pinto, a ficção mais trivial,
no século XIX, tendia à representação estereotipada de personagens femininas, expressão do desejo
feminino. Assim, o conto machadiano ganha interesse, quando vemos o gesto ambivalente do narrador
de mostrar os pontos de ruptura da ideologia dominante, mas, ao narrar essas histórias desviantes, tende
a representá-las como desvios condenáveis da norma.

Maria Regina, esquisita e desmiolada

“Trio em lá menor” é um conto dividido em quatro partes: Adagio Cantabile, Allegro mas
non tropo, Allegro Apassionato e Minueto. Não se trata propriamente da estrutura de uma sonata,
pois o movimento de oposições fica suspenso, “uma estranha sonata sem desenvolvimento, repetindo
eternamente o motivo ostinato de uma nota só, cuja fixidez encobre mal o balanceio sem fim dos opostos
incompletos, cuja diferença não se decide nem se move do lugar” (Wisnik, 2004, p.66-67).

Na abertura do conto, Maria Regina, sozinha em seu quarto, imagina uma conversa com seus
dois pretendentes, “as palavras de Miranda e os belos olhos de Maciel”. No segundo capítulo, segundo “a
técnica do destino”, Maciel se joga à frente do carro de Maria Regina e sua avó para salvar uma criança,
para entusiasmo da moça. No terceiro movimento, à noite do mesmo dia, na sala aparecem primeiro, o
heróico Maciel, e depois o velho Miranda. Pelo primeiro, a admiração cai em fastio à medida em que o
homem apresenta as futilidades da corte. Pelo segundo, a dureza da fisionomia destrói a admiração por
suas palavras, “tradutor maravilhoso e fiel de uma porção de ideias que lutavam dentro dela, vagamente,
sem forma ou expressão”. A última parte representa uma quebra no andamento, pois o tempo é distendido
e a história é rapidamente resumida. Os dois namorados desistem da espera, Maria Regina fica sozinha e,
ao final, em sonho, imagina oscilar entre dois astros magníficos e uma voz do abismo afirma: — É a tua
pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos,
ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...

4
Exerting its power to regulate the female body, the dominant ideology has created a number of cultural myths
catering to masculinist form of desire: the reification of the female child and adolescent; the childish woman as
synonym for “being feminine”; the invisibility of the middle-aged and elderly women; the sexuality of the working-
class women and the women of color as being easily negotiable; and similar devices” (Ferreira-Pinto, 2004, p. 35)

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O enredo se concentra em Maria Regina, como está explicado logo no início do conto:

A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dois homens ao mesmo tempo,
um de vinte e sete anos, Maciel — outro de cinqüenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas
não posso alterar a feição das coisas, não posso negar que se os dois homens estão namorados dela,
ela não o está menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suas amigas de
colégio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito; mas a imaginação
é que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade,
sobrepondo às coisas da vida outras de si mesmas; daí curiosidades irremediáveis. (grifo meu)

É interessante observar que não há transformação. Maria Regina, ao final, se encontra no mesmo
estado que estava, incapaz de decisão. O derradeiro sonho faz com que a personagem se cristalize, presa
num movimento pendular sem fim. O narrador explica ao leitor, que não pode negar a natureza das
coisas, por pior e mais abominável que fosse. O mal de Maria Regina – esquisita e desmiolada – é a
imaginação, insaciável e avessa à realidade, sobre a qual sobrepõe sua fantasia.

O conto trata, através de uma personagem realista, de um conflito típico da condição humana, o
confronto entre imaginação (subjetividade) e realidade (objetividade). A peculiaridade é a incapacidade
de síntese, de formação. Há vários personagens machadianos de igual feição, tais como Rangel, de O
diplomático, ou Eulália, de Manuscrito de um sacristão. Enclausurados dentro de si, em seus sonhos,
sofrem por serem incapazes de transporem o mundo desejado para a realidade.

Há, no entanto, uma mediação social importante que dá termos materiais para esse conflito. No
enredo a configuração realista apresenta uma mulher de elite fluminense, jovem casadoira. Na abertura a
macuma, familiar a Maria Regina, diz que “Nhanhã estava muito séria”. Isso remete ao leitor à sociedade
escravocrata, que faz da protagonista, uma jovem que vive ao piano, que sai à rua de carro com sua avó
e, principalmente, deve se casar para se tornar mulher realizada. Ainda aí ouvimos na fala de Maciel, um
misto afetado de francês e português, o quanto é importante a vestimenta, a joia, o comportamento no
salão e, novamente, o casamento. Nesse nível, Maria Regina escapa ao padrão feminino e se interessa
reflexivamente pela música, entrando numa esfera supostamente masculina, o que encontra voz nos
comentários de Miranda. Deslocada para a imaginação encontramos uma tensão da realidade feminina,
cuja papel se restringia ao casamento, à conversa de salão e a uma peça alegre ao piano. Nesse nível, ao
final, o conflito de feição realista ganha feição alegórica, numa espécie de expressão moralista sobre os
males da imaginação que condena a moça a vagar indecisa de um astro a outro. E alegoria ganha feição
realista, pois revela um impasse social dentro da sociedade patriarcal que tem fumos burgueses.

O outro plano diz respeito ao narrador, que diz mostrar a realidade, sem negá-la, mas reconhece
o caráter abominável desse amor por dois homens ao mesmo tempo. Uma esquisita e desmiolada, em
suma. Essa condenação (posta no início, pelo narrador, e no fim, pela voz do abismo) aparece como
punição social, porque Maria Regina superpõe ao real um desejo irrealizável que impede de alcançar
o casamento. Na especificação realista, Machado traduz o conflito entre imaginação (ideal) e realidade
(imperfeição) à dimensão local, mas o faz na cristalização alegórica. O narrador moralista, masculino,
define a imaginação como um mal, pois traduz um desejo que põe em questão o universo restrito a
que estão presas as mulheres. Seu realismo se reverte em conformismo, dissolve a potência do desejo
transformador à incapacidade patológica da personagem de se adequar às convenções. Em vez de investir
no conflito social, o narrador desloca o olhar para o desvio pessoal, como se fosse mera falha psicológica.

Se um objeto, sob o olhar da melancolia, se torna alegórico, se ela lhe sorve a vida e ele
continua a existir como objeto morto, mas seguro para toda eternidade, ele fica à mercê do
alegorista e dos seus caprichos. E isto quer dizer que, a partir de agora, ele será incapaz de
irradiar a partir de si próprio qualquer significado ou sentindo; o seu significado é aquele

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que o alegorista lhe atribui. Ele investe-o desse significado, e vai ao fundo da coisa para se
apropriar dele, não em sentido psicológico, mas ontológico... (Benjamin, 2004, p. 198-199)

A alegoria não é construída aqui como ilustração de uma ideia abstrata (veleidade), não é
inverossímil (figuras divinas, magia, etc.). No primeiro plano, temos Maria Regina, uma personagem
situada no mundo secular construído por seres humanos, num lugar e tempo específicos. Estamos na
dimensão histórica. De modo verossímil, ela figura uma mulher da elite fluminense do século XIX,
psicologicamente particularizada por imaginação adusta que a faz ficar indecisa nas escolhas e a coloca
em situação de sofrimento. O andamento do conto, leva-o à repetição do mesmo, no caso, Maria Regina
é retirada do âmbito da história e alçada à eternidade.

Vale aproximar, então, o alegorista do narrador machadiano, que, pelo olhar irônico, transforma a
vida em objeto morto, “seguro por toda eternidade, ele fica à mercê do alegorista e dos seus caprichos”. Ao
negar a complexidade da personagem, o narrador suga a potência realista da personagem, a possibilidade
de transformação, de entrar em conflito, de buscar o ideal. O realismo, que põe a mulher comum como
protagonista, é barrado pelo gesto alegórico do narrador. Maria Regina e sua história ficam à mercê dos
caprichos do narrador. Como mostrou Roberto Schwarz (1989), a viravolta machadiana se dá não pelo
desprezo da matéria local, mas pela reflexão disparata. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, um
narrador não confiável, volúvel, é expressão do senhor escravocrata, com fumos de burguês.

Assim também nos contos machadianos. E o narrador machadiano, deste conto em especial, atua
como alegorista que suga a dimensão histórica de sua personagem, transforma em figura empalhada e
eterna de uma ideia. A violência do gesto está diretamente ligada a uma performance inadequada de uma
mulher, de uma personagem feminina. Sua imaginação, seu mal, vai condená-la a não escolher entre dois
homens, sua pena é oscilar entre dois astros incompletos. Ela não se constitui como sujeito, alguém capaz
de formular uma decisão, de confrontar seu ideal com a realidade, de sair de sua imaginação.

As academias, uma ilustração para a teoria do gênero

Dona Benedita, Dona Paula e Maria Regina são figuras femininas que ficam presas em seus conflitos.
Nos três, o narrador representa mulheres fluminenses na forma realista, mas chega a um limite alegorizante. As
academias do Sião é um conto que parece ilustrar esse conflito de gênero em forma alegórica.

Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro


academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens
femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem
rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita
feminidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um
cordial horror às armas. (Machado de Assis, data, p. X)

O conto traz duas histórias. A primeira é a disputa entre as quatro academias do Sião que debatem
a natureza da alma, a partir da interrogação destacada: “por que é que há homens femininos e mulheres
masculinas?” Para três academias, a alma era neutra. Para uma delas, a alma era sexuada, masculina
ou feminina. Daí, “a anomalia que se observa é uma questão de corpos”, formulou esta academia. A
divergência começou no debate acadêmico, passou para a injúria, continuou na agressão e terminou na
violência extrema. A academia da alma sexuada literalmente exterminou seus oponentes, matando e,
depois, fazendo um colar com as orelhas cortadas dos derrotados, colar e braceletes para o presidente dos
vencedores, U-Tong. A afirmação dessa “verdade” passa pela supressão da divergência e da existência
mesma do outro. Essa primeira história prossegue ao longo das outras três partes, mas passa para o fundo
da cena. O rei, Kalaphangko, decretou que a doutrina era legítima e verdadeira.

62 Revista Cerrados, nº 45, ano 26


Aí começa a segunda história, pois o rei, “virtualmente uma dama”, apenas tomou essa iniciativa
por ter sido convencido pela principal concubina, Kinnara, “a mulher máscula – búfalo com penas de
cisne”. Na sequência, ela consegue ainda convencer o rei de fazerem secretamente um ritual em que as
almas dos dois trocariam de corpos. E assim foi feito durante à noite, em uma embarcação real, com a
combinação de que, depois de seis meses, desfariam a troca.

A primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma
de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kalaphangko) foi nada menos que
dar as maiores honrarias à academia sexual. Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois
eram mais homens de pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura,
mas decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins.

Depois que as almas trocaram de corpos, Kalaphangko puniu severamente alguns os contribuintes
com impostos atrasados. Os outros passaram a pagar. Incrementou a religião depois de expulsar
missionários cristãos. Fortaleceu o rigor da justiça e completou sua obra com uma guerra fulminante,
da qual voltou vitorioso. Aqui as duas histórias se encontram, pois Kalaphangko (homem com alma
masculina) tinha o plano de matar Kinnara, para permanecer no poder. Só não o fez por medo, temor
de que, matando Kinnara, pudesse vir a morrer também. Para dirimir sua dúvida, chamou os membros
da academia sexuada. E agora aparece sua perplexidade, pois vieram apenas 13 dos 14 membros, pois
U-Tong estava doente. Eles declararam que este era um camelo, apesar de ter boa alma. Quando U-Tong
veio sozinho, disse o mesmo de seus colegas acadêmicos. E, assim, cada membro que veio só repetia o
mesmo, fosse diretamente ou por circunlóquios. O Rei não entendia como juntos eram a “claridade do
mundo”e separados, um bando de camelos. Depois de desistir de consultá-los, Kalaphangko passou a
refletir sobre a pertinência de eliminar Kinnara para se manter no poder. Apenas deixou de cometer o
assassinato, quando Kinnara contou que estava grávida. Ao fim de seis meses, na mesma piroga real,
quando destrocaram os corpos, viram ao longe o barco da Academia que cantavam loas em homenagem
a si. Kinnara (antes Kalaphangko) contou o que sucedera e ficou sem solução seu enigma.

Este último conto de Histórias sem data,Academias de Sião, um conto filosófico, possui três níveis.
Primeiro, temos a ação do narrador que no preâmbulo do conto pergunta a um interlocutor indeterminado
se conhecem as academias de Sião. Ele declara que elas não existem, desloca para a suposição e conclama
a ouvir sua história. Note-se que, para sua ficção, ele escolhe o país do oriente (Sião, atual Tailanda) que
não sofreu a colonização ocidental. Mais do que isso brinca com o fascínio que esse Oriente inventado
tinha do século XIX. Ao longo do conto, a presença do narrador é forte e se ocupa de fazer comentários.
Fala da sua dificuldade de narrar a violência extrema da academia sexuada, exalta sua própria qualidade
inventiva, quando, por exemplo, se coloca como superior a Dante e finaliza convocando o leitor a enviar
uma resposta a Kinnara, caso fosse capaz de resolver sua dúvida sobre as academias (junto, sábios; em
separado, camelos). As intervenções do narrador, vale destacar, podem ser lidas como gestos arbitrários
que tentam definir para o leitor um viés de interpretação, de modo semelhante à história inventada que
coloniza discursiva e ficcionalmente um país do oriente.

Além disso, há aí um problema interessante. Edgar Allan Poe formulou a teoria do conto, no século
XIX, dando autonomia à forma. Não interessa aqui debater em pormenor as importantes observações de
Poe que deram dignidade a essa forma breve em prosa. Nesse gesto fundador de nova forma, ela se
apresenta como uma unidade fechada e, principalmente, é pensada a partir de sua autonomia estética.
Publicado em periódicos, recolhido posteriormente em livro, o short story centra-se na emancipação da
forma em relação à situação narrativa. O autor separa-se de seu conto, deixando no texto um narrador,
que muitas vezes evita marcas de pessoalidade discursiva. Na outra ponta, a posição de interlocução
pode ser preenchida por qualquer um, qualquer leitor que pegue o livro ou o periódico para ler. Como
ressalta Rancière (1995, 2010), em relação a escrita, há uma indiferença pera essa letra muda aberta para
qualquer um, qualquer leitor. Como se observa nesse conto de Machado, bem como nos de Poe e de

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outros autores, o autor constrói um narrador ficcional, que pode se afastar, mais ou menos, da sua posição
autoral. O que se pode dizer, no entanto, que quase sempre esse narrador deixa marcas de uma relação
particular de interlocução. De certo modo, simula uma relação próxima do leitor, como se ele fosse único
e determinado. Em outros termos, o short story é uma forma que se emancipa do nexo pessoal com seu
autor, de um lado, e que pode alcançar qualquer um que se coloque na posição de leitura. Ao mesmo
tempo, há uma tendência de construir um texto que incorporem marcas de uma interlocução particular e
pessoal. O exemplo mais óbvio é do conto que faz uso do gênero epistolar.

Essa presentificção do narrador, nas Academias do Sião, não é exterior à matéria narrada, na
medida em que se constrói um conto feição filosófica, em que a história tende a ilustrar um problema
conceitual, que veremos a seguir. Desde já vale lembrar a análise feita por Abel Barros Baptista
(2014). Sua leitura dos contos de Machado de Assis está centrada na autonomia da forma do conto
(2014, p. 106), enquanto “materialização completa e autônoma”: “a lógica inexorável da forma breve
exige que a história seja capaz de contar a si mesma” (p.106). Dentro dessa forma, segundo sua leitura,
“emancipada”, inclusive, das condições brasileiras de produção e leitura, Baptista concentra-se na análise
das variações do narrador, que, enquanto modernos, buscam impor uma autoridade que se revela vazia,
ausente. A autoridade se faz autoritária, uma necessidade para estabelecer o nexo entre história narrada
e interpretação atribuída (p. 121). Essa leitura é importante, pois mostra no núcleo do conto machadiano
uma cisão entre a história (anedota) e a interpretação que seu próprio narrador dá. A partir daí, agora
contrariando o crítico português, podemos encontrar uma situação de arbítrio (como veremos mais tarde)
das próprias condições brasileiras, próprias da sociedade escravocrata e patriarcal. Por enquanto, importa
destacar que o narrador de “Academias de Sião” conta uma história e ao mesmo tempo lança questões
interpretativas, que não só não resolvem o sentido do conto, como o deixam mais aberto.

Assim, chegamos ao segundo nível, aos sábios de Sião que debatem um grande problema, a
natureza da alma. “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas?”. A interrogação parte da
constatação de que o rei é virtualmente uma dama. Há um incômodo dado pela realidade, supostamente
uma incongruência ou anomalia que demanda explicação. O resultado é interessante, pois parte de uma
disjunção entre corpo e alma, separados como dois termos que podem se combinar de diferentes formas.

When the constructed status of gender is theorized as radically independent of sex, gender issue becomes
a free-floating artifice, with the consequence that man and masculine might just as easily signify a female
body as a male one, and women and feminine a male body as easily as female one. (Butler, 2007, p. 9,
grifo meu)5

A partir de Judith Butler, Gender trouble (2007), podemos entender que o tom leve e irônico do
narrador põe em cena uma disjunção importante, na separação entre sexo e gênero. Na teoria perfomativa
de Butlher, o gênero se produz pela repetição estilizada de gestos, que se mantém no tempo e que produzem
a impressão de estabilidade, de uma identidade reconhecível. Não se trata mera escolha do agente, mas
de uma cristalização de padrões performativos que se reificam e se apresentam como se fossem naturais
e capturam o indivíduo em suas determinações. No conto de Machado, o narrador tende a definir a
condição masculina ligada ao exercício do poder, de um lado, e do pensamento, do outro. A condição
do rei (centralidade política, princípio dominante) se reflete na sociedade inteira (administração política,
religião, comportamento), e os acadêmicos, apenas homens, revelam que a ciência não está desligada do

5
Quando o status construído de gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, a questão do
gênero torna-se um artifício fluente, com a consequência que o homem e a masculinidade podem justamente
tão facilmente significar o corpo feminino quanto o masculino, e a mulher e o feminino, um corpo masculino
tão facilmente como um feminino. (Tradução minha)

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desejo de supremacia e da busca do poder definidor da verdade, mesmo que isso se dê pela violência.
Ao fazer do rei um homem feminino (virtualmente uma dama), ele mostra como o reino parece frágil,
sem rigor para punir devedores e aberto à presença de missionários estrangeiros. Quando Kalaphango
ganha alma masculina, o reino se mostra “másculo”, rigoroso com devedores, intolerante com a entrada
de cultura diferente e satisfeito pela imposição violenta e guerreira sobre reinos vizinhos.

A disjunção entre o corpo e alma, entre o sexo e o gênero, abre-se para quatro possibilidades
combinatórias: homem com alma masculina; homem com alma feminina; mulher com alma feminina;
mulher com alma masculina. Talvez pareça pouco, mas, através dessa fábula moderna, Machado faz
um corte, uma interrupção na aparente continuidade entre corpo (homem) e gênero (performance). Essa
descontinuidade aparece com um problema para a ciência, através das academias, que deve ser não
apenas resolvido, mas ter sua solução normatizada e legitimada como doutrina a ser aceita. Mesmo
que seja pela violência. Quando as almas são trocadas, unificando alma e corpo, isto é posto como
mais aceitável, mais normal. Como vimos, o reino passa a ser governado com mão de ferro, torna-se
“bem” administrado, com estrita aplicação da lei (punição com morte dos contribuintes omissos), com
a purificação da religião local (expulsão de missionários estrangeiros) e com afirmação da soberania
do Estado pela guerra. A continuidade manteria essa lógica não fosse a gravidez da rainha, e o desejo
do Rei voltar a ser mulher para experienciar a maternidade. O conto deixa o final em aberto. Não se
explica o enigma dos 14 acadêmicos que são sábios quando reunidos, mas camelos quando separados,
nem se revela o que sucedará com o rei e a rainha depois da experiência da troca de corpos. Primeiro,
homem com alma feminina, mulher com alma masculina; depois, homem com alma masculina e mulher
com alma feminina e, ao final, simplesmente uma volta à situação inicial? Ou haveria possibilidade de
modificação da performance do gênero? E como ficaria a relação e interlocução entre os dois?

Depois de uma revisão do modo como o gênero era definido, enquanto categoria de análise, Joan
Scott propõe uma definição que serve de ponto de partida para a pesquisa histórica, considerando métodos de
análise, hipóteses operativas e o estudo das mudanças. Vale ressaltar alguns pontos de seu texto.

Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam
ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre
duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (Scott,
1995, p. 21)

A partir da separação produtiva de que sexo e gênero são esferas distintas, a autora propõe a
definição de gênero como “elemento constitutivo das relações sociais”. Trata-se da forma organizadora
das relações que se baseiam nas diferenças percebidas entre os sexos. Há uma negação de qualquer
essencialidade, ou de pressuposto natural que anteceda a história. Obviamente o corpo é uma base natural,
biológica, mas a dimensão humana começa quando consideramos a dimensão material do trabalho, da
linguagem e dos valores. Nesse momento, o corpo (e o sexo) são também construídos e significados
historicamente, mas, principalmente, o gênero institui o modo como a diferença dos corpos é organizada e
institucionalizada. O ponto seguinte, fundamental, coloca o gênero enquanto forma primeira de “significar
as relações de poder”. Esse aspecto é essencial, pois, assim como raça, etnia, classe social, gênero é uma
categoria construída que se sedimenta na vida cotidiana e expressa como forma política de ordenação
e de divisão dos papeis. No caso específico dos contos de Machado, esse é um ponto importante, pois
muitas vezes o conflito interpessoal é expresso através de uma dimensão política. A leitura de Roncari de
O capítulo dos chapéus enfatiza uma dimensão política do conto, tratando da dimensão emancipatória
da revolução francesa que não tem espaço no Brasil. (Roncari, 2005) O caminho que seguiremos é um
pouco diferente. Como vimos, o uso de vocabulário político em contos que tratam do cotidiano feminino
não significa necessariamente uma alegoria política6. Talvez seja uma forma de valorizar a condição
feminina, dando a própria dimensão cotidiana uma importância política.

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Vale atentar, então, para o modo como a posição que emerge como dominante é, apesar de tudo,
declarada a única possível. A história posterior é escrita como se essas posições normativas fossem o
produto de um consenso social e não de um conflito. Assim, mesmo o que parece natural, é socialmente
construído e expressa um conflito latente. No caso dos contos, vemos a narração da violência como
fator constitutivo do saber (supressão das academias rivais), da lei (execução de devedores), da religião
(expulsão da diferença) e do Estado (guerra). No mais íntimo de Dona Paula, a norma se impõe como
barreira que impede, inclusive, a possibilidade de compartilhar sua vivência com sua sobrinha.

Ao explodir a rigidez pela exposição do conflito, descobre-se a natureza da repressão que leva
a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos gêneros. No caso, está implícita
na posição ambivalente do narrador, cuja teoria abre para a disjunção entre sexo e gênero, mas afirma
como anômala a mistura (homem feminino, mulher masculina). Vale insistir na dimensão política da
normatização que define o modo como um indivíduo deve se relacionar com o gênero para configurar
sua identidade. Entra aí um terceiro aspecto das relações de gênero definido Joan Scott.

A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode ser determinada especificamente se situada
no espaço e no tempo. Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que “homem”
e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum
significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas
contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas. (Scott, 1995, p. 28-29)

Da citação acima feita, vale destacar que as categorias de “homem” e “mulher” são vazias, por
não terem significado fechado, e transbordantes, porque, mesmo fixadas, trazem “dentro delas alternativas
negadas ou reprimidas”. Esse ponto final é particularmente interessante para pensar uma derivação desse
conto alegórico para o realismo dos outros contos de Machado de Assis. Quanto ao realismo, nesse caso,
são produtivas as leituras de Fredric Jameson (2013), que pressupõe um conflito constitutivo entre o
impulso narrativo e as dimensões cênicas, descritiva e afetiva7, e de Rancière que destaca a força realista
e disruptiva ao abrir o campo da ficção para qualquer objeto ou para qualquer ação e, por isso, romper
com a lógica da ação (2010). Nesse sentido, é possível pensar que o realismo, no século XIX, se constitui
quando traz à tona experiências “alternativas negadas ou reprimidas” por um conceito de gênero que
tende a ser fixado pela ordem burguesa e corroborada por uma dimensão científica. E, assim, de certo
modo, o conto alegórico revelaria a base epistêmica que sustenta a visão realista presente em históricas
como as de D. Paula, D. Camila, Mariana ou Maria Olímpia.

Voltando à dimensão perfomática do gênero, vale insistir no nexo entre papéis vividos na vida e
encenados no drama. Assim, o conceito brechtiano de “gestus” torna-se produtivo para pensar a ficção
curta de Machado. Mais adiante, voltaremos ao tema do narrador, mas se pode desde já levantar a hipótese
de que a quebra dramática da identificação (efeito V brechtiano) se apresenta no conto no narrador
forjado e nas quebras de seu discurso. Para Florian Becker, as definições de realismo e de “gestus” estão
interligadas. O realismo representa os eventos conforme a partir das mesmas leis que governam os

6
O uso da alegoria no presente artigo parte da leitura de Origem do Drama Trágico Alemão. No caso específico,
o foco está na passagem da personagem realista (mutável, inserida no cotidiano social, atravessada pela
histórica, psicologicamente complexa...) à personagem alegórica (cristalização de um conceito). O exemplo
já dado é o de Dona Benedita.
7
Jameson constrói sua definição de realismo, a partir da simbiose de duas forças contrárias. De um lado, há
o impulso narrativo que aparece nos contos populares, que apresenta uma história já acontecida, acabada,
completa. Trata-se de narrar o que é memorável e pode ser narrado de novo e de novo, no sentido como
Walter Benjamin define a narrativa, vinculada à tradição, à transmissão oral, à experiência e à comunidade de
artesãos ou de camponeses. De outro lado, temos um “impulso de elaboração cênica, descrição e, acima de
tudo, todo investimento afetivo” (2013, p. 22).

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eventos da realidade. O objeto da representação faz parte de uma rede de relações sociais. O “gestus”
pressupõe um conjunto de gestos, expressões faciais e fala comum, mas ele pressupõe uma relação de
interlocução em que se atualiza o conflito social.

A sua descrição deve ter uma menção, implicação ou uma indicação a pelo menos um fator
institucional na situação da causalidade histórica. De modo crucial, entretanto, não é necessário que
a pessoa cujo movimento é descrito desse modo esteja consciente de qualquer um desses fatores.
(Becker, 2008, p. 36)8

Creio que seja importante insistir na leitura que Walter Benjamin faz de Brecht (1985). O gesto
ganha força no momento de interrupção, que estabelece uma quebra no fluxo ficcional do andamento
dramático e quebra a ilusão. É o fundamento do conhecimento que o teatro traz tanto para quem atua
quanto para quem assiste. Nesse momento, forma-se aquilo que Benjamin estabelece como imagem
dialética. A cristalização do conflito social. Assim, desvela-se tanto o conflito pessoal, quanto a instituição
que se mostra como construção social, como parte de uma relação de poder e de imposição de um padrão
de comportamento e de um nexo impositivo e hierárquico.

A condição descoberta pelo teatro épico é a dialética em estado de repouso. Assim como
para Hegel o fluxo do tempo não é matriz da dialética, mas somente o meio em que ela
se desdobra, podemos dizer que no teatro épico a matriz dialética não é a sequência
contraditória das palavras e ações, mas o próprio gesto. (Benjamin, 1985, p.89, grifo meu)

Vale destacar aqui a dimensão nuclear do gesto para Benjamin. Quando comenta Franz Kafka, em
1934, a partir do teatro chinês, de Oklahoma (America), ele fala que o mundo de Kafka é o “mundo dos
gestos”: “uma das funções mais significativas desse teatro ao ar livre é a dissolução do acontecimento no
gesto” (p. 146). De tal modo, isso é importante que “toda obra de Kafka representa um código de gestos,
cuja significação simbólica não é de modo algum evidente” (p.146). Desse modo, a imagem dialética (a
mônada) está presente no teatro épico brechtiano, enquanto interrupção do fluxo, enquanto possibilidade
despertar do fluxo da história, para que a consciência permita a deliberação e a ação no mundo.

Quanto aos contos de Machado de Assis, principalmente depois da viravolta com Memórias Póstumas
de Brás Cubas, ele traz à cena quaisquer situações do cotidiano (principalmente do Rio de Janeiro) em que se
condensam um conflito entre a fixação de um lugar e de um papel social, de um lado, e de uma força disruptiva,
de difícil definição, de outro. Nos termos de Jameson (2013), impõe-se a narração, mas há uma situação nova,
afetiva, que parece escapar a capacidade expor essa nova tensão. Especificamente, quando os contos põem o
protagonismo na mulher, esse conflito se impõe de diversas formas. No nível da narração, quando são homens
que contam a história, o conflito se evidencia no mal-estar com a ruptura do papel fixado na ordem (patriarcal
em transição para o padrão burguês). Um exemplo notório está no conto Singular Ocorrência. Dois homens
dialogam na rua. Um deles diz que “há ocorrências singulares” e aponta para uma mulher de meia idade,
vestida de preto, que entra na igreja. O interlocutor, mais jovem, supõe um amor mais antigo do outro, que
discorda, dizendo, através de eufemismo, que se trata de uma prostituta. A cena é chocante, pelo gesto violento
(e fofoqueiro) do homem, pois ele revela que a mulher que aparenta ser uma viúva respeitável esconde uma
figura degradada e rebaixada. Há despeito e desconcerto do homem e do membro da elite que não tolera a
invasão de classe e de gênero, na circulação livre de uma ex-cortesã que anda na rua e entra numa igreja.
Assim, no caso dos contos machadianos, com narrador masculino, o gesto narrativo se dá quando os padrões
sociais são quebrados, especificamente a instituição do casamento revela-se como imposição social, para a

8
“It’s description would have to mention, imply, or point to at least one of the institutional factors in the
situation’s causal history. Crucially, however, it is not necessary that the person whose movement is described
in this fashion be himself aware of any these factors” (tradução minha)

67 Revista Cerrados, nº 45, ano 26


qual nem todas as mulheres são convidadas. No caso de uma prostituta, como Marocas, ela não pode nem
mesmo encenar os gestos da viuvez e da caridade.

O cotidiano se apresenta como uma esfera não problemática em que as ações rotineiras trazem a
repetição de padrões que definem o lugar da mulher e do homem. No Segundo Reinado, há um processo
de modernização que se dá na passagem da família patriarcal para a família burguesa. No caso que nos
interessa, como se evidencia na leitura das publicações destinadas às mulheres, há uma redefinição nos
papéis masculinos e femininos.

Não se trata, portanto, de advogar um Machado feminista9, mas de evidenciar um interesse


continuado do autor por questões que lhe eram contemporâneas, como a educação feminina.10 Emery
Marques (2012) contrasta as posições de Nísia Figueira e de Maria Amália Carvalho. Esta última se volta
para o público feminino e trata da esfera doméstica, da educação da mulher numa nova época. A primeira,
excede à esfera do privado, e debate os problemas da sociedade brasileira, como a família extensiva e a
escravidão, além de advogar um novo espaço para atuação das mulheres. As duas autoras afirmam um
valor positivo para a voz da mulher, para o novo lugar ocupado, na sociedade em modernização. Maria
Amália não afronta os limites de atuação da mulher: casa, família, filhos, casamento, moda, culinária,
criados... Apresenta um modelo de acomodação da mulher ao novo ambiente, de tal modo que a mulher
acompanha o homem, mas não põe em questão a divisão binárias dos papéis. Apenas propõe um novo
desenho. Por sua vez, Nísia ataca justamente essa delimitação dos espaços de atuação. Por fim, não
é demais lembrar que estamos no universo letrado dos jornais e dos opúsculos em países, Portugal e,
principalmente, Brasil, em que predominam o analfabetismo.

Nelas se evidencia que Machado põe em cena um conflito candente do seu tempo. Jurandir
Freire Costa (1989), mostra como esse ideal de modernização burguesa, presente na medicina higienista,
é construir um cidadão burguês, reprimido em seus instintos primitivos e arcaicos, que se baseie em
relações impessoais preservando o interesse do estado nacional. Branco, com o corpo saudável, casado,
reprimindo seus impulsos (comer muito, beber muito, sexo com prostitutas...), respeitando sua mulher
(pela qual nutre um amor natural) e seus filhos (em quem identifica uma pessoa autônoma), esse é o
padrão normal de indivíduo segundo a medicina higienista. Esse padrão é estendido para todos como
norma, inclusive para a urbanização da cidade, para organização das escolas... Sua força ideológica
está na aparente neutralidade do discurso científico, que apenas apresenta a verdade natural, para além
da história. O resultado, no Brasil oitocentista, é uma contradição histórica, como já mostrou Roberto
Schwarz (1988). Há uma oscilação entre a dimensão moderna e liberal, que penetra e altera o cotidiano
principalmente urbano, e a base escravocrata que vai do trabalho rural, passa pela diversidade de ofícios
urbanos e entra na casa da elite através de mucamas, copeiras, mordomos, etc. O humanismo higienista,
como ideologia, aliava o padrão burguês (modernidade brasileira pela europeização dos costumes) e
mantinha o liberalismo escravista. A família da elite se transformava, mas excluía o escravo (demônio
familiar) contra quem era mantida a lógica punitiva e colonial, pela repressão física violenta. Quer dizer,
não houve de fato a passagem de um sistema patriarcal para um liberal, burguês, mas um uso decorativo,

9
John Gledson, numa introdução ao conto machadiano, mostra a participação de Machado de Assis em
periódicos destinados a mulheres (Jornal das Famílias e, depois, A Estação). A partir dos anos de 1880, a
escrita para o público feminino e sobre mulheres revelaria um tipo de feminismo, presente, por exemplo, em
Singular Ocorrência.
10
Gusmão, Emery Marques. De bates sobre educação feminina no século XIX: Nísia Floresta e Maria
Amália Vaz de Carvalho. Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 25, nº 50, p. 269-289, julho-dezembro de 2012.
O artigo “Debates sobre a educação feminina˜ apresenta a obra de duas autoras importantes no século XIX,
Nídia Floresta e Maria Amália Carvalho.

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desse segundo. Machado de Assis mostra atenção aguda a esta transformação. Em 1881, em A Estação,
Machado publicou um pequeno texto, Cherchez la femme, em que defende a educação feminina.

Vinde, rio abaixo dos séculos, e onde quer que pareis, a mulher vos aparecerá, com o seu grande
influxo, algumas vezes maléfico, mas sempre irrecusável; achá-la-eis na origem do homem e no fim
dele; e se devemos aceitar a original teoria de um filósofo, ela é quem transmite a porção intelectual
do homem.
Assim, amável leitora, quando alguém vier dizer-vos que a educação da mulher é uma grande
necessidade social, não acrediteis que é a voz da adulação, mas da verdade. O assunto é decerto
prestado à declamação; mas a idéia é justa. Não vos queremos para reformadoras sociais,
evangelizadoras de teorias abstrusas, que mal entendeis, que em todo caso desdizem do vosso
papel; mas entre isso e a ignorância e a frivolidade, há um abismo; enchamos esse abismo.

Lendo o trecho acima, é possível destacar a preocupação com a educação da mulher, mas, de modo
decoroso, não propõe reforma social. O que interessa destacar é que essa atenção para uma categorização,
em que homem e mulher definem-se mutuamente na relação que estabelecem entre si. Esse é um ponto
fundamental para pensar sua ficção. Seja na prosa, seja no romance. E, não me parece exagerado, que
sua ficção tem uma dimensão mais radical do que o tipo de educação que Machado advoga acima. Deve-
se também atentar para o veículo em que escreve, A Estação, que possui uma aparente modernidade
na sua apresentação e na circulação internacional, mas constrói uma interlocução com uma mulher de
elite, cujos interesses ficariam restritos à vida privada. Em A Estação, não entra, por exemplo, a posição
proposta por Nisia Floresta que repensa mais radicalmente o lugar da mulher.

Assim, a partir da atenção para o debate que se trava sobre a posição da mulher na sociedade
e sobre a educação feminina, podemos voltar para os contos machadianos, como se fosse uma coleção
de cenas em que os padrões de representação feminina são postas em questão. E através disso, no
protagonismo feminino, os padrões de gênero (a performance padronizada e retificada) aparecem como
formas de engessamento e de sofrimento para algumas mulheres. Não se trata da definição de uma
categoria, mulher machadiana, mas de mostrar o quanto as relações patriarcais, mesmo com aparência
burguesa, impedem novas possibilidades de comportamento feminino, que fica deslocado para a sombra
ou são vistas como anomalia.

Aí entra um nó interessante. Ou melhor, entra em cena um narrador que, mesmo quando no uso
discreto de uma terceira pessoa, revela um ponto de vista da elite, que se apresenta moderna; masculino,
oscilando entre o refinamento burguês e o mando patriarcal; elitista, que reserva o gesto civilizado para
si, mas não dispensa o escravo doméstico; letrado, com referências cultas e eruditas, mas sem perder
a expressão vulgar. Trata-se uma contradição instalada na prosa narrativa dos contos. A cena vem à
tona, desperta interesse, mas é narrada a partir da estranheza, da esquisitice, a partir da dificuldade de
compreender e, propriamente, de narrar, de tornar inteligível.

Agora cabe retornar às Academias do Sião e destacar um terceiro nível de análise do conto e
atentar uma encenação singela e reveladora.

— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na
alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte da
sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher
máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora no aposento, mas
daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas
carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual foi declarada legítima e ortodoxa, e
a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia, foi o decreto mandado à academia triunfante,
aos pagodes, aos mandarins, a todo o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a

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paz pública.

Esse trecho me parece fundamental para a pensar o gênero como performance. Kinnara tenta
argumentar com o rei. De nada vale, pois para ele havia apenas o corpo, sua linda boca. Na sequência, ela
abandona o búfalo e se concentra no cisne. Com as carícias de cisne, ela alcança aquilo que o argumento
não produziu efeito. Em outros termos, a feminilidade não é um atributo corporal da mulher, mas uma
ação que responde a uma expectativa do outro. No caso, ela atuou performaticamente. Na cena, há um
deslizamento importante, um gesto. O casamento impõe uma distinção entre o homem (destinado à vida
pública e ao exercício de atividades ligadas ao poder) e a mulher (destinada à esfera doméstica e, no
caso, ao jogo erótico). No cena em questão, o rei não mostra apetite algum pela questão pública, muito
menos se for discutir na alcova com sua principal concubina. A concubina não demonstra outro desejo
que a doutrina da alma sexuada fosse declarada oficial, mas, e aí entra a quebra importante, ela encena a
feminilidade (cisne) que é esperada dela, apesar de sua masculinidade (touro). Kinnara compreende que
uma mulher não poderia ser rei, não ter acesso ao poder real, a não ser que sua alma tomasse o corpo do
homem, de Kalaphango. Há uma restrição que impõe o lugar de cada um, em que, para a mulher, aceder
a funções públicas implicaria ser homem.

Não se pode esquecer, no entanto, na posição do narrador, que adere ao ponto de vista masculino.
Ele expõe uma crise, mas aparenta tomar partido.

A ficção de Machado de Assis oferece uma avaliação convincente das tribulações da sensibilidade
masculina sob uma ordem patriarcal que concebe o mundo em termos de oposições e torna difícil
incorporar a diferença. Incapaz de cumprir as rígidas expectativas do que um homem deve ser e como
um homem deve se comportar, muitos dos personagens masculinos de Machado são assombrados pelo
espectro de inadequação e impotência, uma situação que inflige feridas psicológicas e morais dolorosas
sobre eles. Essas feridas controlam perversamente seu senso de si mesmo e distorcem permanentemente
suas relações com os outros, particularmente com as mulheres (Valente, 2001, p.18) 11

Luis F. Valente (2001), ao analisar Cantiga dos Esponsais, Missa do Galo e Dom Casmurro, foca
na construção da personagem masculina. Interessa particularmente pensar a construção dos narradores não
confiáveis em primeira pessoa, Nogueira e Bento Santiago, que traduzem “as tribulações da sensibilidade
masculina sob a ordem patriarcal” numa narrativa em que procuram compreender e definir sua relação com
uma mulher. Nogueira recupera um episódio de sua adolescência, Bento se volta violentamente contra Capitu.

Em Roberto Schwarz (1990), o princípio formal do narrador volúvel traduz uma conduta de
classe. A cada momento (frase ou capítulo) o narrador vai mudando de estilo, de tom e de máscara
(mundano, moralista, cronista...), buscando a cada vez uma “supremacia qualquer” em relação ao leitor.
Além disso, há sempre um pecadilho, uma transgressão, um desvio, uma quebra. De modo recorrente, o
modelo realista, a elevação de estilo ou ordem discursiva são rompidas. A exceção torna-se regra; agressão
ao leitor uma constante; e o escândalo, recorrente. Essa supremacia faz com que o defunto prescinda dos
modelos para compor suas memórias, pondo-se fora e, claro, acima deles. Essa volubilidade corresponde
à precipitação na forma do conflito social insolúvel. No caso da sociedade brasileira, a elite escravocrata
e patriarcal apresenta-se como liberal e moderna; dois princípios excludentes e conflitivos que convivem

11
Machado de Assis’s fiction offers a compelling assessment of the tribulations of male sensibility under
a patriarchal order that conceives the world in terms of oppositions and makes it difficult to incorporate
difference. Unable to fulfill the rigid expectations of what a man should be and how a man should behave,
many of Machado’s male characters are haunted by the specter of inadequacy and impotence, a situation that
inflicts painful psychological and moral wounds on them. These wounds perversely control their sense of
self, and permanently distort their relationships with others, particularly with women (Valente, 2001, p. 18)

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e negam-se mutuamente reaparecem na estruturação do narrador machadiano. Roberto Schwarz não
nega a relação forte de Machado com a tradição ocidental, mas prioriza em sua leitura a relação dessa
forma com o contexto histórico em que o romance se insere.

No caso, podemos pensar as atribulações do narrador que adere tanto ao ponto de vista masculino,
quanto da elite letrada, que sofre as tensões entre perspectiva moderna, burguesa e patriarcal. No
deslocamento da análise do romance para o conto, é possível dizer que mesmo um narrador de terceira
pessoa, externo, apresenta marcas discursivas dessa posição que tende a distorcer sua relação com o
outro, seja com a personagem representada, seja com o interlocutor.

Voltemos à cena da troca das almas, ao narrador das Academias do Sião e a um comentário
narrativo nada modesto:

Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa
invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também.
O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da minha pessoa...
A alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e penetrou no
corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se
e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra,
segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio
e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a
todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez
trocados, continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais dantesca, em que me
pese à modéstia.

O narrador refere-se ao canto XXV do Inferno, Dante, em que estão os ladrões. O poeta mostra
uma metamorfose peculiar. Frente a frente, Buoso fica mesmerizado pelo olhar da serpente, e um se
reverte no outro. O poeta não esconde o horror do que presencia e deve narrar.12 No conto, vale guardar
a linhagem da metamorfose, acentuada pela dimensão do horror e do grotesco que a reversão de uma
identidade na outra, na troca de corpos. Trata-se de algo antinatural, mediado pela magia. A natureza
se apresenta nas combinações possíveis (homem com alma feminina ou masculina; mulher com alma
feminina ou masculina). Quatro possibilidades, como vimos, indiciam um deslizamento que separa
sexualidade e gênero, biologia e cultura.

Nesse momento, a dimensão alegórica (parabólica) se revela com plenitude no arbítrio do


narrador. Não se trata apenas da falta de humildade, que o põe na linhagem de Ovídio, Lucano e Dante,
para superá-los. É sempre interessante observar a recorrência com que o narrador machadiano, volúvel,
busca uma supremacia qualquer sobre a tradição, sobre o leitor. (Schwarz, 1990) Vale, então, insistir
na tese de que, no caso desconjuntado, brasileiro, a objetividade do narrador externo é arruinada pela
invasão personalíssima da veleidade que desfaz a autonomia do objeto narrado, subordinando-o a sua
vontade.

E mesmo no narrador em terceira pessoa, num conto alegórico como As academias, esse gesto se
mostra com nitidez, “mando-os calar a todos os três”. A posição social também se mostra na mistura

12
“A divina comédia”, lida através do canto dedicado a Farinata e Cavalcanti, serve para mostrar o realismo
figural de Dante. No caso dos cantos XXIV e XXV, há um deslizamento para a alegoria. O horror da cena
fica evidente na apresentação detalhada da metamorfose do homem em serpe e da serpe em homem. Talvez
valesse retomar a leitura que Auerbach faz de Baudelaire, em que o realismo ganha uma coloração específica,
o apego ao detalhe escabroso que se mistura ao tema elevado.

71 Revista Cerrados, nº 45, ano 26


da leveza humorística do comentário com o horror. Fazendo uma apropriação auerbachiana, seria uma
mistura entre realismo (horror) e humor, que aqui cumpre a função de revelar o mal-estar masculino
(patriarcal e burguês) quando (re)conhece que o gênero é uma performance socialmente sedimentada,
uma imposição que define os papéis atribuídos a homens e mulheres. Não se pode perder de vista a
ambivalência desse narrador que encena numa alegoria uma complexa teoria de gênero, mas, ao mesmo,
não consegue esconder plenamente no humor o horror que essa troca de corpos provoca. Em termos
menos metafóricos, é chocante a revelação de que o nexo entre mulher e feminilidade não é natural, mas
uma reificação fetichizada e naturalizada.

Considerações finais (ou da volta do parafuso)

Os narradores dos contos machadianos se defrontam com personagens femininas que fogem
ao padrão do casamento, do cuidado do lar e dos filhos, da acomodação à vida doméstica, do interesse
restrito à moda, em suma, de uma vida simplória e sem complexidade interior. Dona Paula e o adultério
secreto, Dona Camila e sua vaidade (capaz de sacrificar a própria filha), Maria Olímpia e a admiração dos
outros (desejo da carícia pública), Dona Inácia, pobre e apaixonada por um adolescente... Na captação do
gesto feminino, o conto traz à primeiro plano o momento de ruptura das normas burguesas e patriarcais.

O narrador se impõe o dever realista de mostrar e de narrar. Quando o faz, no entanto, entre em
cena sua posição de classe, seu gênero, sua formação letrada, o que embasa o olhar alegorista-irônico, que
faz das mulheres uma imagem regredida da natureza. Ou seja, elas deixam de ser agentes de sua história,
para se tornarem alegoria de algum aspecto da condição humana. O gesto violento do narrador define um
sentido, uma condenação.

A personagem realista (complexa, atravessada por relações sociais, mergulhada na história e


inserida no cotidiano) se converte em alegoria no conto machado. A transformação é regida pelo condão
discursivo do narrador masculino e patriarcal, da elite brasileira. Este narrador se esforça por adotar
o padrão burguês e realista, apresenta as personagens no contexto histórico, mas acaba por alegorizá-
las como cristalização de um lugar social que enforma a individualidade e barra a subjetivação. Presa
à norma social, ideológica, perde a capacidade de transformação, e a experiência do tempo histórico-
social se metamorfoseia em vivência de uma repetição do mesmo, como se fora uma condenação a uma
eternidade infernal e sofrida na ordem patriarcal-burguesa. O refinamento literário – seja no humor, seja
na abundância de referências literárias – dilui, mas não desfaz o gesto alegórico-patriarcal que suga a
vida de suas personagens. Dona Benedita e Maria Regina alegorizam-se e ficam à mercê do narrador
autoritário.

72 Revista Cerrados, nº 45, ano 26


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Recebido em: 30/09/2017
Aceito para publicação em: 01/12/2017
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